Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2223/20.7T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: CULPA DO LESADO
RISCO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
PEÃO
Nº do Documento: RP202209122223/20.7T8VLG.P1
Data do Acordão: 09/12/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do art. 505.º CC, a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
II - Os beneficiários preferenciais desta responsabilidade são os peões, os ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, carecendo de especial proteção a este nível as crianças, os idosos e outros indivíduos frágeis, estando afastado o risco próprio do veículo se o acidente resultar unicamente do comportamento do próprio lesado, culposo ou não (v.g. o peão atravessa a rua a correr ou fora da passadeira ou quando o semáforo está vermelho para ele).
III - Quando se não trate de situação de vulnerabilidade, há que avaliar as circunstâncias de cada sinistro para verificar se a culpa do lesado foi grave ou o único fator do acidente, situação que o ordenamento francês apelida de faute inexcusable, entendida esta como a conduta intencional de gravidade excecional que expõe o seu autor, sem razão justificada, a um perigo do qual deveria ter estado ciente.
IV - Encontrando-se o peão a 10 metros de distância da passadeira e sendo noite, avançando repentinamente para o interior da faixa de rodagem, em passo acelerado, sem se certificar do trânsito que se fazia na via, está afastada a responsabilidade pelo risco do veículo atropelante que, circulando a não mais de 40 Kms/hora, foi surpreendido pelo peão na via.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2223/20.7T8VLG.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AUTORA: AA, casada, empregada de limpeza, residente na Rua ..., em ..., Valongo.
RÉ: X... - Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua ..., em Lisboa.
Por via da presente ação declarativa, pretende a A. obter a condenação da Ré a pagar-lhe montante global não inferior a € 5.414,47, acrescido de juros de mora legais, desde a citação até efetivo e integral pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais já liquidados (€ 414,47) e não patrimoniais (€ 5.000,00), e valor a liquidar ulteriormente relativo a danos patrimoniais consubstanciados em custos hospitalares, custos de transporte para o hospital, custos médicos e de enfermagem, custo dos óculos, e demais danos que ocorram no futuro.
Para tanto, alegou ter sido vítima de atropelamento quando atravessava a estrada, sinistro que ficou a dever-se a culpa da segurada da Ré, porque mudou de direção à esquerda, sem efetuar a perpendicular, passando a circular em contramão, a velocidade superior à permitida para o local, que é de 30Kms/hora.

Contestou a Ré, opondo-se à procedência do pedido, por entender ter o acidente sido provocado pela A. que, atravessando a estrada durante a noite, o fez fora da passadeira existente a 10, 15 metros do local da travessia, não estando atenta ao trânsito que se fazia.
Impugna os danos.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 14.4.2022, a qual julgou a ação improcedente, absolvendo a Ré do pedido, tendo dado como provados os seguintes factos:
a) A Autora nasceu em .../.../1964 e é casada com BB;
b) Trabalha como empregada de limpeza na sociedade comercial “C..., Lda.”, sediada na Rua ..., ..., em ..., em regime de contrato de trabalho a tempo parcial, auferindo como rendimento mensal o valor líquido de € 124,60 (cento e vinte e quatro euros e sessenta cêntimos);
c) No dia 22 de abril de 2020, pelas 21:20 horas, a A. deslocava-se a pé na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Valongo;
d) Via essa em que o trânsito de veículos se processa nos dois sentidos;
e) A mesma seguia no sentido ... - ..., nas imediações das instalações da associação "Y....", caminhando pelo passeio, do lado esquerdo da faixa de rodagem, em sentido contrário ao tráfego rodoviário;
f) Tendo chegado ao ponto em que, considerando esse mesmo sentido ... - ..., na Rua ... entronca, pela esquerda, a Rua ..., da mesma freguesia e concelho;
g) Também ela dotada de dois sentidos de trânsito;
h) E que ali se alarga à direita e à esquerda, até à linha de interseção com a Rua ...;
i) Por sua vez, a Rua ..., à aproximação do referido entroncamento, considerando o sentido ... – ..., desenvolve-se em curva para a esquerda;
j) Dispondo esse local de iluminação pública e sendo boas as condições de visibilidade;
k) No interior da Rua ..., antes da interceção da mesma com a Rua ..., encontra-se desenhada no pavimento uma travessia para peões, vulgo “passadeira”;
l) E mais adiante, junto à confluência das duas ruas, no passeio do lado direito da Rua ..., encontra-se implantado um sinal de “STOP”;
m) Nas mesmas referidas circunstâncias, circulava na Rua ..., no sentido ... – ..., o veículo automóvel ligeiro de mercadorias da marca Opel, modelo ..., com a matrícula ..-EV-.., pertença de CC e ao tempo conduzido pela sua filha, DD;
n) Fazendo-o esta pela metade da faixa de rodagem reservada ao seu sentido de marcha;
o) A uma velocidade de não mais de 40 Km/hora;
p) À aproximação do entroncamento a que se alude em f), a condutora do “EV”, pretendendo mudar de direção à esquerda, para a Rua ..., acionou o sinal luminoso indicativo da intenção de mudar de direção à esquerda (vulgo, “pisca pisca”);
q) E após ter verificado que não havia qualquer veículo a circular em sentido contrário, deu início a essa manobra de mudança de direção para a esquerda;
r) A qual todavia não executou perpendicularmente ao eixo da via onde vinha a circular (Rua ...);
s) Sucede que quando se encontrava já no interior da Rua ..., a cerca de 10 metros de distância da passadeira a que se alude em k), cuja travessia verificou que ninguém estava a fazer ou se preparava para fazer, a condutora do “EV” foi surpreendida pela A. que, surgindo vinda da margem esquerda dessa mesma rua, considerando o sentido de marcha do “EV”, nesse momento avançou repentinamente para o interior da faixa de rodagem;
t) A caminhar em passo acelerado;
u) Atravessando a Rua ... entre o sinal de “STOP” referido na alínea l) e a passadeira para peões a que se alude em k);
v) Fê-lo, porém, sem previamente se certificar de que da Rua ... não vinha a circular nenhum veículo;
w) Assim vindo a ocorrer o embate entre o “EV”, na zona do respetivo canto frontal esquerdo, e o corpo da A., do lado direito, por virtude do que esta última caiu ao chão, onde embateu com a cabeça e o hemicorpo esquerdo;
x) Era então já noite;
y) E o piso encontrava-se limpo e seco;
z) Após o sinistro, a condutora do “EV” saiu da viatura e prestou auxílio à A;
aa) A A. foi assistida no local por uma equipa dos Bombeiros Voluntários ..., sendo imobilizada com colar cervical;
bb) A Guarda Nacional Republicana, do Posto Territorial ..., foi igualmente chamada ao local, lavrando a respetiva participação do acidente, conforme documento de que se mostra junta fotocópia a fls. 15 vº a 22 vº, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
cc) Apenas a condutora do veículo prestou declarações à GNR no local do sinistro relativamente aos factos ocorridos, conforme consta da participação do acidente;
dd) Uma vez que a A foi encaminhada de ambulância para o Centro Hospitalar ..., onde deu entrada no Serviço de Urgência pelas 22 horas e 26 minutos;
ee) Em consequência do atropelamento em causa, a A. sofreu ferida sangrante fronto-parietal esquerda e dores generalizadas, mas mais intensas à palpação da grade costal esquerda, em razão do que fez vários exames (Rx e Tomografia Computorizada cerebral), foi efetuada a lavagem, desinfeção e sutura da ferida, como colocação de penso, e administrada medicação, tendo-lhe sido dada alta hospitalar pelas 2:39 horas do dia 23.4.2020, com orientação para consulta externa de ortopedia;
ff) Ficou em vigilância médica levada a cabo pela Unidade de Saúde Familiar ..., a qual prestou à A. nos dias posteriores ao acidente diversas consultas médicas e de enfermagem;
gg) Em razão dos danos corporais sofridos em consequência do acidente em apreço, a A. ficou acamada durante uma semana e limitada na sua mobilidade motora;
hh) Tendo ficado impossibilitada de trabalhar e deixando de auferir os respetivos rendimentos, relativos aos meses de maio e junho de 2020 (completos) e 12 dias do mês de julho de 2020;
ii) Uma vez limitada na sua mobilidade, a A. necessitou do auxílio do marido para a realização de tarefas diárias, designadamente a confeção e toma de refeições, necessidades fisiológicas e de higiene pessoal e acompanhamento às consultas médicas e de enfermagem;
jj) Para tal, viu-se aquele obrigado a gozar férias, antecipadamente, para poder acompanhar a A. na sua recuperação;
kk) A requerimento da A., formulado em 11.6.2020, subsequentemente à comunicação pela Ré à mesma de que declinava a sua responsabilidade pelo sinistro em apreço nos autos, a Segurança Social concedeu provisoriamente à requerente, a título subsídio de doença no período de 25.4.2020 a 12.7.2020, a quantia global de € 310,70;
ll) A emissão da certidão da participação de acidente de viação elaborada pela GNR e junta a instruir a petição inicial, importou para a A. uma despesa do valor de € 95,00;
mm) É de € 264,19 o valor orçamentado dos custos hospitalares relativos ao atendimento da A. no serviço de urgência do hospital na noite de 22.4.2020;
nn) Para aquisição da medicação que lhe foi prescrita pelo hospital a A. despendeu a quantia de € 7,97 (sete euros e noventa e sete cêntimos);
oo) Terá que suportar os custos das consultas médicas e de enfermagem realizadas na Unidade de Saúde Familiar ..., com vista à recuperação pós-acidente, em valor a liquidar ulteriormente, uma vez que as USF remetem posteriormente a respetiva fatura para pagamento;
pp) Em consequência do acidente, a A. ficou com os seus óculos totalmente danificados e sem possibilidade de reparação, que se partiram aquando do atropelamento, necessitando de adquirir uns novos, orçamentados no valor de € 300,00 (trezentos euros).
qq) No próprio dia do acidente e nos dias que se lhe seguiram, a A. sofreu fortes dores no corpo;
rr) Perdeu o apetite e teve dificuldades em dormir;
ss) Viu-se impedida de realizar atividades lúdicas e de lazer e de cuidar dos seus netos;
tt) O que tudo levou a que se sentisse angustiada e em stress;
uu) À data a que se reporta o acidente dos autos a responsabilidade civil por danos decorrentes para terceiros da circulação do veículo de matrícula ..-EV-.. encontrava-se transferida para a Ré por contrato de seguro, válido e em vigor, titulado pela apólice nº ..., até ao valor de € 7.200.000,00.

Foram dados como não provados os seguintes factos:
- A Rua ... entronca na Rua ... perpendicularmente à mesma;
- A Rua ..., no ponto onde é entroncada à esquerda pela Rua ..., descreve uma curva;
- O local da interseção entre ambas as ruas dispõe de uma larga faixa de rodagem com duas vias de trânsito;
- Quando chegou ao ponto em que na Rua ... entronca, pela esquerda, a Rua ..., a A imobilizou a sua marcha no passeio;
- Antes de proceder à travessia da Rua ..., para prosseguir a sua caminhada pela Rua ..., a mesma certificou-se de que não circulavam quaisquer veículos na referida interseção;
- Tendo observado atentamente ambas as faixas de rodagem antes de iniciar a travessia, de forma a poder efetuá-la com segurança;
- Não tendo visto veículos ou outros utentes da via pública a circular na interseção entre os dois arruamentos, a A. iniciou então a travessia da faixa de rodagem;
- Nas circunstâncias referidas supra sob a alínea s), o “EV” seguia a uma velocidade de aproximadamente 20 kms/h;
- O embate a que se alude em w) ocorreu quando a A. estava prestes a cruzar o meio da faixa de rodagem da Rua ..., mas ainda na via de trânsito destinada à circulação de veículos em sentido inverso àquele em que circulava o “EV”;
- A condutora do “EV”, ao entrar na Rua ..., invadiu a via em sentido contrário à sua, isto é, em contramão;
- A velocidade máxima permitida para a circulação de veículos na Rua ... é de 40 (quarenta) quilómetros por hora.
- Sendo reduzida para 30 (trinta) quilómetros por hora, no local de interseção entre os dois arruamentos supra mencionados;
- A condutora do “EV” circulava a uma velocidade superior a 40 (quarenta) Km/hora.
- Por essa razão, e porque não realizou a manobra perpendicular aquando da mudança de direção à esquerda, é que a condutora do “EV” entrou em contramão na Rua ...;
- E não logrou imobilizar o seu veículo sem embater na A.;
- Foi a condutora do “EV” quem prontamente acionou os meios de emergência médica;
- O facto de ver o seu marido forçado a abdicar dos seus dias de férias para cuidar de si como uma criança pequena, impondo-se toda uma reorganização da vida familiar e doméstica, importou para a A. grande angústia, revolta e desânimo.
- Ascendeu a € 311,50 (trezentos e onze euros e cinquenta cêntimos) o valor total dos rendimentos a que se alude em hh);
- A A. terá que suportar o custo da deslocação da equipa dos Bombeiros Voluntários ... ao local do sinistro e o transporte da A. ao Centro Hospitalar ..., uma vez que este transporte por parte dos Bombeiros, será a liquidar ulteriormente, em virtude da respetiva fatura ainda não ter sido remetida para pagamento;
- Em consequência do acidente, a acrescer às mazelas físicas e ao doloroso período de convalescença, a A. viveu um quadro depressivo;
- A A. ficou privada dos seus habituais contactos sociais, o que veio agravar o seu estado de angústia e sentimento de isolamento;
- Para combater este quadro depressivo, a A. necessitou igualmente de tomar medicação.

Desta sentença recorre a A., visando a sua revogação e a condenação da Ré no pedido.
Para tanto, aduziu os fundamentos que assim concluiu:
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Contra-alegou a Ré opondo-se à procedência do recurso, terminando a sua peça processual com as seguintes conclusões:
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Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, nºs 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil):
- da alteração (aditamento) aos factos provados;
- da concorrência entre a culpa e o risco.

Fundamentos de facto
Pretende a recorrente se adite à matéria de facto provada o seguinte:
- a condutora do EV circulava a não mais de 40 km/h, em terceira, não tendo reduzido a velocidade de circulação e de caixa para executar a manobra de mudança de direcção;
O art. 640.º CPC estabelece um ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo no n.º 1 que,
1.Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O n.º 2 acrescenta:
“a) … quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”
Assim, se o recurso visa a impugnação da matéria de facto, cabe ao tribunal ad quem proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, para o que deverá reapreciar a prova produzida, considerando os meios de prova indicados no recurso e outros que entenda relevantes.
Para tanto, o legislador impõe ao recorrente o cumprimento de regras de conteúdo e forma de molde a evitar uma completa ou parcial repetição de julgamentos, rejeitando, desde logo, a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão de facto, tendo optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente.
Por essa razão, embora se não exija a transcrição dos excertos da gravação que se considerem importantes, já é necessário que os apelantes indiquem com exatidão as passagens da gravação que consideram relevantes para que o tribunal de recurso possa apreciar todas e cada uma das decisões de facto com que não concordam, isto porque, substancialmente, a intervenção da Relação a este título apenas redundará na alteração da seleção factual alcançada em primeira instância, caso se verifique um erro manifesto e flagrante na apreciação da prova em cada ponto concreto.
Compulsadas as alegações – motivação e conclusões (estas, afinal, a reprodução daquelas) – verificamos de imediato não ter a recorrente indicado a prova concreta – nomeadamente o depoimento de qual testemunha – donde resulta a circulação a não mais de 40 kms/hora em terceira (pensamos que se referirá à mudança da caixa de velocidades, admitindo que o veículo não era automático, o que nem sequer resulta dos factos provados) não reduziu a velocidade para efetuar a manobra de mudança de direção à esquerda
Menos ainda se indicam os exatos locais das gravações donde poderão extrair-se estes factos.
Limita-se a apelante a rebater a motivação da decisão factual que ficou consignada em primeira instância, nomeadamente insurgindo-se contra a aceitação do testemunho de EE, imprimindo deste modo às alegações um cunho negativo – de ataque abstrato à prova em que se baseou a sentença – ao invés de positivo e construtivo, de indicação concreta de qual a prova que motivará decisão diversa.
Depois, adentrando mais especificamente nos factos que pretende ver provados, temos que a A. pretende se dê como demonstrada uma velocidade do veículo atropelante a não mais de 40 Kms/hora.
Contudo, não se vê qual a necessidade de repetição, se este facto já resulta provado em o).
Relativamente à engrenagem em terceira, não só se não se vê qualquer relevo neste facto – não alegado sequer nos articulados – como, mais uma vez, se demite a recorrente de indicar a prova do qual emergiria.
Do mesmo modo, a alegação segundo a qual o veículo não reduziu a velocidade antes de efetuar a mudança de direção à esquerda.
Não só não está dada como demonstrada a velocidade seguida, como não indica a recorrente as passagens da gravação de qualquer depoimento que o indiciasse.
Cabe enfatizar que mesmo a ilação de factos novos a partir de outros – presunção judicial ou natural prevista no art. 349.º CC - exige que se especifique o facto base do qual emerge o facto presumido. Só indicando aqueles factos é que se poderia efetuar uma operação lógico-racional e probabilística como a que se pretende em 16 - pergunta colocada pela recorrente, mas cuja resposta haveria de procurar ancorar em dados de facto concreto que resultassem da prova.
Do mesmo modo, o que se pretende em 17.
Que prova ancora a asserção segundo a qual não houve abrandamento de velocidade? Nada é mencionado.
Tanto basta para fazer improceder o recurso.
Os factos que interessam à decisão da causa são, por isso, os fixados na sentença recorrida.

Fundamentação de Direito
Não suscita dúvidas o enquadramento da pretensão indemnizatória no domínio da responsabilidade civil extracontratual cujos pressupostos são sobejamente conhecidos e ficaram enunciados, sem reparo, na sentença sub iudicio.
A recorrente, contudo, manifesta a sua visão sobre a subsunção da factualidade provada sob os modelos concorrentes da culpa (art. 483.º CC) e do risco (art. 503.º, n.º1 CC). Invoca mesmo acórdão do STJ que, fazendo apelo às mais recentes correntes interpretações, apela à coexistência da responsabilidade do detentor do automóvel (ou sua seguradora), cuja culpa se não apurou, com a negligência do lesado.
Não obstante esta sua posição inicial, logo após, vem a recorrente esgrimir com a culpa da condutora segurada, supostamente por seguir em terceira, não ter abrandado a marcha e não ter visto o peão, concluindo que “a condutora do EV poderia ter evitado ou reduzido o impacto do embate se fosse mais hábil ou mais prudente”, prosseguindo que “há culpa da aqui Recorrente na produção do acidente, mas não poderá esta excluir, sem mais, a responsabilidade pelo risco adveniente da utilização do veículo”.
Ora, é certa a interpretação segundo a qual o risco se não exclui quando se verifica culpa do lesado, responsabilizando-se o dono da fonte de risco pelos prejuízos causados por este, ainda que haja culpa daquele no sinistro que o vitimou e assim se afastando da tese clássica de Antunes Varela.
Mas, se é de risco do veículo de que se fala, não há que aludir à maior habilidade ou diligência (prudência) da condutora do automóvel, porque então estaremos caídos no domínio da concorrência de culpas.
Dos factos provados não resulta imputável qualquer falta de cuidado à condutora do veículo, tendo a sentença afastado a sua culpa.
Com efeito, sendo noite e dispondo de uma passadeira para peões a cerca de 10 metros de distância, a A. surpreendeu a condutora do EV, quando, surgindo do seu lado esquerdo, avançou repentinamente para a faixa de rodagem, em passo acelerado.
Poderá, pois, equacionar-se se tem aqui lugar uma interpretação, que alguns dizem ser atualista, do art. 505.º CC que estabelece ser a responsabilidade objetiva afastada quando “o acidente é imputável ao próprio lesado”, de molde a adequar o normativo à realidade dos acidentes de viação e ao pendor de solidariedade social e de socialização do dano que enforma as normas relativas ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
A concorrência entre o risco e a culpa era já defendida pela doutrina, antes mesmo de o STJ, pelo ac. 07B1710, de 4.10.2007, ter considerado pela primeira vez que “O texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”, sendo ao concurso aplicável o disposto no art. 570º do CC”.
Vaz Serra, nos trabalhos preparatórios do Código Civil já defendia a tese da concorrência, mas também Sinde Monteiro, nos anos 80 do século passado, Calvão da Silva (na RLJ 134, p. 102-108) e Brandão Proença, na sua tese de doutoramento, em 1997, (A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Coimbra: Almedina) proponham essa interpretação.
Aquele primeiro aresto do STJ tratou de um embate entre um automóvel e uma bicicleta conduzida por menor de 10 anos – que violou o sinal de aproximação de estrada com prioridade-, não tendo culpa a condutora do automóvel, embora detivesse pouca experiência na condução.
Em anotação a este aresto, Calvão da Silva, na RLJ 137, p. 35 e ss., considerou dever o art. 505.º CC merecer esta leitura:
Sem prejuízo do disposto no art. 570.º (leia-se, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado e, “a fortiori”, sem prejuízo do concurso de facto não culposo do lesado), a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido (com culpa ou sem culpa) unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Os beneficiários preferenciais desta responsabilidade – acrescenta – são os peões, os ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, como parte mais vulnerável, o que vai de encontro ao direito europeu e mesmo ao regime do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel (art. 11.º, n.º 2, do DL 291/07, de 21.8).
Mais recentemente, nova doutrina se manifesta em favor deste concurso.
Por exemplo, Raul Guichard (em anotação ao art. 505.º CC, no Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, p. 414 e ss.) explicita carecerem de especial proteção a este nível as crianças, os idosos e outros indivíduos frágeis, estando afastado o risco próprio do veículo “se o acidente resultar unicamente do comportamento do próprio lesado, culposo ou não (o peão atravessa a rua a correr ou fora da passadeira ou quando o semáforo está vermelho para ele…)”. E também Ana Prata, em anotação ao mesmo normativo (no Código Civil anotado que coordena, Vol. I, p. 702-703), para quem esta interpretação não é sequer atualista nem recebe inspirações comunitárias, pois é a que desde sempre merece o preceito.
Na jurisprudência, tem sido acolhida esta interpretação, nomeadamente no acórdão do STJ citado pela recorrente, de 28.3.2019 (Proc. 954/13.7TBPMS.C1.S1), no qual se tratou um caso de uma menor de 12 anos que foi atropelada quando, saindo do autocarro, atravessou a estrada em passo de corrida.
Mais recentemente, no ac. STJ, de 21.6.2022, Proc. 10538/16.2T8LRS.L1.S1, relativamente a menor que atravessou a estrada, correndo e fora da passadeira, sumariou-se o seguinte: Havendo um concurso de causas para o acidente, em que parte é atribuível à conduta do menor e no restante ao risco da circulação automóvel, a indemnização a atribuir deve atender a ambas as causas e ao seu contributo para os danos, fixando-se a indemnização que a houver lugar em 40% por referência ao comportamento do lesado e 60%, por referência ao risco da circulação automóvel, enquanto risco próprio dos veículos em circulação, com a sua força cinegética e a sua contribuição para o agravamento dos danos.
Já no acórdão do mesmo tribunal de 5.5.2022, Proc. 5080/18.0T8MTS.P1.S1, tratando caso de atropelamento em que a lesada, surda e incapaz de ouvir os veículos, atravessou a estrada, a 45 metros da passadeira, entendeu-se que “Face à interpretação actualista do art. 505.º do Código Civil, a exclusão da responsabilidade fixada pelo n.º 1 do art. 503.º restringe-se aos casos em que haja dolo ou por culpa grave do lesado, ou em que o facto do lesado deva considerar-se como causa exclusiva do acidente”, tendo concluído que, na ausência de culpa do condutor atropelante, cabia à seguradora deste indemnizar a lesada em 40% do valor dos danos.
E, no ac. STJ, de 15.3.2022, Proc. 23399/19. 0T8PRT.P1.S1, numa situação de atropelamento em que se provou que o veículo elétrico seguia regularmente e a lesada circulava no passeio de costas para os veículos automóveis, enquanto falava com colegas, tendo iniciado a travessia da faixa de rodagem distraída, entrando na via da direita atento o sentido de marcha do automóvel, sem olhar para a esquerda e sem reparar nos veículos automóveis que circulavam nesse sentido de trânsito, já considerou aquele tribunal o seguinte: “nunca poderia o tribunal, sem mais e à partida, fazer impender sobre um veículo eléctrico um risco, estimado em 20%, pela sua circulação silenciosa, sem sequer cuidar de apurar, segundo critérios de adequação e proporcionalidade, tendo em atenção as circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente, qual teria sido a efectiva contribuição dos “riscos próprios do veículo”, reduzidos estes apenas ao silêncio por ser eléctrico, para a produção do resultado danoso em paralelo com a actuação do peão, tendo em atenção a gravidade da culpa desta, traduzida num atravessamento inopinado de uma faixa de rodagem com trânsito, distraída, de costas para a circulação, a falar com as colegas à saída do trabalho, sem dar qualquer possibilidade à condutora de efectuar uma manobra para evitar o embate. De outra banda, sempre seria mister apurar, segundo as regras gerais, nessas circunstâncias específicas, se o silêncio da circulação daquele veículo teria sido ou não determinante para o atropelamento, ou se esse silêncio passaria sempre desapercebido face ao ruído do restante trânsito. Nestas circunstâncias mostra-se afastada uma qualquer possibilidade de concorrência entre culpa e risco, na medida em que a aceitação desta figura implicaria, sempre, a constatação da contribuição do veículo para a produção do resultado que in casu não se apurou, acrescendo ainda que a condutora conduzia no cumprimento das regras de circulação rodoviária e por forma a evitar o resultado produzido, o qual só ocorreu por culpa exclusiva do peão, cujo comportamento se mostrou violador daquelas mesmas regras cujo cumprimento lhe era igualmente exigido. As normas estradais, constantes do CEst e demais diplomas que regulam o trânsito são dirigidas aos automobilistas e também aos peões, disciplinando-se assim o comportamento humano, quer na condução, quer na circulação a pé, de molde a evitar os constrangimentos naturais daí advenientes”.
Aqui chegados, verificamos que a nota dominante na interpretação do art. 505.º, que permite a concorrência da culpa com o risco, é a de o acidente se dever à culpa grave do lesado e/ou de este se encontrar em situação de especial fragilidade perante a circulação estradal.
Assim, justificar-se-á a responsabilidade do detentor do veículo quando o lesado é menor, idoso, ou portador de uma qualquer vulnerabilidade – v.g – surdez ou cegueira.
Quando assim não é, há que avaliar as circunstâncias de cada sinistro para verificar se a culpa do lesado foi grave ou o único fator do acidente.
Trata-se de apurar a faute inexcusable, a que se refere a legislação francesa (art. 3.º da lei n.º 85-677 d5.7.85 – conhecida por lei Badinter, que tem em vista a situação particular das vítimas de acidentes de viação), e que o Tribunal de Cassação define como a “conduta intencional de gravidade excecional que expõe o seu autor, sem razão justificada, a um perigo do qual deveria ter tido conhecimento” (Cass., ass. plén., 10 de novembro de 1995, n.º 94-13.912).
No caso que nos ocupa, a A. não é menor de idade, nem idosa, e não nos é dada nenhuma indicação de que padeça de alguma fragilidade que imponha uma ponderação de proporcionalidade e concordância prática (critério postulado pelo Ac. STJ, de 1.6.2017, Proc. 1112/15.1T8VCT.G1.S1) entre a contribuição causal da lesada e o risco relevante do veículo.
O que se apurou é que o veículo automóvel efetuou uma manobra de mudança de direção à esquerda e, apesar de não a ter executado de forma perpendicular ao eixo da via (como impõe o art. 44.º CE), a verdade é que circulava a 40 Kms/hora e veio a colher a A. já na Rua ..., rua para a qual mudou de direção, não sendo assim causal do atropelamento aquela mudança de direção.
A A., por sua vez, encontrando-se a 10 metros de distância da passadeira e sendo noite, avançou repentinamente para o interior da faixa de rodagem, em passo acelerado, sem se certificar do trânsito que se fazia na via.
Por isso, no ponto s) dos factos provados se alude a surpresa da condutora do EV, posto que este, circulando a 40 Kms/hora, poderia ter parado antes do atropelamento, caso o peão não tivesse surgido de modo repentino e em passo acelerado.
Esta atuação da lesada é, a nosso ver, a única que esteve na base do sinistro.
Razão pela qual se mostra afastada a responsabilidade da Ré.

Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 12.9.2022
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
Maria José Simões