Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
805/11.7TBAMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: PRECIPUIDADE DAS CUSTAS
PRODUTO DE BENS DO EXECUTADO
APOIO JUDICIÁRIO
Nº do Documento: RP20241211805/11.7TBAMT.P1
Data do Acordão: 12/11/2024
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A concessão do apoio judiciário não significa qualquer garantia do Estado em desonerar o cidadão economicamente débil da obrigação de cumprir os seus compromissos, ou que o seu património não possa ser executado.
II - A função do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e encargos, é cumprida quando se permite ao beneficiário a possibilidade de defender os seus direitos e interesses sem ter de suportar as taxas de justiça e encargos exigidos aos demais cidadãos.
III - Como regra geral, os honorários e despesas devidos ao agente de execução integram as custas de parte (art.º 533º CPC) e estas são pagas diretamente pela parte vencida à parte delas credora (art.º 26º nº 2 do RCP), não tendo o Tribunal qualquer intervenção nesse pagamento (veja-se o nº 4 e 5 do art.º 35º do RCP).
IV - O art.º 541º do CPC regula para as ações executivas e, dentro destas, apenas para aquelas em que se tenha logrado concretizar a penhora de bens e de cuja liquidação tenha resultado algum produto. Assim, o art.º 451º do CPC integra uma norma excecional, na medida em impõe um regime oposto ao da norma geral do CPC e do RCP.
V - Apurando-se no processo executivo que o Executado possuía bens suficientes para solver os seus compromissos, capazes de pagar a quantia exequenda, deve operar a norma excecional do art.º 541º do CPC e o privilégio nela contido de o Estado se pagar em primeiro lugar, incluindo honorários e despesas do agente de execução, ainda que o Executado beneficie de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e encargos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 805/11.7BAMT.P1




ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


I – Resenha do processado

1. A..., Instituição Financeira de Crédito, SA instaurou execução contra AA, pretendendo obter o pagamento coercivo da quantia total de € 17.220,82.
Apresentou como título executivo uma livrança subscrita pelo Executado, em 26/10/2010, vencida em 26/11/2010, no valor de € 16.910,12.
Não foi deduzida oposição à execução ou às penhoras.
A execução foi prosseguindo e a Sr.ª Agente de Execução (AE) procedeu à penhora de vários bens, designadamente veículo automóvel, vencimentos, reembolso de IRS e quinhão hereditário.
Ao Executado foi concedido apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e encargos, bem como de nomeação e pagamento honorários de patrono.
Em 15/10/2023, o Executado veio requerer a extinção da execução, considerando que «a quantia exequenda e respetivos juros já se mostram pagos, existindo até um saldo favorável ao executado».
Em 25/07/2024, a Sr.ª AE apresentou requerimento ao Mmº Juiz nos seguintes termos:
«-No âmbito dos presentes autos, foi concedido ao executado AA o benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e dos encargos com o processo e ainda nomeação e pagamento da compensação do patrono, tudo conforme já resulta dos autos;
-Sucede, que nos autos já foram recuperados valores provenientes da penhora sobre o vencimento do executado e dos créditos de IRS;
-Veio a Mandatária do Executado, através da s/ comunicação datada de 15/10/2023, informar que o Executado não é responsável pelo pagamento das quantias devidas com despesas e honorários ao agente de execução, nem das custas do processo por beneficiar do respetivo apoio judiciário;
-Note-se que, na ação executiva existe a regra específica do art.º 721º n.º 1 do CPC, segundo o princípio da precipuidade, penhorados que sejam bens do executado, do produto penhorado sairá, em primeiro lugar, o valor necessário ao pagamento das custas de execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao AE.
-Assim e salvo melhor opinião em contrário, não parece que esse princípio colida com o apoio judiciário.
-O Sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos (art.º 1º, nº 1, da Lei 34/2004).
-A dispensa do pagamento das custas vale para eventual oposição à penhora, ou à execução, interposição de recursos e todos os impulsos processuais tributáveis em que o executado litigue.
-Mas, na medida em que no processo se encontrem definidos os direitos e deveres das partes, se ao beneficiário do apoio forem encontrados bens e se à liquidação dos mesmos nada é já oponível, devem estes responder pelos pagamentos a que se refere a parte final do art.º 721º, nº 1, com a remissão para o art.º 541º, do CPC.
Disto isto, e face à inúmera jurisprudência sobre esta matéria e porque entende a aqui AE que a Nota de Despesas e Honorários sai precípua dos valores recuperados nos autos nos termos do disposto no art.º 721º do CPC com remição para o art.º 541º do CPC, vem REQUERER a V. Exa, sempre muito respeitosamente, que se digne pronunciar sobre qual será o Douto entendimento sobre precipuidade das custas de execução, nas quais se incluem os honorários e despesas devidas ao agente de execução.»
O Mmº Juiz decidiu:
«Nos termos do art.º 25º nº4 do Regulamento das Custas Judiciais, a liquidação da responsabilidade do executado compreende as quantias pagas pelo exequente a título de encargos, de taxa de justiça, de despesas previamente suportadas pelo agente de execução, os honorários deste e os do mandatário.
Nos termos do art.º 541º do CPC, “As custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução, apensos e respetiva ação declarativa saem precípuas do produto dos bens penhorados”.
Nos termos do art.º 721º nº1 do CPC, “Os honorários devidos ao agente de execução e o reembolso das despesas por ele efetuadas, bem como os débitos a terceiros que a venda executiva dê origem, são suportados pelo exequente, podendo este reclamar o seu reembolso ao executado nos casos em que não seja possível aplicar o disposto no art.º 541º”.
No art.º 45º, nº1, da Portaria 282/2013, de 29 de Agosto (que regulamenta vários aspetos das ações executivas cíveis) dispõe-se que “Nos casos em que o pagamento das quantias devidas a título de honorários e despesas do agente de execução não possa ser satisfeito através do produto dos bens penhorados ou pelos valores depositados à ordem do agente de execução decorrentes do pagamento voluntário, integral ou em prestações, realizados através do agente de execução, os honorários devidos ao agente de execução e o reembolso das despesas por ele efetuadas, bem como os débitos a terceiros a que a venda executiva dê origem, são suportados pelo autor ou exequente, podendo este reclamar o seu reembolso ao réu ou executado”.
Quid juris se o executado beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo? Deverá, ainda assim, o executado responder pela satisfação dos honorários e despesas do agente de execução através da afetação do produto da venda dos bens penhorados ao seu pagamento?
Sobre ela a jurisprudência tem-se dividido.
No sentido de que o executado com apoio judiciário naquela modalidade não suporta aqueles honorários e despesas ainda que haja produto de bens a si penhorados, podem-se referir, entre outros, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 17/11/2020 (proc. nº500/09.7TDSRT.1.C1, relatora Maria João Areias) e de 28/6/2022 (proc. nº1175/18.8T8CTB-C.C1, relator José Avelino Gonçalves) e os
Acórdãos da Relação de Guimarães de 10/7/2019 (proc. nº1034/14.3TJVNF-C.G1, relatora Eugénia Cunha) e de 27/5/2021 (proc. nº94/13.9TBVMS-A.G1, relator Alcides Rodrigues), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No sentido de que o executado com apoio judiciário naquela modalidade, quando há produto de bens penhorados, suporta aquelas despesas e honorários por via da regra da precipuidade das custas prevista no art. 541º do CPC, podem-se referir os Acórdãos da Relação de Évora de 14/1/2021, proc. nº2004/16.2T8LLE-C.E1, relatora Cristina Dá Mesquita, e de 25/2/2021 (proc. nº1390/12.8TBSTBB.E1, do qual é igualmente relatora Cristina Dá Mesquita) e o Acórdão da Relação do Porto de 11/5/2020 (proc. nº2835/13.5TBGDM-D.P1, relator Manuel Domingos Fernandes) e Acórdão da Relação do Porto de 11/5/2020 (proc. nº2835/13.5TBGDM-D.P1, relator Manuel Domingos Fernandes) e de 09.10.2023 (Proc. 2511/11.3TBPNF-A.P1 relator António Mendes Coelho), também disponíveis em www.dgsi.pt.
Perfilhamos a segunda das orientações no sentido de que o executado com apoio judiciário naquela modalidade, quando há produto de bens penhorados, suporta aquelas despesas e honorários por via da regra da precipuidade das custas prevista no art.º 541º do Código Processo Civil.»

2. Inconformado com tal decisão, dela apelou o Executado, formulando as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido pelo tribunal a quo em 03-09-2024, com a referência 96145453, que considerou que não obstante beneficiar de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, é o executado responsável pelos honorários e despesas do agente de execução, tendo o mesmo por objeto erro de julgamento da matéria de direito.
2. Ora, como vem sendo entendido pela jurisprudência maioritária dos nossos tribunais superiores, beneficiando o executado de apoio judiciário, o custo da atividade jurisdicional (aqui se incluindo as custas do processo e as despesas e honorários do agente de execução) não pode ser repercutido na sua esfera jurídica, constituindo uma responsabilidade do Estado, o que vale por dizer que o executado não é responsável pelo pagamento das custas do processo, nem pelo pagamento das despesas e honorários do agente de execução.
3. A decisão recorrida violou, por deficiente interpretação e aplicação, o disposto no art.º 1.º, n.º 1, art.º 2.º, n.º 1 e art.º 16.º, n.º 1 da Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais – Lei 34/2004, de 29 de julho, art.º 26.º do Regulamento das Custas Processuais e art.º 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
4. Assim, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o douto despacho recorrido e substituído por decisão que considere não ser o executado responsável pelos honorários e despesas do agente de execução.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado o douto despacho recorrido e substituído por decisão que considere não ser o executado responsável pelos honorários e despesas do agente de execução. Assim decidindo, farão V. Exas. a costumada JUSTIÇA!

3. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, pretende-se saber se o Executado que beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e encargos é responsável pelos honorários e despesas suportadas pelo agente de execução, caso tenha existido produto resultante das penhoras efetuadas.

§ 1º - Incumbe começar por assinalar a divergência existente na jurisprudência sobre esta questão.
Assim, dos que conhecemos, pronunciaram-se a favor da responsabilização do executado, os acórdãos deste Tribunal da Relação do Porto de 11/05/2020, processo nº 2835/13.5TBGDM-D.P1, de 09/10/2023, processo nº 2511/11.3TBPNF-A.P1 e de 09/02/2023, processo nº 12866/19.6T8PRT-C.P1; do Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 13/03/2007, processo nº processo nº 965/2007-1; do Tribunal da Relação de Évora, acórdãos de 14/01/2021, processo nº 2004/16.2T8LLE-C.E1 e de 25/02/2021, processo nº 1390/12.8TBSTB-B.E1
Contra a responsabilização, acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/02/2019, processo nº 2702/13.2YYLSB-B.L1-8 e de 17/03/2022, processo nº 1188/12.3TBPDL-A.L1-8; do Tribunal da Relação de Coimbra, acórdãos de 17/11/2020, processo nº 500/09.7TBSRT.1.C1 e de 28/06/2022, processo nº 1175/18.8T8CTB-C.C1; do tribunal da Relação de Guimarães, acórdãos de 10/07/2019, processo nº 1034/14.3TJVNF-C.G1 e de 27/05/2021, processo nº 94/13.9TBVMS-A.G1; deste Tribunal da Relação do Porto, acórdão de 10/02/2020, processo nº 14416/19.5T8PRT-C.P1.
Pela nossa parte, inclinámo-nos também a favor da responsabilização, com a fundamentação que se segue.

§ 2º - A legislação que é convocada à decisão do caso:
A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra como princípio fundamental que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos: art.º 20º nº 1.
No mesmo sentido, o art.º 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), é concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça.
Tais princípios programáticos comportam vários corolários (por exemplo, o acesso ao direito, o direito à informação e consulta jurídicas, o direito ao patrocínio judiciário, etc.), importando aqui a componente do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva.
Sobre a concretização desses princípios, o Tribunal Constitucional tem entendido:
· “o direito de acesso aos tribunais implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada (cf. acórdão nº 174/2020) [[1]]
· “Como já tem sido reafirmado por várias vezes por este Tribunal, a nossa Lei Fundamental não consagra o direito a uma justiça gratuita. Ao legislador ordinário é lícito exigir o pagamento de custas judiciais, podendo optar por um sistema de custas mais barato ou mais caro ou conceder o benefício do apoio judiciário em termos mais ou menos generosos. Ponto é que, no delineamento do sistema de custas judiciais, se não torne impossível ou particularmente oneroso o direito de acesso aos tribunais, sob pena de violação deste direito fundamental consagrado no art.º 20.º da CRP”. (cf. acórdão nº 491/2003)
· A "insuficiência de meios económicos" é uma noção relativamente indeterminada, que consente uma larga margem de discricionariedade ao legislador ordinário na modelação do sistema de apoio judiciário, desde que não estabeleça procedimentos, pressupostos e critérios de decisão em termos tão restritos que cause uma efectiva incapacidade de acesso à justiça. Embora a Constituição não determine a gratuitidade dos serviços de justiça, os encargos estabelecidos para a eles aceder tem de levar em linha de conta a capacidade dos economicamente carecidos e observar os princípios básicos do Estado de direito, como o princípio da proporcionalidade e da adequação (Cfr. Gomes canotilho e vital moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª ed. rev., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pág. 411). (cf. acórdão nº 36/2008)
Ou seja, (i) o art.º 20º nº 1 da CRP e o art.º 47º da CDFUE não postulam uma justiça gratuita; (ii) antes consagram e garantem que o direito de acesso aos tribunais e a uma justiça não seja postergado a nenhum cidadão por insuficiência de meios económicos.
Mas também se pode extrair uma ideia básica: o direito de acesso aos tribunais e a efetividade do acesso à justiça reportam-se apenas à possibilidade de defender judicialmente os seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Na concretização do art.º 20º da CRP, a Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, concretiza o apoio judiciário em diversas modalidades, como refere o seu art.º 16º:
1 - O apoio judiciário compreende as seguintes modalidades:
a) Dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo;
b) Nomeação e pagamento da compensação de patrono;
c) Pagamento da compensação de defensor oficioso;
d) Pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo;
e) Nomeação e pagamento faseado da compensação de patrono;
f) Pagamento faseado da compensação de defensor oficioso;
g) Atribuição de agente de execução.
O âmbito do apoio concedido fica definido pela decisão final que vier a ser proferida pelo serviço de Segurança Social (ou pelo juiz, em caso de impugnação): art.º 26º e 29º.
Isto sem prejuízo de tal decisão poder vir a ser alterada e o apoio judiciário vir a ser cancelado, nos termos do art.º 10º e 13º da Lei n.º 34/2004, designadamente por o beneficiário ter, entretanto, adquirido meios suficientes para o poder dispensar.
Daí que a Lei fale em dispensa de taxa de justiça, situação bem distinta das isenções contempladas no art.º 3º do RCP.
Daqui decorre que a concessão do apoio judiciário (i) não significa qualquer garantia do Estado em desonerar o cidadão economicamente débil da obrigação de cumprir os seus compromissos, ou que o seu património não possa ser executado.
Na concessão do apoio judiciário, não está incluída a impossibilidade de penhora de quaisquer bens de que o Executado seja proprietário.
Para Gomes Canotilho, «o direito de acesso aos tribunais reconduz-se fundamentalmente ao direito a uma solução jurídica de atos e relações jurídicas controvertidas, a que se deve chegar num prazo razoável e com garantias de imparcialidade e independência possibilitando um correto funcionamento das regras do contraditório (…)» [[2]]
Na senda de que a Justiça, por regra, não é gratuita, o art.º 527º do Código de Processo Civil (CPC) determina que todos os processos judiciais importam o pagamento de custas, uma forma de contribuir para os custos do sistema de justiça, na concretização do princípio da justiça distributiva.
As denominadas custas comportam 3 componentes: a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (art.º 529º nº 1 CPC).
Em termos simplistas, dir-se-á que a taxa de justiça é o montante devido pelo impulsionar de qualquer processo (art.º 530º CPC), os encargos reportam-se ao custo ou despesas originadas com certas diligências, como são exemplo as perícias, deslocações de testemunhas ou de agentes de autoridade (art.º 531º CPC) e as custas de parte correspondem à compensação que a parte vencedora tem direito a haver da parte vencida com as despesas que teve com o processo, aí se incluindo as taxas de justiça que pagou, os encargos que suportou e as remunerações e despesas pagas ao agente de execução (art.º 533º CPC).
A taxa de justiça e os encargos são pagos adiantadamente, aquando da prática do ato processual a ele sujeito: art.º 14º, 19º e 20 do RCP. Já as custas a pagar são apenas apuradas na conta final do processo: art.º 29º nº 1 do RCP.
No mesmo sentido estatui o Regulamento das Custas Processuais (RCP, Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro): art.º 1º, 2º, 3º, 6º, 16º e 25º.
Por regra, nos processos em que o responsável pelas custas beneficie de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos, nem sequer há lugar à elaboração da conta: art.º 29º nº 1 al. d) do RCP.
Sobre o agente de execução
Especialmente vocacionado para a ação executiva, o agente de execução também pode ter intervenção nos processos declarativos, como é o caso da realização da citação [art.º 225º nº 2 al. c) e 231º nº 1 do CPC] ou notificação judicial avulsa (art.º 256º do CPC).
Em qualquer processo em que desempenhe funções (declarativo ou executivo), o agente de execução tem direito a receber honorários pelos serviços prestados, bem como a ser reembolsado das despesas que realize e que comprove devidamente: art.º 43º da Portaria 282/2013, de 29 de agosto.
Em processos declarativos, esses custos são, em primeira linha, suportados pela parte que a eles recorre, que depois deles pode vir a ser deles ressarcido como componente das custas de parte: art.º 533º nº 2 al. c) do PCP e art.º 26º nº 3 al. d) do RCP.

§ 3º - Em especial, o processo executivo
Para o processo executivo, existem normas específicas. Assim:
Compete ao Exequente o adiantamento dos honorários e despesas do AE: art.º 724º nº 6 al. a) e art.º 721º nº 2 do CPC. Cf. ainda o art.º 47º da Portaria nº 282/2013, de 29 de agosto, que regulamenta esses aspetos das ações executivas cíveis.
E, nos termos do nº 2 do art.º 721º do CPC, tais honorários/despesas são suportados pelo exequente, podendo este reclamar o seu reembolso ao executado nos casos em que não seja possível aplicar o disposto no artigo 541º.
Efetivamente, o art.º 541º do CPC consigna uma garantia a favor do Estado no que toca ao pagamento das custas, determinando que as custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução, apensos e respetiva ação declarativa saem precípuas do produto dos bens penhorados.
Precípuo significa principal ou que tem vantagem. Portanto, a precipuidade está intimamente ligada à ideia de relevância ou de prioridade.
Ou seja, a lei impõe que no caso de existirem bens penhorados que deem origem a algum montante líquido, será dessa quantia que se retirará em primeiro lugar (antes mesmo do pagamento ao Exequente) o montante necessário para pagar as custas da execução, bem como os honorários e despesas devidos ao agente de execução.
«O princípio da precipuidade significa que, penhorados que sejam bens do executado, do produto da sua venda sairá, em primeiro lugar, o valor necessário ao pagamento das custas da execução e os referidos encargos.» [[3]]
Assim, o art.º 451º do CPC integra uma norma excecional, na medida em impõe um regime oposto ao da norma geral do CPC e do RCP.
«As normas gerais constituem o direito-regra, ou seja, estabelecem o regime-regra para o sector das relações que regulam; ao passo que as normas excepcionais, representando um ius singulare, limitam-se a uma parte restrita daquele sector de relações ou factos, consagrando neste sector restrito, por razões privativas dele, um regime oposto àquele regime-regra.». Já as normas especiais (ou de direito especial) não consagram uma disciplina directamente oposta à do direito comum; consagram, todavia, uma disciplina nova ou diferente para círculos mais restritos de pessoas, coisas ou relações.» [[4]]
Já vimos atrás que em geral (seja nos processos declarativos, seja nos executivos), os honorários e despesas devidos ao agente de execução integram as custas de parte (art.º 533º CPC) e estas são pagas diretamente pela parte vencida à parte delas credora (art.º 26º nº 2 do RCP), não tendo o Tribunal qualquer intervenção nesse pagamento (veja-se o nº 4 e 5 do art.º 35º do RCP).
Ora, o art.º 541º do CPC regula para as ações executivas e, dentro desta, apenas para aquelas em que se tenha logrado concretizar a penhora de bens e de cuja liquidação tenha resultado algum produto.
Esta situação não desvirtua o apoio judiciário concedido. Na verdade, o Executado logrou defender os seus direitos e interesses como bem entendeu, sem ter de suportar as taxas de justiça e encargos exigidos aos demais cidadãos. Logrou-se assim o objetivo do apoio judiciário.
Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa:
«O princípio da precipuidade previsto no art. 541.º do CPC em nada contende com o direito de acesso ao direito e aos tribunais. Com efeito, quando se chega à venda executiva é porque não houve oposição à execução ou esta foi julgada improcedente, pelo que nesta fase do processo executivo já se sabe que o executado é o responsável final pelas custas do processo, pelo que o seu direito a defender-se no processo não é afetado pelo facto de o seu património responder pelas custas do processo executivo. Por conseguinte, o direito de acesso ao direito e aos tribunais, que o apoio judiciário na modalidade de dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com o processo visa garantir, já não será postergado pelo facto de se retirar do produto da venda dos bens penhorados os valores necessários ao pagamento das custas do processo. (…)
Por conseguinte, mesmo que o executado beneficie de apoio judiciário na modalidade acima mencionada, o produto da venda dos bens que lhe foram penhorados no âmbito da execução não deixarão de responder pelas custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução.» [[5]]
Não obstante, no âmbito da execução vieram a ser detetados bens no património do Executado. E, como atrás referimos, o apoio judiciário apenas o dispensou de taxa de justiça e encargos, não significando qualquer garantia do Estado em desonerar o cidadão economicamente débil da obrigação de cumprir os seus compromissos, ou que o seu património não possa ser executado.
Assim, apurando-se no processo executivo que o Executado possuía bens suficientes para solver os seus compromissos, capazes de pagar a quantia executiva, deve operar a norma excecional do art.º 541º do CPC e o privilégio nela contido de o Estado se pagar em primeiro lugar, incluindo honorários e despesas do agente de execução.
Nesta circunstância, existindo património, e sendo desse património que vai sair o pagamento dos honorários, não se mostra denegado o apoio concedido (dispensa de pagar a taxa de justiça) para a definição dos seus direitos.
Veja-se que nos termos do nº 6 do art.º 26º do RCP, beneficiando a parte vencida de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP apenas reembolsa as taxas de justiça, assim se demonstrando que a lei soube efetuar a discriminação entre as várias componentes dos custos do sistema de justiça.
Não há que confundir taxa de justiça com encargos ou com honorários/despesas de agentes de execução.
Da conjugação do art.º 541º do CPC com a al. c) do art.º 29º do RCP pode concluir-se que nas execuções:
a) existindo produto resultante de bens penhorados, há lugar à elaboração da conta de custas e as custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução, saem precípuas do valor obtido na execução.
b) não se tendo logrado obter qualquer penhora ou produto resultante de pagamento voluntário, não há lugar à elaboração da conta de custas, mantendo-se os honorários e despesas devidos ao agente de execução, da responsabilidade do Exequente.



5. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
………………………………
………………………………
………………………………




III. DECISÃO

6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se o decidido em 1ª instância.

Custas a cargo do Recorrente, atento o decaimento.




Porto, 11 de dezembro de 2024

Relatora: Isabel Silva

1º Adjunto: Ana Luísa Loureiro, vencida conforme declaração junta: [Declaração de voto: -  Teria dado provimento ao recurso, por acompanhar a posição adotada, entre outros, no Ac. do TRC de 17-11-2020, proc. 500/09.7TBSRT.1.C1, no Ac. do TRL de 27-04-2021, proc. 17985/12.7YYLSB-C.L1-7 e no Ac. do TRP de 10-02-2020, proc. 14416/19.5T8PRT-C.P1, todos disponíveis na base de dados de jurisprudência do IGFEJ.
Além dos fundamentos constantes dos referidos Acórdãos, que me abstenho aqui de reproduzir, afigura-se-me que nos arts. 721.º e 541.º do Cód. Proc. Civil apenas se prevê um regime especial referente aos termos em que ocorre o pagamento dos honorários e despesas do agente de execução no âmbito do processo executivo – sendo que os honorários e despesas do agente de execução integram as custas de parte (art. 26.º, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais) que, por sua vez, juntamente com a taxa de justiça e os encargos, constituem as custas processuais (art. 3.º, n.º 1, do Reg. das Custas Processuais).
O que resulta do regime da precipuidade do pagamento das custas da execução consagrado no art. 541.º do Cód. Proc. Civil é, apenas, o pagamento dessas custas antes do pagamento da quantia exequenda (e, tendo existido concurso de credores, dos créditos reclamados e graduados, pela ordem de graduação entre si e com a quantia exequenda), e não o afastamento do regime do apoio judiciário quando este foi concedido ao executado no âmbito de um processo executivo.
Antes considero que será o regime de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo concedido ao executado que afasta a aplicação, no âmbito do processo de execução, quer do pagamento prioritário dos honorários e despesas com o agente de execução pelo produto dos bens penhorados ao executado (art. 541.º do Cód. Proc. Civil), quer da possibilidade de reclamação pelo exequente ao executado de tais honorários e despesas a título de custas de parte (art. 721.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), quer da inclusão de tais despesas e honorários com o agente de execução na liquidação da responsabilidade do executado (arts. 846.º, n.º 1, e 847.º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Civil), precisamente porque a aplicação destas disposições legais pressupõe a afirmação da obrigação de pagamento pelo executado das custas processuais, obrigação essa que, por força do apoio judiciário que lhe foi concedido, o executado se encontra dispensado de cumprir (arts. 1.º, 16.º, n.º 1, al. a), 17.º, n.º 1, 18.º, n.º 1, e 36.º, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho).]

2º Adjunto: Judite Pires

_________________________
[[1]] Os acórdãos do Tribunal Constitucional mostram-se disponíveis em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[[2]] In “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 10ª Edição, Almedina, 2010.
[[3]] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13/09/2011, processo nº 600-B/2000.P1.
[[4]] João Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 13ª reimpressão, pág. 94-95.
[[5]] Miguel Teixeira de Sousa, Blogue do IPPC, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2021/06/jurisprudencia-2021-1.html