Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
92/25.0YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PROENÇA
Descritores: CONTRATO CELEBRADO À DISTÂNCIA
DIREITO DE LIVRE RESOLUÇÃO DO CONTRATO
DESEMBALAGEM DO PRODUTO
Nº do Documento: RP2025111192/25.0YRPRT
Data do Acordão: 11/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Impugnando a recorrente determinados pontos da matéria de facto considerada provada pelo tribunal arbitral com base em contradição das declarações do recorrido em sede de audição arbitral, sem fazer alusão às mesmas e sem transcrever, ou localizar por referência ao tempo de gravação, quaisquer passagens de tais declarações, deve nessa parte o recurso ser rejeitado.
II - O artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 24/2024 (Regime Dos Contratos Celebrados à Distância e Fora do Estabelecimento Comercial) atribui ao consumidor, dentro de 14 dias após a entrega dos bens, o direito de livre resolução do contrato,
III - É nula a cláusula referindo que o vendedor não aceitaria a devolução de qualquer produto, caso estivesse desembalado.
IV - A não aceitação de devoluções de embalagens que tivessem sido abertas, traduz mora accipiendi relativamente à obrigação do consumidor proceder à devolução dos bens, ficando excluída a invocação da excepção do não cumprimento do contrato, porquanto foi o próprio credor quem criou o impedimento ao cumprimento da obrigação.
V - Caracterizando-se o direito de livre resolução previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do citado Decreto-Lei n.º 24/2024, pela desnecessidade de o consumidor fundamentar a sua atitude de por termo ao contrato, estando a sua decisão unicamente dependente da sua vontade livre e discricionária, o abuso de direito só será invocável se o titular se mover por um fim enviesado e reprovado pelo Direito - por exemplo o de obter a fruição gratuita do bem num determinado momento ou evento, a expensas do vendedor – cabendo a este a respectiva alegação e prova, por se tratar de facto impeditivo ou extintivo do direito de livre resolução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 92/25.0YRPRT


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:



Sumário:
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AA, com os sinais dos autos, submeteu ao CICAP - Tribunal Arbitral do Centro de informação de Consumo e Arbitragem do Porto, a apreciação de um litígio que o opõe a "A...- Grandes Armazéns, S.A.", nos seguintes termos:
1- A requerida tem por objecto social a venda a retalho de todos os artigos de uso e consumo, comercialização de medicamentos não sujeitos a receita médica/ e prestação de todo o tipo de serviços associados à referida venda, bem como a actividade de mediação de seguros e de actividades de salões de cabeleireiro e institutos de beleza.- Intermediário de crédito Construção civil e realização de obras particulares, de instalações eléctricas, de canalização e climatização, assim como de outras instalações em construções. Actividades de acabamento em edifícios, estucagem, montagem de trabalhos de carpintaria e caixilharia, revestimento de pavimentos e de paredes, pintura e colocação de vidros assim como outras actividades de acabamentos em edifícios.
2- Em 01.09.2024, o requerente adquiriu da requerida uma Televisão ("55 QD-OLED 4K COGNITIVE") pelo valor de €2.499,00 e um Sistema de Som ("Sistema Home Cinema HTA9M") pelo valor de €2.499,00, ambas as compras realizadas no site da requerida, em encomendas separadas, totalizando €4.998,00.
3- A Televisão e o Sistema de Som referidos no item anterior foram adquiridos pelo requerente à requerida para seu uso pessoal.
4- O requerente efectuou o pagamento online à requerida através dos seguintes dados: Entidade: ...68; Referência: ...89; Montante: €2.499,00 (referente à Televisão); Entidade: ...68; Referência: ...64; Montante: €2.499,00 (referente ao Sistema de Som).
5- Aos contratos celebrados entre o requerente e a requerida, referidos no item "2", ficaram associados o pedido de compra n.° ...64 e a factura n.° SC 01432431/00210005 (referente à Televisão); e o pedido de compra n.° ...96, e a factura n.° SC 01432431/00210006 (referente ao Sistema de Som).
6- Os bens foram entregues ao requerente em 10.09.2024.
7- No mesmo dia 10.09.2024 o requerente exerceu o direito de livre resolução de ambos os contratos.
8- Nos pedidos de devolução, o requerente declarou expressamente que apenas procedeu à desembalagem dos produtos, não tendo os mesmos qualquer uso. No entanto, a requerida informou que não aceitaria a devolução dos referidos produtos.
9- a requerida, de forma mais especifica, afirmou que, caso os produtos estivessem desembalados, a devolução não poderia ser aceite.
10- Relativamente ao processo de devolução do Sistema de Som, o mesmo pode ser resumido da seguinte forma:
I. A requerida, em resposta ao pedido de devolução, questionou o motivo da devolução e solicitou fotografias.
II. O requerente, por sua vez, respondeu que não pretendia ficar com o produto e, quanto às fotografias, questionou se deveria desembalar todos os- artigos que integram o Sistema de Som para, em seguida, fotografar e voltar a embalar. Essa pergunta foi feita porque, apesar de a caixa principal já estar aberta, as quatro colunas, a unidade de ligação entre as colunas (box), os suportes de cada coluna e o comando permaneciam devidamente embalados individualmente, com as respectivas protecções. O requerente também referiu que, após ter contactado o serviço de apoio ao cliente, através do chat no site da requerida, foi informado de que produtos como o Sistema de Som, uma vez desembalados, não poderiam ser devolvidos, pelo que solicitou esclarecimentos adicionais quanto ao processo de devolução.
III, Em resposta, a requerida, por e-mail de 16.09.2024, às 19h10, informou: "No seguimento do seu contacto, vimos por este meio informar que, caso o artigo esteja desembalado, não podemos aceitar a sua devolução” No entanto, caso o mesmo esteja dentro da caixa, por abrir, solicitamos apenas que nos envie uma fotografia da caixa para que possamos encaminhar para o nosso armazém com a solicitação de devolução".
IV. O requerente confirmou que, de facto, a caixa principal havia sido aberta, mas reiterou que o artigo em si não havia sido utilizado.
V. A requerida respondeu, em e-mail de 19.09.2024, às 16h37, reiterando: "No seguimento do seu contacto vimos por este meio informar que devido ao facto de artigo esteja desembalado não podemos aceitar a sua devolução. Ficamos ao dispor para esclarecimentos adicionais".
11- Das declarações da requerida, referidas nos pontos III) e V) da secção anterior, ficou evidente que (i) a requerida recusou, de forma categórica, a devolução do artigo em questão (Sistema de Som) e que (ii) a devolução foi negada exclusivamente com base no facto de o artigo ter sido desembalado.
Adicionalmente, tornou-se claro que a requerida apenas pretendia uma fotografia da embalagem e avançar com o processo de devolução, no caso apenas de a embalagem estar selada e por abrir.
12- Face ao exposto, ficou igualmente claro para o requerente que a requerida não pretendia fotos dos artigos no seu interior, mas apenas da embalagem. Como referido no ponto II)r o requerente questionou a requerida sobre o procedimento correto para o envio das fotografias, especificamente se seria necessário desembalar integralmente os diferentes componentes do Sistema de Som para fotografar os artigos em si. A resposta da requerida foi clara: apenas seria necessária uma fotografia da embalagem, e apenas no caso de esta se encontrar ainda por abrir. Como a embalagem já estava aberta, o requerente não procedeu ao envio de quaisquer fotografias, seguindo as instruções recebidas da requerida.
13- A mesma lógica aplicável ao Sistema de Som é igualmente válida para o processo de devolução da Televisão. Após a cessação das comunicações relativas ao primeiro pedido de devolução da Televisão (no qual o requerente apenas obteve uma resposta inicial, sem qualquer resposta subsequente aos restantes e-mails enviados), o requerente submeteu novo pedido de devolução em 24.09.2024, através do site da requerida, declarando o seguinte:
"Olá, Já tinha aberto um pedido de devolução desta encomenda com o pedido n.° ...64, com a factura n.° SC 01432431/00210005. No entanto, só deram resposta inicial e não responderam mais. Peço que respondam a este pedido. 0 artigo foi desembalado, mas não teve qualquer uso. NIF associado à encomenda: ...41. Obg, AA."
14- Em resposta a este novo pedido, no e-mail de 24,09.2024, às 16h21, a requerida afirmou: "Estimado Cliente, AA, No seguimento do seu contacto, informamos que a encomenda online n° ...64 não poderá ser devolvida devido às condições de venda aceitas no ato da compra (...) pelo que o facto de desembalar (...) implicará a responsabilidade do cliente, ficando este obrigado a pagar o preço do bem, por se considerar que o bem em causa deixou de reunir as características de conformidade do fabricante e/ou ter sofrido depreciação substancial que inviabilize o seu uso, estando em causa, de forma irremediável/ as características iniciais do bem. " (conforme se comprova no documento junto
15- Desta comunicação, depreende-se que, após tomar conhecimento de que a embalagem foi aberta, a requerida recusou de forma definitiva a devolução, tendo dado por terminado o processo de devolução. Novamente, a recusa foi fundamentada exclusivamente no facto de o produto ter sido desembalado.
16- Em nenhum momento a requerida declara que as devoluções foram recusadas por outro motivo que não a abertura das embalagens, pelo que, qualquer argumento em contrário, por parte da requerida, deverá ser rejeitado por contrário aos factos ocorridos, os quais apresentados e evidenciados nos documentos anexados a esta petição.
17- Desta forma, o fundamento invocado pela requerida para a recusa da devolução é manifestamente contrário ao disposto no n.° 1 do artigo 14.° do Decreto-Lei n.° 24/2014, de 14 de Fevereiro, que estabelece que "o exercício do direito de livre resolução não prejudica o direito de o consumidor inspeccionar, com o devido cuidado, a natureza, as características e o funcionamento do bem". Assim, a requerida não poderia limitar ou condicionar o direito do requerente sob o pretexto de que o bem foi desembalado.
18- A requerida nunca procedeu à devolução do valor pago pelo requerente, referido no item "2".
19- O contrato foi celebrado através do site da requerida, configurando um contrato celebrado à distância, nos termos da al. h) do art. 3o, do Dec. Lei 24/2014, de 14 de Fevereiro.
20- Sendo um contrato à distância, o requerente tem o direito de livre resolução, a exercer nos termos do art. 10.° do mencionado Dec. Lei, dentro de 14 dias após a entrega do bem.
21- Os e-mails de 10.09.2024, às 19:58h e 20h03, enviados pelo requerente à requerida, constituem uma declaração inequívoca de resolução do contrato,
22- Como o bem foi entregue ao requerente em 10.09.202 e os e-mails de resolução foram enviados no mesmo dia, o requerente exerceu o seu direito de livre resolução de forma tempestiva, válida e eficaz,
23- Após a resolução, era obrigação da requerida, nos termos do n.° 1 do art. 12 do Dec. Lei 24/2014, restituir ao requerente todos os pagamentos recebidos, no prazo de 14 dias.
24- A requerida não procedeu à devolução do valor no prazo legal, pelo que, nos termos do art. 12, n.° 6 do DL 24/2014, de 14 de Fevereiro, estará obrigada a devolver o dobro do valor pago.
Pedido:
Face a todo o exposto, vem o requerente requerer que a requerida seja condenada ao pagamento da quantia de 9.996€, acrescida de juros de mora, calculados desde a nata em que a divida se tornou exigível até à data da sentença, e de juros vincendos, a contar desta até ao integral cumprimento da obrigação, nos termos dos artigos 805.° e 806.° do Código Civil.
Juntou prova documental.
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A reclamada deduziu oposição, no essencial dizendo, não tendo a reclamada se oferecido para recolher o bem, a esta cabe o direito à retenção do reembolso até à devolução dos bens. Mais invocou que solicitou por várias vezes fotografias do bem para que pudesse confirmar o seu estado de conservação, no decorrer da troca de ermais com o reclamante, nunca tendo este enviado. E que, de acordo com as Condições Gerais patentes no seu site, se as embalagens dos produtos estivessem danificadas ou abertas não seria aceite a devolução dos mesmos.
Realizada a audiência de julgamento, de que não há registo fonográfico nem dele foi feita menção na acta, foi proferida decisão arbitral, que condenou a reclamada a devolver em dobro a quantia paga pelo reclamante perfazendo o montante de €9.996,00, devendo ainda ser pagos juros de mora, desde 25 de Setembro de 2024 até ao efectivo cumprimento.
Inconformada, interpõe a reclamada recurso de apelação da decisão, formulando as seguintes conclusões:
(…)
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O reclamante apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, cfr. art. 639º do CPC. Assim as questões a decidir consistem na impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal arbitral, e em saber se o recorrido tinha o direito de livre resolução do contrato, se a recorrente pode legitimamente invocar a excepção de não cumprimento, e se o recorrido agiu em abuso de direito.
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São os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal arbitral:
1. Em 01.09.24, o reclamante adquiriu online no site da reclamada uma televisão 55 QD-OLED 4k Cognitive no valor de 2.499,00€ e um sistema de som, Sistema Home Cinema HTA9M, no valor de 2.499,00€, doc 1 e 2;
2. O reclamante alegou as aquisições dos bens foram efectuadas em separado, totalizando 4.998,00€ e que foram para uso pessoal, doc 1 e 2;
3. O reclamante efectuou o pagamento à reclamada através dos seguintes dados:
Entidade: ...68, Referência: ...89, Montante: 2.499,00€ (TV); Entidade: ...68,
Referência: ...64, Montante: 2. 499,00€ (sistema de som), docs 1 e 2;
4. Aos contratos celebrados entre reclamante e reclamada ficaram associados o pedido de compra nº ...64 e a factura nº SC 01432431/00210005 (TV) e o pedido de compra n* ...45'...96 e a factura nº SC 015432431/00210006 (sistema de som), docs 1 e 2;
5. Os bens foram entregues ao reclamante em 10.09.24, docs 5 e 6;
6. No dia 10.09.24, o reclamante exerceu o direito de livre resolução relativamente aos dois contratos celebrados com a reclamada, docs 7 e 8;
7. O reclamante alegou que nos respectivos pedidos de devolução declarou expressamente que procedeu à desembalagem dos produtos, não lhes tendo dado qualquer uso;
8. O reclamante informou que a reclamada declarou que não aceitava a devolução dos produtos;
9. O reclamante esclareceu que relativamente ao sistema de som a reclamada (“respondeu resumidamente o seguinte: "i. A reclamada em resposta ao pedido de devolução, questionou o motivo da devolução e solicitou fotografias, docs 9 e 10;
10. O reclamante respondeu à reclamada que não pretendia ficar com o produto e que no que diz respeito às fotos se deveria desembalar todos os elementos que integram o sistema de som para poder fotografar e voltar a embalar, docs 9 e 10;
11. O reclamante esclareceu que fez tal pergunta porque, apesar da caixa principal, já se encontrar aberta, as 4 colunas, a unidade de ligação entre as colunas (box), os suportes de cada coluna e o comando permaneciam devidamente embalados e com as respectivas protecções, docs 9 e 10;
12. O reclamante referiu ainda que após ter contactado o serviço de apoio ao cliente, através do chat do site da reclamada, fora informado que os produtos relativos a sistema de som não poderiam ser devolvidos, pelo que solicitou esclarecimentos adicionais quanto ao processo de devolução, docs 9 e 10;
13. A reclamada, através de email datado de 16.09.24, 19:10, informou que: "No seguimento do seu contacto, vimos por este meio informar que, caso o artigo esteja desembalado, não podemos aceitar a devolução. No entanto, caso o mesmo esteja dentro da caixa, por abrir, solicitamos apenas que nos envie a fotografia da caixa para que possamos encaminhar para o nosso armazém com a solicitação de devolução", doc 11;
14. O reclamante confirmou que a caixa principal fora aberta, mas reiterou que o artigo não fora utilizado, doc 11;
15. A reclamada respondeu por email datado de 19.09.24,16:37, reiterando o seguinte: "No seguimento do seu contacto, vimos por este meio informar que devido ao facto do artigo estar desembalado não poderemos aceitar a sua devolução. Ficamos ao dispor para esclarecimentos adicionais", doc 12;
16. O reclamante sublinhou o facto da reclamada apenas querer fotos da embalagem, só dando andamento ao pedido de devolução se a mesma estivesse fechada;
17. O reclamante alegou que face á insistência da reclamada em não aceitar devoluções se as embalagens tiverem abertas, não enviou quaisquer fotos seguindo as instruções da reclamada;
18. O reclamante esclareceu ainda que o indicado relativamente ao sistema de som também se passou com o processo de devolução da TV, docs 13 e 14;
19. O reclamante submeteu novo pedido de devolução em 29.09.24 através do site da reclamada insistindo no facto de a TV ter sido desembalada, mas não usada, doc 13;
20. A reclamada, em resposta a este pedido, afirmou que: (...) a encomenda online (...) não poderá ser devolvida devido às condições de venda aceites no ato da compra (...), pelo que o facto de desembalar (...) implicará responsabilidade do cliente (..,), doc 14;
21. O reclamante sublinhou que face à comunicação estabelecida com a reclamada deu por terminado o processo de devolução;
22. O reclamante enfatizou o facto da reclamada em momento nenhum ter declarado que somente aceitaria devoluções se as embalagens não se encontrassem abertas;
23. A reclamada alegou que o reclamante nunca enviou fotos dos bens para verificar o seu estado de conservação, doc 1, p. 8 junto com a contestação;
24. A reclamada alegou ainda que o reclamante não demonstrou o estado das embalagens através de fotos.
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A reclamada, ora recorrente, censura a decisão arbitral recorrida em sede de matéria de facto, por contradição, por um lado, entre os documentos n.º se 7 a 12, e, por outro lado, a factualidade aí julgada provada sob os pontos n.ºs 7, 8, 16 e 17.º, que entende apenas com base nas declarações do recorrido e sem qualquer sustentação probatória. Nos termos do art. 662º, n.º 1 CP a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto: “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. No entanto, para que o recorrente possa obter a pretendida alteração terá que observar os ónus impostos pelo art.º 640.º do mesmo Código, o qual estabelece que:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Ora nem a recorrente fez alusão a quaisquer concretas passagens das declarações do recorrido em sede de audiência de julgamento arbitral, nem tão pouco existe gravação de tais declarações, condição indispensável para que possam ser valoradas. A impugnação da decisão sobre matéria de facto deduzida pela recorrente, na parte respeitante à prova por declarações, não cumpre, em conformidade, os pressupostos de ordem formal exigidos pelo art. 640º CP, para que a Relação possa reapreciar a prova, o que determina a respectiva rejeição.
No respeitante à contraditoriedade entre os aludidos pontos 7, 8, 16 e 17 e os documentos n.ºs 7 a 12, ela igualmente não se vislumbra. Os documentos em questão são mensagens de correio electrónico trocadas entre recorrido e recorrente, cujo conteúdo foi fielmente levado aos pontos de facto sobre impugnação.
No tocante à referência constante de decisão arbitral “O Tribunal alicerçou, ainda, a sua convicção nos factos acessórios apresentados na audiência de julgamento”, não se discriminando quais sejam esses factos, ela resulta efectivamente ambígua, de significado indefinido. No entanto, tendo acima a Senhora Juiz Árbitro fundamentado a sua convicção relativamente à totalidade dos factos que considerou provados, tal referência acaba por resultar redundante, por não existirem outros factos que possam qualificar-se de “acessórios”, não assumindo, por essa razão qualquer relevo para a fundamentação de facto da decisão.
Vai, por isso, confirmada a prova da matéria impugnada e, em conformidade, mantida inalterada toda a factualidade enunciada na decisão arbitral recorrida.
Cumpre agora aplicar o direito quanto às suscitadas questões de saber se à recorrente assiste invocar a excepção de não cumprimento e o abuso de direito por parte do recorrido.
Não cabe dúvida de que entre as partes foram celebrados dois contratos de compra e venda de bens móveis (cfr. artigo 874.º do C.Civil), figura que consiste no contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço. A compra e venda tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço (cfr. artigo 879.º do C.Civil). Tratando-se de compra e venda que se insere numa relação de consumo, pois foi celebrada entre um profissional (a recorrente, na qualidade de vendedora) e um consumidor (o recorrido, na qualidade de comprador), sendo, em conformidade, regulada pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, denominada Lei de Defesa do Consumidor, pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, e com particular relevo para o caso vertente, porque os contratos de compra e venda em apreço foram celebrados através do site da recorrente, pelo preceituado no Decreto Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, que regula o regime dos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial, tendo em vista promover a transparência das práticas comerciais e salvaguardar os interesses legítimos dos consumidores, conforme proclama o artigo 2.º, n.º 1, deste diploma.
O artigo 3.º, alínea h), do Decreto-Lei n.º 24/2024 considera contrato celebrado à distância “aquele que é celebrado entre o consumidor e o fornecedor de bens ou o prestador de serviços sem presença física simultânea de ambos, e integrado num sistema de venda ou prestação de serviços organizado para o comércio à distância mediante a utilização exclusiva de uma ou mais técnicas de comunicação à distância até à celebração do contrato, incluindo a própria celebração”. Como refere Sebastião Pizarro (in Comércio Electrónico, Almedina, p. 36) “O contrato electrónico pode ser definido “como um contrato celebrado sem a presença física das partes, no qual as respectivas declarações de vontade são expressas através de equipamentos electrónicos de tratamento e armazenagem de dados, ligados entre si”.
O artigo 10.º do aludido Decreto-Lei n.º 24/2014 consagra o chamado direito ao arrependimento, isto é, do direito do consumidor de num «prazo determinado e sem contrapartida, se desvincular de um contrato através de declaração unilateral e imotivada» (cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, 2005, pág. 105) ou «direito concedido legal ou contratualmente ao consumidor de se desvincular unilateralmente de um contrato, sem necessidade de indicação de um motivo» (cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 2019, página 185). A sua característica fundamental é a desnecessidade de o consumidor fundamentar a sua atitude de por termo ao contrato: ele não necessita de ter nem de indicar o motivo pelo qual toma essa atitude, estando a sua decisão unicamente dependente da sua vontade livre e discricionária, razão pela qual da ausência de um motivo relevante ou atendível, que não seja apenas o não querer mais o contrato, não é possível extrair a ilegitimidade ou o abuso da opção do consumidor.
O recorrido alega que exerceu validamente, dentro de 14 dias após a entrega dos bens, o direito de livre resolução previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do citado Decreto-Lei n.º 24/2024. A recorrente contrapõe que o recorrido não devolveu qualquer um dos bens adquiridos, como deveria, nos termos do n.º 1 do art. 13.º do Decreto-Lei n.º 24/2014. que dispõe «Caso o fornecedor de bens não se ofereça para recolher ele próprio o bem, o consumidor deve no prazo de 14 dias a contar da data em que tiver comunicado a sua decisão de resolução do contrato nos termos do artigo 10.º, devolver ou entregar o bem ao fornecedor de bens ou a uma pessoa autorizada para o efeito.». E acrescenta que a recorrente referiu expressamente não aceitar a devolução de qualquer produto, caso estivesse desembalado, de acordo com os Termos e Condições do serviço de venda online aceite pelo recorrido no momento da efectivação da compra, sem cuja aceitação não poderia prosseguir com a compra porque o sistema não permite.
Não constam da factualidade provada os termos e condições do serviço de venda online propostos pela recorrente e presumivelmente aceites pelo recorrido, designadamente que incluíssem estipulação referindo expressamente que a recorrente não aceitaria a devolução de qualquer produto, caso estivesse desembalado. Contudo, a existir uma cláusula com esse conteúdo, caracterizada pela pré-elaboração, rigidez e generalidade, sempre a mesma estaria sujeita à disciplina do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, cujo artigo 1.º, n.º 1, dispõe: As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma. E em qualquer caso semelhante cláusula sempre ofenderia o disposto no art.º 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 24/2014, do qual decorre que o exercício do direito de livre resolução não prejudica o direito de o consumidor inspeccionar, com o devido cuidado, a natureza, as características e o funcionamento do bem. Podendo o consumidor, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, ser responsabilizado pela depreciação do bem, se a manipulação efectuada para inspeccionar a natureza, as características e o funcionamento desse bem exceder a manipulação que habitualmente é admitida em estabelecimento comercial. O acórdão desta Relação e Secção de 11-01-2022 (Processo 3258/16.0T8MTS.P1, Rel. Des. Rui Moreira) julgou nula, por contender com valores fundamentais do direito defendidos pelo princípio da boa-fé, nos termos dos art.ºs 12.º, 15.º e 16º, do RJCCG, e por contender com lei imperativa, como é o caso dos art.ºs 14.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 24/2014, de 14-02, sendo também nula nos termos do art.º 294.º do Código Civil, cláusula incluindo a designação “artigos sem sinal de uso indevido”, por ser uma expressão demasiado vaga e abstracta, podendo, por isso, ser-lhe atribuído o sentido de não permitir ao consumidor a utilização dos bens adquiridos, por forma a verificar a sua conformidade. Por maioria de razão terá que haver-se por nula cláusula que exclua o direito de livre resolução caso o artigo tenha sido desembalado. A embalagem é apenas um invólucro destinado a proteger o equipamento durante o transporte. Raramente é conservado pelo consumidor, a menos que pretenda revendê-lo posteriormente em mercado de “segunda vida”. Para o vendedor profissional, a sua abertura também não constitui especial contrariedade, desde que não seja destruída ou danificada em termos que possam comprometer a sua futura comercialização. O que, de resto, pode suceder durante o próprio transporte, antes de o bem chegar à posse do consumidor.
Tendo em consideração tais normativos e princípios gerais de direito, a posição da recorrente de constante dos pontos 13, 15 e 20 supra, de não aceitar devoluções de embalagens que tivessem sido abertas, traduz mora accipiendi relativamente à obrigação do recorrido proceder à devolução dos bens. “São pressupostos da mora do credor a recusa deste ou não realização pelo mesmo da colaboração necessária para o cumprimento da prestação e a ausência de motivo justificado para essa recusa ou omissão. Todavia, para haver mora do credor, não basta uma qualquer recusa ou omissão, sendo, antes, de exigir que os actos não praticados pelo credor, ou por ele voluntariamente omitidos, sejam actos de cooperação essenciais” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2019, Processo 712/17.0T8SNT.L1.S1, in dgsi.pt).
Havendo, in casu, mora do credor, fica excluída a excepção do não cumprimento do contrato porquanto foi o próprio credor quem criou o impedimento ao cumprimento da obrigação. A excepção de não cumprimento, prevista no artigo 428.º do Código Civil, só é aplicável se for o devedor a não cumprir, e não o credor. A excepção de não cumprimento do contrato (cf. art. 428º do C.Civil) é a faculdade que, nos contratos bilaterais, cada uma das partes tem de recusar a sua prestação enquanto a outra não realizar ou não oferecer a realização simultânea da sua contraprestação. É, no essencial, um meio de conservação do equilíbrio sinalagmático que deverá existir na génese e no próprio desenvolvimento dos contratos bilaterais, maxime no seu cumprimento, justificando-se essa exceptio quando ocorra uma ausência de correspondência ou de reciprocidade entre as obrigações que, no âmbito dos contratos bilaterais, emergem para ambas as partes. (neste sentido, J. Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág. 329/330 e A. Varela, CCivil Anotado, Vol. I, pág. 362 a 365).
Ficando, do mesmo modo excluída a invocação de abuso de direito por parte do recorrido. A tal respeito, e como se disse supra, o direito de livre resolução previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do citado Decreto-Lei n.º 24/2024, caracteriza-se pela desnecessidade de o consumidor fundamentar a sua atitude de por termo ao contrato, estando a sua decisão unicamente dependente da sua vontade livre e discricionária, Nesse enquadramento, o abuso de direito só será invocável se o titular se mover por um fim enviesado e reprovado pelo Direito, como por exemplo o de obter a fruição gratuita do bem num determinado momento ou evento, a expensas do vendedor. O que de todo o modo careceria de alegação e prova, por se tratar de facto impeditivo ou extintivo do direito de livre resolução (art.º 342.º, n.º 2, do C-Civil).
Pelo que a solução encontrada pela decisão arbitral recorrida se impõe à evidência, improcedendo a apelação.






Decisão.

Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a sentença recorrida.

Custas pela apelante.









Porto, 11/11/2025

João Proença
João Diogo Rodrigues
Maria da Luz Seabra