Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6943/20.8T8VNG.1P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR
EXEQUIBILIDADE DA DECISÃO CAUTELAR
Nº do Documento: RP202201176943/20.8T8VNG.1P1
Data do Acordão: 01/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A execução das providências decretadas em sede de procedimento cautelar comum não pode ser indeferida com fundamento na existência de garantia penal da medida cautelar.
II - A natureza provisória da decisão proferida em procedimento cautelar não é critério para afastar a sua exequibilidade. Provisoriedade e exequibilidade não se excluem reciprocamente.
III - Havendo incumprimento da decisão cautelar por parte da requerida e desde que aquela abrangesse os pedidos executivos formulados pelas recorridas, não haveria obstáculo a que estes recorressem à via executiva como meio processual adequado para obter o cumprimento coercivo, logo, não se configuraria erro na forma do processo, gerador da nulidade de todo o processado, como foi entendido na decisão recorrida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 6943/20.8T8VNG.1.P1
SECÇÃO SOCIAL


ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I.RELATÓRIO
I.1 AA, BB e CC, apresentaram requerimento com vista à execução de sentença nos próprios autos, relativamente à decisão proferida na providência cautelar que instauraram previamente à acção contra DD, Ltd e EE, a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia - Juiz 3, inicialmente sob o nº 5322/20.1T8VNG e, posteriormente, sob o nº do processo da acção principal da qual é dependência 6943/20.8T8VNG, enquanto apenso “A”, no qual foi decidido suspender “[..] as ordens de transferência de cada uma das requerentes comunicadas pela DD, Ltd, mantendo-se a sua localização na base do… – Aeroporto do …”, decisão que foi confirmada por Acórdão de 19-04-2020, deste Tribunal da Relação do Porto (Proc. Nº 6943/20.8T8VNG-A.P1).
Alegam, no essencial, que a DD Ltd. vem a incumprir com tal determinação em vários aspetos, pelo que vêm executar a sentença, nos termos do artigo 98º-A do CPT e 626º e 868º ambos do CPC, designadamente, não vem a atribuir quaisquer tarefas às Exequentes, recusou a entrega de fardamento, cartões de identificação necessários para o acesso ao aeroporto e aeronaves, bem como acesso a alguns sistemas informáticos, necessários ao desenvolvimento e prestação da sua atividade, apenas garantido o pagamento do salário mínimo nacional no valor ilíquido de €665,00.
Mais alegam, que após a prolação do acórdão da Relação do Porto, a 30 de Abril de 2021 a DD Ltd. veio a emitir nova ordem de transferência às Exequentes, desta feita para a zona geográfica correspondente ao Aeroporto de …, Irlanda, onde se deveriam apresentar no dia 1 de Julho de 2021, facto que comunicaram ao processo principal, tendo sido proferido despacho clarificando o alcance da decisão cautelar. Por aquela foi arguida a nulidade do despacho, tendo o Tribunal a quo emitido pronúncia sobre o requerido. A Ré/Requerida/Executada, ao emitir nova ordem de transferência na pendência da ação principal incumpre grosseiramente com decisão judicial e incorre no crime de desobediência.
Nesses pressupostos, requerem que o Tribunal, em consonância com a sentença transitada em julgado, «[..] assegure que permanece como local de trabalho das Exequentes a base do …, Portugal (Aeroporto …), bem assim que lhes seja assegurado trabalho efetivo destas».
Requerem, ainda, «(..) que seja estabelecido o prazo de 5 dias, para cumprimento da sentença que se executa, atenta a data de 1 de Julho para que as Requerentes se apresentem a 1 de Julho de 2021”, findo o qual “(..) deverá ser determinada a aplicação de sanção pecuniária compulsória ao abrigo dos artigos 829º-A do Código Civil, 74º-A do CPT, 365º/2 e 874º/1 do CPC, aplicável ex vi 1º/2 do CPT”, reputando como necessário o “(..) montante diário nunca inferior a €100,00 (cem euros)/dia, por cada Requerente”, tudo “sem prescindir de eventuais juros de mora, ao abrigo do artº 829º-A/4 do CC”.
I.2 No despacho liminar, pronunciando-se sobre o requerido o Tribunal a quo a proferiu a decisão seguinte:
- «Da análise do requerimento executivo resulta que o mesmo foi instaurado tendo por base a decisão proferida no procedimento cautelar n.º 6943/20.8T8VNG-A (onde foi decidida a suspensão das ordens de transferência de cada uma das requerentes comunicadas pela DD, Ltd., mantendo-se a sua localização na base do … – Aeroporto …).
Conforme resulta do regime dos procedimentos cautelares, os mesmos destinam-se a obter uma providência, conservatória ou antecipatória, adequada a obter a efetividade do direito que ameaça ser lesado. Os procedimentos cautelares não são processos declarativos (apenas); são processos mistos – de natureza declarativa (provisória) e executiva.
A execução das decisões cautelares integra a própria providência cautelar, correndo nos próprios autos de procedimento cautelar.
Não há, por conseguinte, lugar ao recurso ao processo de execução nos moldes requeridos pelas exequentes.
Existe, pois, um erro na forma do processo, gerador da nulidade de todo o processado, atendendo a que não é possível aproveitar qualquer dos atos praticados no presente processo executivo.
Em conformidade, atenta a nulidade de todo o processo, que ora se conhece, absolvo as executadas DD, Ltd. e EE contra quem a execução foi intentada da instância executiva.
Custas a cargo das exequentes.
Notifique.
Registe.
Oportunamente, dê-se a competente baixa.
[..]».
I.3 Inconformadas com esta decisão as requerentes/exequentes interpuseram recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram finalizadas com as conclusões seguintes:
- A. O presente recurso é de apelação, subindo nos próprios Autos, nos termos do artigo 79ºA/1, a) do CPT e 853º/2, b), do CPC aplicável ex vi 1º/2 do CPT, recorrendo as Recorrentes do despacho liminar liminarmente proferida pelo douto Tribunal a quo em sede do processo 6943/20.8T8VNG.1, Refª Citius 426406282.
B. As Recorrentes requerem a reforma do despacho liminar quanto a custas. Isto porquanto gozam todas de apoio judiciário na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos, mas, a douto despacho liminar a quo veio a condená-las em custas.
C. Salvo devido respeito por opinião diversa e, em particular, pela do Tribunal a quo, crê-se que o despacho liminar padece de nulidade nos termos do artigo 615º/1 c) do CPC, aplicável ex vi art 1º/2 do CPT.
D. Tal nulidade, na opinião das Recorrentes, surge do facto de o Tribunal a quo não especificar concretamente, ou de forma suficientemente clara, quais concretos moldes considera incorretos a seu Requerimento Executivo (R.E.).
E. Sem tal, não podem pugnar a sua defesa as Recorrentes.
F. Como tal, o despacho liminar a quo deverá ser substituída por outra que especifique tais concretos vícios.
G. No entanto, ao abrigo do princípio da cooperação e da celeridade processual, as Recorrentes fazem o seu melhor esforço para tentar descortinar vícios no seu R.E., detetando, como único vício possível, o facto de terem dirigido ao processo principal “6943/20.8T8VNG” e não ao seu apenso “6943/20.8T8VNG-A”, que era a decisão cautelar que pretendiam executar.
H. Com o devido respeito por opinião diversa, consideram estas que tal vício era suprível pelo Tribunal a quo, visto tratar-se de manifesto lapso, atento o princípio do aproveitamento dos atos processuais e o dever de gestão processual, conforme a artigos 6º/2, 193º/1 e 3 e 726º/4, todos do CPC.
I. De igual forma, a conformação a título oficioso, não levava a qualquer diminuição das garantias das Executadas/Requeridas/Rés.
J. Sem prejuízo da nulidade que possa ser verificada nos termos supra, ou mesmo sanada, deverá o despacho liminar a quo ser revogado e ser substituído por douto despacho que determine a conformação da instância, ultrapassando-se tal vício.
K. Caso assim não se entenda, sempre terá o despacho recorrido que ser declarado nulo e substituído por outro que especifique quais os concretos vícios que considera constar do Requerimento Executivo das Recorrentes.
Nestes termos, e nos demais de direito, V. Exas. deverão dar provimento às presentes alegações, decretando a nulidade do despacho liminar a quo nos termos do artigo 615º/1, c) do CPC, revogando o mesmo, devendo ser proferido novo despacho liminar que sane o vício em causa (número/apenso do processo a executar, se for esse), aproveitando-se os Atos já praticados, de acordo com os artigos 6º/2, 193º/1 e 3 e 726º/4 todos do CPC, seguindo os Autos os seus normais termos junto do douto Tribunal a quo. Ou, subsidiariamente, seja o despacho recorrido declarado nulo e substituído por outro que especifique quais os concretos vícios a Requerimento Executivo das Recorrentes.
I.4 Notificadas do requerimento de interposição de recurso, as recorridas apresentaram dizendo que “[..] por entenderem ser clara, evidente e correta a motivação do despacho de indeferimento liminar, prescindem de contra-alegar, sufragando na integra a motivação apresentada Douto Tribunal, pelo que devem ser havidas como improcedentes todas as conclusões das Exequentes/ Apelantes, devendo manter-se na íntegra o despacho recorrido”.
I.5 Previamente à prolação do despacho que admitiu o recurso, o Tribunal a quo pronunciou-se quanto à requerida reforma de custas e à arguida nulidade, nos termos seguintes:
Reforma da decisão quanto a custas:
Não se teve na decisão proferida em devida consideração que as exequentes gozam de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e encargos, pelo que se procede à retificação/reforma da decisão quanto a custas nos seguintes moldes:
"Custas a cargo das exequentes, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que beneficiam."
*
Arguição de nulidade da decisão por falta de especificação concreta dos moldes em que considera incorreto o requerimento executivo:
O tribunal não considerou incorreto o requerimento executivo; o tribunal entende que, estando em causa uma decisão proferida no âmbito de um procedimento cautelar, cujo conteúdo se esgota na suspensão das ordens de transferência dadas pela requerida DD, não há lugar ao recurso ao processo de execução com a tramitação no Livro IV do Código de Processo Civil.
As medidas adequadas à execução coerciva da providência cautelar decretada ocorrem no próprio procedimento cautelar, sendo o regime aplicável o previsto no art. 375.º do Cód. Proc. Civil.
Afigura-se, pois, que não existe a arguida nulidade da decisão proferida.
Em conformidade, nos termos do disposto no art. 617.º, n.º1, do CPC (ex vi art. 1.º, n.º 2, al. a), do CPT), considerando que não existe a invocada nulidade, indefiro a mesma.
[..]»
I.6 O Digno Procurador-Geral junto desta Relação teve visto nos autos, para os efeitos do art.º 87.º3 do CPT, tendo emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, referindo, no essencial, o seguinte:
-«[..]
…a suspensão da ordem de transferência é suficiente para acautelar até à decisão definitiva, o objectivo pretendido: a continuidade das AA no aeroporto do …, como local de trabalho.
Salvo melhor opinião, a medida cautelar decretada, encerra em si a decisão de que o local de trabalho das AA é no Porto e obriga a entidade empregadora a manter neste local as AA, até decisão definitiva, sem necessidade de outra providência.
O não acatamento da ordem constitui desobediência, punível com a pena cominada para este esta infracção penal, como previsto no artigo 375º do CPC.
E só este pedido das AA., foi julgado procedente e não outros.
Assim cremos que a decisão em recurso não merece censura, devendo, antes, ser confirmada.
Efectivamente como se referiu depois, “o tribunal não considerou incorreto o requerimento executivo; o tribunal entende que, estando em causa uma decisão proferida no âmbito de um procedimento cautelar, cujo conteúdo se esgota na suspensão das ordens de transferência dadas pela requerida DD, não há lugar ao recurso ao processo de execução com a tramitação no Livro IV do Código de Processo Civil.
As medidas adequadas à execução coerciva da providência cautelar decretada ocorrem no próprio procedimento cautelar, sendo o regime aplicável o previsto no art. 375.º do Cód. Proc. Civil.”
[..]».
I.7 Foram colhidos os vistos legais e determinou-se a inscrição do processo em tabela para ser submetido a julgamento.
I.8 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 640.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho], as questões colocadas para apreciação pela recorrentes consistem em saber o seguinte:
i) Se a decisão é nula nos termos do artigo 615º/1 c) do CPC, por não especificar concretamente, ou de forma suficientemente clara, quais os concretos moldes em que considera incorretos o Requerimento Executivo.
ii) Se o Tribunal a quo errou na aplicação do direito aos factos, ao entender que ocorre erro na forma do processo, gerador da nulidade de todo o processado, absolvendo as executadas DD, Ltd. e EE da instância executiva.

FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
Os factos com interesse para a apreciação do recurso são os mencionados no relatório, acrescidos dos seguintes:
i)Na providência cautelar cuja decisão é pretendida dar à execução, foi decidido o seguinte:
Em conformidade, no deferimento parcial da providência cautelar, suspendo as seguintes ordens de transferência de cada uma das requerentes comunicadas pela DD, Ltd., mantendo-se a sua localização na base do … – Aeroporto do ….:
− ordem de transferência da requerente AA para a base de … … constante da comunicação datada de 10 de agosto de 2020 referida no n.º 40. da fundamentação de facto;
− ordem de transferência da requerente CC para a base de …, constante da comunicação datada de 17 de agosto de 2020 referida no n.º 41. da fundamentação de facto;
− ordem de transferência da requerente BB para a base de … constante da comunicação datada de 17 de agosto de 2020 referida no n.º 42. Da fundamentação de facto.
Julgo improcedentes os demais pedidos deduzidos na providência cautelar».
ii) Por Acórdão desta Relação, de 19 de Abril de 2020, foi julgado improcedente o recurso de apelação interposto daquela decisão, confirmando-a.

II.1 NULIDADE DA DECISÃO
Como melhor se retira das alegações, referem as recorrentes que o «despacho liminar proferido é algo obscuro, por não permitir [..] entenderem da sua leitura, exatamente qual o motivo do indeferimento da sua pretensão “nesses moldes” o qual tenha como consequência “erro na forma do processo”» dado não especificar «de facto e de direito, quais são os moldes do Requerimento Executivo das Recorrentes que considera inadequados», por isso não podendo fazer a sua devida defesa.
Nessa consideração, defendem que o despacho liminar enferma de nulidade nos termos do artigo 615º/1, c) do CPC, aplicável ex vi artº 1º/2 e do CPT.
O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a arguida nulidade, nos termos previstos no art.º 617.º n.º1, não reconhecendo a sua verificação, referindo, no essencial o seguinte:
-«[..]
O tribunal não considerou incorreto o requerimento executivo; o tribunal entende que, estando em causa uma decisão proferida no âmbito de um procedimento cautelar, cujo conteúdo se esgota na suspensão das ordens de transferência dadas pela requerida DD, não há lugar ao recurso ao processo de execução com a tramitação no Livro IV do Código de Processo Civil.
As medidas adequadas à execução coerciva da providência cautelar decretada ocorrem no próprio procedimento cautelar, sendo o regime aplicável o previsto no art. 375.º do Cód. Proc. Civil.
[…]».
Vejamos se assiste razão às recorrentes.
As nulidades da sentença só ocorrerão, como causa invalidante típica, nas diversas hipóteses taxativamente contempladas no n.º 1 do art.º 615º do CPC.
Importando assinalar, como é pacificamente entendido, que as causas de nulidade constantes do elenco do n.º1, do art.º 615.º, não incluem o “chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário” [Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Almedina, 1985, pp. 686].
As recorrentes vêm arguir a nulidade da sentença prevista na al. c), do n.º1 daquele artigo, de onde decorre que a sentença é nula quando (n.º1): “Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”. No seu entender a decisão padece de obscuridade que a torna ininteligível.
Nas palavras de Lebre de Freitas [A Acção Declarativa Comum, Coimbra Editora, 3ª edição, 2013, p. 333], ocorre a nulidade da sentença por ininteligibilidade, “Quando não seja perceptível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou ela encerre um duplo sentido (ambiguidade), sendo ininteligível para um declaratário normal”.
Por seu turno, Remédio Marques [Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto, 3.ª Edição, p. 667], observa que “a obscuridade, de acordo com a jurisprudência e doutrinas dominantes, traduz os casos de ininteligibilidade da sentença
No mesmo sentido, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 693,] reportando-se ao pedido de aclaração, referem que o mesmo “tem cabimento sempre que algum trecho essencial da sentença seja obscuro (por ser ininteligível o pensamento do julgador)”.
Em linha com esses entendimentos, o acórdão do STJ de 11-04-2007 [Nº Convencional JSTJ000, Conselheiro Santos Cabral, disponível em www.dgsi.pt], observa que «Uma decisão é obscura ou ambígua quando for ininteligível, confusa ou de difícil interpretação, de sentido equívoco ou indeterminado. A obscuridade de uma sentença é a imperfeição desta que se traduz na sua ininteligibilidade. Só existe obscuridade quando o tribunal proferiu decisão cujo sentido exacto não pode alcançar-se».
Na decisão em crise (acima transcrita), o Tribunal a quo fez constar, no essencial, o seguinte:
-«[..]
Conforme resulta do regime dos procedimentos cautelares, os mesmos destinam-se a obter uma providência, conservatória ou antecipatória, adequada a obter a efetividade do direito que ameaça ser lesado. Os procedimentos cautelares não são processos declarativos (apenas); são processos mistos – de natureza declarativa (provisória) e executiva.
A execução das decisões cautelares integra a própria providência cautelar, correndo nos próprios autos de procedimento cautelar.
Não há, por conseguinte, lugar ao recurso ao processo de execução nos moldes requeridos pelas exequentes.
Existe, pois, um erro na forma do processo, gerador da nulidade de todo o processado, atendendo a que não é possível aproveitar qualquer dos atos praticados no presente processo executivo.
[..]».
Admite-se que a decisão tem uma fundamentação exígua, o que leva a que o silogismo judiciário não seja de imediata apreensão, mas já não cremos que haja fundamento para a considerar nula nos termos apontados pelas recorrentes, visto perceber-se o sentido da decisão e a razão invocada pelo Tribunal a quo para a sustentar, ou seja,a nulidade de todo o processo”, na consideração de existir “erro na forma de processo” insanável, “atendendo a que não é possível aproveitar qualquer dos atos praticados no presente processo executivo”.
Assim sendo, não pode dizer-se que a decisão é ininteligível e, logo, não ocorre a sua nulidade nos termos previstos na al. c), do n.º1, do art.º 615.º do CPC, nessa parte improcedendo o recurso.

II.2 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
A questão colocada para apreciação pelas recorrentes consiste em saber se o Tribunal a quo errou ao entender que ocorre erro na forma do processo, gerador da nulidade de todo o processado, absolvendo as executadas DD, Ltd. e EE da instância executiva.
Na perspectiva das recorrentes, o único vício possível decorrerá do facto de terem dirigido o requerimento executivo ao processo principal “6943/20.8T8VNG” e não ao seu apenso “6943/20.8T8VNG-A”, da providência cautelar cuja decisão pretendiam executar. Mas, defendem, tal vício era suprível pelo Tribunal a quo, visto tratar-se de manifesto lapso, atento o princípio do aproveitamento dos atos processuais e o dever de gestão processual, conforme os artigos 6º/2, 193º/1 e 3 e 726º/4, todos do CPC.
Acontece, porém, não ter sido essa a razão que levou o tribunal a quo a entender que existia erro na forma de processo.
O Tribunal a quo entendeu haver erro na forma de processo, mas na consideração da decisão cautelar em causa, ao ter decretado “ a suspensão das ordens de transferência de cada uma das requerentes comunicadas pela DD, Ltd., mantendo-se a sua localização na base do … – Aeroporto do …”, tendo em conta a usa natureza mista – “Os procedimentos cautelares não são processos declarativos (apenas); são processos mistos – de natureza declarativa (provisória) e executiva” - não carecer de recurso à via executiva para produzir os seus efeitos.
É certo, como já antes reconhecemos, que a fundamentação podia ter sido mais completa, mas foi esse o fundamento que o Tribunal a quo considerou impor a decisão recorrida.
Daí que, ao pronunciar-se sobre a arguida nulidade, o Tribunal a quo venha dizer que “(..) não considerou incorreto o requerimento executivo”, querendo significar que a razão do decidido não foi o facto do requerimento executivo vir dirigido à acção principal da qual o procedimento cautelar é dependente, mas antes o ter entendido que “(..) estando em causa uma decisão proferida no âmbito de um procedimento cautelar, cujo conteúdo se esgota na suspensão das ordens de transferência dadas pela requerida DD, não há lugar ao recurso ao processo de execução com a tramitação no Livro IV do Código de Processo Civil. As medidas adequadas à execução coerciva da providência cautelar decretada ocorrem no próprio procedimento cautelar, sendo o regime aplicável o previsto no art. 375.º do Cód. Proc. Civil”.
Vejamos, então, se a decisão faz a correcta aplicação do invocado art.º 375.º do CPC, onde se dispõe: “Incorre na pena do crime de desobediência qualificada todo aquele que infrinja a providência cautelar decretada, sem prejuízo das medidas adequadas à sua execução coerciva”.
No acórdão desta Relação de 9-06-2015, [Proc.º 963/13.6TBSJM.1.P1, Desembargadora Márcia Portela, disponível em www.dgsi.pt], sintetizou-se o entendimento ai afirmado na apreciação de questão similar, nos termos seguintes:
I - A execução das providências decretadas em sede de procedimento cautelar comum não pode ser indeferida com fundamento na existência de garantia penal da medida cautelar.
II - A garantia penal da providência, consagrada na Reforma do Processo Civil de 1995-6 — no artigo 391.º, de teor idêntico ao normativo que actualmente a prevê (artigo 375.º) — não afasta de modo algum a possibilidade de recurso a meios executivos por forma a dar efectividade à decisão.
III - A natureza provisória da decisão proferida em procedimento cautelar não é critério para afastar a sua exequibilidade. Provisoriedade e exequibilidade não se excluem reciprocamente.
Na respectiva fundamentação, elucida-se o seguinte:
[..]
A garantia penal da providência, consagrada na Reforma do Processo Civil de 1995-6 — no artigo 391.º, de teor idêntico ao normativo que actualmente a prevê — não afasta de modo algum a possibilidade de recurso a meios executivos por forma a dar efectividade à decisão.
O legislador, ao consagrar aquela garantia penal, teve, aliás, o cuidado de esclarecer que a garantia penal não impedia o recurso às medidas necessárias à sua execução coerciva.
Como referem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. II, 2.ª ed., pg. 66, em anotação ao artigo 391.º CPC revogado, de idêntico teor ao artigo 375.º CPC:
«Trata-se do recurso à acção executiva, em qualquer das suas espécies: acção executiva comum para pagamento de quantia certa (arts. 810 e ss.); acção executiva comum para entrega de coisa certa (arts. 928 a 931) acção executiva comum para prestação de facto (arts. 933-942); acção executiva especial por alimentos provisórios (arts. 1118 a 1121 A e 404-2). A ela se recorre quando a providência consiste na intimação do requerido para que realize uma prestação, positiva ou negativa, e ele não a realiza».
E bem se compreende a solução legislativa, se atentarmos à finalidade dos procedimentos cautelares.
A finalidade das providências antecipatórias ou conservatórias é remover o periculum in mora por forma a garantir a efectividade do direito ameaçado.
A tutela penal da providência é apenas mais um meio de coerção ao cumprimento da decisão cautelar, ao lado da sanção pecuniária compulsória (artigo 365.º, n.º 2, CPC), e da execução coerciva.
Ora, se a ameaça penal falhou na vertente dissuasora do incumprimento, se não foi suficiente para compelir os requeridos ao cumprimento das medidas acordadas e homologadas por sentença judicial, não faz sentido indeferir a execução destinada ao seu cumprimento coercivo com fundamento na tutela penal.
A queixa por desobediência poderá levar à punição dos apelados, mas isso em nada resolverá a situação dos apelantes, que continuarão impedidos de aceder ao prédio.
Daí a importância dos meios destinados à execução coerciva, enquanto instrumentos da eficácia da decisão: execução para prestação de facto (artigo 868.º e ss. CPC).
Estabelecido que a tutela penal da providência não obsta ao recurso aos meios executivos, importa equacionar o argumento da provisoriedade da decisão.
[..]
A natureza provisória da decisão proferida em procedimento cautelar não é critério para afastar a sua exequibilidade. Provisoriedade e exequibilidade não se excluem reciprocamente.
A providência cautelar destina-se a salvaguardar o direito ameaçado até que seja proferida decisão na acção principal, salvo ocorrendo inversão do contencioso (artigo 364.º, n.º 1, CPC). E, em princípio, mantém-se até ao trânsito em julgado da decisão que julgar improcedente a acção principal (artigo 373.º, n.º 1, alínea c), CPC).
Como escreveu Abrantes Geraldes, Temas da Reforma, III, Almedina, 3ª ed., pg. 35, [os procedimentos cautelares]
«São, afinal, uma antecâmara do processo principal, possibilitando a emissão de uma decisão interina ou provisória destinada a atenuar os efeitos erosivos decorrentes da demora na resolução definitiva ou a tornar frutuosa a decisão que, porventura, seja favorável ao requerente».
A providência cautelar decretada só será eficaz na salvaguarda do direito ameaçado se, na ausência de cumprimento voluntário, a parte dispuser de mecanismos que permitam a sua execução.
Como sublinha Abrantes Geraldes, op. cit., pg. 109,
«Atenta a urgência da situação carecida de tutela, o tribunal pode antecipar a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na acção principal e que será objecto de execução.
As medidas deste tipo excedem a natureza cautelar ou de garantia que caracteriza a generalidade das providências, ficando a um passo das que são inseridas em processo de execução para pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto positivo ou negativo. Estas providências antecipatórias não se limitam a assegurar o direito que se discute na acção principal, nem a suspender determinada actuação, garantindo-se, desde logo, e independentemente do resultado a alcançar na acção principal, um determinado efeito que acaba sempre por ter carácter definitivo».
A natureza provisória da decisão proferida no procedimento cautelar não contende, pois, com a sua exequibilidade.
Nesse sentido são oportunas as considerações de Abrantes Geraldes, op. cit., 264: «Proferida e notificada a decisão cautelar de que resulte para o requerido uma verdadeira obrigação de pagamento de quantia certa, de entrega de coisa certa ou de prestação de facto positivo ou negativo, cabe ao requerente o ónus de impulsionar o seu cumprimento coercivo. Independentemente da qualificação jurídico-processual da decisão cautelar como sentença ou como despacho, trata-se de uma verdadeira decisão judicial que, por isso, goza da garantia da coercibilidade e da executoriedade, nos termos normais, como decorre dos arts. 46.°, alª a), e 48.°.
Não encontramos justificação alguma para uma interpretação restritiva do art. 48.º, de modo a excluir dessa norma as decisões que, no âmbito de procedimentos cautelares, fixem obrigações de dare ou de facere.
Contra isto não vale argumentar com a natureza provisória das decisões cautelares. A provisoriedade não é sinónimo de inexequibilidade, como meridianamente resulta do art. 391.°. Pelo contrário, a exequibilidade das decisões cautelares que imponham imediatamente um dever de agir é condição fundamental para a sua eficácia.
E continua, a pg. 265:
Com ressalva da execução que tenha por objecto a prestação alimentícia ou relativa a arbitramento de reparação provisória (art. 404.°, n.º 2), que seguirão os termos do processo executivo especial previsto nos arts. 1118.º e segs., as demais serão tramitadas de acordo com a forma de processo comum, nos termos do art. 465.º, n.º 2, correndo, em regra, por apenso ao procedimento cautelar (art 90.°, n.º 3). “
Também Alberto dos Reis, Processo de Execução, 1.º vol., 3ª ed, pg. 116-36: defende que ao atribuir eficácia executiva às sentenças de condenação, o Código quis abranger nesta designação todas as sentenças em que o juiz expressa ou tacitamente impõe a alguém determinada responsabilidade».
Retira-se da fundamentação do Tribunal a quo ter sido entendido não ser admissível o recurso à via executiva para obter o cumprimento coercivo de decisão proferida no âmbito de procedimento cautelar, na consideração que deve decorrer “no próprio procedimento cautelar, sendo o regime aplicável o previsto no art. 375.º do Cód. Proc. Civil”. Foi nesse pressuposto que o Tribunal a quo entendeu haver erro insanável na forma de processo.
Não acolhemos essa posição. Valendo-nos das razões enunciadas na transcrita fundamentação do citado acórdão desta Relação, que merecem nossa inteira concordância, havendo incumprimento da decisão cautelar por parte da requerida e desde que aquela abrangesse os pedidos executivos formulados pelas recorridas, não haveria obstáculo a que estes recorressem à via executiva como meio processual adequado para obter o cumprimento coercivo, logo, não se configuraria erro na forma do processo, gerador da nulidade de todo o processado, como foi entendido na decisão recorrida.
Assim sendo, a decisão recorrida não pode manter-se.
Não obstante, tal não significa, só por si, que a execução deva prosseguir, o que compete ao tribunal a quo apreciar no despacho liminar a proferir nos termos do art.º 726.º do CPC.
Com efeito, importa ter presente que a providência cautelar apenas procedeu parcialmente – e nessa medida foi confirmada pelo acórdão desta Relação, de 19 de Abril de 2020- , nomeadamente, quanto ao seguinte:
-«[..] suspendo as seguintes ordens de transferência de cada uma das requerentes comunicadas pela DD, Ltd., mantendo-se a sua localização na base do … – Aeroporto do …:
− ordem de transferência da requerente AA para a base de … … constante da comunicação datada de 10 de agosto de 2020 referida no n.º 40. da fundamentação de facto;
− ordem de transferência da requerente CC para a base de …, constante da comunicação datada de 17 de agosto de 2020 referida no n.º 41. da fundamentação de facto;
− ordem de transferência da requerente BB para a base de … constante da comunicação datada de 17 de agosto de 2020 referida no n.º 42. Da fundamentação de facto.
[..]».
Por conseguinte, esses são os limites do título executivo, cumprindo ao Tribunal a quo ao proferir o despacho liminar verificar se os exequentes dispõem de titulo executivo que sirva de base a todos os pedidos executivos.
Mas para além disso, no âmbito do mesmo despacho liminar, cabe ainda ao Tribunal a quo verificar se existe de facto incumprimento do que foi decidido na providência cautelar, de modo a justificar que os requerentes recorram à execução, pedindo que lhes seja assegurado “que permanece como local de trabalho das Exequentes a base do …, Portugal (Aeroporto …)”, fundamento para depois recorrerem ao disposto no art.º 874.º n.º1, do CPT, requerendo a fixação de prazo para cumprimento e que seja determinada a aplicação de sanção pecuniária compulsória.

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso procedente, revogando a decisão recorrida e determinando que o Tribunal a quo profira despacho liminar, nos termos do art.º 726.º do CPC.

Custas a cargo das recorrentes, atento o decaimento (art.º 527.º2, CPC), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.

Porto, 17 de Janeiro de 2022
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira