Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0622150
Nº Convencional: JTRP00039476
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: EMPREITADA
EXCEPÇÕES
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP200609190622150
Data do Acordão: 09/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: LIVRO 223 - FLS 96.
Área Temática: .
Sumário: I - A empreitada é um contrato sinalagmático e dele emergem obrigações recíprocas e interdependentes para ambas as partes: a obrigação de realizar uma obra tem como contrapartida a obrigação de pagar um preço.
II - Demonstradas as condições de operância da excepção do não cumprimento, a obrigação do excipiente suspende-se enquanto o outro contraente não cumprir ou oferecer o cumprimento simultâneo.
III - Deste modo, o funcionamento da excepção apenas justifica um retardamento ou dilação na prestação devida por quem dela beneficia até que cesse o incumprimento da outra parte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

“B………., Lda.”, com sede no ………., freguesia de ………., Vale de Cambra, interpôs acção declarativa de condenação, sob a forma do processo sumaríssimo, contra C………. e mulher, D………., residentes na Rua ………., ………., freguesia de ………., Vale de Cambra, pedindo que estes sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 5.990,93, acrescida de juros moratórios vencidos no montante de € 1.065,56 e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Alegou, para o efeito e em suma, que:
- no âmbito da sua actividade, acordou com os Réus efectuar uma obra de carpintaria na moradia onde estes residem, mediante o pagamento da quantia de € 13.646,91, acrescida de IVA, quantia que seria paga faseadamente pelos Réus, à medida que a obra fosse sendo executada e até à sua conclusão.
- assim, emitiu e enviou aos Réus 3 facturas, datadas de 14.09.2001, 23.01.2002 e 01.06.2002.
- contudo, os Réus apenas pagaram a primeira factura e parte da segunda factura, encontrando-se em dívida a quantia de € 5.990.93, com IVA incluído.

Devidamente citados, apresentaram os Réus contestação na qual se defenderam por excepção, alegando que os trabalhos que a Autora se comprometeu a fazer, pelo preço de Esc. 4.000.000$00 foram fornecer e montar o soalho, rodapés, portas e aros e construir e colocar guarda-fatos. Contudo, o soalho descolou e empolou (e, em consequência, duas portas interiores não funcionam, partiram-se soleiras e o rodapé de um dos quartos levantou), os rodapés estão tortos e com folgas, a porta de um guarda-fatos ficou abaulada e, pese embora tenham sido tais defeitos prontamente comunicados à Autora e por esta reconhecidos, não os reparou. Sustentam, assim, que, não tendo existido aceitação da obra, não é devido o pagamento do preço.
Mais dizem que, ainda que assim não fosse, a Autora expressamente aceitou que apenas após a reparação dos defeitos é que exigiria o pagamento do remanescente do preço, pelo que se verifica a excepção de não cumprimento.
Os Réus defenderam-se ainda por impugnação e, a final, deduziram reconvenção, pedindo a condenação da Autora no pagamento da quantia que se vier a liquidar em execução de sentença a título de indemnização pelos danos causados pela deficiente realização dos trabalhos e da quantia correspondente ao custo da reparação dos defeitos e ainda no pagamento de € 2.500,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos.
Para tanto, dizem que, uma vez que a Autora não reparou os defeitos, os Réus resolveram o contrato e que, quer o cumprimento defeituoso quer o incumprimento por parte da Autora lhes causou danos, concretamente os descritos estragos nas soleiras das portas e nos rodapés, no soalho e no guarda fatos e os incómodos, irritação e desgosto que sentiram. Alegam ainda desconhecer o preço das necessárias reparações e substituição dos defeitos referidos.

Por despacho de fls. 34 a 36 dos autos foi corrigida a forma de processo da acção, que passou a seguir a forma de processo sumária.

A Autora respondeu e defendeu-se da excepção invocada dizendo que o empolamento e deslocação do soalho se deveu a humidade excessiva existente no piso onde aquele assentou, decorrente do deficiente isolamento do referido piso, a que a Autora é alheia. Alegou também que nunca assumiu a responsabilidade pela produção dos danos enunciados pela Ré.

Foi proferido despacho saneador e procedeu-se à selecção da matéria de facto, sem que houvesse qualquer reclamação.

Por fim, foi lavrada a sentença na qual se decidiu:
“a) julgar procedente por provada a excepção de não cumprimento invocada e, em consequência, absolver os RR. do pedido.
b) julgar improcedentes os pedidos reconvencionais deduzidos, absolvendo a A. dos mesmos”.

A Autora não se conformou e recorreu.
Os Réus também recorreram, mas subordinadamente.
Ambos os recursos foram admitidos como de apelação, com subida imediata nos próprios autos e com efeito devolutivo – v. fls. 191.
Os Réus, porém, não apresentaram as alegações de recurso tendo este sido julgado deserto – v. fls. 225, verso.

Nas alegações do seu recurso a Autora/apelante pede que se revogue o julgado e, para esse fim, formula as conclusões que seguem:
1. Da análise da douta sentença recorrida, bem como da matéria de facto dada como provada, resulta que: a Autora, ora apelante, realizou a obra de carpintaria que havia ajustado com os Réus; que o preço acordado para a realização da referida obra foi de 4.000.000$00; que, desse preço, os Réus apenas pagaram a quantia de € 9.975,96; que foi acordada verbalmente a realização de outros trabalhos, em alteração ao que havia sido inicialmente acordado e que os Réus reconhecem expressamente não terem pago a totalidade do preço da obra.
2. Não obstante o referido no número precedente, a Mmª Juiz a quo considerou a acção improcedente por não provada, baseando a sua decisão no facto de a ora apelante ter cumprido defeituosamente o contrato, sendo, desse modo, lícito aos Réus, ora apelados, recusarem-se a pagar o preço ainda em dívida, correspondente à quantia peticionada pela Autora, enquanto esta não eliminar tais defeitos.
3. Porém, a excepção de não cumprimento alegada pelos Réus não nega o direito da Autora ao cumprimento, nem enjeita o dever de os Réus cumprirem a sua obrigação.
4. Com ela, apenas se pretende um efeito dilatório, ou seja, um retardamento da prestação por parte de quem dela beneficia, até que cesse o incumprimento da outra parte. No presente caso, faculta-se aos Réus o direito de recusarem o pagamento da quantia peticionada até que a Autora repare os defeitos existentes na obra.
5. Sendo assim, não deveria o Tribunal a quo ter julgado a acção totalmente improcedente, mas antes parcialmente procedente, por provada, condenando os Réus a efectuar o pagamento do preço em dívida, sem juros de mora, condicionando esse pagamento à realização das obras tendentes à eliminação dos defeitos.
6. Se assim não for, a ora apelante ver-se-á forçada, após a realização das obras tendentes a eliminação dos defeitos, a intentar nova acção declarativa, com vista a apreciar os mesmos factos, já decididos nesta acção, sujeitando-se a obter decisões contraditórias.
7. O que não se justifica, até por uma questão de economia processual.
8. Tanto mais que se trata de uma situação perfeitamente subsumível ao n.º 1 do art. 662º do CPC.
9. Julgando deste modo, o Tribunal a quo deveria ter, da mesma forma, alterado o modo de repartição das custas, nomeadamente, ter tido em conta o decaimento da Autora em pretender a condenação no pagamento imediato, quando tal assim não se verificava.
10. Esta seria, de facto, a solução mais ajustada para o caso vertente, caso a possibilidade da reparação dos defeitos por parte da Autora ainda fosse possível.
11. Como não e, os Réus não podem, legitimamente, invocar a excepção de não cumprimento para continuar a protelar o pagamento do preço devido, sob pena de tal comportamento configurar um notório abuso de direito, nos termos do disposto no art. 334º do CC.
12. Efectivamente, do depoimento da testemunha E………., resulta, inequivocamente, que os Réus já contrataram um terceiro para proceder à eliminação dos defeitos, sendo tal terceiro, essa mesma testemunha E………. .
13. Foi, aliás, essa a convicção com que ficou a Mmª Juiz a quo, quando, na motivação apresentada, referindo-se àquela testemunha, diz “… (que é o carpinteiro que reparou a obra), que de modo credível relatou os defeitos que notou na obra e a forma como a reparou”.
14. O art. 1221º do CC não confere ao dono da obra o direito de por si ou por intermédio de terceiro, eliminar directamente os defeitos, ou reconstruir a obra à custa do empreiteiro, sem antes o demandar judicialmente para o efeito.
15. E isto, mesmo encontrando-se a Autora em mora, como sucede no caso dos autos. Só na hipótese de se verificar incumprimento definitivo daquela obrigação é que já não se revelaria necessário aos Réus recorrer à via judicial, podendo, eles próprios ou através de terceiro, efectuar as obras de reparação.
16. A excepção de não cumprimento do contrato justifica-se por razões de boa-fé, de moralidade e de equidade e, salvo o devido respeito, não vislumbra a Autora, no caso presente, uma única razão que a justifique.
17. Tendo-se constatado, no decurso da audiência de discussão e julgamento, que as deficiências em causa já tinham sido mandadas reparar pelos Réus, a excepção de não cumprimento alegada pelos Réus tinha de soçobrar, e, consequentemente, ter sido a acção julgada totalmente procedente, condenando-se os Réus no pagamento do peticionado.
18. Tanto mais que, sendo a finalidade da excepção de não cumprimento a de possibilitar a total execução da relação contratual, não pode o devedor alegar a “exceptio” a não ser que isso vise efectivamente a execução, pois que, se tal não acontecer, não faz sentido a “suspensão” contratual prevista no art. 428º do CC. Ora, se os Réus já procederam à reparação dos defeitos da obra, cai por terra um dos requisitos de tal efeito suspensivo que é a possibilidade da prestação do devedor.
19. O Tribunal a quo jamais poderia ter absolvido os Réus do pedido, devendo tê-los absolvido da instância.
20. Isto porque, a excepção de não cumprimento é uma excepção dilatória de direito material ou substantivo, não excluindo definitivamente o direito da Autora, apenas o paralisando temporariamente.
21. E porque, uma vez realizadas as obras tendentes à eliminação dos defeitos, assiste à Autora a faculdade de intentar nova acção declarativa, com vista a obter o pagamento do preço em dívida, possibilidade que, tendo sido absolvidos do pedido, lhe fica vedada.

Os Réus contra-alegaram, batendo-se pela confirmação da sentença recorrida.

Foram colhidos os vistos legais.
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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – as questões que se colocam são:
- se ao julgar procedente a excepção de não cumprimento, o tribunal deveria também ter condenado os Réus apelados no pagamento do preço em falta, após correcção dos defeitos da obra;
- se não é possível a procedência da dita excepção face ao facto de os Réus já terem ordenado a reparação dos defeitos por um terceiro.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Estão provados os seguintes factos:

1. A Autora dedica-se à actividade de carpintaria.
2. A Autora, no exercício da sua actividade, e os Réus acordaram em como a Autora executaria uma obra de carpintaria numa moradia que estava a ser construída pelos Réus, sita na Rua ………., ………., ………., Oliveira de Azeméis, designadamente de execução e colocação de soalhos, rodapés, portas e aros e de execução e colocação dos guarda-fatos, sendo os materiais a utilizar fornecidos pela Autora.
3. A Autora e os Réus acordaram em como o preço da obra referida em 2. seria de 4.000.000$00, com IVA incluído.
4. A Autora e os Réus acordaram em como o preço da obra referida em 2. seria pago pelos Réus, faseadamente, de acordo com o andamento da obra, e até à sua conclusão.
5. A Autora deu início à execução da obra referida em 2.
6. Os Réus pagaram à Autora, em Setembro de 2001, o montante de € 4.987,98 e, em Janeiro de 2002, o montante de € 4.987,98.
7. A Autora emitiu as facturas juntas aos autos a fls. 5 a 7, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos.
8. A madeira do soalho da moradia referida em 2. descolou e empolou e, por isso, partiram-se 10 soleiras de apoio às portas de PVC, o rodapé de um dos quartos levantou e a porta da sala e a porta que dá acesso do hall de entrada ao salão não funcionam.
9. O empolamento da madeira do soalho, referido em 8. atingiu nalguns pontos os 10 cm.
10. Em virtude do referido em 8., as soleiras e os rodapés têm de ser substituídos.
11. Em virtude do referido em 8., os Réus sentem desgosto e irritação.
12. O piso da moradia referida em 2. não foi isolado, aquando da sua construção, de forma adequada a evitar que a humidade proveniente do solo nele se infiltrasse.
13. O referido em 8. ocorreu em virtude do referido em 12. e em virtude de a Autora não ter colocado tapa-poros na face inferior das tábuas do soalho, não ter colocado nenhum material absorvente da humidade entre a caixa de ar situada entre o piso e a tábua de madeira, não ter aplicado nenhum plástico debaixo das tábuas nem ter deixado espaço livre debaixo dos rodapés, em toda a largura dos mesmos.
14. Os rodapés da moradia referida em 2. estão tortos e com folgas relativamente ao soalho.
15. A placa de um dos guarda-fatos da moradia referida em 2. ficou abaulada.
16. Aquando da celebração do acordo referido em 2., a Autora e os Réus acordaram em como a Autora executaria e colocaria o tecto em madeira no hall exterior da casa.
17. A Autora não executou nem colocou tal tecto em madeira no hall exterior da casa por os Réus terem dele desistido.
18. Durante a execução dos trabalhos referidos em 2., os Réus pediram à Autora para, em alteração do que havia sido entre ambos acordado aquando da celebração do acordo referido em 2., fornecer rodapés com 10 cm de largura, ao invés de 7 cm …
19. ... para fornecer guarnições com 7,5 cm de largura em vez de 4,5 cm, como inicialmente acordado …
20. ... para fornecer e assentar a madeira debaixo dos móveis das casas-de-banho …
21. ... e para fornecer a aplicar um aro de passe.
22. A Autora efectuou os trabalhos referidos em 18., 19., 20. e 21.
23. O preço dos trabalhos referidos em 18., 19., 20. e 21. foi incluído nas facturas referidas em 7.
24. Integral teor da carta cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 20 a 22, datada de 12 de Julho de 2002, e onde consta, designadamente:
“Venho por este meio relembrar mais uma vez V.ª Ex.a que a obra da especialidade executada na minha casa apresenta várias deficiências (...)”.
25. Integral teor da carta junta aos autos a fls. 23, datada de 04.12.2002, e onde consta, designadamente, que:
“apesar da denúncia dos defeitos da obra de carpintaria, até à presente data ainda não procedeu às obras de reparação. (...) Nestas circunstâncias, venho conceder-lhe o prazo de 20 dias para dar início aos trabalhos de reparação dos defeitos”.
26. A Autora enviou ao Réu, e este recebeu, a carta cuja cópia está junta aos autos a fls. 25, datada de 20.12.2002 e cujo teor aqui se dá por reproduzido, e onde consta, designadamente, que:
”Serve a presente para informar o Ex.mo Sr de que iremos proceder à verificação e eliminação dos defeitos existentes na obra, durante o mês de Janeiro de 2003, após o que solicitamos desde já, V.ª Ex.a proceda ao pagamento do preço em dívida”.
27. Integral teor da carta cuja cópia se mostra junta aos autos a fls. 26, datada de 07.01.2004.
28. No dia 27 de Janeiro de 2003, o representante legal da Autora, acompanhado de três pessoas, compareceu na moradia referida em 2. e verificou o estado em que se encontrava a obra por si realizada, após o que se retirou.
29. A Autora não realizou qualquer obra de reparação do referido em 8. e 14. ou de qualquer defeito na obra que executou na moradia referida em 2.
30. A Autora não efectuou 19 empainelamentos, 16 portas, 16 ferragens e 3 portas em vidro da moradia, conforme havia acordado com os Réus aquando da celebração do acordo referido em 2.
31. O Réu marido enviou à Autora as cartas referidas em 24. e 25. …
32. ... e esta recebeu-as.
33. O Réu enviou à Autora a carta referida em i) (resposta ao art.º 14º da Base Instrutória). CFR INFRA

O DIREITO

Antes de mais, cumpre proceder a uma correcção no ponto 33. da matéria de facto provada, ainda que a mesma seja indiferente para a decisão da causa.
Por manifesto lapso de escrita, não se verteu nesse ponto a resposta positiva dada ao quesito 14º (v. fls. 57, 81, 84, 1ª parte, e 161), pelo que o referido ponto passará a ter a seguinte redacção:
33. A Autora enviou ao Réu as cartas referidas em 26. e 27.

A discussão jurídica travada pelas partes gira em torno da excepção do não cumprimento do contrato de empreitada, invocada na defesa dos Réus – arts. 23º e 24º da contestação/reconvenção.
Segundo estes, os defeitos de que a obra realizada pela Autora enferma, oportunamente denunciados a esta, legitimam esse tipo de defesa.
Essa argumentação foi acolhida pelo tribunal recorrido na sentença agora em crise e a própria apelante não ataca directamente a bondade da decisão quanto à procedência da excepção do não cumprimento.
O que a apelante põe em causa é a consequência jurídica da dita procedência e, num plano que se nos afigura prejudicial a essa discussão, a impossibilidade desse tipo de defesa face ao facto, que agora aduz, de que os defeitos da obra já foram reparados por um terceiro.
Começaremos por esta última questão, dado o referido nexo de prejudicialidade.

Como é sabido, os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre – v. Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª edição, págs. 133/134.
É igualmente sabido que compete às partes – e só a elas – a formação da matéria de facto da causa, mediante a alegação, nos articulados, dos factos que integram a causa de pedir, fundando o pedido, e daqueles em que baseiam as excepções – art. 264º, n.º 1, do CPC. O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos arts. 514º e 665º do CPC e da consideração, mesmo oficiosa dos factos instrumentais (e o dito facto não seria, nunca, instrumental) que resultem da instrução e julgamento – v. art. 264º, nºs 1 e 2 do CPC.
Ora, da leitura dos autos retira-se que jamais foi alegado, por qualquer das partes, o que quer que fosse sobre a circunstância de os defeitos da obra terem já sido alvo de reparação por terceiros.
Quer isto significar que o que consta das conclusões 11ª a 18ª é matéria absolutamente nova, não sujeita à apreciação do tribunal recorrido.
Não é pelo facto de, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, a Mmª Juiz ter feito referência ao testemunho de um carpinteiro “que reparou a obra” que se pode ter como validada a introdução em juízo de tal matéria. Essa indicação serviu tão-só para sustentar a motivação do tribunal quanto à decisão sobre determinados pontos da matéria de facto inseridos na base instrutória, na sequência do oportunamente alegado pelas partes, sendo que dos factos controvertidos não consta – como se disse – qualquer facto atinente à reparação dos defeitos por terceiros.
Nesta conformidade, não nos é permitido conhecer de tal questão.

A sentença recorrida, ao julgar procedente a excepção do não cumprimento do contrato, absolveu os Réus do pedido formulado na petição inicial, que – recorde-se – era o da condenação destes no pagamento da quantia de € 5.990,93, acrescida de juros vencidos e vincendos.
Claro está que a consequência jurídica tirada da procedência da dita excepção não é correcta e desvia-se da própria fundamentação da sentença no que toca à aplicação do Direito.
A Mmª Juiz escreveu, por exemplo, o seguinte:
“Deste modo, o dono da obra face ao cumprimento defeituoso pelo empreiteiro, pode recusar o pagamento do preço enquanto não forem eliminados os defeitos … . E de, facto, atenta a gravidade dos defeitos de que padece a obra, julgamos ser lícito aos demandados recusar a sua prestação até que a contraprestação seja rectificada nos termos devidos, procedendo por isso a invocada excepção” – v. fls. 179.
Como salienta João José Abrantes, “Excepção do não Cumprimento do Contrato no Direito Civil Português”, pág. 39, "a moderna configuração dos contratos sinalagmáticos assenta na ideia de interdependência entre obrigações que deles reciprocamente emergem para ambas as partes.
O respeito pela intenção destas no momento da sua celebração, pretendendo efectuar uma troca de prestações, e a justiça comutativa supõem que o devedor de cada uma dessas obrigações só possa ser compelido a executá-la se o devedor da outra também cumprir. Por isso, a lei cria um vínculo de interdependência entre tais obrigações, tendo em vista precisamente a realização daquela ideia de justiça comutativa. Cada uma delas é contrapartida da outra, uma não nasce sem a outra e nenhum dos devedores tem de cumprir sem que o outro cumpra igualmente".
A empreitada é um contrato sinalagmático e dele emergem obrigações recíprocas e interdependentes para ambas as partes: a obrigação de realizar uma obra tem, como contrapartida, a obrigação de pagar o preço, sendo esta, de resto, a obrigação principal que recai sobre o dono da obra.
Ainda que de natureza e prazos diferentes, as prestações de uma e outra parte estão ligadas pelo nexo sinalagmático próprio dos contratos bilaterais; o contraente que cumpre defeituosamente a sua obrigação não tem o direito de exigir a respectiva contraprestação enquanto não corrigir o defeito da sua prestação e, em situações como a dos autos, o contraente faltoso só adquire o direito à contraprestação quando prévia ou simultaneamente se ofereça para reparar os danos causados à contraparte.
A excepção de não cumprimento, que se justifica por razões de boa fé, de moralidade, de equidade, de justiça comutativa, sanciona, assim, a unidade das obrigações que para cada uma das partes derivam do contrato, evitando que uma delas tire vantagens sem suportar os encargos correlativos.
Demonstradas as condições de operância da excepção do não cumprimento, a obrigação do excipiente suspende-se enquanto o outro contraente não cumprir ou oferecer o cumprimento simultâneo. Existe como que uma espécie de paralisação do direito do credor até à satisfação do direito do excipiente.
Deste modo, o funcionamento da excepção apenas justifica um retardamento ou dilação na prestação devida por quem dela beneficia até que cesse o incumprimento da outra partev. Ac. do STJ 18.06.1996, no processo n.º 96A036, em www.dgsi.pt.
Ora, o pagamento da parte do preço em falta devia ter lugar com a conclusão da obra, o que pressupõe a conclusão dos trabalhos da empreitada sem vícios ou defeitos.
Como há cumprimento defeituoso da obra pela Autora, face aos apurados defeitos descritos na sentença, os Réus podem recusar o pagamento do preço em falta, ao abrigo do art. 428º do CC, até que sejam corrigidos ou eliminados tais defeitos.
Enquanto tal situação se mantiver, a exigibilidade do pagamento do preço fica suspensa – v. Ac. do STJ de 18.02.2003, na CJSTJ Ano 2003, Tomo I, págs. 103 a 106.
Decorre do exposto que a sentença recorrida deveria ter prevenido o pagamento à Autora do valor da empreitada em falta, condicionando o tempo do respectivo pagamento à eliminação dos defeitos da obra que estiveram na origem da excepção do não cumprimento.
Ao não o fazer, violou o disposto no art. 428º do CC.

Refira-se, por último, que o pagamento do preço em falta há-de sem feito em singelo, ou seja, sem os peticionados juros de mora, uma vez que se verifica uma situação justificada de incumprimento da contraprestação dos Réus.
Qual será, porém, esse valor?
Na petição inicial a Autora diz que os Réus mantêm em dívida a quantia de € 5.990,93, com IVA incluído – cfr. art. 7º.
Na contestação os Réus confessam-se devedores da quantia de € 5.042,85 – cfr. art. 33º.
Na resposta a Autora mantém o afirmado na petição inicial, esclarecendo que ao valor indicado pelos Réus deve aditar-se o montante de € 948,08, referente aos trabalhos enumerados no art. 28º desse articulado, e dizendo que esse mesmo montante já se encontra incluído nas facturas juntas com a petição inicial.
Dada a controvérsia existente, foram levados à base instrutória tais factos, tendo-se apurado que a Autora realizou, efectivamente, a quase totalidade dos trabalhos referidos no art. 28º da resposta (v. pontos 18. a 22., supra), ficando ainda provado que o valor desses trabalhos foi incluído nas facturas juntas no articulado inicial – v. ponto 23.
Não ficou, porém, provado que a Autora tenha colocado várias divisórias, gavetas e prateleiras adicionais nos guarda-fatos {resposta negativa ao quesito 34º, cuja redacção corresponde ao alegado no art. 28º, al. al. d)}.
Logo, não será possível considerar a totalidade do valor relativo aos trabalhos discriminados nesse artigo 28º, ou seja, os falados € 948,08.
Nessa parte, a liquidação do valor dos trabalhos efectivamente realizados (18. a 22.) terá de ser feita ulteriormente, em execução de sentença, ao abrigo do disposto no art. 661º, n.º 2, do CPC.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, e na parcial procedência da apelação, revoga-se a sentença recorrida, condenando-se os Réus/apelados a pagarem à Autora/apelante a mencionada quantia de € 5.042,85, acrescida do valor que vier a ser posteriormente liquidado em execução de sentença com referência aos trabalhos descritos em 18. a 21., estes últimos até ao montante máximo de € 948,08, tudo com IVA incluído, ficando esse pagamento suspenso até que a Autora proceda à reparação ou eliminação dos defeitos reconhecidos na sentença recorrida e descritos supra em 8., 10., 12., 13., 14. e 15., oportunamente denunciados pelos Réus.
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Custas da apelação pelos apelados.
Custas da acção por Autora e Réus, na proporção de metade.
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PORTO, 19 de Setembro de 2006
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha