Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MARIA DA LUZ SEABRA | ||
| Descritores: | INSOLVÊNCIA CULPOSA PRESUNÇÕES DE CARÁTER ABSOLUTO | ||
| Nº do Documento: | RP202510283410/21.6T8VNG-D.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/28/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGADA PARCIAL | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A lei consagra no nº 2 do art. 186º do CIRE presunções de carácter absoluto (presunções inilidíveis), não só de culpa, mas também de nexo de causalidade, considerando que os actos nele elencados automaticamente desencadeiam os efeitos da insolvência culposa, sem admitirem prova em contrário, ainda que em concreto possam não ter sido causa única dessa insolvência. II - A disposição de bens a que alude a al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE abrange todos os actos que impliquem uma diminuição da garantia patrimonial dos credores. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3410/21.6T8VNG-D.P1 Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia- Juiz 1 ** Sumário (elaborado pela Relatora):……………………………… ……………………………… ……………………………… * I. RELATÓRIO1. Por requerimento de 3.05.2021 AA veio requerer a declaração de insolvência de A..., SA, Lda. 2. Por sentença datada de 13.05.2021 foi declarada a insolvência da Requerida. 3. Por requerimento de 16.08.2021 a credora BB requereu a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa, com fundamento no art. 186º nº 2 al. b), d) e g) do CIRE, e pedido de afectação por essa qualificação de CC e AA. 4. Por requerimento de 24.01.2022 o Administrador de Insolvência juntou parecer quanto à qualificação da insolvência, concluindo pela qualificação como culposa e pela afetação pela qualificação do administrador AA ao abrigo do art. 186º nº 2 al. d) do CIRE. 5. O Magistrado do Ministério Público acompanhou o parecer da AI no sentido da qualificação da insolvência como culposa ao abrigo do art. 186º nº 2 al. d) do CIRE, com pedido de afetação por essa qualificação de CC e AA. 6. Ambos os Requeridos cuja afectação foi peticionada apresentaram oposição, separadamente, pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita. 7. Foi proferido despacho saneador, com fixação do objecto do litígio e temas de prova. 8. Realizada audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença em 15.03.2025, Ref Citius 469224078, com o seguinte dispositivo (transcrição). “Pelo exposto, este tribunal decide qualificar a insolvência de “A..., S.A.” como fortuita. Custas a cargo da Massa Insolvente. Registe e notifique.” 8. Inconformada com a sentença proferida, dela interpôs recurso de apelação BB, formulando as seguintes CONCLUSÕES (…) 9. Foram apresentadas contra-alegações pelos Apelados, pugnando pela confirmação do julgado. 10. Foram observados os Vistos. * II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC. * As questões a decidir, em função das conclusões de recurso, são as seguintes:1ª Questão-Se a sentença padece de nulidades; 2ª Questão- Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada; 3ª Questão- Se a insolvência deve ser qualificada como culposa e afectados os requeridos; 4ª Questão- se os requeridos devem ser condenados como litigantes de má-fé. ** III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Pelo tribunal de 1ª Instância foram considerados provados os seguintes factos: ** IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.Nulidades da sentença A propósito da arguição de nulidades da decisão recorrida veio a Apelante alegar o seguinte: - a decisão padece da nulidade prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC por notória oposição entre os fundamentos e a decisão; - a decisão padece da nulidade prevista no art. 615º nº 1 al. d) do CPC por evidente excesso de pronúncia. Sendo o elenco das alíneas do n.º 1 do art. 615º do CPC, um elenco taxativo [1], só nas hipóteses ali expressamente consignadas se coloca a hipótese de nulidade da sentença. Tendo a Apelante invocado as nulidades da sentença consagradas no mencionado art. 615º nº 1 al. c) e d) do CPC, o seu teor, para o que aqui importa decidir, é o seguinte: “É nula a sentença quando: (…) c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.” Adiantamos desde já que resulta, porém, evidente da leitura das conclusões de recurso que respeitam à arguição das apontadas nulidades da sentença, que não estamos perante nulidades da sentença, mormente as mencionadas pela Apelante como previstas no art. 615º nº 1 al. c) e d) do CPC, estamos sim perante uma manifestação de inconformismo com a decisão prolatada pelo tribunal recorrido, mediante a invocação de erro de julgamento sobre a qualificação da insolvência como fortuita. Pormenorizemos. 1.1 Nulidade da sentença prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC A nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, al. c) do CPC, tem a ver com uma contradição lógica entre a fundamentação jurídica e a decisão. Como refere nesta matéria J. Lebre de Freitas, “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade de sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada conclusão jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. “[2] A Apelante argumentou que o Tribunal a quo concluiu inexistir nexo de causalidade apesar de ter dado como provados os actos de disposição vertidos nos pontos 12, 15, 16 e 22, e que não há qualquer amplitude legal, jurisprudencial ou racional para que o que consta da fundamentação resulte na decisão proferida. Resulta evidente que a discordância subsume-se à alegação de um erro de julgamento e não de uma oposição entre a fundamentação e a decisão, porquanto o Tribunal a quo entendeu- bem ou mal não releva para o conhecimento da nulidade mas apenas para o conhecimento do mérito da decisão-que era necessário para a qualificação da insolvência que estivesse demonstrado o nexo de causalidade entre os actos de disposição e o estado de insolvência, e ainda que porventura a lei, a jurisprudência ou a doutrina não defendam aquele entendimento ainda assim não estaríamos perante a invocação de qualquer nulidade mas perante a invocação de erro de julgamento em termos da aplicação do direito aos factos. No caso dos autos, a sentença proferida está em sintonia com a sua fundamentação jurídica, estando perfeitamente expresso no texto da sua fundamentação os fundamentos jurídicos e de facto determinantes para a decisão que veio a ser proferida, não existindo entre essas premissas e a conclusão qualquer contradição. Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos dados como provados, ou se a conclusão a que chegou o tribunal não encontra arrimo na lei ou contraria o que vem sendo decidido na jurisprudência, consubstanciará, quando muito, a apreciação de um eventual erro de julgamento e não a apreciação da nulidade prevista no art. 615º nº 1 al. c) do CPC. [3] Consequentemente, não existe, em termos manifestos, qualquer contradição ou oposição entre o raciocínio desenvolvido pelo julgador e o sentido decisório contido na sentença, pelo contrário, a decisão é coerente e lógica com a fundamentação, independentemente do acerto da decisão, questão que não contende com a nulidade da sentença, mas com o seu mérito. [4] Improcede, assim, a apontada nulidade da sentença. 1.2 Nulidade da sentença prevista no art. 615º nº 1 al. d) do CPC Segundo o disposto no art. 615º, n.º 1 al. d) do CPC é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Este comando normativo é consequência do princípio consagrado no art. 608º, n.º 2 do CPC, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” Segundo ensinamento de Miguel Teixeira de Sousa, o aludido princípio é um “corolário do princípio da disponibilidade objectiva (arts. 264º, n.º 1 e 664º, 2ª parte) que significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. (…) Por isso é nula a decisão quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar (art. 668º nº 1 al. d) 1ª parte), ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia. (…) a decisão é nula quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (art.668º, nº 1, al. d) 2ª parte), ou seja, quando a decisão esteja viciada por excesso de pronúncia.”[5] Questões para efeito do referido preceito legal são «… todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes» [6], não se confundindo com os argumentos, razões ou pressupostos (de facto e de direito) em que a parte funda a sua posição sobre a questão suscitada. Diferente das questões a decidir referidas no citado art. 608.º n.º 2 do CPC, são os argumentos ou razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista».[7] Alegou a Apelante que o Tribunal a quo não devia ter admitido prova documental e testemunhal sobre a culpa e o nexo de causalidade, porque no art. 186º nº 2 do CIRE estamos perante presunções inilidíveis, e verificando-se os pressupostos legais não é admissível prova em contrário. Porém, esse alegado erro, a verificar-se, não consubstancia qualquer pronúncia sobre questão de que o Tribunal a quo não pudesse conhecer, mas uma eventual incorrecta valoração da prova quanto à referida factualidade subjacente à culpa e nexo de causalidade, não consubstanciando qualquer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Diferente das pretensões deduzidas, são os argumentos de facto e as provas utilizadas pelo Tribunal a quo na decisão proferida quanto à matéria de facto por si considerada para a resolução das pretensões formuladas e que lhe incumbia decidir- neste caso a qualificação da insolvência como culposa. A Apelante pode discordar dos fundamentos de facto e/ou dos meios de prova em que se alicerçou a decisão recorrida, não pode é alegar que a sentença é nula por excesso de pronúncia quando se limita a não concordar com o sentido da pronúncia emitida pelo tribunal, porque nesse caso não se está perante uma nulidade mas uma discordância jurídica a escalpelizar em sede de mérito da decisão, a título de erro do julgamento de facto, ou erro de julgamento de direito. Improcede, também, esta apontada nulidade. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto Perante as exigências estabelecidas no art. 640º do CPC, constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, sob pena de rejeição, a seguinte especificação: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. “Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus: Primeiro: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; Segundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; Terceiro: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas. Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.”[8] São as conclusões das alegações de recurso que estabelecem os limites do objecto da apelação e, consequentemente, do poder de cognição do Tribunal de 2ª instância, de modo que na impugnação da decisão sobre a matéria de facto devem constar das conclusões de recurso necessariamente os concretos pontos de facto impugnados, pese embora a decisão alternativa que o recorrente propõe para cada um dos factos impugnados (AUJ nº 12/2023 de 14.11), bem como a análise pormenorizada dos concretos meios probatórios possa constar apenas do corpo das alegações ou motivação propriamente dita, tal como as concretas passagens das gravações ou transcrições dos depoimentos de que o recorrente se socorra. Analisadas as conclusões deste recurso concluímos que a Apelante nelas fez específica alusão aos pontos de facto que impugna (Conclusões XVII a LXXX), à decisão alternativa e aos concretos meios de prova que em seu entender sustentam a pretendida alteração da decisão sobre a matéria de facto impugnada, considerando-se suficientemente cumpridos os ónus previstos no art. 640º do CPC para que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto possa ser por nós conhecida. Segundo o disposto no art. 662º nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. No âmbito do recurso de impugnação da decisão de facto, o Tribunal da Relação pode e deve realizar uma efectiva reapreciação da prova produzida, levando em consideração, não só os meios de prova indicados no recurso, como outros que relevem para a decisão relativa aos pontos da matéria de facto impugnada, com vista a formar a sua própria convicção, mas sem que isso culmine num segundo julgamento, destinando-se apenas a aferir se resulta evidente algum erro de apreciação dos factos controvertidos à luz das regras do regime jurídico aplicável, às regras do ónus da prova, das regras de experiência comum ou de prova vinculada. A Apelante impugnou os pontos 1, 2, 9, 13, 14, 16, 18, 19, 20, 21, 23 e 26 dos factos provados, e os dois últimos pontos dos factos não provados. Vejamos. i. impugnação dos pontos 1 e 26 dos factos provados: Na sentença recorrida esses pontos de facto têm a seguinte redação: “1. Em 27.03.2018, a aqui Requerente BB instaurou ação judicial pedindo que fosse decretada a insolvência da A..., S.A, doravante apenas A... (cfr. documento junto aos presentes autos pelo Requerido CC em 24.10.2022). 26. Em 28.03.2018, BB, requereu a insolvência de ora insolvente “A..., S.A.”, que correu termos por este tribunal sob o n.º .... “ Defende a Apelante que a decisão repete nestes dois pontos de facto o pedido de insolvência feito por ela, sendo o ponto 26 redundante e como tal deve ser eliminado, devendo ser incluído no ponto 1 o número do processo de insolvência, o fundamento do pedido e a decisão que sobre o mesmo recaiu. Sugeriu que fosse decomposto em mais do que um número, com a seguinte redação: 1. Em 27.03.2018, a aqui Requerente BB instaurou ação judicial pedindo que fosse decretada a insolvência da A..., S.A, doravante apenas A... (cfr. documento junto aos presentes autos pelo Requerido CC em 24.10.2022). 2. Tal deu origem ao processo ... que teve como fundamento para o pedido a convicção da Requerente de “que com a posição do accionista CC ao requerer a devolução dos suprimentos e, como administrador, ao proceder a venda de todos os activos e manifestamente impossível manter a sua solvabilidade”. 3. O pedido foi indeferido por sentença de 11 de Julho de 2018 (cfr. documento junto aos presentes autos pelo Requerimento Inicial doc. 6 junto) Tem, em parte, razão a Apelante porquanto o ponto 26 é perfeitamente escusado, traduzindo-se numa repetição inconsequente do já vertido no essencial no ponto 1 dos factos provados, sendo que a decisão de improcedência desse pedido já constava do ponto 27 dos factos provados, pelo que, por uma questão de facilidade de exposição determina-se a eliminação dos pontos 26 e 27 dos factos provados e a consequente reformulação da redação do ponto 1 de modo a incluir a factualidade daqueles dois pontos de facto, que passará a ser a seguinte: 1. Em 27.03.2018, a aqui Requerente BB instaurou ação judicial pedindo que fosse decretada a insolvência da A..., S.A, que correu termos sob o Proc. nº …, com os fundamentos que dele constam e aqui se dão por reproduzidos, tendo sido tal pedido julgado improcedente por sentença proferida em 11 de Julho de 2018 (cfr. doc. junto aos presentes autos pelo Requerido CC em 24.10.2022 e doc. 6 junto ao requerimento inicial). ii. impugnação do ponto 2 dos factos provados: Na sentença recorrida esse ponto de facto tem a seguinte redação: “2. A sociedade A..., S.A., com sede na Praça ..., ... Porto, com o número comum de pessoa colectiva e de matrícula ..., foi constituída em 18.08.2000, com o capital social integralmente subscrito e realizado em dinheiro de €51.150,00, representado por 155.000 acções com o valor nominal de €0,33 cada uma (cfr. certidão de registos que se junta como doc. 1 à PI no processo principal). “ Defende a Apelante que este ponto de facto contém erros factuais sobre o capital social e a constituição da sociedade, uma vez que a sociedade foi constituída com €150.000,00 e os actos de aumento de capital e transformação foram declarados nulos por decisão transitada em julgado em 6.09.2022 proferida no processo nº ..., já averbada na certidão permanente pela inscrição Av... 12:11:53. Requer a alteração da sua redação, sugerindo a seguinte: 2. A sociedade A..., S.A., com sede na Praça ..., ... Porto, com o número comum de pessoa colectiva e de matrícula ..., foi constituída em 18.08.2000, com o capital social integralmente subscrito e realizado em dinheiro de €150.000,00. Compulsada a certidão permanente junta aos autos principais com a PI (documento de que o Tribunal a quo se socorreu como consta da decisão recorrida) resultam evidentes vários lapsos decorrentes certamente do facto de na primeira página desse documento constar o que resultou da redução do capital registada sob a AP ... e não o que foi registado aquando da constituição da sociedade A..., SA sob a AP ... (Insc.1), pelo que, tendo em vista o ponto 2 dos factos provados descrever a sociedade aquando da sua constituição, por uma questão de rigor haverá que proceder à sua rectificação, embora de forma não coincidente com a redação pretendida pela Apelante. Deste modo, em função do documento acima referenciado procede-se à rectificação do ponto 2 passando a ter a seguinte redação: 2. A sociedade A..., S.A., com o número comum de pessoa colectiva e de matrícula ..., foi constituída em 18.08.2000, com sede na Praça ..., ... Porto, com o capital social integralmente subscrito e realizado em dinheiro de €155.000,00, representado por 155000 ações com o valor nominal de €1,00 (cfr. certidão de registos junta como doc. 1 à PI no processo principal). iii. impugnação do ponto 9 dos factos provados: Na sentença recorrida esse ponto de facto tem a seguinte redação: “9. A sociedade, na altura representada pela administradora BB (como resulta da certidão comercial junta aos autos do processo de insolvência), não contestou e foi condenada no pedido como consta da DECISÃO proferida: “No âmbito dos presentes autos de jurisdição voluntária de fixação judicial de prazo (arts . 1026° e ss. do CPC) não foi oferecida qualquer resposta por parte da requerida A...,S.A .na esteira da citação a tal dirigida. Deste modo - e com estribo no estatuído no art. 1027º nº2 do CPCivil - fixo o prazo de seis (6) meses para a requerida pagar ao A. o crédito de suprimentos na titularidade deste último, no montante de €428.470,00.” (cfr. certidão da sentença junta como doc. 7 cit.). “ Defende a Apelante que neste ponto ficou a constar uma síntese muito redutora da cronologia de factos e eventos que levou a sociedade a ter prazo para a devolução dos suprimentos pedido pelo Apelado CC, e que tal ponto deve ser alterado por forma a fixar a factualidade que em seu entender é relevante à boa decisão da causa e resulta unicamente de prova documental constante dos autos, sugerindo o desdobramento em 7 novos pontos, nos moldes vertidos na Conclusão XXV. Como resulta evidente desta impugnação, a Apelante não põe em causa a correção do que foi vertido no ponto 9 dos factos provados, o que pretende é como que justificar o que dele consta trazendo à colação matéria que em parte já está assente nos pontos 3, 4, 7, 8, 10 e 11 dos factos provados, e que no restante em nada releva para a decisão da qualificação desta insolvência, pois que a mesma ficou restringida à apreciação dos negócios celebrados nas escrituras públicas de 24.08.2018 e de 24.10.2019, para a qual nada releva a materialidade pretendida acrescentar pela Apelante. Deste modo, mantém-se incólume o ponto 9 dos factos provados. iv. impugnação dos pontos 13 e 18 dos factos provados: Na sentença recorrida esses pontos de facto têm a seguinte redação: “13. Na sequência da sentença proferida na acção de fixação de prazo supra identificada, em 03.08.2018 a A..., representada por AA, enviou carta à acionista BB a dar conhecimento da celebração da dação em cumprimento supra referida nos seguintes termos: “…com o acordo da nova sócia Dra. EE, liquidar os créditos do ex-sócio CC mediante a dação em cumprimento da totalidade dos terrenos agrícolas da sociedade…concedo o prazo de 8 dias para que me transmita solução alternativa viável para que a sociedade possa dar cumprimento à sentença,…se nada disser procederá à entrega dos aludidos bens ao ex-sócio…”, cfr. doc. 34 junto ao reqto. de 06.11.2022. 18. A sociedade insolvente, na pessoa de AA, por carta de 03.08.208 informou a sócia BB da intenção de proceder à escritura de dação em pagamento a CC para liquidar os créditos por suprimentos, e, querendo, apresentar uma proposta alternativa que permitisse pagar os créditos de suprimentos, cfr. doc. 34 junto ao requerimento de 06.11.2022, à qual aquela nada disse. “ Defende a Apelante que devem ser eliminados tais factos do elenco dos factos provados e eventualmente passados para o elenco de factos não provados, perante a falta de qualquer prova de suporte, porque o documento 34 junto em 8.11.2022 com a oposição do Apelado AA não se mostra acompanhado de qualquer prova de envio, nem de recepção, não tem o código ou cópia do registo, nem talão dos correios de qualquer espécie, não tem qualquer comprovativo do depósito da carta ou da sua recepção pela Apelante, e nem o teor da carta vertido no ponto 13 pode ser considerado provado porquanto não foi ouvida como testemunha a prof. EE, não tendo sido produzida prova sobre o seu envolvimento. Antes de mais cumpre salientar que é nosso entendimento que a matéria de facto vertida nestes dois pontos de facto em nada releva para a revogação da sentença que declarou a insolvência como fortuita, resultado que a Apelante pretende obter com o presente recurso, pois que a decisão de celebrar os dois negócios relevantes para a qualificação da insolvência foi do Apelado AA, então administrador único da insolvente, sendo irrelevante se foi enviada comunicação a deles dar prévio conhecimento à aqui Apelante e se esta não respondeu, e assim sendo é perfeitamente inócuo que conste nos factos provados ou não provados. As alterações pretendidas pela Apelante a estes pontos de facto não são relevantes para a procedência da sua pretensão recursiva, a qual se centra na invocação de um erro de julgamento quanto à exigência de prova do nexo de causalidade entre o acto de disposição e a situação de insolvência, e como tal a reapreciação da sentença recorrida delas não depende, como melhor veremos em sede de mérito. Ora, a impugnação da decisão de facto é de rejeitar quando, em razão das circunstâncias específicas do caso submetido a julgamento, em razão das regras do ónus da prova ou do regime jurídico aplicável, a eventual alteração da decisão de facto não assume relevo para a decisão a proferir, pois que, em tal circunstancialismo, a respectiva actividade jurisdicional revelar-se-ia como inconsequente ou inútil. [9] Deste modo, não se conhece da impugnação destes pontos 13 e 18 dos factos provados por a mesma configurar um acto inútil. v. impugnação do ponto 14 dos factos provados: Na sentença recorrida esse ponto de facto tem a seguinte redação: “14. A credora BB não respondeu à carta do Administrador único AA de 03.08.2018, não se tendo oposto à realização da dação em cumprimento em 24.08.2018, nem apresentou qualquer outra solução. “ Defende a Apelante que não respondeu à carta porque dela não tomou conhecimento, e que se opôs ao negócio logo que dele teve conhecimento, como demonstram os processos nº …, ..., …, … e …. Independentemente da posição assumida pela Apelante nos supra referidos processos, certo é que, como já referimos a propósito dos pontos 13 e 18, também não assume qualquer relevância para a decisão deste recurso se a Apelante recebeu a referida carta, se a ela não respondeu, nem se não apresentou solução alternativa, pois o que releva é que a decisão foi tomada pelo Apelado AA na qualidade de Administrador único da sociedade sem que o tenha feito com o acordo expresso da Apelante. Deste modo, não se conhece da impugnação deste ponto 14 dos factos provados por a mesma configurar um acto inútil. vi. impugnação do ponto 16 dos factos provados: Na sentença recorrida esse ponto de facto tem a seguinte redação: “16. Ou seja, os prédios, as vinhas e as licenças de produção de vinho generoso (ou do Porto) que foram objecto da dação em cumprimento foram os mesmos que haviam sido adquiridos pela sociedade em 2002 pela quantia de €429.453,06 (cfr. a escritura pública de dação em cumprimento junta como doc. 8 cit. e a escritura de aquisição outorgada em 25.07.2002, no Cartório de Aveiro, junta como doc. 3 junto ao reqto de 10.03.2022). “ Defende a Apelante que se impõe que os factos apurados sobre o negócio e o valor do bem sejam melhor pormenorizados nos factos provados, nomeadamente pela alteração à redação deste ponto de facto, sugerindo que passe a ser a seguinte: “-Os prédios, as vinhas e as licenças de produção de vinho generoso (ou do Porto) que foram objecto da dação em cumprimento, foram adquiridos pela sociedade em 2002, pela quantia de €613.008,34. - Na data da dação em cumprimento, o valor de mercado para a transmissão de propriedade naquela zona, com licença para 10,3 hectares de vinha estava fixado entre €1 205 100,00 e os 1 390 500,00 - Pela dação em cumprimento a sociedade insolvente entregou os prédios, as vinhas e as licenças de produção de vinho generoso por €429.453,06, quando os havida adquirido em 2002 por €633.473,33 e entre 12 de Abril de 2002 e o 28 de Abril de 2003 suportou despesas, relacionadas com os prédios adquiridos, no valor global de €83.773,33.” Para tal a Apelante socorreu-se do depoimento da testemunha Eng. FF, da prova documental, avaliação pericial e confissão expressa do Apelado CC sobre a existência de um pagamento adicional (“por fora”) no montante de €184.555,28, sustentando que segundo a testemunha FF o valor de mercado dos 10,3 hectares que foram cedidos ao Apelado CC em dação em pagamento corresponderia entre €1205 100,00 e os 1390 500,00, e que segundo o próprio Apelado assumiu noutros processos o valor real de aquisição foi de €613.008,34 e houve investimentos no primeiro ano de posse no valor de €83.773,33. Vejamos. O que o Tribunal a quo deu como provado neste ponto de facto foi apenas o que resulta do confronto dos documentos nele referenciados, isto é, “escritura pública de dação em cumprimento junta como doc. 8 cit. e a escritura de aquisição outorgada em 25.07.2002, no Cartório de Aveiro, junta como doc. 3 junto ao reqto de 10.03.2022”. Nos presentes autos não foi realizada qualquer perícia que determinasse com rigor o valor de mercado dos bens imóveis objecto da dação em cumprimento na data em que a mesma foi celebrada, não assumindo o depoimento da testemunha FF força probatória suficiente para determinar com o mínimo de rigor tal valor. A avaliação a que a Apelante fez referência diz respeito a um relatório de avaliação elaborado extrajudicialmente em 2019 que foi impugnado. As eventuais despesas relacionadas com os bens adquiridos suportadas pela insolvente durante o primeiro ano também não relevam para o que o Tribunal a quo pretendeu evidenciar no ponto de facto sob impugnação. É certo que na contestação ao pedido de insolvência da A... promovido pela aqui Apelante, a aqui insolvente, então representada pelo Apelado CC na qualidade de único administrador, afirmou que aqueles bens haviam sido adquiridos pelo valor global de €643.473,33 (art. 137 da oposição) e mesmo quando instaurou a acção nº … contra os vendedores GG e HH nela foi referido que havia sido celebrado contrato promessa de compra e venda pelo preço de €633.473,33, o que conjugado com a avaliação extrajudicial datada de Fevereiro de 2019, apresentada pela Apelante nos presentes autos por requerimento de 18.08.2021 na qual foi apresentado como valor de mercado €746.453,00, que traduzem fortes indícios de que já em 2002 o valor declarado na escritura de €429.453,06 não seria o valor real daqueles bens, porém, nem o Apelado confessou nestes autos ter sido pelo valor mencionado pela Apelante que a sociedade comprou tais bens, nem se nos afigura ter sido produzida qualquer outra prova suficiente e consistente nos presentes autos de que a compra daqueles bens imóveis pela insolvente, realizada através da escritura de Julho de 2002, não tenha sido pelo valor nela constante. Não obstante, de uma leitura mais atenta das duas escrituras referenciadas neste ponto 16 dos factos provados resulta desde logo que o Tribunal a quo incorreu num equívoco quanto ao valor total da compra realizada em 2002, porquanto melhor analisada tal escritura junta aos autos, os bens que foram objecto de dação em cumprimento pelo valor de 428.470,00 não haviam sido comprados pela A... em 2002 por €429.453,06, mas sim pelo valor declarado de €448.918,10. Na escritura de compra pela A... datada de 2002 estão incluídos os prédios rústicos ..., ... e ... pelo preço declarado de €429.453,06, mas nessa mesma escritura foi ainda comprado o prédio rústico ... pelo preço de €19.465,04, negócio esse que totalizou a importância de €448.918,10. Ora na escritura de dação em cumprimento de 24.08.2018 foram dados em pagamento todos aqueles 4 prédios rústicos ..., ..., ... e ... por apenas €428.470,00. Deste modo, embora não se possa verter nos factos provados as asserções pretendidas pela Apelante por não ter sido produzida prova suficiente e adequada, designadamente pericial, que imponha a alteração pretendida, da articulação da prova documental tomada em consideração pelo Tribunal a quo impõe-se rectificar o ponto 16 dos factos provados, dele ficando a constar a seguinte redação: 16. Os prédios, as vinhas e as licenças de produção de vinho generoso (ou do Porto) que foram objecto da dação em cumprimento foram os mesmos que haviam sido adquiridos pela sociedade em 2002 pela quantia de €448.918,10 (cfr. a escritura pública de dação em cumprimento junta como doc. 8 cit. e a escritura de aquisição outorgada em 25.07.2002, no Cartório de Aveiro, junta como doc. 3 junto ao reqto de 10.03.2022). “ vii. impugnação do ponto 19 dos factos provados: Na sentença recorrida esse ponto de facto tem a seguinte redação: “19. Em julho de 2018 foi celebrado um acordo de intenções entre CC e EE, cfr. doc. 28 junto ao reqto. de 06.11.2022. “ Defende a Apelante que o documento nele referido não tem data, não está reconhecido, nem o depoimento da prof. EE foi oferecido nos autos, à data do documento estavam várias acções judiciais relevantes que questionavam a legitimidade da administração e a titularidade das acções, tendo o Apelado CC histórico de simulações contratuais e falsificações documentais reconhecidas judicialmente que fragilizam a credibilidade desse documento, e conclui que como não há prova testemunhal ou documental complementar o ponto 19 carece de suporte probatório suficiente, para além de ser irrelevante para a boa decisão da causa. Acontece que não foi suscitada a falsidade ou falta de genuinidade do documento em cuja prova se alicerçou a convicção do Tribunal a quo para dar como provado tal facto, nem produzida qualquer prova concreta que abalasse a sua veracidade, pelo que se indefere a sua eliminação dos factos provados. viii. impugnação do ponto 20 dos factos provados: Na sentença recorrida esse ponto de facto tem a seguinte redação: “20. Em 02.08.2018 foi lavrado um auto de transmissão de posse das acções e gestão da sociedade A... entre CC, EE e AA, por força do qual, CC entrega a EE através de contrato de compra e venda em que CC vende a EE 80.000 ações, cfr. doc. 29 junto ao reqto. de 06.11.2022 e 34 junto ao reqto. de 10.03.2022.“ Defende a Apelante que o auto de transmissão da posse de acções não tem relevância jurídica para a causa, porque não implica alteração da propriedade nem confere direitos especiais, como voto ou administração, e não tem suporte probatório suficiente. Este ponto de facto foi dado como provado pelo Tribunal a quo com base no doc. 29 junto com o requerimento de 6.11.2022 (será 8.11.2022 como resulta dos autos) e 34 junto ao requerimento de 10.03.2022, e nele apenas está dado como provado que foi lavrado naquela data e com aquele teor um auto de transmissão da posse de acções, o que resulta efectivamente daquele documento, não tendo sido devidamente questionada a falsidade ou falta de genuinidade do mesmo, pelo que este ponto de facto tem suporte probatório naquele documento, independentemente da relevância jurídica que dele se possa extrair. Deste modo, mantém-se incólume este ponto de facto impugnado. x. impugnação do ponto 21 dos factos provados: Na sentença recorrida esse ponto de facto tem a seguinte redação: “21. Em 24.08.2018 CC não era sócio da A..., doc. 27 junto ao reqto. de 06.11.2022. “ Defende a Apelante que tal não foi alegado pelo Apelado CC na sua oposição, tendo inclusivamente reconhecido no processo nº … que o contrato com a prof. EE não produziu efeitos. Porém, ao que nos é dado a conhecer não foi considerado sem efeito ou invalidado por decisão judicial o contrato de compra e venda de acções de 2.08.2018, o auto de transmissão da posse das mesmas junto como doc. 26 da oposição apresentada pelo Apelado AA e o registo dessa transmissão, documentos em que este facto encontra respaldo, e se posteriormente tal contrato perdeu os seus efeitos por alegada resolução, como sugere a Apelante, é matéria que já não releva para estes autos pois que o que se verteu no ponto de facto impugnado reporta-se especificamente à data da celebração da dação em cumprimento. Deste modo, mantém-se o ponto 21 nos factos provados, por não existir evidências nos autos de que em 24.08.2018, contrariamente ao declarado naquele contrato, o Apelado CC ainda fosse acionista da insolvente. xi. impugnação do ponto 23 dos factos provados: Na sentença recorrida esse ponto de facto tem a seguinte redação: “23. Tal prédio rústico, que havia sido adquirido pela A... em 01.04.2016 pela quantia de €10.000,00 e foi vendido pela A..., representada pelo Administrador único AA, ao CC com uma mais-valia de €2.100,00, cfr. doc. 10 junto ao reqto. de 10.03.2022. “ Defende a Apelante que a parte final deste ponto de facto deve ser retirada porque a mais valia imobiliária não é calculada como o Tribunal a quo nele fez constar, mas de acordo com o regime fiscal aplicável à sociedade comercial (art. 46º do CIRC), devendo ficar a constar o valor de mercado, o qual está avaliado no relatório junto aos autos pelo valor de €70.068,25, mas que a testemunha FF determinou ser de €152.100,00, valor esse consentâneo com a prova da realização efectiva de negócios nas proximidades por aquele valor, valor que não foi colocado em causa pelo próprio Apelado CC no processo nº …. Sugere que, a ser entendido como relevante a determinação do valor do prédio à data do negócio de compra e venda, o ponto de facto 23 deve passar a ter a seguinte redação: “23. Tal prédio rústico tinha à data de outubro de 2019 um valor de mercado nunca inferior a €152.100,00 (cento e cinquenta e dois mil e cem euros) Relativamente a este ponto, mais uma vez se salienta que, não foi realizada prova pericial que permita afirmar ser um daqueles valores mencionados pela Apelante o valor de mercado do prédio rústico em questão, tendo sido vertidos na avaliação extrajudicial apresentada pela Apelante e no depoimento da referida testemunha Eng. FF valores muito díspares, questionados pelos Apelados e sem suficiente suporte probatório, e a menção a outros negócios realizados nas proximidades muito menos permite aferir do valor de mercado daquele imóvel, pois que tais negócios não dependem em exclusivo da localização, mas de outras condicionantes, como é exemplo o fim a que os imóveis se podem destinar (vinha, vinha com benefício, mato…). Entendendo-se que a parte final desse ponto de facto contém uma qualificação jurídica que está dependente de critérios fiscais não apurados nos autos, e que para a decisão da causa bastará a parte inicial desse ponto em articulação com o ponto de facto anterior, decide-se eliminar a sua parte final, passando a ter a seguinte redação: “23. Tal prédio rústico havia sido adquirido pela A... em 01.04.2016 pela quantia de €10.000,00.” xii. impugnação dos dois últimos factos não provados: Na sentença recorrida esses pontos de facto têm a seguinte redação: “- à data da celebração da escritura de dação em pagamento de 24.08.2028, o requerido CC fosse sócio da sociedade ora insolvente. - a celebração das escrituras de dação em pagamento de 24.08.2018 e compra e venda de 24.10.2019 se tenham traduzido em actos de disposição em beneficio dos requeridos CC e AA e em prejuízo dos credores. “ Relativamente ao primeiro dos referidos factos não provados, defende a Apelante que o Tribunal a quo deu como provado um negócio de transmissão de acções entre Apelado CC e a prof. EE quando esta última não foi ouvida e o primeiro não só não alegou tal negócio nestes autos, como negou a produção de qualquer efeito decorrente de tal negócio no processo nº ..., pelo que, tal como analisado a propósito do ponto 21 dos factos provados deve concluir-se que o Apelante foi sócio da insolvente desde a constituição da sociedade até ao presente/à declaração de insolvência. Assim não entendemos, como fizemos já referência a propósito da impugnação do ponto 21 dos factos provados, para cuja fundamentação remetemos. De todo o modo, como veremos melhor aquando da fundamentação de direito, acaba por ser inconsequente se à data dos negócios considerados relevantes para a qualificação da insolvência o Apelado CC era ou não sócio (acionista) uma vez que apenas está em causa a qualificação ao abrigo da al d) do nº 2 do art. 186º do CIRE para a qual tal qualidade não releva, assim como também não releva para a afectação pela qualificação que apenas recai sobre administradores de facto ou de direito (não sobre sócios ou accionistas ainda que beneficiários dos negócios). Finalmente, relativamente ao último ponto dos factos não provados sustenta a Apelante que o prejuízo não só é inegável como é calculável, conforme resulta da análise da prova produzida feita nas alegações aos pontos 16 e 26 dos factos provados. Não obstante, a nosso ver aquele ponto não deve constar dos factos não provados, tal como não deve constar dos factos provados, porquanto todo ele é conclusivo, reproduzindo o texto da lei e sendo precisamente a questão decidenda. O que se assume como relevante é apenas que conste do elenco dos factos a atender na sentença recorrida a factualidade concreta que nos permita chegar à conclusão referida no ponto impugnado. Deste modo, por apenas conter matéria conclusiva, determina-se a eliminação na sentença recorrida do referido ponto nela considerado não provado. Em suma, decide-se, na sequência do acima exposto, proceder às seguintes alterações à decisão sobre a matéria de facto: A) Eliminação dos pontos 26 e 27 dos factos provados e a consequente reformulação da redação do ponto 1 no qual se incluirá a factualidade daqueles dois pontos de facto, que passará a ser a seguinte: 1. Em 27.03.2018, a aqui Requerente BB instaurou ação judicial pedindo que fosse decretada a insolvência da A..., S.A, que correu termos sob o Proc. nº …, com os fundamentos que dele constam e aqui se dão por reproduzidos, tendo sido tal pedido julgado improcedente por sentença proferida em 11 de Julho de 2018 (cfr. doc. junto aos presentes autos pelo Requerido CC em 24.10.2022 e doc. 6 junto ao requerimento inicial). B) Rectificação do ponto 2 passando a ter a seguinte redação: 2. A sociedade A..., S.A., com o número comum de pessoa colectiva e de matrícula ..., foi constituída em 18.08.2000, com sede na Praça ..., ... Porto, com o capital social integralmente subscrito e realizado em dinheiro de €155.000,00, representado por 155000 ações com o valor nominal de €1,00 (cfr. certidão de registos junta como doc. 1 à PI no processo principal). C) Rectificação do ponto 16 dos factos provados, dele ficando a constar a seguinte redação: 16. Os prédios, as vinhas e as licenças de produção de vinho generoso (ou do Porto) que foram objecto da dação em cumprimento foram os mesmos que haviam sido adquiridos pela sociedade em 2002 pela quantia de €448.918,10 (cfr. a escritura pública de dação em cumprimento junta como doc. 8 cit. e a escritura de aquisição outorgada em 25.07.2002, no Cartório de Aveiro, junta como doc. 3 junto ao reqto de 10.03.2022). “ D) Eliminação da parte final do ponto 23 dos factos provados, passando a ter a seguinte redação: “23. Tal prédio rústico havia sido adquirido pela A... em 01.04.2016 pela quantia de €10.000,00.” E) Eliminação do último dos factos dados como não provados - a celebração das escrituras de dação em pagamento de 24.08.2018 e compra e venda de 24.10.2019 se tenham traduzido em actos de disposição em beneficio dos requeridos CC e AA e em prejuízo dos credores. Qualificação da insolvência como culposa Em sede de incidente de qualificação da insolvência, foi proferida a sentença recorrida na qual se concluiu pela qualificação da presente insolvência como fortuita. A Apelante centrou o presente recurso essencialmente na alteração da decisão sobre a matéria de facto, e quanto ao mérito da sentença recorrida insurgiu-se contra a qualificação da insolvência como fortuita, sustentando que “(…)tendo o Tribunal a quo dado por provado os actos de disposição de 24.08.2018 e 24.10.2019 (com evidente erro de escrita quanto ao ano do primeiro negócio), além de ser possível extrair da prova produzida que no mandato dos visados a sociedade dispôs de bens de enorme valor, sem correspondente contrapartida e, não iniciou qualquer outra actividade que permitisse a sua manutenção como certa e provável. Sabendo o julgador que, ainda que assim não fosse, a utilização do advérbio “sempre” na redação do art. 186º nº 2 do CIRE se tem extraído a conclusão de que a presunção estabelecida pela norma, relativamente aos comportamentos enunciados nas suas várias alíneas tem natureza inilidível ou iuris et de iure, a qualificação da insolvência da sociedade A... tinha forçosamente de ser declarada como culposa.” O enquadramento jurídico discorrido na sentença recorrida sobre o incidente da qualificação da insolvência e o modo de enquadramento dos factos nas hipóteses legais de insolvência culposa previstas no art. 186º nº 2 do CIRE, tendo sido qualificadas as situações mencionadas nesse nº 2 como presunções inilidíveis de culpa e de nexo de causalidade, afigura-se-nos ter sido correctamente abordado e como tal limitar-nos-emos a uma breve referência para contextualizar a nossa decisão. A insolvência é culposa, segundo o art. 186º nº 1 do CIRE, quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. A qualificação da insolvência como culposa tem sempre como pressupostos (i) o facto, por acção ou omissão, praticado pelos administradores (de facto ou de direito); (ii) cometido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; (iii) que tenha criado ou agravado a situação de insolvência; (iv) com dolo ou culpa grave. Retirando-se o conceito da insolvência culposa do art. 186º nº 1 do CIRE, seguem-se, no nº 2 do referido preceito legal, situações-tipo concretizadoras de tal qualificação- na sua esmagadora maioria são actos aptos em geral a causar ou a agravar uma situação de insolvência porque prejudicam a situação patrimonial da devedora- situações essas perante a verificação das quais a declaração da insolvência culposa será inevitável. Isto é, verificados os dois primeiros pressupostos acima mencionados- um dos factos taxativamente previstos no art. 186º nº 2 do CIRE praticado pelo administrador da insolvente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência- a insolvência considerar-se-á sempre culposa por se presumir que aquele facto tenha sido praticado com dolo ou culpa grave e que o mesmo tenha criado ou agravado a situação de insolvência, não tendo de ficar demonstrada a culpa do administrador nem o nexo de causalidade entre o facto e a situação de insolvência. Considera-se um dado adquirido e consolidado na doutrina[10] e na jurisprudência[11], que no nº 2 do art. 186º do CIRE prevêem-se presunções iuris et de iure de insolvência culposa, pelo que, demonstrado o acto previsto na situação-tipo, presume-se a insolvência culposa, não sendo admitida prova em contrário. Alegados e provados os factos que servem de base a uma daquelas previsões, a insolvência será, sempre, considerada como culposa. Na sentença recorrida, apesar da assertividade quanto ao referido enquadramento legal, doutrinal e jurisprudencial, a sua aplicação prática ao caso sob apreciação afigura-se-nos menos clara, pois que o Tribunal a quo afastou a qualificação da insolvência como culposa por ter concluído que “(…) os actos levados a cabo pelos requeridos em 24.08.2028 (2028 é um mero lapso de escrita, querendo-se ter escrito 2018) e 24.10.2019, s.m.o, em nada contribuíram para a insolvência da devedora e prejuízo dos credores, não se tendo provado qualquer nexo de causalidade entre a sua actuação e a situação de insolvência. Da prova documental citada e testemunhal produzida não se pode concluir que os actos de disposição de 24.08.2028 e 24.10.2019 tenham empurrado a sociedade para a insolvência.” Das duas uma, ou não foram realizados actos que se possam apelidar de actos de disposição em benefício de terceiro, ou tendo-o sido o nexo de causalidade tem de se considerar presumido, de forma inilidível, como anteriormente se referenciou, tal como foi defendido também pela Apelante. Prevê o art. 186º nº 1 e 2 al. d) do CIRE que: “1. A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. 2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: (…) d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; A lei claramente consagra no nº 2 do art. 186º do CIRE presunções de carácter absoluto (presunções inilidíveis), não só de culpa, mas também de nexo de causalidade, considerando que os actos nele elencados automaticamente, sem admitirem prova em contrário, ainda que em concreto possam não ter sido causa única dessa insolvência, desencadeiam os efeitos da insolvência culposa. Diferente será o caso das hipóteses previstas no nº 3 do mesmo preceito legal, em que estamos perante presunções iuris tantum, ilidíveis, que recaem apenas sobre a culpa e não também sobre o nexo de causalidade, exigindo-se apenas nesses casos a demonstração de que o acto praticado ou omitido causou ou agravou a situação de insolvência. Isto é, nas hipóteses previstas no nº 3 do art. 186º do CIRE estaremos apenas perante presunções de culpa qualificada, sendo necessário a prova também do nexo de causalidade para poder ser decretada a insolvência culposa, tal não ocorrendo nas hipóteses previstas no nº 2 do mesmo preceito legal. Por conseguinte, para a procedência do presente recurso bastará que tenha ficado demonstrado nos autos a prática pelo administrador da insolvente, no período dos 3 anos que antecederam o início do processo de insolvência, de um dos comportamentos previstos no art. 186º nº 2 do CIRE, pois que, verificado o acto presume-se a culpa e o nexo de causalidade sem possibilidade de prova em contrário. Como escreveu Maria do Rosário Epifânio, as alíneas do nº 2 do art. 186º podem ser agrupadas em três categorias fundamentais, a saber: 1) atos que afetam, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; 2) atos que, prejudicando a situação patrimonial, em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros; 3) incumprimento de certas obrigações legais. (…)O proémio do nº 2 do art. 186º prevê um elenco de presunções iuris et de iure, considerando “sempre culposa a insolvência” quando se preencha alguma das suas alíneas.”[12] No mesmo sentido, entre outros, José Engrácia Antunes, O Âmbito Subjectivo do Incidente de Qualificação da Insolvência, Revista de Direito da Insolvência, 2017, pág.83; Carvalho Fernandes e João Labareda, A Qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor, Themis, 2005, pág. 95 e Carina Magalhães, Incidente de qualificação da insolvência. Uma visão geral, Estudos de Direito da Insolvência, 2015, pág. 118. Deste modo, é entendimento consolidado que relativamente a todas as alíneas do nº 2 do art. 186º do CIRE, é dispensada a prova do nexo causal entre os factos aí previstos e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Nestes autos estão sob apreciação dois actos de transmissão de bens imóveis do património da sociedade insolvente para o Apelado CC (ex-administrador e ex-accionista), ambos celebrados nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. O presente processo de insolvência teve início em 3.05.2021, pelo que o período relevante de administração da devedora para efeitos da qualificação da insolvência iniciou-se em 3.05.2018. O negócio da dação em cumprimento ocorreu em 24.08.2018 e o negócio de venda do outro bem imóvel ocorreu em 24.10.2019, dentro do período relevante mencionado no nº 1 do art. 186º do CIRE para efeitos da qualificação da insolvência, e como resulta dos autos nesses dois actos de transmissão a sociedade insolvente deixou de ter relevante património imobiliário, vinhas assim como as licenças de vinho generosos ou vinho do Porto. A questão que se coloca diz respeito ao que se deve entender consubstanciar um “acto de disposição em proveito de terceiro”. “O proveito aludido na alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE tem ínsita a ideia de favorecimento/vantagem ou benefício ilegítimo, de repercussão negativa no património do insolvente”[13], designadamente quando a transferência de bens do devedor tenha sido feita a título gratuito, ou, sendo a título oneroso, tenha tido como contrapartida preço inferior ou desconforme ao valor real do bem[14]. Para tal não se torna necessário aferir se o negócio celebrado foi ruinoso para a sociedade que veio a ser declarada insolvente, basta que haja uma repercussão negativa no património da sociedade que serve de garantia dos credores, e que tenha resultado em benefício pessoal dos seus administradores ou de terceiros. “Tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no nº 2 do art. 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o acto.”[15] De igual modo escreve Carina Magalhães, que “perante presunções iuris et de iure, pela gravidade que evidenciam, dispensa-se a verificação do nexo causal. Assim, a insolvência irá sempre considerar-se culposa, a não ser que o afetado prove que não praticou o ato censurável, visto que não lhe é admitido provar que esse ato não criou ou agravou a situação de insolvência.”[16] A jurisprudência tem sufragado tal entendimento como se pode ler, entre outros, no recente Ac STJ de 7.10.2025, proferido no Proc. nº 958/23.1T8VIS-B.C1.S1, Ac STJ de 16.11.2023, proferido no Proc. Nº1937/21.9T8CBR-A.C1.S1 e Ac STJ de 17.01.2023, Proc. Nº 14604/18.1T8LSB-A.L2.S1, (consultáveis em www.dgsi.pt). Também assim defende Carneiro da Frada, que a propósito da inadmissibilidade da prova em contrário nas situações referenciadas no nº 2 do art. 186º do CIRE, escreveu que “a inadmissibilidade dessa prova [prova em contrário] não é todavia (em geral) excessiva, enquanto puder justificar-se como forma enérgica de dissuadir ou prevenir condutas indesejáveis que, segundo a experiência, são susceptíveis de ocasionar insolvências e estão com elas intimamente ligadas. É isso que justifica a declaração da insolvência como culposa sem necessidade de mostrar a ligação entre a conduta censurada e a concreta insolvência ocorrida (vedando a prova em contrário ou aceitando que a superveniência de elementos fortuitos que co-determinaram a insolvência não exclui essa insolvência culposa).”[17] Demonstrado o acto previsto na situação-tipo referenciado na sentença recorrida (na al. d) do art. 186º nº 2 do CIRE), presume-se a insolvência culposa, não sendo admitida prova em contrário. E pensamos assim ter acontecido no caso sob apreciação no que diz respeito ao negócio de dação em cumprimento celebrado entre a sociedade insolvente e o Apelado CC. Resulta da factualidade apurada, com as alterações introduzidas nesta instância de recurso, que no dia 24.08.2018 foi outorgada uma escritura de dação em cumprimento entre a sociedade insolvente, devidamente representada pelo Administrador –Único AA e CC, através da qual os prédios, as vinhas e as licenças de produção de vinho generoso (ou do Porto) foram transmitidos ao Apelado CC para pagamento do seu crédito de suprimentos (reconhecido por sentença proferida no dia 21.11.2017) pelo valor de €428.470,00, bens que haviam sido adquiridos pela referida sociedade em 2002 pela quantia de €448.918,10. Sendo do conhecimento público que as vinhas com benefício de vinho generoso/vinho do Porto em regra são transacionadas por valores por hectare elevados e que não houve notícia, nem se extrai dos presentes autos, que entre 2002 e 2018 tenham sofrido qualquer decréscimo de valor, aquela transmissão de praticamente todo o património da sociedade A..., por um valor inferior ao valor pelo qual havia sido adquirido cerca de 16 anos antes, configura um acto de disposição em beneficio do Apelado CC, traduzindo-se num favorecimento ilegítimo, com acentuada repercussão negativa no património da insolvente, designadamente porque a transferência de bens da devedora ocorreu para cumprir um crédito de suprimentos do Apelado de valor inferior, e conduziu a que o património mais significativo da sociedade tivesse sido transmitido e a sociedade tivesse ficado sem capacidade de prosseguimento da sua actividade produtiva e sem património relevante que servisse de garantia aos credores. Ainda que porventura alguma dação em cumprimento de bens fosse necessária para cumprir a sentença que condenara a sociedade a pagar ao Apelado CC o valor de €428.470,00 a título de suprimentos, dado que se apurou não ter fundos disponíveis para pagar em dinheiro, certo é que o Administrador Único da sociedade entregou para pagamento daquela dívida muito mais do que era devido, integrando na dação em cumprimento os bens de maior valia para a sociedade, por um valor inferior ao valor real dos bens- pois que inclusivamente inferior ao valor pelo qual os havia comprado- determinando que a sociedade suportasse esse prejuízo em exclusivo benefício do ex-administrador e ex-accionista- o qual curiosamente havia renunciado à administração nem um mês antes deste negócio. Deste modo, aquele acto cometido pelo Apelado AA- administrador único da insolvente-, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, presume-se culposo, assim como se presume ter sido causa do surgimento ou agravamento da insolvência (nexo de causalidade), independentemente de poder até não ter sido causa única do subsequente estado de insolvência, presunções essas que não admitiam prova em contrário, por se subsumirem à situação prevista no art. 186º nº 2 al d) do CIRE, determinando inevitavelmente a qualificação da insolvência como culposa. Já o mesmo não podemos afirmar no que diz respeito ao outro prédio rústico vendido também pela sociedade ao Apelado CC em 24.10.2019 pelo preço de €12.100,00, porquanto apenas se apurou ter sido adquirido pela insolvente em 1.04.2016 (aproximadamente cerca de 3 anos antes) por €10.000,00, sendo essa matéria de facto insuficiente para se considerar ter havido um benefício ilegítimo do Apelado CC, porquanto, traduzindo-se num acto oneroso, pela venda daquele bem a devedora terá recebido o preço e não ficou demonstrado que aquele não fosse o valor real do bem à data da transmissão. Em suma, pelas razões acima mencionadas temos de concluir pela verificação da insolvência culposa fundamentada no art. 186º nº 1 e 2 al. d) do CIRE. Afectação dos Apelados pela qualificação da insolvência Tal como dispõe o art. 189º do CIRE a sentença qualifica a insolvência como culposa ou como fortuita e, sendo a insolvência qualificada como culposa, o juiz deve identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, afectadas pela qualificação, isto é, não sendo qualificada a insolvência como fortuita, a qualificação como culposa afecta os titulares do órgão social que manifestam a vontade da sociedade- os administradores. Maria do Rosário Epifânio diz-nos que “serão afetados pela qualificação da insolvência o devedor (pessoa singular) e os administradores do devedor. Se o devedor não for uma pessoa singular, os administradores, para efeitos do CIRE, são aqueles a quem incumbe a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social competente para o efeito (art. 6º, nº 1, al. a)). (…) Para além disso, por estatuição expressa da lei (e num patente esforço de moralização), estão abrangidos não só os administradores de direito, mas também os administradores de facto. “[18] No caso em apreço está pedido pela Apelante que sejam afectados pela qualificação da insolvência os Apelados AA e CC. Relativamente ao primeiro, sendo incontroverso ter sido o administrador único da sociedade insolvente, quer de facto quer de direito, tendo sido quem praticou o acto de disposição que acabou por conduzir à situação de insolvência culposa, impõe-se que seja declarado afectado pela qualificação da insolvência. O mesmo não acontecerá com o Apelado CC, pois que não ficou demonstrado ser administrador da sociedade insolvente, de direito ou de facto, no período relevante previsto no nº 1 do art. 186º do CIRE, como resulta do primeiro ponto dos factos não provados, que nem sequer foi impugnado pela Apelante em sede de conclusões do recurso. Na sentença que qualifica a insolvência como culposa o juiz deve ainda decretar as consequências estabelecidas nas alíneas b), c), d) e e) do nº 2 do art. 189º do CIRE. Relativamente ao período de inibição referenciado nas alíneas b) e c) do referido preceito legal, a lei não estabelece critérios de fixação, “tendo a doutrina entendido que “o juiz deverá ter em conta a gravidade do comportamento e o seu contributo para a situação de insolvência”[19] Atendendo à materialidade apurada nos autos afigura-se-nos adequado fixar o período de inibição em 3 (três) anos, por se considerar proporcional à culpa e gravidade da conduta subjacente à qualificação da insolvência, já que embora o acto de disposição tenha contribuído de forma acentuada para a insolvência da sociedade, ele surgiu num contexto em que o Apelado tinha para cumprir uma sentença judicial que obrigava a sociedade a pagar suprimentos de valor considerável, sem que tivesse fundos disponíveis para o fazer. No que toca à indemnização consagrada na al. e) do mesmo preceito legal relega-se a sua quantificação para liquidação de sentença por este tribunal não dispôr dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos efectivamente sofridos como permite o nº 4 do art. 189º do CIRE. Não obstante, incumbe-nos estabelecer os critérios para a sua quantificação, pelo que a indemnização deverá ser calculada até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando a força do património do afectado, e devendo ter como limite o valor do prejuízo efectivamente causado pelo acto de disposição considerado relevante para a qualificação da insolvência sob apreciação. No Ac RP de 13.07.2022 a esse propósito pode ler-se que, “(…) à luz do preceituado no artigo 189º nºs 2 al. e) e 4 do CIRE, a indemnização aos credores tem por limite a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago pelas forças da massa insolvente, mas tem, ainda, de ser proporcional à gravidade da situação prejudicial criada pelo afectado pela insolvência, devendo, por isso, aproximar-se tendencialmente do valor dos danos efectivamente causados pela conduta que está na base da qualificação da insolvência.”[20] Esse raciocínio é transponível para o caso sub judice, com as devidas adaptações, devendo atender-se na futura liquidação da indemnização prevista na alínea e) do art. 189º do CIRE ao valor do dano causado pela conduta do administrador da insolvente, ponderando o diferencial apurado entre o valor dos bens da sociedade à data em que foram adquiridos e o valor pelo qual deles dispôs em benefício de terceiro, diferencial esse que se apurou ser de €20.448,10, valor esse que poderia bem ter servido para dar pagamento aos credores. Deste modo deverá o Apelado AA indemnizar os credores da sociedade insolvente, na proporção dos respetivos créditos e em montante correspondente ao valor de €20.448,10, com o limite máximo do valor dos créditos insatisfeitos, a liquidar posteriormente. Litigância de má-fé A Apelante requereu a condenação dos Apelados como litigantes de má-fé, sustentando que foi alegado um negócio de transmissão de acções entre o Apelado CC e a prof. EE em 2.08.2018, assim como foi alegado que tal Apelado não era sócio da sociedade insolvente à data da dação em cumprimento realizada em 2018, quando sabiam e não podiam ignorar que tal não correspondia à verdade, actuando de forma censurável. Atendendo ao decidido supra relativamente à impugnação dos pontos de facto respeitantes a tal matéria- pontos 20 e 21 dos factos provados- que se mantiveram incólumes, resulta inexorável a improcedência deste pedido de condenação dos Apelados em litigância de má-fé. Concluindo, procedendo em parte os argumentos recursivos impõe-se a revogação da sentença recorrida no que diz respeito à qualificação da insolvência, qualificando-se como insolvência culposa, com afectação pela qualificação do Apelado AA, mantendo-se a absolvição do pedido de afectação quanto ao Apelado CC, sendo ambos os Apelados absolvidos do pedido de condenação por litigância de má fé. ** V. DECISÃO:Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação, revogando-se em parte a decisão recorrida e decidindo-se nos seguintes termos: a)Qualifica-se como culposa a insolvência de A..., SA; b) Declara-se AA afetado pela referida qualificação; c) Decreta-se a inibição de AA, pelo período de 3 (três) anos, para administrar patrimónios de terceiros; d) Declara-se AA inibido, pelo período de 3 (três) anos, para exercer o comércio e ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; e) Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos eventualmente já recebidos em pagamento desses créditos; f) Condena-se o Apelado AA a indemnizar os credores da insolvência no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património, em valor a quantificar em liquidação de sentença nos termos do art. 189º nº 4 do CIRE; g) absolvem-se todos os Apelados do pedido de condenação como litigantes de má fé. No mais, mantém-se a sentença recorrida quanto à absolvição do pedido de afectação pela qualificação do Apelado CC. Oportunamente, remeta-se certidão à Conservatória do Registo Civil competente, e Conservatória do Registo Comercial competente, nos termos e para os efeitos previstos no art. 189º n.º 3 do CIRE. Custas do incidente a cargo da massa insolvente, nos termos do art.303º e 304º do CIRE, ficando as custas deste recurso a cargo de Apelante e dos Apelados, que nele ficaram vencidos, na proporção de metade. Notifique. Porto, 28.10.2025 Maria da Luz Seabra Artur Dionísio Oliveira Rodrigues Pires (O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico) ___________________ [1] A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 686. [2] José Lebre de Freitas, CPC Anotado, 2º volume, 3ª edição, pág. 736-737. Vide, ainda, no mesmo sentido, AC RP de 29.06.2015, AC RP de 1.06.2015 ou, ainda, AC RG de 14.05.2015, todos www.dgsi.pt. [3] Neste sentido, entre outros, Ac STJ de 30.11.2021, Proc. Nº 760/19.5 T8PVZ.P1.S1 e Ac STJ de 16.11.2021, Proc. Nº 2534/17.9T8STR.E2.S1, www.dgsi.pt [4] Vide, neste sentido, ainda, A. VARELA, ob. cit., pág. 690. [5] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 220-221. [6] A. Varela RLJ, ano 122º, pág. 112. [7] Alberto dos Reis, CPC Anotado, volume V, 1984, pág. 143. [8] Cadernos Temáticos De Jurisprudência Cível Da Relação, Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consultável no site do Tribunal da Relação do Porto, Jurisprudência [9] A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição, 2008, pág. 297-298, Ac RP de 13.06.2023, Proc. Nº 1169/21.6T8PVZ.P1; AC STJ de 29.09.2020, AC STJ de 17.05.2017, www.dgsi.pt [10] CIRE Anotado, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, 2013, pág. 504 ss; Carina Magalhães, Estudos de Direito da Insolvência, 2015, pág. 116 ss; Maria Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, pág. 151 ss; Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3ª edição, pág. 284 ss; L. Carvalho Fernandes e J Labareda, CIRE Anotado, pág. 610 ss [11] Entre outros, recente Ac STJ de 7.10.2025, Proc. nº 958/23.1T8VIS-B.C1.S1;Ac RP de 28.2.2023, Proc. Nº 2493/20.0T8STS-C.P1; Ac RP de 7.2.2023, Proc. Nº 49/22.2T8AMT-A.P1; Ac RP de 24.1.2023, Proc. Nº 2237/21.0T8VNG-B.P1; Ac RP de 24.10.2022, Proc. Nº 1117/16.5T8AVR-E.P1; Ac RP de 13.7.2022, Proc. Nº 876/13.1TYVNG-A.P1; Ac RL de 4.7.2023, Proc. Nº 2556/18.2T8FNC-B.L1-1, www.dgsi.pt [12] Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, pág. 152/154 [13] Ac RP de 30.05.2023, Proc. Nº 791/22.8T8OAZ-C.P1, www.dgsi.pt [14] Abordam esta problemática também Ac RP de 24.11.2015, Proc. NºAc RG de 2.02.2017, Proc. Nº 6866/15.2T8VNF-A.G1; Ac STJ de 15.02.2018, Proc. Nº 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1; Ac RG de 1.06.2017, Proc. Nº 280/14.4TBPVL-E.G1,disponíveis www.dgsi.pt [15] Maria do Rosário Epifânio, ob cit [16] Ob. Cit, pág. 121 [17] A Responsabilidade dos administradores na Insolvência, ROA, 66, II [18] Ob. cit, pág. 149/150 [19] CIRE Anotado, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho, Rui Simões, 2013, pág. 531 [20] Proc. Nº 876/13.1TYVNG-A.P1, www.dgsi.pt |