Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
345/18.3PASTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: BORGES MARTINS
Descritores: MORTE DO ASSISTENTE
EXTINÇÃO DA INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RP20210113345/18.3PASTS.P1
Data do Acordão: 01/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A morte do/a assistente não extingue a instrução por ele/a requerida, mesmo que os seus sucessores indicados no artigo 113.º, n.º 2, do Código Penal pretendam essa extinção, não sendo aplicável analogicamente a esta situação o disposto nesse preceito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Instrução n.º 345/18.3PASTS.P1.
Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos – Juiz 2.
Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação:

Nos presentes autos foi publicado o seguinte despacho:

A Instrução é uma fase facultativa (art. 286º/2 do Código de Processo Penal).
No caso concreto, a Instrução foi requerida por B…, na qualidade de Arguida e de Assistente (fls. 91, 100, 165 a 170, 192 e 205 a 207).
A Arguida/Assistente/Requerente faleceu entretanto (fls. 249 a 251).
Na decorrência inevitável do seu óbito, foi já julgado extinto o procedimento criminal contra ela instaurado (fls. 253), por essa via se tendo concomitantemente extinta a Instrução, na parte em que a mesma fora requerida na condição de Arguida.
Resta a Instrução na parte em que a mesma foi requerida por B… na qualidade de Assistente.
A esse respeito, a informação apurada nos autos aponta no sentido de que a falecida apenas deixou um herdeiro, o qual veio expressamente aos autos declarar que não pretende ocupar o lugar da falecida nos autos (fls. 249, 259 e 260).
Dito isto, o sujeito processual que tinha legitimidade para dar continuidade aos autos no lugar da falecida, tendo manifestado a posição que manifestou, assumiu que não pretende assumir uma tal continuidade, o que tudo equivale, do ponto de vista prático-jurídico, a uma desistência da Instrução.
Face ao exposto, decidimos julgar extinta a Instrução, ora na parte em que a mesma fora requerida pela Assistente entretanto falecida B….

Inconformado, recorreu o MP, sustentando ponto de vista contrário, em síntese, entendendo que a morte do assistente não produz a extinção da instrução.
Apenas no caso de os ofendidos terem falecido sem terem apresentado queixa, nem renunciado a ela, é que esta se transmite aos sucessores, tal como está expressamente previsto no art.º 113.º,n.º2 do CP. Também no caso de os queixosos falecerem sem terem requerido a sua constituição como assistentes existe a transmissão este direito aos sucessores , cfr. art.º 68.º,n.º1 , al. c) do CPP.
Deveria ter-se realizado o debate instrutório, pois no mesmo não é obrigatória a presença do assistente (o mesmo sucedendo com a audiência de julgamento). O direito de queixa não é legalmente transmissível aos sucessores; não é possível aqui a aplicação analógica do art.º 113.º, n.º2 do CP
Conclui-se que não sendo possível, depois de o ofendido ter apresentado queixa, ter-se constituído assistente e ter requerido abertura de instrução, aos sucessores desistir da queixa – não se pode conferir a estes a possibilidade de desistirem do RAI.
Foram também violados os arts. 4.º,49.º,51.º, 209.º, 301.º, n.º 1, 330.º, n.º2 , todos do CPP.

O Exmo PGA no seu Parecer considerou não merecer provimento o recurso. Em síntese, considera que, das disposições conjugadas nos arts. 113.º,n.º2 do CP e 68.º,n.º1, al.c) do CPP, sem recurso a qualquer interpretação analógica, interdita no CP, mas não no CPP, resulta claro que na morte do assistente o seu sucessor assume a posição deste, em cujas prerrogativas se inclui a possibilidade de desistir da queixa nos crimes cujo procedimento dela dependa, como sucede no caso dos autos. Se assim não fosse, a tese preconizada no recurso tornar-se-ia discriminatória desfavoravelmente para os arguidos que em situação como a dos autos teriam vedada a possibilidade de beneficiar da desistência da queixa que sempre poderia ocorrer se a titular fosse viva.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º,n.º 2 do CPP, tendo as arguidas C… e D… manifestado concordância com o dito Parecer.
Colhidos os Vistos, cumpre decidir.
Fundamentação:
Reflectindo sobre a variedade de tipos legais de crime que constam da parte especial do Código Penal, verificamos que, em geral, o ofendido titular do bem jurídico protegido é um cidadão; noutros casos, um que já faleceu (art.º 185.º, ofensa à memória de pessoa falecida); no caso do aborto (art.º 140.º) alguém que ainda não nasceu; e igualmente em variados outros casos os titulares são pessoas colectivas (art.º 187.º, ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva), formações sociais, como a família, a sociedade ou o Estado.
Não faria, assim, sentido o legislador ter inserido norma analógica ao art.º 127.º,n.º1 do CP, o qual estipula o óbvio, que a morte do arguido extingue qualquer responsabilidade criminal que lhe pudesse ser atribuída.
A morte ou a extinção daquelas pessoas ou entidades não apaga a violação, jurídico-penal, de bens primacialmente tutelados e a necessidade de justa punição do criminoso – a efectivação do princípio da legalidade.

Situamo-nos até aqui no plano puramente de Direito Substantivo.
Passamos a um campo de transição. Embora formalmente se encontre no Código Penal, o direito de queixa atribuído pela lei aos ofendidos (art.º 113.º, n.º 1), segundo a Doutrina e a grande maioria da Jurisprudência, é considerado já uma figura adjectiva, uma condição de procedibilidade ou um pressuposto processual.
Se entretanto o ofendido morrer, sem ter apresentado queixa ou renunciado a ela, esse direito de procedibilidade transmite-se ao cônjuge sobrevivo ou aos seus familiares mais directos – art.º 114.º,n.º2 do CP. Trata-se de uma situação conjectural e hipotética, enquadrada no estrito prazo de seis meses previsto no art.º 115.º,n.º1 do CP. Ao exercita-lo, não o estão a fazer em nome próprio, em virtude de uma faculdade originária sua – mas a suprir uma impossibilidade do titular do bem, ditada por um acontecimento circunstancial, sempre de alguma forma repentino.
De modo que a ordem jurídico-penal não se limita a reconhecer e a tutelar direitos; mas salvaguarda a possibilidade de recorrer a juízo para sua salvaguarda ou reparação.

Exercitado esse Direito, situamo-nos agora no âmbito do processo penal instaurado e nas correspondentes normas puramente adjectivas ou de natureza instrumental.
Imediatamente nos surge o art.º 68.º do CPP. O qual regulamenta a atribuição do estatuto de assistente, como sujeito processual.
No caso que nos interessa, tal faculdade pode ser atribuída ao ofendido, considerado na sua veste de titular do interesse que a lei quis proteger com a incriminação – al. a).
Também aqui se concebe o lugar paralelo ao analisado supra, no caso de morte do ofendido - atribuição da possibilidade de se constituírem assistentes tanto o cônjuge como outros familiares próximos. Igualmente se o ofendido não tiver renunciado à queixa, entretanto – presumindo-se que já a apresentou previamente – al. c).
Só no caso de o ofendido ter morrido sem se ter constituído assistente tem lugar a aplicação desta norma – cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 16.ª edição, 2007.
Como escreveu José António Barreiros (Processo Penal-1, Almedina, 1981, pág. 504), a posição judiciária de assistente extingue-se com a morte do individuo que revestia tal estatuto. Nesse caso, a lei permite que que se habilitem as pessoas previstas no n.º 4 do art.º 4.º do DL n.º 35 007 – norma correspondente ao actual art.º 68.º,n.º 1, al. c) do CPP.
Na hipótese dos autos, vemos que a Assistente, entretanto falecida, requerera abertura de instrução. Os substitutos legais possíveis renunciaram a tal faculdade.
Determina o art.º 69.º,n.º2, do CPP que compete, em especial, ao assistente oferecer provas; e requerer as diligências que se afigurarem necessárias, deduzir acusação independente da do MP e, no caso de procedimento dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza; interpor recurso das decisões que o afectem.
A Assistente exerceu tais poderes que a lei lhe confere.
Entretanto, deixou de haver nos autos Assistente como sujeito processual capaz ou interessado em exercer tais poderes no futuro.
Mas, e no que diz respeito ao RAI anteriormente deduzido?
Este tinha sido judicialmente admitido; e tinha sido publicado despacho determinativo de inquirição de duas testemunhas no mesmo indicadas; e de realização subsequente e imediata do debate instrutório.
No âmbito do processo civil – sempre a ter em conta, dado o disposto no art.º 4.º do CPP – vigora o princípio da aquisição processual: Os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária (…). Quanto ao seu outro aspecto, o princípio traduz-se na comunidade das provas. Desta comunidade deriva que a parte não pode renunciar às suas provas, uma vez produzidas – embora delas possa desistir antes disso (arg. do art.º 571.º) resulta claramente do disposto no art.º 515.º. – cfr. arts. 465.º, 594.º,n.º 4 e 595.º, todos do NCPC, Manuel da Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 383.
No novo CPC determina o art.º 498.º,n.2 que a parte pode desistir a todo tempo da inquirição de testemunhas que tenha oferecido, sem prejuízo da possibilidade de inquirição oficiosa, nos termos do art.º 526.º.
Não existe norma equivalente no CPP e cremos que a aplicação da mesma no processo penal é pelo menos polémica, dado o princípio de demanda da verdade material que constitui a sua trave mestra.
No caso dos presentes autos, constata que a Assistente ofereceu prova de duas testemunhas; não tendo as mesmas ainda sido inquiridas.
Ora, o JIC, nos termos do disposto no art.º 291.º,n.º1 do CPP tem a possibilidade de indeferir a produção de depoimento de testemunhas que entenda inúteis para a finalidade da instrução – que é comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem de submeter ou não a causa a julgamento. Pode inclusivamente rejeitar a repetição de depoimentos já prestados em inquérito – n.º 3 do citado art.º 291.º do CPP.
Se designou data para a sua inquirição e imediata realização do debate instrutório, foi porque considerou o respectivo depoimento como à partida útil para a realização daquela finalidade.
Por outro lado, a não presença do Assistente não afecta a regularidade deste, conforme teor do art.º 297.º do CPP; recordando que tal debate e decisão instrutória não deixarão de reflectir sobre os pressupostos processuais, maxime, legitimidade para prossecução do procedimento criminal – questão não abordada pela decisão recorrida.
Termos em que se entende assistir mérito aos fundamentos invocados pela motivação de recurso.
Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP, revogando o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que não julgue extinta a instrução.
Sem tributação.

Porto, 13 de Janeiro de 2021.
Borges Martins