Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MARIA DA LUZ SEABRA | ||
| Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO ÓNUS DE ALEGAÇÃO REJEIÇÃO DO RECURSO PRESUNÇÃO DE CUMPRIMENTO | ||
| Nº do Documento: | RP2024111922447/23.4YIPRT.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/19/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A identificação dos concretos pontos de facto impugnados deve constar das conclusões de recurso, sob pena de rejeição imediata do recurso referente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por incumprimento do ónus previsto no art. 640ºnº 1 al. a) do CPC. II - Se o devedor, em juízo, negar a existência da dívida ou questionar os pressupostos da mesma, não pode beneficiar da prescrição presuntiva estabelecida no art. 317º do CC, por tal consubstanciar a prática de acto incompatível com a presunção de cumprimento nos termos previstos no art. 314º do CC. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 22447/23.4YIPRT.P1- APELAÇÃO ** Sumário (elaborado pela Relatora):……………………………… ……………………………… ……………………………… ** I. RELATÓRIO:1. A..., SA intentou Injunção, ao abrigo do disposto no artigo 7.º do Decreto-lei n.º 269/98, de 01 de setembro, contra AA, tendo peticionado a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de 12.388,78€, a título de capital, acrescida de 1.570,83€, a título de juros de mora vencidos, e ainda de 102,00€, a título de taxa de justiça e ainda juros vincendos até efetivo e integral pagamento. Para tanto alegou que no âmbito da sua atividade forneceu ao Réu, a pedido deste, os cuidados de saúde discriminados na factura junta aos autos no valor de 14.638,78€- fatura ..., emitida e com vencimento em 31 de dezembro de 2019- e que desse valor, o Réu apenas liquidou o valor de 2.250,00€ a título de caução, permanecendo em dívida o remanescente de 12.388,78€ apesar de ter sido interpelado para efectuar o pagamento do valor em falta. 2. O Réu deduziu oposição, na qual suscitou a ineptidão do requerimento injuntivo por falta de descrição dos serviços prestados, a inexistência dos serviços que integram as faturas que apelidou de exceção perentória extintiva, não aceitando qualquer débito da requerente para além do que já pagou, tendo invocado a prescrição presuntiva alegando que esteve efectivamente nas instalações da requerente para tratamento médico tendo saído em 20.12.2019, que antes da alta médica efectuou um pagamento à requerente e outro logo inicialmente a título de caução que lhe foi exigida, tendo ocorrido o prazo de prescrição de 2 anos previsto no art. 317º al. a) do CC em 15.12.2021. 3. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença em 29.02.2024, Ref Citius 131870759, com o seguinte dispositivo: “Em face do exposto, julga-se a presente ação totalmente procedente e, em consequência, decide-se: Condenar o Réu AA a pagar à Autora A..., S.A., a quantia de 12.388,78€ (doze mil trezentos e oitenta e oito euros e setenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa comercial, vencidos desde a data de vencimento da fatura, até efetivo e integral pagamento. Custas pelo Réu. Registe e Notifique.” 4. Inconformado o Réu interpôs recurso de apelação da sentença final, formulando as seguintes CONCLUSÕES A) O R. não pode concordar com a sentença que se pronunciou no sentido de que o mesmo incumpriu culposamente a sua obrigação de pagar. B) O Recorrente não concorda com os factos dados como provados. C) A A. não provou a sua prestação de serviços nem os medicamentos ministrados. D) Nenhuma das duas testemunhas que arrolou teve qualquer contacto com a prestação de serviços ao R., apenas tiveram contacto com o documento fatura e com o processo de cobrança. E) Por outro lado o R. afirmou que entendia que tudo estava pago, tanto que lhe foi descontado o cheque que entregou como caução. F) Cabia à A. fazer prova dos serviços que prestou (nº 1 do artigo 342ºCC) G) Existe a favor do R. uma presunção legal de pagamento pelo decurso de mais de 2 anos e nessa circunstância o ónus da prova inverte-se, cabendo à A. ilidir tal presunção. H) A A. não ilidiu a presunção como lhe competia, dai a ação improceder. Concluiu, pedindo que seja revogada a sentença. 5. A Autora/Apelada ofereceu contra-alegações, pugnando pela manutenção do julgado. 6. Foram observados os vistos legais. * II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO: O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC. Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1] * As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:1ª- Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada; 2ª-Se o Réu beneficia da presunção de pagamento prevista no art. 317ºal. a) do CC ** III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos: 1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à gestão e exploração de unidades de saúde, bem como à prestação de serviços hospitalares. 2. No exercício da respetiva atividade, a Autora forneceu ao Réu, a pedido deste, os cuidados de saúde discriminados na fatura ..., no valor total 14.638,78€, emitida no dia 31 de dezembro de 2019 e com vencimento na mesma data. 3. Face aos serviços e saúde discriminados na fatura ..., o Réu pagou à Autora a quantia de 2.250,00€. 4. O Réu não pagou o remanescente do valor da fatura ..., no valor de 12.388,78€. ** IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.Impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Segundo o disposto no art. 662º nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Perante as exigências estabelecidas no art. 640º do CPC, constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a seguinte especificação, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. “Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus: Primeiro: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; Segundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; Terceiro: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas. Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.”[2] São as conclusões das alegações de recurso que estabelecem os limites do objecto da apelação e, consequentemente, do poder de cognição do Tribunal de 2ª instância, de modo que quando haja impugnação da decisão sobre a matéria de facto devem constar das conclusões de recurso necessariamente os concretos pontos de facto impugnados, enquanto que a decisão alternativa que o recorrente propõe para cada um dos factos impugnados (AUJ nº 12/2023 de 14.11), bem como a análise pormenorizada dos concretos meios probatórios pode constar apenas do corpo das alegações ou motivação propriamente dita, tal como as concretas passagens das gravações ou transcrições dos depoimentos de que o recorrente se socorra. E quando nos referimos aos concretos pontos de facto impugnados estamo-nos a referir especificamente aos pontos de facto como tal elencados na sentença recorrida (no elenco dos factos provados ou no elenco dos factos não provados) ou nos pontos de facto enumerados nos articulados caso o recorrente pretenda o aditamento de factos não vertidos na fundamentação de facto da sentença. O legislador teve o cuidado de aludir à expressão “pontos de facto” e não apenas e genericamente a “factos”, impondo que o recorrente de forma cabal, expressa e clara, concretize os pontos de facto de que discorda, necessariamente por referência ao elenco dos pontos de facto elaborados pelo tribunal quanto aos factos provados e quanto aos factos não provados, ou então por referência aos artigos dos articulados onde os factos a aditar foram alegados (deve ser concretizada a fonte da factualidade considerada incorrectamente julgada).[3] Acontece que o Apelante não fez constar das conclusões de recurso os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, tendo-se limitado a afirmar na Conclusão B) que “não concorda com os factos dados como provados”. O Apelante limitou-se a impugnar genericamente os factos dados como provados, afirmando com eles não concordar, desconhecendo-se totalmente se se refere a todos ou a alguns deles e neste último caso de quais discorda, não estando atribuída a este Tribunal de 2ª Instância a tarefa porventura errática de tentar deduzir pelo conteúdo das alegações quais os factos que o recorrente pretende impugnar, quando foi exigência expressa do legislador que o recorrente concretizasse nas conclusões de recurso os pontos de facto impugnados sob pena de rejeição (ónus primário insuprível), tendo presente que a tarefa do recorrente é incomensuravelmente mais simples, bastando-lhe dizer o número ou a alínea do facto impugnado por referência ao elenco vertido na sentença recorrida ou aos articulados. Tal como exemplarmente sintetiza o Ac STJ de 19/1/2023, “Entre os corolários do ónus de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consagrado no nº 1 do art. 640ºdo Código de processo Civil, está o de que o recorrente deve sempre indicar nas conclusões de recurso de apelação os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados. (…)Em decisões sobre o modo de exercício dos poderes previstos no art. 640.º do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário — o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o ónus secundário de facilitação do acesso “aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida”, consagrado no n.º 2 [4]. (…) o ónus primário de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, analisa-se ou decompõe-se em três: Em primeiro lugar, “[o] recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões” [5]. Em segundo lugar, “deve […] especificar, na motivação, os meios de prova que constam do processo ou que nele tenham sido registados que […] determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos” [6]. Em terceiro lugar, deve indicar, na motivação, “a decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” [7]. Se as conclusões de recurso balizam o conhecimento do tribunal ad quem, compreende-se a exigência de nelas constarem os concretos pontos de facto impugnados, sob pena de poder ser apreciado algum ponto de facto com o qual a parte recorrente se conformou, desvirtuando-se o principio da auto-responsabilidade das partes.”[4] Por conseguinte, a especificação dos concretos pontos de facto cuja impugnação pretende o recorrente, deve constar das conclusões recursórias, sob pena de rejeição imediata do recurso da impugnação da matéria de facto, por incumprimento do ónus previsto no art. 640º do CPC (omissão absoluta).[5] Afigura-se-nos que é precisamente essa omissão que ocorre no presente recurso, não constando das conclusões de recurso os concretos pontos de facto impugnados. Se alguma das afirmações factuais mencionadas pelo Apelante nas Conclusões C) e E) até poderá contender com alguns factos vertidos nos pontos de facto provados na sentença recorrida, seria temerário conhecê-los quando o Apelante não concretizou quais estava a impugnar, como se lhe impunha, sob pena de se correr o risco de se proceder à reapreciação de factos que o recorrente não pretendeu colocar em causa. Já Abrantes Geraldes ensina, de forma lapidar, “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto; b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc); d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação; f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos. Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.”[6] O que ressalta das conclusões de recurso do Apelante é essencialmente inconformismo com os factos que o tribunal considerou na decisão proferida, tendo descurado totalmente o ónus de impugnação imposto pelo referido art. 640º nº 1 al. a) do CPC. E, quanto ao recurso da decisão da matéria de facto, contrariamente ao recurso da matéria de direito (art. 639º nº 3 do CPC), não existe a faculdade de ser prolatado despacho de aperfeiçoamento, não podendo o efeito da rejeição previsto no art. 640º do CPC ser precedido de convite ao aperfeiçoamento.[7] Deste modo, rejeita-se o recurso relativo à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não se conhecendo da mesma, por total omissão de cumprimento do ónus consagrado no art. 640º al. a) do CPC. Presunção de pagamento prevista no art. 317º al. a) do CPC. Rejeitada a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, e mantido o acervo factual elencado na sentença recorrida, o presente recurso terá de improceder, quer porque a Apelada logrou demonstrar conforme lhe incumbia os pressupostos de facto constitutivos do direito de crédito de que se arroga (pontos 1 e 2 dos factos provados), quer porque, mesmo que se entendesse, como ocorreu na sentença recorrida, que a prescrição invocada pelo Apelante era operante, a presunção de pagamento que o Apelante havia invocado como facto impeditivo do direito da Apelada (pontos 3 e 4 dos factos provados) teria sido ilidida de forma adequada pela Apelada. De todo o modo, não podemos deixar de mencionar que, em nosso entender, resultava dos autos de forma evidente que a defesa do Apelante estaria votada ao insucesso, atendendo ao modo como o Apelante/Réu estruturou a sua defesa mormente no que toca à prescrição presuntiva por ele invocada. Vejamos. O ónus de prova do pagamento, enquanto excepção de cumprimento, extintiva do direito de crédito que a Apelada pretendia exercer, incumbiria ao Apelante a não ser que este beneficiasse de presunção de cumprimento, presunção que veio a ser por si invocada na contestação. A prescrição invocada pelo Apelante, prevista no art. 317º al. a) do CC, é uma prescrição presuntiva, que se funda na presunção de cumprimento (art. 312º do CC), isto é, decorrido o prazo de 2 anos sobre os serviços prestados pela Apelada/Autora presumia-se que o Apelante/Réu pagou os serviços de assistência que por aquela lhe foram prestados, sem que aquele tivesse de provar esse pagamento (facto extintivo do direito de crédito da Apelada). Segundo o consignado no art. 317º, al. a) do CC prescrevem no prazo de dois anos, os créditos dos estabelecimentos de assistência ou tratamento, relativamente aos serviços prestados. Neste aspecto, as partes não dissentem quanto ao facto de o crédito reclamado nestes autos pela Autora/Apelada se integrar na previsão do aludido preceito legal. “A «técnica» da prescrição presuntiva, verdadeiro favor debitoris, não se baseia, como a prescrição extintiva, na inércia do credor e, em rigor, em razão de certeza jurídica, mas no pressuposto de que, em atenção à conformação (binómio sujeitos-conteúdo) de certas obrigações e aos usos do tráfico jurídico, o credor é célere na reclamação do crédito e o devedor cumpre num prazo breve, sem exigir ou, pelo menos, guardar por muito tempo o respectivo documento de quitação. Embora a figura revele algum anacronismo (o que levou ao desaparecimento do instituto na reforma francesa de 2008), é certo que, segundo o direito vigente, decorrido que seja o prazo legal, não exercendo o credor o seu direito e invocando o devedor a prescrição presuntiva (cfr. anot. ao artigo 314º), o legislador presume o cumprimento, libertando o devedor do ónus da prova, mas sem excluir, de todo, a prova do não cumprimento, ou seja, a ilisão da presunção (cfr. os artigos 350º, 2, 313º e 314º).”[8] Trata-se de uma presunção iuris tantum, ilidível nos termos gerais do art. 350º nº 2 do CC mas apenas através do meio de prova especificamente previsto nos arts. 313º e 314º do CC- confissão extrajudicial expressa ou judicial tácita. Acontece que, a esse propósito o Apelante na contestação apresentada admitiu que “esteve efetivamente nas instalações da Requerida para tratamento médico, tendo saído em 20.12.2019 e que a fatura da Requerente data de 31.12.2019”, tendo ainda admitido que “antes mesmo da sua alta médica o Requerido efetuou um pagamento à Requerente (não concretizando o valor e modo de pagamento) e outro logo inicialmente a título da caução que lhe foi exigida”. Mas mais, apesar de ter afirmado que “todos os serviços prestados pela Requerente ao Requerido foram efetivamente pagos”, também impugnou o crédito reclamado na petição inicial, alegando a “inexistência dos serviços que integram as faturas” e que “a requerente peticiona a quantia de 12.388,78 €, desconhecendo-se a sua origem, data de início e fundamento concreto”. Esta postura contraria frontalmente a invocação da presunção de pagamento, desde logo porque se o Apelante discute a existência da dívida reclamada pela Apelada, total ou parcialmente, não se pode presumir que a pagou. Mesmo em sede deste recurso o Apelante reforçou que impugnou a prestação de serviços alegada pela Apelada, pugnando para que a mesma não fosse dada como provada. Para que o aqui Apelante pudesse beneficiar da prescrição presuntiva de dois anos que invocou não podia negar os factos constitutivos do direito da credora/Apelada, sob pena de entrar em contradição lógica com a sua pretensão de beneficiar da presunção de pagamento. “A invocação da prescrição presuntiva supõe o reconhecimento pelo devedor de que a dívida existiu e a alegação que a pagou, pagamento que a lei presume.”[9] Apenas no caso de invocação da prescrição ordinária é que o devedor pode confessar que não pagou e cumulativamente opor a prescrição. O art. 314º do CC, referindo-se à confissão tácita do devedor- enquanto forma de ilidir a presunção de cumprimento (art. 313º do CC)-dispõe que considera-se confessada a dívida se o devedor (…) praticar em juízo atos incompatíveis com a presunção de cumprimento” e, assim ocorrerá, como defende a generalidade da doutrina[10] e jurisprudência[11], se o devedor não se limitar em juízo a invocar a prescrição presuntiva mas praticar actos incompatíveis com essa invocação, porque se estará a contradizer a si próprio, sendo dado como exemplos clássicos dessa conduta confessória “quer a negação da existência ou validade da dívida, quer a impugnação do seu quantitativo ou da data do seu vencimento, quer o reconhecimento da sua existência total ou parcial, são exemplos dessa atuação contraditória, dessa tentativa impossível de conjugar uma impugnação e uma excepção perentória.”[12] Também Rita Canas da Silva, em anotação ao art. 314º do CC reitera esse mesmo entendimento, escrevendo que “em caso de confissão judicial (v. anotação ao art. 313º), estar-se-á perante uma regra de desconformidade ou contradição entre a presunção de cumprimento (art. 312º) e determinado comportamento do devedor em juízo- bastante para se considerar afastada a sugerida presunção. Tal sucederá em caso de recusa do devedor em depor ou prestar juramento, mas ainda noutras circunstâncias, em que o ato praticado em tribunal seja, em si mesmo, contrário à presunção de cumprimento, assim ocorrendo se o devedor, em juízo, nega a existência da dívida (defesa por impugnação) ou se questiona os pressupostos da mesma (por ex., carácter oneroso ou gratuito, quantitativo, data de vencimento).”[13] Em suma, para que a invocação da referida prescrição presuntiva lhe fosse reconhecida e o dispensasse da prova do pagamento efectivo da dívida reclamada pela Apelada, necessário seria que o Apelante/devedor se tivesse limitado a alegar a presunção de cumprimento, isto é, que pagara a dívida que lhe estava a ser reclamada (estivesse ela paga ou não), reconhecendo a existência dessa dívida e nessa hipótese incumbiria à Apelada/credora provar que o pagamento não ocorrera (invertendo-se o ónus de prova). Não o tendo feito, contrariamente ao por si defendido, o Apelante não poderia beneficiar da prescrição presuntiva e, como tal teria de ter apresentado prova do efectivo pagamento da dívida aqui reclamada, o que manifestamente não ocorreu, desde logo porque o Apelante não precaveu a possibilidade de o tribunal afastar a aplicabilidade da presunção do pagamento por si invocada. Assim sendo, por todos os motivos acima invocados, sempre estaria o Apelante obrigado a pagar à Apelada o valor dos serviços que ficou provado estarem ainda em dívida, nos moldes determinados na sentença recorrida, que nenhuma censura merece e, como tal se manterá. ** V. DECISÃO:Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso interposto pelo Apelante, confirmando-se a sentença recorrida. Custas a cargo do Apelante, que ficou vencido. Notifique. Porto, 19.11.2024 Maria da Luz Seabra João Ramos Lopes Anabela Dias da Silva (O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico) _________________ [1] F. AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil 8ª edição, pág. 147 e A. ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 92-93. [2] Cadernos Temáticos De Jurisprudência Cível Da Relação, Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consultável no site do Tribunal da Relação do Porto, Jurisprudência [3] Neste sentido Ac STJ Proc nº 28533/15.7T8PRT.P1.S1, www.dgsi.pt [4] Proc. Nº 3160/16.5T8LRS-A.L1.S1, www.dgsi.pt [5]Ac STJ de 6/7/2022, Proc. Nº 28533/15.7T8PRT.P1.S1; Ac STJ de 17/11/2020, Proc. Nº 846/19.6T8PNF.P1.S1; Ac STJ de 11/9/2019, Proc. Nº 42/18.0T8SRQ.L1.S1; Ac STJ de 7/7/2016, Proc. Nº 220/13.8TTBCL.G1.S1; Ac STJ de 8/10/2019, Proc. Nº 3138/10.2TJVNF.G1.S2; Ac STJ de 13/11/2019, Proc. Nº 4946/05.1TTLSB-C.L1.S1, www.dgsi.pt [6] Recursos no Novo CPC, 2ª edição, pág. 135 [7] Neste sentido Abrantes Geraldes, Ob. Cit, pág. 134; Ac STJ de 19/12/2018, Proc. Nº 2364/11.1TBVCD.P2.S2; Ac STJ de 2/6/2016, Proc. Nº 781/07.0TYLSB.L1.S1, www.dgsi.pt [8] José Brandão Proença, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, UCP, pág. 759; no mesmo sentido entre outros, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II Vol, 1987, pág. 452, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª edição, pág. 1126 e A. Varela, P. Lima, CC Anotado, I Vol, 4ª edição, pág. 281-282 [9] AC STJ de 10.11.2016, Processo n.º 374/12.0TCGMR.G1.S1,www.dgsi.pt [10] Entre muitos, José Sousa Ribeiro, Prescrição Presuntiva: sua compatibilidade com a não impugnação dos factos articulados pelo autor, in RDE, Separata do n.º 2 de Julho/Dezembro de 1979, pág. 393 [11] Entre outros, Ac RP de 2.12.2021, Proc nº 108795/19.5YIPRT.P1; AC RP de 18.01.2011, Proc n.º 213/08.7TBARC.P1, e AC RP de 28.10.2010, Proc n.º 1732/09.3TBVFR.P1, www.dgsi.pt [12] José Brandão Proença, Ob. cit, pág. 761 [13] CC Anotado, 2017, Vol. I, Ana Prata (Coord.), pág. 385 |