Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
294/24.6GAVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ QUARESMA
Descritores: CONDUÇÃO DE VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
DISPOSITIVOS DE CIRCULAÇÃO COM MOTOR ELÉTRICO
CLASSIFICAÇÃO
ERRO
IN DUBIO PRO REO
Nº do Documento: RP20241218294/24.6GAVCD.P1
Data do Acordão: 12/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO O RECURSO DO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os velocípedes com motor auxiliar (equiparados a velocípedes), para assim poderem ser classificados, terão de dispor de um motor com potência máxima contínua até 1,0 kW, cuja alimentação é reduzida progressivamente com o aumento da velocidade e interrompida se atingir a velocidade de 25 km/h, ou antes, se o condutor deixar de pedalar (aqui pressupondo, também, a existência de pedais). Por seu turno, a classificação como os ciclomotores de duas rodas (carecidos de título habilitante para a respetiva condução) pressupõe, no caso de motor elétrico, uma potência máxima que não exceda 4 Kw (ou 50 cm2 para o caso de motores de combustão interna) e, em patamar, uma velocidade até 45 Km/h.
II - Sendo o processo de classificação do veículo complexa, a que acresce a documentação fornecida pelo importador garantindo tratar-se de velocípede com motor auxiliar e dispondo o arguido, apenas, da 4.ª Classe, é de aceitar a existência de erro, excludente do dolo ou, pelo menos, a existência de dúvida insanável quanto ao conhecimento de todas as circunstâncias de facto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 294/24.6GAVCD.P1

Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I.
I.1
Nos autos de processo sumário n.º 294/24.6GAVCD, a correr termos no Juízo Local Criminal de Vila do Conde – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 23.04.2024, decidiu-se julgar a acusação procedente e, em consequência, condenar o arguido AA, como autor material de um crime de condução de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 1, do D.L. n.º 2/98, de 03.01, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 5,50.
*
I.2
Não se conformando com o decidido veio o arguido AA interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 39171340) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
1- No dia 23 de Abril de 2024 foi proferida Douta Sentença, a qual condenou o Arguido AA, pela prática de um crime de condução sem habilitação, p. e p. artigo 3.º, nº 1º e 2 do D.L. nº 2/98 de 3 de Janeiro:
a) como autor material de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, n.º 1, do decreto-lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos);
b) nas custas do processo, fixando a taxa de justiça em 2 uc’s.
Tudo, conforme melhor consta da Douta Sentença, que se dá aqui por reproduzida para todos os efeitos legais.
2- Ora, o Recorrente não se pode conformar, com a sua condenação submetendo a V.ªs Ex.as as suas motivações, impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto e de direito.
3- A nosso ver, com o devido respeito por opinião diversa, não devia o Arguido, ora Recorrente ser condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, conforme se demonstrará infra, por o Arguido não ter praticado os factos pelos quais vem acusado.
4- E, sem prescindir, a entender-se que o mesmo praticou os atos pelos quais foi acusado, sempre se dirá que o Arguido, ora Recorrente, agiu com falta de consciência da ilicitude dos seus atos.
Senão vejamos:
5- Nos presentes autos de Processo Sumário, o Ministério Público acusou o Arguido/Recorrente, pela prática de um crime de condução sem habilitação, p. e p. art 3, nºs 1º e 2 do D.L. nº 2/98 de 3 de Janeiro.
6- Do Despacho de Acusação resulta que, os autos indiciam que:
“1.º No dia 2 de Abril de 2024, pelas 12h30m, na Rua ..., em Vila do Conde, o arguido AA conduziu o ciclomotor da marca “ACM Power”, modelo ..., cor preta, sem estar para esse efeito habilitado com a respetiva carta de condução.
2.º O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que não era titular de carta de condução que o habilitasse validamente a conduzir tal ciclomotor na via pública, apesar de ter conhecimento que necessitava daquela para o efeito.
3.º Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, bem como que ao praticar os factos acima descritos incorria em responsabilidade criminal.
7- O MM.º Juiz do Tribunal “a quo” deu como provados os factos constantes da Douta Acusação, por ter considerado provado, todos os factos da acusação, nomeadamente que o Arguido:
“1º) No dia 2 de Abril de 2024, pelas 12 horas e 30 minutos, na Rua ..., em Vila do Conde, o Arguido AA conduziu o ciclomotor da marca “ACM Power”, modelo ..., cor preta, sem estar para esse efeito habilitado com a respetiva carta de condução.
2º) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que não era titular de carta de condução que o habilitasse validamente a conduzir tal ciclomotor na via pública, apesar de ter conhecimento que necessitava daquela para o efeito;
3º) Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, bem como que ao praticar os factos acima descritos incorria em responsabilidade criminal.”.
8- O MM.º Juiz do Tribunal “a quo” condenou, por isso, o Arguido/Recorrente.
9- Porém, com o devido respeito por opinião diversa, o MM-ª Juiz do Tribunal “a quo” não valorou devidamente toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
10- Existiu erro notório na apreciação da prova, através dos factos e dos depoimentos que atrás referimos, apontamos e notamos, o que é percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que o que se teve como provado, está em desconformidade com o que realmente se provou.
11- Dito de outro modo, existe erro, porque tal é evidenciado por um homem médio, colocado perante o que consta da Sentença e a prova que foi feita.
12- Mas se assim se não entender, sempre se deverá tirar a ilação de que a prova produzida impunha que se tirassem outras conclusões de facto e de direito, invocando-se desde já a existência de erro na avaliação dos depoimentos e declarações dos intervenientes, bem como, da restante prova produzida em audiência ou constante dos autos.
13- Este Douto Tribunal tem poderes de intromissão em aspetos fácticos, nomeadamente nos termos do art.º 410º/2 do CPP, mas ainda os tem quando ocorrem erros de julgamento.
14- Ora, se se entender que não ocorreu erro notório na apreciação da prova, deverá pelo menos entender-se que ocorreu erro de julgamento, pois as provas produzidas impõem outras conclusões de facto, que são as apontadas pelo ora Recorrente.
15- De toda a prova produzida, o MM.ª Juiz do Tribunal “a quo”, apenas considerou o depoimento da testemunha BB, militar da GNR a exercer funções em Vila do Conde, o registo criminal do arguido e a confissão do Arguido no que respeita a ter conduzir, na via pública, o veículo elétrico modelo “ACM Power”, modelo ..., cor preta, sem estar para esse efeito habilitado com a respetiva carta de condução.
16- Mas não valorou a explicação do Arguido, sobre o facto de ter conduzido na via pública aquele veículo elétrico, ou seja, não considerou o facto de o Arguido ter referido que lhe foi vendido um veículo elétrico equiparado a velocípede elétrico.
17- Que lhe foram dados documentos que comprovavam isso mesmo (a declaração do manual de instruções que o acompanhava (doc. 2, folhas 10 a fls dos autos) e a Declaração emitida pelo Importador de Dispositivos de Circulação co Motor Elétrico (DEMOP – Dispositivos Elétricos de Mobilidade Pessoal) – doc. 1 fls 1 e 4, a fls… dos autos).
- ver declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:38 horas e o seu termo pelas 14:46horas, atrás transcritos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
18- Que o referido veículo elétrico modelo “ACM Power”, modelo ..., cor preta, é considerado nos termos do n.º 3 do artigo 112.º do Código da Estada, um veículo equiparado a velocípede elétrico, que para ser conduzido na via pública não há necessidade de se estar habilitado com carta de condução (o que também é corroborado pelos doc. 1 (fls 1 e 4) e doc. 2 (fls 10)).
19- Também não valorou o depoimento da testemunha CC, que afirmou que compraram o referido veículo como um velocípede elétrico que não necessitava de carta de condução para ser conduzido na via pública. Que foi informada pelo vendedor e que lhe tinham sido exibidos documentos que atestavam isso mesmo.
– ver declarações gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:50 horas e o seu termo pelas 15:01, atrás transcritos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
20- Mais, diga-se que o depoimento da testemunha BB, militar da GNR, que exerce funções em Vila do Conde há cerca de 1 ano, não deve, com o devido respeito por opinião diversa, ser valorado da forma como foi.
21- Pois, a testemunha não pode afirmar com a certeza necessária que o ora Recorrente circulava a mais de 25 Km/h, pois como referiu a instancias da Advogada de defesa, o mesmo juntamente com colegas vindos do metro, não se encontrando em ação de fiscalização, mandaram parar o Arguido por seguir num veículo sem matrícula e também por lhe parecer que circulava a mais de 25 Km/h, e sempre que questionado com a situação concreta acabava por dizer que estava a dar exemplos de situações que teve conhecimento no exercício das suas funções e não sobre o caso concreto.
22- Ora, não pode esta testemunha BB, por mais experiência que tenha, e sem qualquer sistema medidor de velocidade/radar, aferir com a certeza necessária, que o Arguido, ora Recorrente, circulava a mais de 25 Km/h.
23- Também não pode relevar o fato de por sua própria iniciativa fazer um exame ao referido veículo, tripulando-o e afirmando que o referido veículo circulou a mais de 45 Km/h, pois a velocidade é instantânea e depende do peso de quem o conduz, do local onde se conduz (se é subida, descida ou reta).
24- Por outro lado, não podem ser valoradas como foram estas alegações da testemunha BB sobre a velocidade a que circulava o referido veículo elétrico, pois, também não existe nos autos qualquer prova documental que a suporte, nomeadamente não existe qualquer registo de medidores de velocidade/radares que atestem a velocidade a que seguia o Arguido;
25- e, por outro lado, este “exame” (tripular o veículo de Arguido) não obedeceu às formalidades legais necessária à prática do ato, não existindo prova documental sobre o consentimento dado pelo o Arguido para o efeito, não obstante a testemunha ter referido que o Arguido lhe deu autorização para o tripular, pelo que deve ser declarado nulo.
26- Por outro lado, também, não foi feita qualquer “perícia” ao referido veículo elétrico para se poder aferir/verificar se o veículo em que seguia o Arguido é um ciclomotor e não um velocípede elétrico nos termos do n.º 3, do artigo 112.º do Código da Estrada.
27- Por isso, não pode a testemunha BB aferir com tanta certeza que o veículo elétrico em questão não é um velocípede elétrico.
28- Reiterando, não existe nos autos prova documental e/ou testemunhal necessária que ateste que o referido veículo se trata de um ciclomotor e não de um velocípede elétrico nos termos do n.º 3, do artigo 112.º do Código da Estrada, o que implica, com o devido respeito por opinião diversa, que o Arguido deve ser absolvido.
29- Até porque, reiterando, das declarações constantes dos documentos 1 (páginas 1 e 4) e 2 (página 10) resulta que o veículo elétrico da marca “ACM Power”, modelo ..., cor preta, em que seguia o Arguido, ora Recorrente, é um veículo elétrico equiparado a velocípede nos termos do artigo 112.º, n.º 3 do Código da Estrada.
30- Por outro lado, não pode, com o devido respeito por opinião diversa, o MM.º Juiz do Tribunal “a quo”, considerar a declaração junta como documento 1, folhas 1 e 4, junto a fls… dos autos, é genérica, e considerar apenas as declarações da testemunha BB, fundamentando que o veículo objeto dos presentes autos, vendido ao Arguido, possa atingir uma velocidade superior 25 Km/h, porque não existe nos autos qualquer prova documental e/ou testemunhal que ateste, com a certeza necessária, que o veículo referido pode circular a mais de 25 Km/h e é um ciclomotor.
31- Ora, da prova produzida, não existem dúvidas que o ora Recorrente conduziu um veículo elétrico equiparado a velocípede nos termos do artigo 112.º, n.º 3 do Código da Estrada, que dispensa o seu condutor de ser condutor de carta de condução, de matricular o veículo e de seguro de responsabilidade civil, pelo que deveria o Arguido ser absolvido da prática do crime de condução sem habilitação legal.
32- Mas se dúvidas existissem sobre o referido veículo ser um veículo equiparado a velocípede elétrico, sempre seria de absolver o Arguido, ora recorrente, com base no princípio do In dubio pro reo.
Sem prescindir,
33- Mesmo que o MM.º Juiz do tribunal “a quo” tenha entendido que o veículo da marca “ACM Power”, modelo ..., cor preta, conduzido pelo ora Arguido, ora Recorrente, é um ciclomotor e que é necessária a carta de condução para que possa ser conduzido, da prova produzida em sede de audiência e discussão de julgamento, não existem dúvidas que o Arguido, ora Recorrente, ao conduzi-lo, agiu com falta de consciência da ilicitude, pelo que também, por esta via, o Arguido, ora Recorrente deve ser absolvido.
34- Ficou provado que o Arguido pretendeu comprar um veículo elétrico que dispensasse de ter carta de condução, uma vez que o mesmo não era detentor de carta de condução para poder conduzir um veículo que exigisse habilitação legal para o poder conduzir.
35- Também ficou provado, que o vendedor para que ele comprasse o referido veículo da marca “ACM Power”, modelo ..., cor preta, lhe exibiu o manual de instruções (doc. 2 página 10, junto aos autos a fls ..) que traz uma declaração que refere que a condução deste veículo dispensa ser titular de carta de condução, e, também lhe facultou a Declaração emitida pelo Importador de Dispositivos de Circulação co Motor Elétrico (DEMOP – Dispositivos Elétricos de Mobilidade Pessoal), junta como doc. 1 (páginas 1 e 4) a fls… dos autos, que também confirma e atesta, entre outras coisas, que não é necessário ter carta de condução para o conduzir por se tratar de um veículo elétrico equiparado a velocípede nos termos do artigo 112.º, n.º 3 do Código da Estrada, referindo, ainda, esta declaração, que as diretivas comunitárias que dela constam estão em conformidade com as Normas Europeias e está de acordo com os Certificados CE de Conformidade n.º MTZS23073893, MTZS23073852 E MTZS23073888 (…) e com a Declaração de Conformidade CE do fabricante emitida a 10/07/2023. (ver doc. 1, Páginas 1 e 4, a fls… dos autos).
36- Por outro lado, o Arguido teve uma postura colaborante com a autoridade, obedeceu à ordem de paragem, pois sempre pensou que estava conforme a lei.
37- O Arguido podia não ter obedecido e seguido, até porque não tinha matrícula para ser identificado e quem o mandou parar não estava em ação de fiscalização, mas ao invés parou e colaborou.
38- Assim, o ora Recorrente não sabia que ao conduzir o veículo da marca “ACM Power”, modelo ..., cor preta, poderia estar a cometer um crime de condução sem habilitação legal, o que não é censurável, pelos motivos atrás explanados.
39- Pois na sua concreta situação, o ora Recorrente não tinha a obrigação de suspeitar que aquele seu ato era ilícito, pois comprou o referido veículo elétrico por lhe terem dito e demonstrado através de documentos que se tratava de um velocípede elétrico que estava dispensado de carta de condução para o conduzir e também de matrícula e de seguro de responsabilidade civil.
40- Assim, com o devido respeito por opinião diversa, a condenação do Arguido resulta de patente erro na apreciação da prova, e que a decisão sobre a matéria de facto e de direito constante da sentença referida deve ser alterada.
41- Em decorrência do exposto, com o devido respeito por opinião diversa, resulta que a versão dos factos dada pelo Arguido, ora Recorrente, e pela testemunha CC, corroborada pela prova documental junta aos autos na contestação, impunham outra decisão, devendo ter sido dado como provado que o ora Recorrente, nas circunstâncias de tempo e de lugar descritas na acusação conduziu um veículo elétrico, equiparado a velocípede elétrico nos termos do n.º 3 do artigo 112.º do Código da Estrada, e não um ciclomotor .
42- Ao condenar o Arguido o MM.º Juiz do Tribunal “a quo” violou, por erro de interpretação as disposições conjugadas dos artigos 16.º, 17.º, ambos do Código Penal, artigo 121.º, n.ºs 6, 112.º, n.º 3, ambos do Código da Estrada, artigo 2.º do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir. o que reconduz a vícios definidos no artigo 410.º, n.º 2, alínea a) e c) do Código Processo Penal.
TERMOS EM QUE DEVERÁ SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA NA PRIMEIRA INSTÂNCIA REVOGADA, SUBSTITUINDO-SE POR OUTRA QUE ABSOLVA O ARGUIDO PELA PRÁTICA DE UM CRIME DE CONDUÇÃO LEGAL PREVISTO E PUNIDO PELO ARTIGO 3.º DO DECRETO-LEI N.º 2/98, DE 03/01.
ASSIM SE FAZENDO LÍDIMA E SÃ, JUSTIÇA.
*
I.3
O Ministério Público apresentou articulado de resposta (Ref.ª 39489546), pugnando pela improcedência do recurso e a consequente preservação da decisão recorrida.
Em síntese, entende o Ministério Público que o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão de forma clara e convincente, retendo as declarações do arguido e o depoimento prestado pela testemunha BB, militar da GNR, este último esclarecedor quanto às caraterísticas do veículo.
Tendo o Tribunal considerado que o recorrente agiu com dolo direto, não faz sentido a referência ao erro sobre a ilicitude, tratando-se, ademais, de um veículo sem pedais, que não necessita do esforço do condutor para circular e que pode atingir uma velocidade superior a 25 km/h, sendo, pois, um ciclomotor.
Mesmo que a existência de erro sobre a ilicitude tivesse sido ponderada, o erro seria sempre censurável, tendo em conta que o arguido já tinha uma condenação anterior pelo mesmo crime, pelo que deveria ter diligenciado junto das autoridades competentes para saber se a condução daquele veículo carecia de carta.
*
I.4
Neste Tribunal a Digna Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido da existência de nulidade da sentença (Ref.ª 18468675), referindo, além do mais, que:
(…) Assim, em concreto temos um veículo que foi vendido sem que se mostrasse matriculado, sem documentos, cujo “manual de instruções” apelida de “bicicleta eléctrica” e cuja importadora fornece documentação afiançando tratar-se de um velocípede com motor, passível de ser legalmente conduzido sem carta de condução.
Ora, entendemos que a sentença proferida não logra esclarecer qual haja sido o percurso lógico do julgador para se convencer de que, não obstante todas essas circunstâncias, o arguido tinha efectivamente conhecimento de que o veículo que conduzia não se tratava de um velocípede, mas de um ciclomotor, bem como que sabia da necessidade de ser titular de carta de condução, para poder legalmente exercer a sua condução.
Na verdade, a generalidade das pessoas desconhece quais sejam as características diferenciadoras entre tais veículos, não se devendo olvidar que o arguido é cidadão não encartado, pelo que não é possível, sem mais, afirmar que tem conhecimento das diferenças em causa.
Ora, a recente proliferação de veículos semelhantes, associada à facilidade com que são transaccionados, e entregues, sem necessidade de documentos, nem de apresentação de qualquer seguro que, de resto, sempre seria impossível de obter, dada a ausência de matriculação, levam a que entendamos que, do mero facto de o arguido saber que o veículo não tinha pedais, e que lograva circular a mais de 25km/h, não decorre logicamente, que tivesse de saber, necessariamente, que se tratava de um ciclomotor, ou que necessitava de carta de condução para poder ser conduzido.
Assim, temos para nós que não é perceptível da fundamentação relativa à matéria de facto, o que levou o tribunal a desvalorizar as afirmações do arguido (apoiadas pelas declarações de sua mulher, bem como pela documentação junta pela defesa), e a criar a convicção de que a sua actuação se tratara de uma actuação dolosa.
Termos em que ENTENDEMOS que a sentença padece de falta de fundamentação, o que constitui nulidade (arts. 379.º/1/a, 374.º/2, CPP), a ser declarada, devolvendo-se os autos à primeira instância, para suprimento do vício.
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Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo sido exercido o contraditório.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
*
II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto do presente recurso:
a) – Da nulidade da sentença e dos vícios decisórios
b) - Do erro de julgamento
c) – Da violação do princípio in dubio pro reo
d) - Do erro, sua classificação e decorrências
*
III.
III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor da sentença na parte atinente à respetiva fundamentação de facto, agora posta em crise:
(…)
Fundamentação de Facto
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1º) No dia 2 de abril de 2024, pelas 12 horas e 30 minutos, na Rua ..., em Vila do Conde, o arguido AA conduziu o ciclomotor da marca “ACM Power”, modelo ..., cor preta, sem estar para esse efeito habilitado com a respetiva carta de condução.
2º) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que não era titular de carta de condução que o habilitasse validamente a conduzir tal ciclomotor na via pública, apesar de ter conhecimento que necessitava daquela para o efeito.
3º) Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, bem como que ao praticar os factos acima descritos incorria em responsabilidade criminal.
Mais se provou que:
4º) O arguido é casado.
5º) Trabalha como operário na câmara municipal ..., auferindo cerca de € 600/700 por mês. A esposa trabalha como conserveira, auferindo entre € 600/700 mensais.
6º) Tem um filho, de 23 anos de idade, a viver consigo.
7º) Vive em casa própria.
8º) Paga € 40 por mês de amortização de crédito pessoal.
9º) Tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade.
10º) O arguido foi condenado no processo sumaríssimo n.º 234/23.0 GAVCD, do tribunal judicial da comarca do Porto, juízo local criminal de Vila do Conde, juiz 2, por factos praticados no dia 27 de fevereiro de 2023, que integram um crime de condução sem habilitação legal e dois crimes de ameaça agravada, por sentença proferida no dia 19 de dezembro de 2023, na pena de 130 dias de multa à taxa diária de € 6,50.
***
Motivação da Decisão de Facto
Quanto aos factos dados como provados
A convicção do tribunal fundamentou-se nas declarações do arguido, que confirmou que se encontrava a conduzir o veículo, na via pública, sem ser titular de carta de condução.
O tribunal teve ainda em consideração o depoimento da testemunha BB, militar da guarda nacional republicana, que exerce funções em Vila do Conde há cerca de 1 ano, que esclareceu que não conhecia antes do arguido, apenas desta situação.
Descreveu as caraterísticas do veículo conduzido pelo arguido, trata-se de uma moto elétrica, que circula a mais de 25 km/h. Depois de abordarem o arguido, a testemunha tripulou o veículo, circulando a cerca de 45 km/h., conforme marcava no velocímetro do veículo.
O seu depoimento foi prestado de forma espontânea, com conhecimento direto e profundo dos factos, desinteressada, até porque não conhecia o arguido antes desta abordagem, merecendo credibilidade.
Quanto às condições económicas e sociais do arguido, o tribunal teve em consideração as declarações do arguido, que se revelaram credíveis, tanto mais que não foram postas em causa pela demais prova produzida em sede de audiência de julgamento.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido, o tribunal valorou o teor do seu certificado de registo criminal.
Da conjugação da prova, declarações do arguido e depoimento da testemunha, devidamente conjugadas entre si e de acordo com as regras da experiência comum, pode-se dar como provada a matéria factual constante da acusação.
O arguido e a sua esposa, a testemunha CC, procuraram fazer crer que não sabiam que o veículo se tratava de um ciclomotor, antes de um velocípede, que não carecia de carta de condução, como o vendedor desse veículo atesta.
Mas essa declaração da empresa que vende o veículo, não é de molde a afastar o facto do veículo não ter pedais, não carecendo do esforço do condutor para circular, podendo atingir uma velocidade superior a 25 km/h. – essa declaração é uma declaração genérica, não significa que este veículo em concreto, vendido ao arguido, possa atingir velocidade superior a 25 km/h., facto esse atestado pela testemunha BB, que conduziu o veículo e que atingiu a velocidade de 45 km/h.
***
III.2
Da nulidade da sentença e dos vícios decisórios
Procurando apreciar os fundamentos do recurso, pela ordem da sua precedência lógica, estabelecida em função dos reflexos da sua eventual procedência no decidido, neste segmento, embora nada tenha sido referido, neste ponto, pelo recorrente, o facto é que, em sede de Parecer, a questão da nulidade da sentença por falta de fundamentação foi aflorada, razão pela qual teremos de a abordar, considerando que as nulidades da sentença previstas no art.º 379.º, n.º 1 do C.P.P., são de conhecimento oficioso.
Dispõe tal preceito, na sua al. a), que É nula a sentença: (a) que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374º (…).
Por sua vez e visto o preceito destinatário da remissão operada, sob a epígrafe Requisitos da sentença, verifica-se que a fundamentação de facto daquela peça se divide em duas componentes: (i) a enumeração dos factos provados e não provados, e a (ii) exposição concisa dos motivos que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Decompondo o inciso legal, a decisão deve expor o porquê da opção tomada nesta matéria, dando a conhecer as razões pelas quais foram valoradas ou não valoradas as provas, a forma como foram interpretadas, explicando os motivos que levaram o julgador a considerar uns meios de prova credíveis e outros nem tanto, numa exposição lógica e fundamentada dos critérios utilizados na apreciação que efetuou.
Porquê?
Dispõe o art.º 205.º da C.R.P. que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei cumprindo-se, por esta via e em regra, duas funções [cfr. acórdão do Tribunal Constitucional 55/85, disponível em www. tribunalconstitucional.pt]: - Uma, de ordem endoprocessual, que visa impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da sua própria decisão, permitindo ulteriormente às partes – face à decisão assim proferida - exercitar o direito ao recurso, designadamente no questionamento do raciocínio expresso pelo julgador e facilitando, ao Tribunal de recurso, a construção de um juízo concordante ou divergente.
A outra função, já de ordem extraprocessual, possibilita o controlo externo e geral sobre a fundamentação lógica e jurídica da decisão visando, nas palavras de Michele Taruffo, garantir a transparência do processo e da decisão [vd. Note sulla garantizia constituzionale della motivazione, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LV (1979), pág. 29 e ss.].
Também o art.º 20.º, n.º 4, da Lei Fundamental, ao proclamar que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo pressupõe, quanto à equitatividade, um efetivo direito à motivação das decisões judiciais em ordem a garantir a proibição do arbítrio, a interdição da discriminação e a obrigação de diferenciação que o princípio da igualdade, decorrente dos art.ºs 13.º da C.R.P. e 14.º da C.E.D.H. também impõem.
A jurisprudência do T.E.D.H. valoriza o direito à motivação, como decorrência do direito a um processo justo e equitativo que o art.º 6.º da C.E.D.H. afirma, transportando para o domínio do processo penal questões de ética relacionadas com a função estadual punitiva, com natural efeito na concordância prática a operar quanto aos interesses em confronto, já que a liberdade pessoal é um valor supremo que apenas poderá ser comprimido como consequência da prática de um facto com relevância criminal, cujo substrato demonstrativo se sedimentou, mediante um procedimento contraditório e garantístico, em resultado do qual se erigiu a verdade processual, desejavelmente próxima da verdade ontológica.
Nesta sequência, a descoberta da verdade não é um valor absoluto porquanto aquela verdade terá que ser objetivável e motivada, obtida a coberto de uma noção de fair trail compatível com a preservação da integridade constitucional de um Estado que se funda sob o axioma ético da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana.
O dever de fundamentação é, assim, uma garantia integrante do conceito de Estado de Direito Democrático e um instrumento, pela sua probidade, de legitimação da decisão judicial e potenciador de um efetivo direito ao recurso.
Em poucas palavras e trabalhando sobre a ideia expressa por André Teixeira dos Santos [A imparcialidade do juiz de julgamento, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2021-I] o juiz, depois de convencido, terá, por via da fundamentação, que convencer e se estiver em causa – como no caso sucede – uma sentença condenatória, não podem sobejar dúvidas sobre as razões de facto e de direito pelas quais se condena e em que medida se condena.
Revertendo ao caso em apreço.
Tendo em conta os pontos apontados pela Digna Procuradora-Geral Adjunta, temos para nós que a sentença posta em crise cumpriu os requisitos elencados.
Nesta sede o que é relevante para o caso - conferindo substância ao constitucionalmente exigido dever de fundamentação e à correspetiva possibilidade de sindicância através do recurso - é que os destinatários da obrigação de motivação, através da análise decomposta, combinada e crítica daqueles elementos enunciados, deem a conhecer aos intervenientes no processo (e à comunidade em geral) o seu processo interno de valoração e de formação da convicção, o que surge adiante através da denominação escolhida de “Motivação da Decisão de Facto” e que deverá permitir, no caso ao arguido, o conhecimento da perceção do julgador e a razão pela qual determinados factos se provaram. Numa palavra, a forma como foi percecionada e interpretada a prova com arrimo para a realidade reconstruída. Esse desiderato foi conseguido e o resultado apresentado é percetível e habilitante desse desvendar do iter interno, acomodando a efetivação do direito ao recurso.
A demonstração do cumprimento do proclamado dever de fundamentação é a circunstanciada discussão, glosa e afirmações de contundente dissídio que o recorrente dirige ao critério do julgador, não porque o não tenha percebido mas, tão só, porque não se conforma com esse mesmo critério e com as razões elencadas para afirmar a realidade de evento naturalístico. Só que isso, salvo o devido respeito, transporta-nos para outro plano e para outra dimensão de escrutínio – da impugnação da matéria de facto – a analisar ulteriormente infra.
A completude do dever legal de fundamentação não compele o juiz a exarar o conteúdo textual e intacto de todos os depoimentos prestados em audiência (ao jeito de assentada, quando o próprio legislador apela à concisão), estando a integralidade de tais depoimentos registada em gravação e disponível para consulta e confirmação, despistando qualquer desvirtuamento. O visto e analisado dever legal de fundamentação não impõe ao julgador a consignação, exaustiva, de todos os elementos alinhados para a formação da sua convicção, a incidir especificamente sobre cada um dos factos.
A lei, com expressão no art.º 374.º, n.º 2 do C.P.P., de forma caraterizada como “tanto quanto possível completa, ainda que concisa”, exige a indicação das provas e o seu exame crítico com o fito de desvelar o processo de formação da convicção, o que, no plano concreto, foi conseguido. Efetivamente o Mm. Juiz considerou que, ante as caraterísticas do veículo e o depoimento do militar da G.N.R. seria percetível que se tratava de um ciclomotor, afirmando os elementos subjetivos do tipo a partir desses elementos objetivos.
Se esses elementos são suficientes para, com a assertividade e segurança necessária, dar como verificados os correspondentes factos é algo que se prende com o acerto da decisão, o que analisaremos posteriormente.
*
Invoca o recorrente a existência de erro notório na apreciação da prova convocando, em subsídio, o estatuído no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.
Apreciando.
Nos termos do art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P. «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova».
Assim e como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam exógenos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339], isto é, qualquer um dos referidos vícios tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão» [Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 340].
No caso específico do vício decisório prevenido na al. a), a insuficiência determina a formação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto (não os meios de prova que a sustêm) é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, estando, pois, associado à insuficiência da matéria de facto para a decisão.
No segundo caso, o da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), este consiste na incompatibilidade, de inviável ultrapassagem através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal vício ocorre quando um mesmo facto, obviamente com interesse para a decisão da causa, seja julgado como provado e não provado simultaneamente e logicamente anulando-se, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode prevalecer, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Por fim, o invocado “erro notório na apreciação da prova”, prevenido no inciso da al. c), ocorre quando um homem, medianamente sagaz, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente intui e percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação notoriamente errada, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou inverosímeis.
De igual sorte, aponta-se a ocorrência de erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª edição, pág. 61 e ss.].
Trata-se, no caso, de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., pág. 74], não se verificando se a discordância resulta apenas da forma como o tribunal aprecia a prova produzida, por desconforme àquela que, na ótica do recorrente, deveria ter sucedido.
No caso sub judice, salvo o devido respeito, inexiste erro notório, da forma como o mesmo é definido supra. Da própria argumentação recursória o que se depreende é que o recorrente contesta a forma e o sentido que o Tribunal a quo deu à prova produzida, que a seu ver seria conducente à não demonstração do facto. Só que aqui essa afirmada desconformidade não pode ser apreciada à luz de qualquer vício decisório. Não há uma evidente desconformidade entre o decidido e uma qualquer regra de sentido comum, evidente a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida. O que perpassa da argumentação do recorrente é que, a luz da forma “correta” como a prova produzida deveria ter sido apreciada, a conclusão a extrair seria diversa, o que pode, evidentemente, afirmar, mas apenas em sede de erro de julgamento.
*
III.3
Do erro de julgamento
Aqui chegados, a decisão da matéria de facto, como foi sendo dito, só pode ser sindicada, em sede de recurso, por duas vias distintas:
- Por verificação dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., a denominada revista alargada que, a proceder, deflui na realização de um novo julgamento, total ou parcial, apenas excecionalmente o podendo fazer o próprio tribunal superior (art.ºs 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do C.P.P.), já analisada;
- Através da impugnação ampla, prevista no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P., com eventual correção do decidido pelo tribunal superior (cfr. art.º 431.º, al. b), do C.P.P.).
No segundo caso – impugnação ampla – a sindicância pode envolver o próprio processo e resultado da formação da convicção do julgador sobre a prova produzida, designadamente a suficiência ou insuficiência desta para a materialidade considerada, a capacidade e a segurança do convencimento que emerge dos meios de prova a valorar, seja à luz dos critérios legais da avaliação (art.º 127.º do C.P.P.), seja sob o espectro das disposições sobre prova vinculada.
Em síntese, no caso da impugnação ampla, a sindicância pode visar o próprio juízo decisório revidendo, a sua verosimilhança e consistência, no cotejo com a prova produzida. Porém, ainda assim, não se trata, aqui, de um novo julgamento, sobreposto ao realizado em primeira instância e que usufruiu do aporte irrepetível oferecido pela oralidade e pela imediação. A impugnação, ainda que ampla, constitui, tão só, o remédio jurídico apropriado para a deteção de eventuais erros in judicando ou in procedendo, considerando o exame crítico da prova efetuado na primeira instância que está, naturalmente, vinculado a critérios objetivos, jurídicos e racionais e sustentado nas regras da lógica, da ciência e da experiência comum, sendo por isso mister que se demonstre a impossibilidade lógica e probatória da valoração seguida e a imperatividade de uma diferente convicção.
Mais.
No caso da impugnação ampla, - em que a atividade do Tribunal de recurso não se restringe ao texto da decisão, expandindo-se à análise da prova concretamente produzida em audiência de julgamento e devidamente registada – o juízo de apreciação e conformidade far-se-á de acordo com os limites fornecidos pelo recorrente e decorrentes do cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do C.P.P.. Ou seja, sempre que o recorrente vise impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar (i) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) As concretas provas [ou falta delas] que impõem decisão diversa da recorrida; (iii) As provas que devem ser renovadas, ao que acresce que Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas (…) fazem-se por referência ao consignado na ata (…) devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Em epítome e em tese geral, não bastará ao recorrente configurar hipóteses decisórias alternativas, da sua conveniência ou modo de ver, mais ou menos compagináveis com a prova produzida, sendo ainda necessário que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta de apreciação alternativa, a prova que foi produzida, imponham, como conclusão lógica, uma decisão distinta e, em concreto, aquela que na argumentação de recurso se defende.
Neste último aspeto referido importa reforçar que não basta a afirmação do dissídio, a apreciação crítica do decidido ou a afirmação de considerandos ou propostas de decisão alternativa. Se assim fosse, a sindicância, a este nível, traduzir-se-ia na realização de novo julgamento, já que ver-se-ia a segunda instância na contingência de revisitar toda a prova produzida para, ante aquelas manifestações gerais de subjetividade, sobrepor ou não a sua.
Por tudo isto, antes se impõe ao recorrente um dever de fundamentação que torne evidente que as provas indicadas, aquelas que convoca, impõem decisão diferente, com o mesmo grau de argumentação e convencimento que é exigível ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, só assim se percebendo qual o raciocínio seguido para se poder afirmar que o mesmo impõe decisão diversa da recorrida [cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal].
Dito isto e avançando.
Depreende-se do teor da argumentação expendida que o recorrente considera incorretamente julgados os pontos da matéria de facto de onde resulta, quer a classificação do veículo conduzido como ciclomotor, quer o conhecimento dessa caraterização por parte do arguido, impositiva da necessidade de título habilitante para a condução. Ou seja, a seu ver e como defluência da sua subjetividade, aquelas provas, consideradas na decisão recorrida, se devidamente valoradas, permitiriam a afirmação, como não provados, de factos relevantes da acusação com significância criminal e que, na procedência das suas objeções, deverão ser como tal julgados, defluindo na absolvição do impetrante.
Vejamos.
A sentença recorrida considerou, para a demonstração dos factos mencionados em 1. a 3., aqui em discussão, desde logo, as declarações do próprio arguido que confirma que, nas circunstâncias espácio temporais em causa, conduzia o veículo identificado sem que fosse possuidor de carta de condução (20240417143823_16657302_2871587.wma).
À admissão do exercício da condução o Tribunal a quo juntou e valorou o depoimento da testemunha BB (20240417144559_16657302_2871587.wma), militar da G.N.R. autuante, que confirmou a interceção do arguido, ante as suspeitas quanto às (reais) caraterísticas do veículo. Refere ser frequente a circulação de veículos relativamente aos quais “as pessoas” referem tratar-se de “bicicletas/velocípedes” (como sucedeu no caso vertente), mas que são claramente ciclomotores, pois não estão providas de pedais, têm uma bateria com mais de 1 Kw (no caso 1,2 Kw) e atingem velocidades superiores a 25 Km/h, (como sumariamente verificado, relativamente ao veículo conduzido pelo arguido).
Concatenados estes dois elementos considerou o Tribunal que “de acordo com as regras da experiência comum, pode-se dar como provada a matéria factual constante da acusação”, no trajeto desconsiderando a argumentação da defesa referindo, além do mais, que “O arguido e a sua esposa, a testemunha CC, procuraram fazer crer que não sabiam que o veículo se tratava de um ciclomotor, antes de um velocípede, que não carecia de carta de condução, como o vendedor desse veículo atesta.
Mas essa declaração da empresa que vende o veículo, não é de molde a afastar o facto do veículo não ter pedais, não carecendo do esforço do condutor para circular, podendo atingir uma velocidade superior a 25 km/h. – essa declaração é uma declaração genérica, não significa que este veículo em concreto, vendido ao arguido, possa atingir velocidade superior a 25 km/h., facto esse atestado pela testemunha BB, que conduziu o veículo e que atingiu a velocidade de 45 km/h.”.
Vejamos então.
É certo, como referiu o militar da G.N.R., que “toda a gente diz o mesmo”, i.e., face à profusão da circulação de veículos deste tipo, os condutores argumentam sempre que julgavam tratar-se de um velocípede com motor auxiliar, não podendo, no caso, afirmar se a surpresa patenteada pelo arguido, aquando da fiscalização, era, ou não, genuína, retendo o padrão comportamental avançado pelos possuidores. Tem para si que a grande maioria destes veículos é adulterada, quer com a retirada dos pedais, quer com a sobrepassagem de dispositivos limitadores da velocidade ou com o aumento do débito da bateria, potenciando velocidades maiores e entrando na categoria dos ciclomotores.
Regressando ao caso em apreço o arguido reafirmou o seu desconhecimento quanto às caraterísticas apontadas ao veículo que conduzia, referindo que lhe fora afiançado, pelo vendedor/importador, que o veículo em causa era enquadrável na categoria de velocípede, não carecendo de carta de condução. Concede que retirou os pedais porquanto, dadas as suas limitações físicas, não pode pedalar.
Na mesma esteira depôs a testemunha CC (20240417145620_16657302_2871587.wma), esposa do arguido, tendo referido que queriam comprar um veículo que não carecesse de carta, até porque o arguido já fora condenado por conduzir um ciclomotor sem habilitação. Para “não terem problemas” adquiriram este veículo, sendo-lhes assegurado que a “motinha” (sic) não carecia de carta, seguro ou matrícula.
Consideradas as posições divergentes e analisando os elementos e argumentos que, na ótica do recorrente, imporiam decisão diversa, temos os documentos juntos com a contestação.
No caso, foi junta uma declaração, emitida pela importadora dos dispositivos de circulação com motor elétrico, que, para a modelo em causa (049), refere que se equipara a velocípede, isento de matrícula e dispensado de habilitação legal, afirmando que o motor tem 0,25 Kw e a velocidade máxima, em patamar, é de 25 Km/h.
Mais junta uma declaração de conformidade CE que, também para o modelo ... da marca A.C.M. Power refere ser equiparado a velocípede, isento de matrícula e o seu condutor dispensado de habilitação legal para a sua condução na via pública.
O manual de instruções para o modelo ... da marca A.C.M. Power refere, igualmente, tratar-se de uma “bicicleta elétrica” que, na foto (embora visualmente semelhante a uma scooter), dispõe de pedais, dotada de um motor com 250 W de potência e com uma velocidade máxima de 25 Km/h.
Como documento n.º 2 é junta nova declaração do importador, específica para o modelo ..., reiterando tratar-se de velocípede dotado de motor auxiliar elétrico de 0,25 Kw (250 W), que atinge a velocidade de 25 Km/h, não carecendo de licença para o exercício da condução.
Relativamente ao quadro legal atendível e mencionado na sentença recorrida, dispõe o art.º 112.º do Cód. da Estrada (C.E.):
1. - Velocípede é o veículo com duas ou mais rodas acionado pelo esforço do próprio condutor por meio de pedais ou dispositivos análogos.
2 - Velocípede com motor é o velocípede equipado com motor auxiliar com potência máxima contínua de 1,0 kW, cuja alimentação é reduzida progressivamente com o aumento da velocidade e interrompida se atingir a velocidade de 25 km/h, ou antes, se o condutor deixar de pedalar.
3 - Para efeitos do disposto no presente Código, são equiparados a velocípedes:
a) Os velocípedes com motor;
b) As trotinetas com motor elétrico, bem como os dispositivos de circulação com motor elétrico, autoequilibrados e automotores ou outros meios de circulação análogos com motor, quando equipados com motor com potência máxima contínua de 0,25 kW e atingindo a velocidade máxima em patamar de 25 km/h.
4 - Para efeitos do disposto na alínea b) do número anterior considera-se trotineta o veículo constituído por duas rodas em série, que sustentam uma base onde o condutor apoia os pés, conduzida em pé e dirigida através de um guiador que se eleva até a altura da cintura.
5 - O regime de circulação e as características técnicas de trotinetas com motor elétrico, bem como dos dispositivos de circulação com motor elétrico, autoequilibrados e automotores ou de outros meios de circulação análogos com motor, que não respeitem o disposto na alínea b) do n.º 3 são fixados por decreto regulamentar.
6 - Quem circular de trotineta ou dispositivo de circulação com motor elétrico, autoequilibrado e automotor ou em meio de circulação análogo com motor, equipado com motor com potência máxima contínua superior a 0,25 kW ou atinja uma velocidade máxima em patamar superior a 25 km/h, em desrespeito das características técnicas e do regime de circulação previstos no número anterior, é sancionado com coima de (euro) 60 a (euro) 300.
7 - Os veículos referidos no número anterior são apreendidos de imediato.
8 - O disposto nos n.ºs 6 e 7 é aplicável aos velocípedes que estejam equipados com motor auxiliar com potência máxima contínua superior a 1,0 kW ou cuja alimentação não seja interrompida se se deixar de pedalar ou cuja velocidade máxima seja superior a 25 km/h.
Já para o caso dos ciclomotores, importa ter presente o estabelecido no art.º 107.º do C.E.:
1 - Motociclo é o veículo dotado de duas rodas, com ou sem carro lateral, com motor de propulsão com cilindrada superior a 50 cm3, no caso de motor de combustão interna, ou que, por construção, exceda em patamar a velocidade de 45 km/h ou cuja potência máxima exceda 4 kW.
2 - Ciclomotor é o veículo dotado de duas ou três rodas, com uma velocidade máxima, em patamar e por construção, não superior a 45 km/h, e cujo motor:
a) No caso de ciclomotores de duas rodas, a potência máxima não exceda 4 kW e no caso de motor de ignição comandada tenha cilindrada não superior a 50 cm3;
b) No caso de ciclomotores de três rodas, a potência máxima não exceda 4 kW e tenha cilindrada não superior a 50 cm3 tratando-se de motor de ignição comandada, ou de 500 cm3 no caso de motor de ignição por compressão.
3 - Triciclo é o veículo dotado de três rodas dispostas simetricamente, que por construção, exceda em patamar a velocidade de 45 km/h, ou tenha motor de propulsão cuja potência máxima exceda 4 kW, ou tenha uma cilindrada superior a 50 cm3, no caso de motor de ignição comandada, ou de 500 cm3 no caso de motor de ignição por compressão.
4 - Quadriciclo é o veículo dotado de quatro rodas, classificando-se em:
a) Ligeiro - veículo com velocidade máxima, em patamar e por construção, não superior a 45 km/h, cuja massa sem carga não exceda 425 kg, excluída a massa das baterias no veículo elétrico, e com motor de cilindrada não superior a 50 cm3 no caso de motor de ignição comandada, ou de 500 cm3 no caso de motor de ignição por compressão;
b) Pesado - veículo cuja massa sem carga, excluída a massa das baterias no caso de veículos elétricos, não exceda 450 kg ou 600 kg, consoante se destine, respetivamente, ao transporte de passageiros ou de mercadorias.
A distinção acima mencionada é reflexo, ao que ao caso importa, da transposição das definições constantes do Regulamento (UE) n.º 168/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de janeiro de 2013 (cfr. preâmbulo do D.L. n.º 102-B/2020, de 9 de dezembro, que alterou o C.E.), relativo à homologação e fiscalização do mercado dos veículos de duas ou três rodas e dos quadriciclos, sendo que, o sobredito Regulamento, no seu Anexo III, prevê e carateriza, na subcategoria L1e-A, o velocípede com motor como veículos concebidos para se pedalar, equipados com um sistema de propulsão auxiliar, tendo como objetivo principal uma pedalagem assistida, sendo a alimentação do sistema de propulsão auxiliar interrompida quando a velocidade do veículo atinge ≤ 25 km/h, tendo o módulo propulsor auxiliar uma potência nominal máxima contínua ou líquida ≤ 1 000 kW, sendo os ciclomotores uma subcategoria de velocípedes (L1e-B), atribuída a qualquer outro veículo da categoria L1e que não possa ser classificado de acordo com os critérios referidos para os veículos L1e-A.
O processo de homologação é complexo (cfr. https://www.imt-ip.pt/sites/IMTT/Portugues/Veiculos/Aprovacoes/HomologacoesVeiculos/2e3rodasequadriciclos/Documents/Guia%20_%20Homologa%C3%A7%C3%A3o%20de%20ve%C3%ADculos%20de%202%20ou%203%20rodas%20e%20quadriciclos_Edi%C3%A7%C3%A3o1.pdf), pressupondo, para o fabricante, o cumprimento dos requisitos e procedimentos explanados no documento referenciado e consultável, como forma de poder obter os parâmetros assinalados para a predita classificação.
Aqui chegados, temos como caraterísticas dos velocípedes com motor auxiliar (equiparados a velocípedes nos termos do n.º 3, al. a) do art.º 112.º do C.E.) a existência de motor com potência máxima contínua de 1,0 kW, cuja alimentação é reduzida progressivamente com o aumento da velocidade e interrompida se atingir a velocidade de 25 km/h, ou antes, se o condutor deixar de pedalar (aqui pressupondo, também, a existência de pedais).
Já no caso dos ciclomotores de duas rodas, esta categoria de veículos pressupõe, no caso de motor elétrico, uma potência máxima que não exceda 4 Kw (ou 50 cm2 para o caso de motores de combustão interna) e, em patamar, uma velocidade até 45 Km/h.
No caso dos autos entendeu-se que o veículo conduzido pelo arguido se tratava de um ciclomotor, por exclusão, conquanto não dispunha de pedais (e, por conseguinte não exigindo esforço do condutor e inviabilizando a interação com o motor auxiliar – cfr. fotos juntas com o Auto de Notícia) e atingiria, por avaliação sumária, uma velocidade de cerca de 40 Km/h (referindo ainda o militar que pela observação das baterias a potência do motor ultrapassaria 1 Kw (1,2).
Para os ciclomotores é necessário que o condutor disponha de título habilitante (AM), capacete, tenha contratado seguro de responsabilidade civil e o veículo esteja matriculado.
Deste confronto parece-nos que o veículo em causa, na prática, se trata de um ciclomotor, embora, lateralmente (porque aqui não releva), se nos afigure problemática a obtenção de matrícula, tendo em conta os critérios de homologação e as eventuais adulterações sofridas, ante as caraterísticas asseguradas pelo fabricante/importador.
Contudo, a conclusão apresentada oferece escolhos. O simples facto de não dispor se sistema de pedalagem não invalida a sua classificação como velocípede com motor auxiliar. É que a sua retirada (ainda que não permitida), desde que se mantenham os critérios de potência do motor e de velocidade máxima em patamar, poderá, apenas, defluir no comportamento contraordenacional previsto no art.º 112.º, n.ºs 6 e 8 do C.E..
Por outro lado, a aferição das caraterísticas específicas de determinado veículo e, essencialmente, quando da sua inobservância pode resultar a prática de um ilícito criminal – como aqui sucede - implicam um juízo técnico objetivo, rigoroso, designadamente quanto à potência do motor ou à performance obtida em termos de velocidade absoluta, o que, no caso, não sucedeu, não sendo, a nosso ver, rigoroso (mas meramente indiciário) o teste realizado e que se resumiu em percorrer determinado trajeto e com recurso ao odómetro, quando a velocidade em patamar se afere em condições de avaliação que têm em conta a inclinação do terreno e variáveis como o peso.
Ainda que a testemunha tenha ficado convencida de que a potência era superior e, essencialmente, que a velocidade ultrapassava os 25Km/h, essa avaliação, se se basta perfunctoriamente, aconselharia uma outra avaliação técnica, em ambiente controlado.
Mesmo para as autoridades experimentadas, a questão que os autos convocam não será certamente líquida. Basta ler o teor do Auto de Notícia e os considerandos aí vertidos: - Os critérios para a classificação do veículo como velocípede com motor auxiliar, a fórmula para a determinação da potência do motor (multiplicação da tensão das baterias em Volt pela capacidade das baterias em Amperes, produzindo o total em Watts e posterior conversão para Quilowatts, referindo-se, em entorno geral, que “(…) analisando de forma muito superficial a maioria deste tipo de veículos que são disponibilizados no mercado, os mesmos não reúnem os requisitos legais para serem considerados velocípedes a motor”, o que é efetivamente verdade, bastando uma pequena busca na Internet para encontrar uma miríade de veículos externamente similares ao conduzido pelo arguido, alguns anunciados sem pedais, sendo asseverado pelas empresas não ser necessária a carta AM e que são classificados como velocípedes.
Ora, revertendo tudo isto para o caso em apreço, note-se que o arguido tem a 4.ª classe e dispunha de informação técnica, subscrita pela importadora, assegurando tratar-se de um velocípede com motor auxiliar, com 250 Watts de potência, não atingindo mais de 25 Km/h e não carecido de título habilitante.
É certo que o arguido já foi condenado por condução de veículo sem habilitação legal o que, de alguma forma, impõe um especial cuidado, em caso de dúvida, sobre as concretas caraterísticas do veículo que se vai conduzir ulteriormente. Contudo, este argumento é reversível, se atentarmos no depoimento da testemunha CC (20240417145620_16657302_2871587.wma), acomodando a alegação de que, precisamente por isso, procuraram adquirir um veículo que permitisse as deslocações para o emprego sem correr o risco de nova infração.
Tendo em conta todos estes elementos, afirma o recorrente que agiu em erro.
O erro sobre a ilicitude do facto é um erro de valoração. Pressupõe que o agente tenha conhecimento de todas as circunstâncias relevantes do tipo necessárias para tomar conhecimento do desvalor do facto, mas não pense, sem mais, que o facto seja ilícito.
Caso se verifique que o arguido, não obstante não ter uma conscientia vera – que decide em conformidade com a totalidade das exigências reais-objectivas – afirma uma conscientia recta – revela persistência numa geral atitude de fidelidade ao Direito – então a sua falta de consciência da ilicitude não será censurável [Ac. RC 19.10.1983, CJ, ano VIII, tomo IV, pág. 83 e ss.].
É o que acontece quando a questão da licitude concreta se revela discutível e controvertida; a solução dada pelo agente corresponde a um ponto de vista juridicamente reconhecido; actua com um propósito correspondente a uma perspetiva juridicamente atendida, o produto de um esforço continuado de corresponder às exigências do Direito. [Jorge de Figueiredo Dias, ut Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado, 11º edição, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 121].
Nestes casos, é excluída a culpa do agente.
Diferentemente se, em face de todos estes elementos, existe uma deficiência da própria consciência ético-jurídica do agente que não lhe permite apreender corretamente os valores jurídicos, se é revelada a ausência de uma atitude de persistência na procura de assumir uma atitude conforme ao direito, então a falta da consciência sobre a ilicitude é-lhe censurável.
Justifica-se, então, a censura a título de dolo, ainda que com reflexos na pena.
Diversamente, o erro sobre a proibição tem por referente situações em que o arguido desconhece a proibição (seja na sua existência, seja na sua exacta extensão e limites) por falta de informação ou de esclarecimento, sendo que o desvalor do comportamento não é de presumir por todos os cidadãos [Ac. RL 27.01.1998, CJ, ano XXIII, tomo I, pág. 146 e ss.].
Afirma-se quando a relevância axiológica das condutas não existe ou é pouco significativa, caso em que o ilícito é constituído, não apenas pela matéria proibida, mas também pela proibição legal, pois que o conhecimento daquela afirma-se insuficiente para orientar a consciência ética para o desvalor do ilícito.
Trata-se de um caso em que, para o Professor Figueiredo Dias, repensando uma anterior posição [Jorge de Figueiredo Dias, Sobre o estado actual da doutrina do crime, 2ª parte, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fasc. 1, Jan-Mar 1992, pág. 21], ficará excluído o dolo (enquanto dolo do tipo), e, com ele, a punição a esse título [Jorge de Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal, Edição Policopiada, Coimbra, 2001, págs. 110 a 114].
No caso dos autos, tendo em conta a argumentação recursória, as declarações do arguido e da testemunha CC e, bem assim, a documentação junta com a contestação, fornecida pela importadora do veículo, entendemos que, mais do que o invocado erro sobre a ilicitude, se apresenta como verosímil que tenha atuado em defeito de conhecimento acerca da real situação do veículo e suas caraterísticas. O arguido sabia que não podia conduzir ciclomotores e que o seu exercício, sem carta, constituía crime. Contudo, ao nível da sua consciência psicológica, faltava-lhe o conhecimento de um elemento (reais caraterísticas do veículo que o classificariam como ciclomotor), o que era necessário para a representação da ilicitude do que fazia. Teria agido, assim, com consciência ético jurídica reta, uma atitude geral de fidelidade ao Direito, só que defraudada por circunstâncias especiais, pelas informações fornecidas pela importadora, que o fizeram errar.
A ser como o arguido assegurava, a sua ação seria lícita, mas acabou por preencher pressupostos objetivos de um tipo de crime.
O erro sobre as circunstâncias de facto (art.º 16.º do C.P.) pode ser censurável se derivar de negligência sua, pois é seu dever assegurar-se das caraterísticas do veículo que conduz para saber se o pode fazer sem carta. Se a ignorância da Lei nunca pode ter eficácia excludente da culpa, a ignorância do arguido da ilicitude do facto que cometeu, porque agiu em erro sobre um estado de coisas que, se existente, excluiria o dolo (condução de um velocípede com motor auxiliar), embora permita a formulação de um juízo de censura por negligência, já não o permite a título doloso, já que a comissão do crime previsto no art.º 3.º, n.º 1, do D.L. n.º 2/98 de 3/1, por que foi condenado, não prevê expressamente a punição a título de negligência.
Em resumo e quanto a nós, a prova produzida não oferecia elementos seguros para a afirmação de uma conduta dolosa do arguido e pressupondo o conhecimento das caraterísticas reais do veículo. Ante a declaração emitida pela importadora para aquele modelo de veículo e na falta de um juízo pericial quanto ao tipo de adulteração sofrido para que se tenha aproximado dos critérios de classificação como ciclomotor (que poderiam indiciar o conhecimento do arguido e a sua atuação dolosa), entendemos que a afirmação dos elementos subjetivos do tipo, com base nos “critérios da experiência comum” é, neste caso, insuficiente ou pouco seguro pois, perante as dúvidas que todo este caso convoca e que acima analisamos, no limite, seria de resolver tais dúvidas em benefício do arguido.
O princípio da presunção de inocência, com assento constitucional no art.º 32.º, destina-se a proteger as pessoas que são objeto de uma acusação, garantindo que não serão condenadas enquanto não se demonstrarem os factos da imputação através de uma atividade probatória inequívoca. Significa tal princípio constitucional que toda a decisão condenatória deve sempre ser precedida de uma mínima e suficiente atividade probatória, impedindo a condenação sem provas seguras.
Sendo esse princípio inserto em norma diretamente vinculante e constituindo um direito fundamental dos cidadãos (cfr. art.º 18.º, n.º 1 da Constituição), direito esse reconhecido no direito internacional (cfr. art.º 11º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e art.º 6.º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos), impõe-se, quando não for demonstrada e provada a culpabilidade do arguido, a sua absolvição.
Embora frequente, a dúvida não pode obstar ao ato de julgar. Sendo proibido o non liquet fundado na insuficiência de provas, em caso de dúvida insanável o facto deve resolver-se em desfavor da acusação. Se o Tribunal não lograr obter a certeza dos factos, permanecendo em dúvida, deve absolver o arguido por falta de provas.
Como bem sustentou Cavaleiro Ferreira, “Em processo penal, a justiça perante a impossibilidade de uma certeza, encontra-se na alternativa de aceitar, com base em uma probabilidade ou possibilidade, o risco de absolver um culpado e o risco de condenar um inocente. A solução jurídica e moral só pode ser uma: deve aceitar-se o risco de absolvição de um culpado e nunca o de condenação de um inocente” [Cfr. Curso de Processo Penal, Vol. I, Lisboa, 1986, pág. 216.].
Concluindo e utilizando uma fórmula consagrada, da autoria do Professor Figueiredo Dias, pode dizer-se que “(...) um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz que omita a decisão (...) tem de ser sempre valorado a favor do arguido” [Cfr. Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra, 1974] – pois a dúvida sobre os factos resolve-se em função do princípio da presunção de inocência.
Por todo o exposto, sendo a dúvida quanto à atuação do arguido, no seu plano interno, razoável, a análise da prova em segunda instância, se não impõe decisão diversa quanto às caraterísticas do veículo e à sua classificação como ciclomotor, impõe, certamente, outra decisão quanto ao preenchimento dos elementos subjetivos do tipo, não se podendo afirmar, salvo o devido respeito, que o arguido soubesse que, com a sua ação, cometia o apontado ilícito.
Assim, na procedência do recurso e na falta de demonstração inequívoca da ação dolosa do agente, não sendo o crime punível a título negligente, deverá o recurso proceder, absolvendo o arguido.
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IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, absolve-lo da prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 1, do D.L. n.º 2/98, de 03.01.
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Sem custas.
Notifique.
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Porto, 18 de dezembro de 2024
José Quaresma
Maria Ângela Reguengo da Luz
Paula Guerreiro