Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0411110
Nº Convencional: JTRP00037406
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: POLUIÇÃO
Nº do Documento: RP200411240411110
Data do Acordão: 11/24/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: O facto de haver licença de construção emitida pela Câmara Municipal não dispensa o licenciamento por parte da Direcção Regional do Ambiente e Recursos Naturais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
No Tribunal Judicial da....., -º Juízo criminal (processo ../02) foi julgada totalmente improcedente a impugnação judicial das coimas aplicadas à arguida “B....., LDA.”, pela prática de “duas contra-ordenações previstas e punidas no artigo 86º, n.º 1, alínea v), D.L. nº 46/94, de 22 de Fevereiro, na coima de € 2.493,99 cada uma, de uma contra-ordenação prevista e punida no artigo 86º, nº. 1, alínea p), do mesmo diploma, na coima de € 498,80, e de uma contra-ordenação prevista e punida no artigo 17º e 20º, nº. 2, do D.L. nº. 239/97, de 9 de Setembro, na coima de € 498,80; atento o facto de a arguida ter praticado quatro contra-ordenações e o disposto no artigo 19º, n.º1 do D.L. nº. 433/82, de 27 de Outubro, deve ser punida com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infracções em concurso, não podendo a coima exceder o resultado dessa soma, nem ser inferior à mais elevada coima concretamente aplicada, o que determina a condenação da arguida na coima unitária de € 4.000,00”.

Inconformada com tal decisão, a arguida recorreu para esta Relação, formulando, em síntese, as seguintes conclusões:

- a arguida foi condenada por factos que são permitidos, não carecem de licenciamento e não integram qualquer contra-ordenação;

- a arguida foi condenada por factos que não praticou, pois não tem nem produz quaisquer resíduos no exercício da sua actividade, razão porque não tinha que entregar qualquer mapa;

- a arguida foi condenada por factos que não estão sujeitos a licenciamento da DRARN, já que o licenciamento de quarto de banho e fossa séptica para os trabalhadores praticarem as suas necessidades fisiológicas não corresponde a qualquer rejeição de águas residuais domésticas para o solo;

- as águas provenientes da lavagem de inertes não integram o conceito de águas residuais industriais ou efluentes industriais a que se refere a Lei 46/94, de 22/2, por não haver quaisquer produtos nas águas de que resulte poluição das águas do meio freático ou do solo;

- as águas provenientes da lavagem de entulhos de que resultam como produtos, britas e areias, fica empoeirada com o pó da lavagem daqueles elementos naturais, o que a torna apenas de cor barrenta, sendo que tais águas, após decantação na lagoa, ficam límpidas e são reutilizadas de novo;

- e as que eventual ou ocasionalmente transbordam da lagoa, ao infiltrarem-se no solo são filtradas, deixando à superfície do solo o pó da pedra que contêm, não poluindo assim o meio freático;

- sendo que o pó de pedra não só é aproveitado para as obras de estradas e outras, como enriquece o solo, mas não o polui;

- pelo que a arguida foi condenada por facto que não está sujeito a qualquer licenciamento;

- a douta sentença omitiu e não se pronunciou, nem valorou como prova, as análises constantes dos autos, comprovativas de que as águas dos meios freáticos do local onde a arguida exerce actividade e a água que utiliza não está poluída;

- quer da participação, quer da sentença, não constam factos concretos e específicos resultantes da actividade humana, praticados pela arguida, mas tão só o teor literal das normas cuja aplicação como contra-ordenação foi feita.

- a sentença recorrida violou, entre outros, os arts. 19º, 36º e 86º als. p) e v) da Lei 46/94, de 22/2 e os artigos 17º e 20º do Dec. Lei 239/97, de 9/9 e ainda os artigos 414º e 668º, 1, als. b) e c) do C.P.C. e 369º do C.Civil.

O M.P. junto do tribunal recorrido respondeu, defendendo a legalidade da decisão recorrida.

O Ex.mo Procurador-geral-adjunto, nesta Relação, emitiu parecer no sentido de ser concedido parcial provimento ao recurso. Quanto às contra-ordenações previstas nas alíneas p) a v) do n.º 1 do art. 86º do Dec. Lei 46/94, de 22/2, entende que nada há a censurar à decisão recorrida. Todavia, quanto à contra-ordenação prevista nos artigos 17º, n.º 1 e 20º, n.º 2 do Dec. Lei 239/97, de 9/9, entende que “a mesma não se verifica. Isto porque devia estar demonstrado que a arguido laborou e produziu resíduos durante o ano de 1999, como impõe aquele art. 17º, n.º 1, mas tal não acontece, sendo meramente conclusiva a matéria vertida na alínea e) do n.º 1 dos factos provados”.

Colhidos os vistos legais, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.

2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto

A decisão recorrida deu como assente a seguinte matéria de facto:

Factos provados:

1 - Por auto de notícia datado de 24 de Agosto de 2000, constatou-se que a arguida, nas suas instalações sitas na Rua....., Freguesia da....., concelho da.....:

a) Procedia à captação de águas subterrâneas num seu furo artesiano, com motor de 2 cv, sem licença da Direcção Regional do Ambiente – Norte;

b) Não tem nem nunca teve a captação subterrânea licenciada;

c) Procedia à rejeição de águas residuais domésticas encaminhadas directamente para o solo sem qualquer tipo de mecanismo que assegure a sua depuração e sem licença da Direcção Regional do Ambiente – Norte para descarga de efluente doméstico no solo;

d) Procedia à rejeição de águas residuais industriais, provenientes da lavagem de inertes, cujo efluente era rejeitado e encaminhado para o solo, para uma lagoa que não suportava todo o caudal, encaminhando-se para o solo das propriedades vizinhas, e sem que possuísse licença da Direcção Regional do Ambiente – Norte para descarga de efluente industrial no solo;

e) Não tinha procedido à entrega do mapa de registo de resíduos, gerados pela mesma no ano de 1999, mapa esse que deveria ter sido entregue até ao dia 15 de Fevereiro de 2000;

2 - A arguida foi notificada, a 15 de Outubro de 2002, da decisão proferida pela Direcção Regional do Ambiente e do Ordenamento do Território – Norte, Divisão Sub-Regional de Viana do Castelo, relativa ao processo de contra-ordenação instaurado na sequência do auto de notícia referido em 1).

3 – A arguida exerce a actividade de oficina de lavagem e crivagem.

4 – A água da lavagem é depositada numa poça.

5 – A arguida nas circunstâncias descritas em 1), procedia à lavagem de pedra e terra.

6 – No local referido em 1), a arguida possui um tanque, que na data dos factos se encontrava desactivado.

7 – A arguida nas instalações referidas em 1), possui uma casa de banho, destinada ao uso dos seus funcionários, que no local trabalham.

8 – Por carta datada de 01 de Março de 1996, da Direcção Regional da Indústria de Energia do Norte, relativa ao pedido de classificação de indústria, a arguida foi informada que “a actividade exercida, sobrantes das obras, tal como é referida na v/carta, não consta da Portaria 744-B/93, não sendo deste modo considerado estabelecimento industrial”.

9 - A arguida agiu de forma voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta constituía contra-ordenação e era punida por lei.

Factos não provados:

- Que a arguida, sendo uma empresa, não possuísse quaisquer águas domésticas, por não ter no local quaisquer instalações domésticas.

- Que nas instalações referidas em 1), não existisse qualquer “ lagoa”.

- Que a arguida no dia e local em causa nos autos não procedesse a qualquer captação de água através de furo.

- Que o furo existente no local em causa nos autos estivesse licenciado, por alvará de licença da Divisão Sub-Regional do Cavado e Ave em nome do sócio-gerente da arguida.

- Que a actividade desenvolvida pela arguida não se tratasse de indústria extractiva, nem oficina de lavagem, crivagem e classificação de inertes.

- Que a arguida exercesse a actividade de recuperação de entulhos de obras, que lava, criva e classifica, os produtos derivados daquelas, utilizando para o efeito um circuito fechado de água, cujo volume é reposto, de vez em quando, com água extraída do furo licenciado, por efeito da evaporação, sobretudo no Verão, já que de Inverno, Primavera e Outono tal não é necessário atenta a pluviosidade.

- Que a poça referida em 4) por acumulação de pó, tivesse já uma espessura de argila superior a 2 m de paredes e fundo, o que impede qualquer infiltração.

- Que a água referida em 4) é posteriormente decantada para tanque, do qual é novamente extraída para ser reutilizada no sistema, e assim, repetida e sucessivamente reutilizada.

- Que da actividade da arguida resultasse o aproveitamento do entulhos para dele serem extraídas areias, pó e touvenant, produtos que são utilizados nas obras.

Motivação:
O decidido fundou-se essencialmente na conjugação do depoimento da testemunha, C....., vigilante da natureza, que elaborou o auto de notícia junto aos autos, com o teor deste.
Assim, a testemunha indicada foi quem lavrou o auto de notícia junto aos autos, tendo confirmado os factos aí relatados, acentuando que a arguida possuía no local uma casa de banho para uso dos seus funcionários, dos quais provinham os resíduos domésticos, que os funcionários da arguida estavam a fazer a lavagem de pedra e terra, e que as águas dessa lavagem eram encaminhadas para uma lagoa que não suportava tais águas, encaminhando-se estas para os terrenos vizinhos.
Referiu que as águas utilizadas na lavagem provinham de um furo que se encontrava nas instalações da arguida, e que o tanque existente no local se encontrava desactivado.
Acrescentou que perguntou ao filho do sócio-gerente da arguida pelas licenças para captação de águas subterrâneas e descarga de águas residuais, ao que este lhe referiu que não as possuía.
Depôs de uma forma coerente, desinteressada e precisa, logrando convencer o tribunal.
As testemunhas arroladas pela arguida, D....., E..... e F....., mostraram-se relevantes ao confirmarem a existência de sanitários nas instalações da arguida, o tipo de produtos que lavam no local e à existência de um furo donde captam a água para lavagem dos inertes, que referiram se tratar de pedra e terra, na restante matéria não foram atendidos, tanto mais, que relativamente às licenças exigidas nada sabiam.
Relativamente ao facto dado como provado em 8), entende-se que o mesmo acaba por não ter relevância para os factos em causa nos autos, atenta a data do mesmo, remonta ao ano de 1996 e trata-se de uma informação prestada no âmbito de um pedido de esclarecimento por parte da arguida, com base em elementos fornecidos por esta.
O tribunal ancorou-se ainda no teor do auto de notícia junto a fls. 1 e 2 dos autos, bem como no documento de fls. 48.
A matéria de facto não provada resultou da ausência de prova quanto à mesma, ou considerada insuficiente, nos termos vistos.

2.2. Matéria de direito
A decisão recorrida analisou cada uma das infracções imputadas à arguida, concluindo pela verificação de todas elas.

Vejamos, relativamente a cada uma delas, se as razões da decisão se devem manter, perante a crítica que lhe é feita no recurso.

Quanto à infracção decorrente da “descarga de águas residuais”, disse a sentença:
“(…)
Descarga de águas residuais
Constitui contra-ordenação, ao abrigo do disposto no artigo 86, nº. 1, alínea v), do Decreto-Lei n.º 46/94, de 22 de Fevereiro:
“Descarga de resíduos e efluentes sem a respectiva licença ou descarga de resíduos e efluentes em local diferente do demarcado pelos organismos competentes;”
Ao abrigo do disposto no artigo 36º, nº. 1, do citado diploma, a rejeição de águas residuais, na água ou no solo carecem de licenciamento, cuja emissão é da competência das Direcções Regionais do Ambiente e do Ordenamento do Território
As descargas de águas residuais constituem um dos mais importantes factores de degradação do ambiente uma vez que atingem directamente a água e o solo. Por tal motivo elas constituem uma das matérias a que o legislador ambiental, desde sempre, mais importância tem atribuído.
Ao disciplinar-se a rejeição de águas residuais visa-se, em última instância, a utilização da água, resultando do regime de rejeição importantes condicionamentos ao simples uso deste elemento natural.
Por águas residuais devem entender-se aquelas que foram objecto de um processo de utilização, seja ele de tipo industrial ou doméstico, estando subjacente quer a descarga na água, quer a descarga no solo.
Sendo que, todas as utilizações de águas subjacentes a descargas de águas residuais carecem de controlo administrativo, que é materializado num título de utilização – a licença.
O licenciamento é a forma através da qual a administração intervém e condiciona a utilização da água em ordem à sua salvaguarda enquanto componente ambiental.
A intervenção levada a cabo pelo Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território visa a imposição do regime de licenciamento aos múltiplos utentes não controlados administrativamente. Digamos que a insistência de licenciamento é instrumental, não é o licenciamento em si que se busca, mas os fins que são alcançados através do mesmo, ou seja, o licenciamento define as condições em que uma dada actividade pode ser exercida, sendo estas situações materializadas na licença.
Da licença resulta a imposição ao utente do ambiente de um conjunto de obrigações que são garante da defesa da qualidade do ambiente: a construção de infra-estruturas aptas para a depuração dos efluentes, a definição dos parâmetros de descarga e as formas de demonstração do cumprimento desses parâmetros.
Em face dos factos considerados como provados, resulta de forma inequívoca, que a arguida procedia à rejeição de águas residuais domésticas e industriais, sem as licenças respectivas, praticando desta forma as duas contra-ordenações que lhe são imputadas (…).

Os factos onde a sentença baseou a qualificação como “contra-ordenação” constam das alíneas c) e d) da matéria de facto. A crítica feita à decisão é sistematizada tomando tais factos como referência. Assim e em síntese, defende a recorrente que não cabe à DRARN o licenciamento das fossas sépticas. O quarto de banho em causa nas instalações da recorrente está, por isso, a coberto do licenciamento para a construção, da competência da Câmara Municipal. Por outro lado, só devem ser consideradas “águas residuais” as que careçam de um tratamento prévio, antes de serem rejeitadas para o solo ou para o domínio hídrico, o que não acontece no caso. Daí que, em seu entender, as situações de facto descritas não careciam de prévio licenciamento da DRARN.

Vejamos se a recorrente tem razão.

O art. 36º,1 do Dec. Lei 46/94, de 22 de Fevereiro, sujeita a prévio licenciamento a rejeição de águas residuais, quer elas sejam domésticas, quer industriais, quer estejam inseridas num projecto público, ou particular. Tal sujeição decorre com clareza do teor do citado artigo, cuja redacção é a seguinte:
“Artigo 36°
Princípio geral
1 - A rejeição de águas residuais na água e no solo está sujeita a condições específicas atendendo às necessidades de preservação do ambiente e defesa de saúde pública.

2 - A rejeição de águas residuais na água e no solo está sujeita à obtenção de licença, que pode ser outorgada pelo prazo máximo de 10 anos, nos termos do n.º 1 do artigo 6°, com as especificidades previstas na presente secção.

3 - A licença referida no número anterior tem por finalidade o sistema público ou particular de eliminação de águas residuais na água e no solo.

4 - Um sistema público de eliminação de águas residuais na água e no solo funciona permanentemente sob a responsabilidade de uma autarquia local ou entidade concessionária.

5 - Um sistema particular de eliminação de águas residuais na água e no solo funciona sob a responsabilidade particular.

6 - Devem existir sistemas públicos de eliminação de águas residuais na água e no solo nas áreas urbanas ou urbanizáveis, nos termos previstos nos respectivos planos directores municipais.

7 - O titular da licença referida no n.º 2 pode, no prazo de seis meses antes do termo da respectiva licença, pedir a sua renovação, caso se mantenham as condições que determinaram a sua atribuição.

8 - A entidade competente para atribuir a licença pode proceder à revisão das suas condições, nos termos do n.º 2 do artigo 12°, se, durante o prazo de vigência da licença, ocorrerem alterações substanciais e permanentes na composição qualitativa e quantitativa dos efluentes brutos ou após tratamento, em consequência, nomeadamente, de substituição de matérias-primas, de modificações nos processos de fabrico ou de aumento da capacidade de produção que a justifiquem.”

Daqui decorre que o licenciamento relativo à eliminação das águas residuais não substitui, nem é substituído pelo “licenciamento da construção”, da competência das Câmaras Municipais.

Cada uma das entidades tem o seu campo específico de atribuições, prosseguindo finalidades diversas, vigorando um regime de cumulação de licenciamentos. Tal acontece no caso de licenciamento de construções no domínio hídrico, ao abrigo do Dec.Lei 46/94, de 22/2 (cfr., neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 7-10-2003, recurso 578/03 e de 31-1-2003, recurso 047401) e acontece ainda na instalação de postos de combustíveis (cfr. Acórdão do STA de 16/3/99, recurso 44 452) e nos estabelecimentos similares dos hoteleiros (cfr. Decreto-Lei n.º 328/86, de 30/09 e Decreto Regulamentar n.º 8/89, de 21/3).

Assim, o argumento da recorrente, relativo à “desnecessidade de licenciamento para a fossa séptica, decorrente do licenciamento para a construção de obras particulares”, não é relevante. A Câmara Municipal não tem como atribuições a fiscalização do uso privativo do domínio hidríco. As razões que estão na origem da atribuição de competências às Câmaras Municipais para o licenciamento de obras particulares, designadamente a necessidade de verificação das condições de salubridade das edificações e dos requisitos de solidez e de defesa contra os riscos de incêndios e intempéries e, ainda, (entre outros) de lhes garantir condições mínimas de natureza estética, são distintas das razões que determinam as atribuições relativas à utilização do Domínio Hídrico (Decreto-Lei 46/94 de 22 de Fevereiro).

Por outro lado, o art. 36º do Dec. Lei 46/94, de 22/94, acima transcrito, sujeita a licenciamento toda a descarga de águas residuais – independentemente da sua qualificação como industriais ou domésticas, públicas ou particulares. Não é portanto o facto das águas estarem (ou poderem estar) poluídas que determina a sujeição a licenciamento prévio, mas sim a mera rejeição das águas. É por isso totalmente irrelevante, para este efeito, que as águas não estejam poluídas, uma vez que não é essa circunstância (ou essa potencial circunstância) que determina a necessidade de prévio licenciamento.

Assim, e quanto à contra-ordenação decorrente da descarga de águas residuais, sem licenciamento do organismo competente do Ministério do Ambiente, a recorrente não tem razão.

Quanto à contra-ordenação decorrente da “captação de águas subterrâneas”, a sentença concluiu:
“Determina o artigo 86º, nº.1, alínea p), do Decreto-Lei nº. 46/94 que constitui contra-ordenação:
“Captação, retenção ou derivação de águas, sem a respectiva licença.
Nos termos do artigo 19º, nº. 1, do citado diploma: “Entende-se por captação de águas a utilização de volumes de água, superficiais ou subterrâneas, por qualquer forma subtraídos ao meio hídrico, independentemente da finalidade a que se destina”.
Tal norma abrange as captações subterrâneas de águas, nomeadamente aquelas que são enquadradas pelo direito privado.
À disciplina estabelecida para as captações de água está subjacente a ideia de aquela, seja ela pública ou privada, é um bem que interessa a toda a colectividade e que, mesmo quando de propriedade privada, tem que ser preservada no seu uso.
Mostrando-se provado que a arguida procedia à captação de água subterrânea, através de um furo artesiano, sem a respectiva licença, praticou a mesma a contra-ordenação que lhe foi imputada (…)”.

Neste ponto, diz a recorrente que não consta do auto, nem dos factos dados como provados, que o furo tenha mais de 20 metros. Ora, para os motores de potência inferior a 5 cv e furos ou poços inferiores a 20 metros, não há sujeição a licenciamento, mas tão só a notificação, nos termos do art. 19º, 4 do Dec. Lei 46/94, cuja falta não constitui qualquer contra-ordenação, nos termos do art. 86º.

É verdade que apenas se deu como provado que a arguida “Procedia à captação de águas subterrâneas num seu furo artesiano, com motor de 2 cv, sem licença da Direcção Regional do Ambiente – Norte”. Nada se disse, na matéria de facto, sobre a profundidade do furo. Deste modo, não é aplicável o n.º 2 do art.19º, mas sim o seu n.º 4, cujo teor é o seguinte:
“A captação de águas, quer superficiais quer subterrâneas, está sujeita a notificação à DRARN, mediante o preenchimento de impresso por esta fornecido ao interessado, quando os meios de extracção tenham uma potência inferior a 5 cv ou os furos ou poços uma profundidade inferior a 20 m”.

Em nosso entender, como vamos ver, a sentença recorrida está certa. Há efectivamente uma divisão legal que atende à potência do motor de extracção da água e profundidade do furo, mas tal não significa que não se exija um licenciamento, em ambos os casos. O que acontece é que o licenciamento, nos casos em que o furo é inferior a 20 metros, ou a bomba de potência inferior a 5 cv, constitui um procedimento mais célere e com menos formalidades. Contudo, mesmo nestas situações, não basta a mera notificação em impresso próprio. Tal actividade tem que ser também licenciada, como decorre claramente do disposto no art. 21º, n.º 2 do mesmo diploma:
“Quando se pretenda a captação de águas com meios de extracção com potência entre 5 cv e 20 cv, a realização de um furo ou a abertura de um poço com profundidade entre 20 m e 80m, o pedido é formulado junto da DRARN, mediante o preenchimento de impresso por esta fornecido ao interessado, consubstanciando o deferimento tácito do pedido com o conteúdo da pretensão formulada pelo requerente a ausência de notificação da decisão no prazo de 30 dias”.
É assim o deferimento tácito, ou expresso, que atribui ao requerente o título para a captação de águas (cfr. epígrafe do citado art. 21º), ou seja, o licenciamento da referida actividade.
Deste modo, a captação de águas, sem esse título (expresso ou tacitamente conferido) configura a captação de águas sem licenciamento, prevista no art. 86º, al. p) como “contra-ordenação”, pelo que nada há a censurar, neste ponto, à sentença recorrida.

Finalmente, quanto à contra-ordenação decorrente da “ falta de entrega dos mapas de registo de resíduos”, concluiu a sentença:
“(…) Nos termos do artigo 17º, nº. 1, do Decreto-Lei nº. 239/97, de 9 de Setembro, em conjugação com o artigo 20º, nº. 2, do mesmo diploma que:
“Os produtores de resíduos, salvo os gerados em resultado das operações referidas no número seguinte, têm o dever de enviar anualmente às autoridades competentes um registo dos resíduos que produzam …”
A entrega deve ser feita até ao dia 15 de Fevereiro do ano imediato àquele a que se referem os dados, conforme a Portaria nº. 792/98, de 22 de Setembro.
De acordo com a matéria de facto dada como provada, a arguida não procedeu à entrega do mapa em causa, quando estava obrigada a fazê-lo, praticando desta forma a contra-ordenação que lhe foi imputada (…) ”.

Relativamente a este ponto, argumenta a recorrente que não consta dos autos que produza quaisquer resíduos, pelo que não existem factos suficientes para lhe imputar a obrigação constante do art. 17º, 1 do Dec. Lei 239/97, de 9 de Setembro.
O M.P. junto desta Relação concorda com esta posição, entendendo que deveria estar provado que a recorrente “laborou e produziu resíduos durante o ano de 1999” e tal não consta da matéria de facto.

Julgamos que, neste ponto, a recorrente e o M.P. têm razão.
A obrigação cujo incumprimento traduz o ilícito contra-ordenacional pressupõe a produção de resíduos. No caso dos autos, pressupõe ainda que tais resíduos tenham sido produzidos no ano de 1999. Para que se pudesse caracterizar a infracção, era necessário explicitar quais os resíduos produzidos pela recorrida e, ainda, que a empresa laborou e produziu tais resíduos, no ano de 1999. Sem sabermos tais factos não é possível concluir pela verificação da infracção, até porque a própria lei exclui do conceito de “resíduos” as “águas residuais” (cfr. art. 2º al. d) do Dec. Lei 239/97, de 9 de Setembro). Não estando em causa as águas residuais, e estando apenas descritos factos atinentes à captação de águas e sua rejeição (sem licenciamento), ficamos sem saber qual a natureza ou o tipo de resíduos a que se refere a decisão recorrida. Daí que se imponha a absolvição da recorrente, da prática da contra-ordenação p. e p. nos artigos 17º, 1 e 20º, 2 do Dec. Lei 239/97, de 9 de Setembro.

Impõe-se assim, reformular a medida concreta da pena unitária (cúmulo jurídico), tomando em atenção apenas as duas contra-ordenações praticadas pela arguida, previstas e punidas, cada uma delas, nos termos do artigo 86º, nº. 1, alínea v), D.L. nº 46/94, de 22 de Fevereiro, com uma coima de € 2.493,99.

Tendo em conta a pouca gravidade das contra-ordenações (não se provou que houvesse poluição), o pequeno (ou nenhum) benefício económico que a recorrente retirou da prática da contra-ordenação e que não se mostrou que a mesma tenha grande potencial económico, julgamos adequada uma pena unitária próxima do limite mínimo da coima aplicável ao cúmulo jurídico. Assim, entendemos adequada a pena unitária de € 3.000 (três mil euros) – art. 18º, do Dec. Lei 433/82, de 27 de Outubro, e 77º, 2 do C.Penal.

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente:
a) absolver a arguida da contra-ordenação p. e p. 17º, 1 e 20º, 2 do Dec. Lei 239/97, de 9 de Setembro;
b) reformular o cúmulo jurídico (face à absolvição referida) e, assim, condenar a arguida na coima unitária de € 3.000 (três mil euros), mantendo, no mais, a decisão recorrida.

Custas pela recorrente (tendo em conta o seu decaimento parcial), fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
*
Porto, 24 de Novembro de 2004
Élia Costa de Mendonça São Pedro
Luís Dias André da Silva
Manuel Joaquim Braz
José Manuel Baião Papão