Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6091/20.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAQUEL CORREIA DE LIMA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
MEIOS DE PROVA
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Nº do Documento: RP202412116091/20.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 12/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeitos do disposto nos arts. 640.º e 662.º, n.º 1, do CPC, importa distinguir, de um lado, entre as exigências da concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a)), da especificação dos concretos meios probatórios convocados (art. 640.º, n.º 1, al. b)) e da indicação da decisão a proferir (art. 640.º, n.º 1, al. c)) (cuja função é delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto ) e, de outro lado, a exigência da indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados (art. 640.º, n.º 2, al. a)).
II - Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo Recorrente, importa que os pontos de facto por si considerados incorretamente julgados sejam devidamente identificados nas conclusões, não se impondo, porém, que a identificação dos factos seja feita pela indicação do seu número ou do seu teor exacto.
III - Se a parte teve um comportamento negligente na apresentação dos meios de prova dos factos cujo ónus lhe cabia, não compete ao Juiz colmatar essa falha usando o princípio do inquisitório.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 4
Proc. 6091/20.0T8PRT.P1
ACÓRDÃO
I. RELATÓRIO (transcrição parcial do relatório da sentença)

O Autor AA instaurou os presentes autos de processo comum (que deram inicialmente entrada no Juízo local cível de Matosinhos) contra a Ré, “A..., Lda.”, pedindo que a ré seja condenada a restituir ao autor a quantia de €15.000,00, correspondente ao crédito por suprimentos que reclama, acrescido dos respetivos juros moratórios, contados à taxa legal desde a data da interpelação até efetivo e integral pagamento, e que, à data, ascendiam a € 179,18.
Para tanto alega o Autor que foi sócio gerente da Ré, desde a data da sua constituição a 07/10/1987 até ao dia 29/11/2019, data em que foram levadas a registo comercial as transmissões de quotas outorgadas entre si e os outros dois sócios da ré, bem como a renúncia à gerência por parte do autor.
Invoca o Autor o contrato de cessão das referidas quotas datado de 20/11/2019, mediante o qual cedeu as quotas de que era titular na sociedade Ré (uma no valor de € 2.250,00 a BB, e outra no valor de €18.000,00 a CC) e no qual declarou renunciar à gerência na data de celebração de tal cessão, como também foi deliberado no âmbito de Assembleia Geral Extraordinária realizada no dia 22/11/2019.
Mais alega que no dia 01/12/2015, atendendo à situação financeira difícil da sociedade ora Ré e à necessidade de financiamento da mesma para fazer face aos seus encargos correntes, o Autor emprestou à ré a quantia de € 15.000,00, a título de suprimentos, ficando a ré com a obrigação de restituir ao autor tal quantia, titulada pelo cheque que identifica. E alega, a ré utilizou efetivamente tal quantia, destinando-a à satisfação dos encargos decorrentes da sua actividade, não tendo sido fixado qualquer prazo para a restituição.
Finalmente, alega que tendo deixado de ser sócio da ré e tendo renunciado à gerência da mesma, vê-se impedido de influenciar a gestão societária ou de obter quaisquer informações relativamente à situação económico-financeira da sociedade e, por inerência, à sua solvabilidade e capacidade para lhe restituir o montante mutuado. Pelo que, notificou a ré para que procedesse à restituição da mencionada quantia, o que ainda não sucedeu.
Terminou a defender que celebrou um contrato de suprimento com a ré, que esta não cumpriu, tendo o autor direito a exigir judicialmente o seu cumprimento, por força do artigo 817.º do código civil, estando em dívida o valor da referida quantia, acrescida de juros, no total de € 15.179,18.
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Citada a ré, veio a mesma apresentar contestação, na qual começou por defender a incompetência absoluta do tribunal onde deu entrada a ação, entendendo que cabia ao Juízo de Comércio a sua apreciação e não ao Juízo cível, e que a ré deveria ser absolvida da instância.
Em relação à matéria alegada pelo autor, impugna grande parte de tal factualidade e defende que todos os valores entregues pelo autor, enquanto sócio da ré, constituíram prestações suplementares que se foram sucedendo ao longo dos anos e prestadas por si e pelos demais sócios, não existindo quaisquer suprimentos devidos pela ré ao autor, decorrendo, aliás, das contas da sociedade, que o autor é devedor e não credor daquela, o que se apuraria em sede própria.
Impugna que tenha sido celebrado qualquer contrato de suprimento entre autor e ré e que os sócios foram constituindo prestações suplementares, de forma a atribuir maior capacidade financeira à sociedade.
Mais invoca o contrato de cessão de quotas do autor, em novembro de 2019, e que nesse contrato o autor declarou “(…) abdicar do valor registado em prestações suplementares a favor dos cessionários (…)”. Pelo que, defende, o autor prescindiu, de forma expressa e reconhecida, de qualquer direito a exigir o reembolso das prestações suplementares efetuadas, se o houvesse. E, de todo o modo, as prestações suplementares apenas podem ser restituídas aos sócios quando se verificam as circunstâncias previstas no artigo 213.º, n.ºs 1 e 2 do código das sociedades comerciais (desde que a situação líquida não fique inferior à soma do capital e da reserva legal e o respetivo sócio já tenha liberado a sua quota) e tal restituição das prestações suplementares depende de deliberação dos sócios. No caso, defende que não se verificam tais circunstancialismos, pelo que também por esta via improcederia o pedido do autor.
Defende, ainda, que a conduta processual do autor é manifestamente abusiva, nos termos previstos no artigo 334.º do código civil, pois declarou expressamente que abdicava do valor registado a título de prestações suplementares e agora, de forma surpreendente, arroga-se no direito de exercer um petitório cuja falta de fundamento não pode ignorar, agindo em manifesta contradição com a conduta anterior em que a ré legitimamente confiou e que se encontra documentalmente demonstrada.
Termina a pedir que seja julgada procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, sendo absolvida a ré da presente instância. E, caso assim não se entendesse, requereu que fosse julgada improcedente a ação e absolvida a ré do pedido.
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No Juízo local cível foi proferida decisão a declarar a incompetência, em razão da matéria, daquele Juízo, para conhecer e decidir o objeto da presente ação (e competente o Juízo de Comércio) e, em consequência, decidiu-se absolver a aqui ré da presente instância.
Na sequência de tal decisão, o autor requereu a remessa do processo para o Juízo de comércio, invocando o disposto no artigo 99.º do código de processo civil.
Ouvida a ré sobre tal requerimento, a mesma defendeu que o requerido era extemporâneo, opondo-se a tal.
Foi, então, proferida decisão, ainda no aludido Juízo cível, a indeferir a remessa dos autos ao tribunal competente.
Tal decisão foi objeto de recurso, que foi julgado procedente pelo Tribunal da Relação do Porto.
Tendo o autor pago a multa a que alude o artigo 139.º, n.º 5, al. b) e n.º 6, do código de processo civil, os autos foram remetidos ao Juízo de Comércio.

Porque se ponderou a dispensa da realização da audiência prévia, foi dada a possibilidade das partes se pronunciarem sobre tal, bem como sobre questões e documentos juntos sobre os quais ainda não se tinham pronunciado, o que as partes fizeram nos termos que constam dos autos, tendo o autor, ainda, requerido que a ré juntasse aos autos os elementos contabilísticos respeitantes ao período de dezembro de 2015 até à data, designadamente IES relativas aos anos de 2016, 2017, 2018 e 2019, balancetes mensais, balancetes analíticos e balanços, bem como que juntasse aos autos o livro de actas da ré.
Notificada, veio a ré juntar aos autos tais elementos, a 19-01-2023 e, após novo requerimento do autor, veio juntar, a 31-03-2023, documentos de suporte de alguns movimentos contabilísticos, dos valores constantes das contas 26, 27 e 53, relativamente aos sócios, dos balancetes e balanços de 2015 a 2019.

Notificado de tal, o autor impugnou tais elementos, nos termos que constam do requerimento de 03-05-2023.

Pelos motivos que constam dos autos, o tribunal considerou pertinente a realização de audiência prévia.
Os ilustres mandatários requereram prazo tendo em vista a possibilidade das partes celebrarem acordo sobre o objeto do litígio. Porém, e não obstante o período de tempo decorrido, não veio a ser celebrado tal acordo.

Entretanto, veio o autor requerer, face às questões que foram suscitadas aquando da realização da audiência prévia, a ampliação do pedido que formulou nestes autos, para o caso de o tribunal entender necessário proceder à fixação de prazo para a restituição da quantia peticionada.
Foi já proferida decisão sobre tais questões suscitadas pelo autor, a entender que não estavam verificados os requisitos legais para admitir a ampliação do pedido e que o visado era formular um efetivo novo pedido que deveria, aliás, ter sido previamente apresentado, em ação própria, designadamente em ação judicial de fixação de prazo, nos termos e tramitação previstos nos artigos 1026.º e 1027.º do código de processo civil.
Na mesma decisão, foi suscitada a questão (já abordada na audiência prévia, e dada a inadmissibilidade legal de tal ampliação do pedido, de modo a permitir ao autor apresentar, naquela altura, o pedido de fixação de prazo para a ré restituir ao autor o valor a que este alude) de saber se a presente ação assume, ou não, pertinência e utilidade para as partes.
Na verdade, atendendo à alegação feita pelo autor, no sentido de ter celebrado com a sociedade ré um contrato de suprimento, haveria que ter em conta o disposto no artigo 245.º do código das sociedades comerciais, segundo o qual “1 - Não tendo sido estipulado prazo para o reembolso dos suprimentos, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 777.º do código civil; na fixação do prazo, o tribunal terá, porém, em conta as consequências que o reembolso acarretará para a sociedade, podendo, designadamente, determinar que o pagamento seja fraccionado em certo número de prestações…”. Por outro lado, de acordo com o consagrado no artigo 777.º do código civil, “1. Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela”. No entanto, prevê o n.º 2 para o qual remete o artigo 245.º do código das sociedades comerciais, “2. Se, porém, se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordarem na sua determinação, a fixação dele é deferida ao tribunal. 3. …”.
Pelo que, decidiu-se que neste caso, e resultando da alegação do autor que não tinha sido estipulado prazo para o reembolso dos “suprimentos” nem as partes estão de acordo em tal, haveria o autor de lançar mão da ação especial de fixação de prazo (havendo, inclusive, quem defenda que em causa está uma condição de procedibilidade da ação). Não tendo o autor lançado previamente mão da referida ação de fixação do prazo, não poderá exigir da ré a restituição do valor a que alude, mediante a presente ação.
Todavia, também se entendeu em tal decisão, que se constatava existir litígio, nomeadamente no que concerne ao acordo que o aqui autor alega ter celebrado com a aqui ré, e se esta tem a obrigação de restituir àquele o valor em causa, nas condições pretendidas pelo autor. Pelo que, entendeu-se que se verificava um obstáculo ao autor em lançar mão, sem mais, de uma ação judicial de fixação do prazo, pois tem sido defendido que o objeto e objetivo desta é apenas a fixação do prazo adequado a cada caso concreto, e não a discussão de qualquer litígio existente entre as partes a propósito da existência da própria obrigação subjacente (veja-se, nomeadamente, o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 27/01/2020 - processo n.º 6875/18.0T8VNG.P1).
E, assim sendo, e embora o autor não tenha concluído a pedir especificamente que se condenasse a ré a reconhecer que o contrato celebrado foi de suprimentos e que estava obrigada a restituir o valor nas condições a que alude, e que não se trata aqui de prestações suplementares, concluiu-se que tal pedido está implícito quando o autor termina a pedir que “… a presente acção ser julgada totalmente procedente, por provada, e por consequência deve a Ré ser condenada a restituir ao Autor a quantia de €15.000,00, correspondente ao crédito por suprimentos reclamado, acrescido dos respectivos juros moratórios, contados à taxa legal desde a data da interpelação até efectivo e integral pagamento, que nesta data ascendem à quantia de € 179,18, nos exatos termos peticionados”.
Ou seja, do que já foi decidido nestes autos, na presente ação não poderá ser condenada a ré a restituir ao autor a quantia a que alude, mas poderá permitir que se apure acerca do efetivo acordo celebrado entre autor e ré e as obrigações, consequentemente, assumidas, ou não, pela ré.
Os autos seguiram os seus termos com tais condicionalismos.
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Foi proferido despacho a fixar o valor da presente causa, bem como proferido despacho saneador, despacho a determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, despacho a fixar o objeto do litígio e os temas da prova, a admitir os requerimentos de prova apresentados pelas partes, e a designar data para a realização da audiência de julgamento.
Foram, ainda, apresentados outros requerimentos pelas partes e a ré reclamou dos temas da prova, pretendendo que fosse aditado um referente a alegado crédito da ré relativamente ao autor, o que foi indeferido, pelos fundamentos que constam dos autos.
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Foi realizada a audiência de julgamento, com respeito pelo legal formalismo.
A final foi proferida sentença a julgar improcedente a presente ação, instaurada pelo autor, AA, contra a aqui ré, “A..., Lda.”, absolvendo-se esta do pedido aqui formulado.

RECURSO

Não se tendo conformado com tal decisão, veio o Autor interpor recurso.
Após as alegações apresenta as seguintes CONCLUSÕES
Na perspectiva do Recorrente, consideram-se os pontos 1) a 5) da matéria de facto dada como não provada incorretamente julgados, devendo ser alterada em conformidade a resposta dada aos mesmos, no sentido de se considerarem julgados como provados.
II. O montante pecuniário entregue pelo Recorrente à Recorrida revestiu a natureza de um contrato de suprimentos prestados à sociedade, pelo qual o Autor, sócio e gerente à data, emprestou a quantia pecuniária peticionada na p.i. à Ré, com a correspondente obrigação desta última de proceder à integral restituição do montante prestado.
III. Toda a alegação da Ré ao longo do processo gira em torno da qualificação da entrega pecuniária efectuada pelo Recorrente como prestações suplementares, reconhecendo, no entanto, que o valor pecuniário foi entregue pelo Autor à sociedade e por esta recebido e utilizado.
IV. Sustenta simplesmente uma versão diferente do entendimento do Recorrente quanto à qualificação e natureza de tal atribuição, entendendo que consubstancia uma prestação suplementar de capital e não suprimentos prestados pelo Recorrente.
V. A alegação da Recorrida é manifestamente incompatível com a impugnação da factualidade relativa à entrega do montante pecuniário em causa, porquanto não é possível dizer que não corresponde à verdade que o aludido montante foi entregue e, acto contínuo, dizer que esse mesmo montante foi entregue a título de prestação suplementar e não suprimentos.
VI. Ocorre, assim, uma situação de incompatibilidade absoluta entre as premissas que estão na base dessa afirmação.
VII. Da incompatibilidade referida, extrai-se com segurança o reconhecimento da sociedade Ré quanto à entrega do montante pecuniário de € 15.000,00.
VIII. A qualificação e natureza dessa entrega constitui questão, provavelmente mais de direito do que facto, revestindo curial importância a distinção com clareza das duas realidades.
IX. Em momento algum, ao longo do processo, a entrega da quantia pecuniária e sua integração na sociedade foi sequer questionada ou colocada em causa.
X. Impugnar significa contrariar, refutar ou negar a veracidade de um facto, sendo que a tomada de posição definida perante os factos articulados na petição implica a negação dirigida a determinada espécie factual, ou a um conjunto de factos, desde que assuma um recorte definido em função da sua densidade, heterogeneidade e extensão.
XI. Quando os factos alegados pelo autor estão em oposição com o conjunto da defesa, está-se perante uma impugnação indirecta, não se exigindo na formulação actual do processo civil que a oposição seja “manifesta” bastando que, em consequência de uma interpretação razoável do teor global da contestação, o facto não expressamente impugnado deva ter-se por questionado pelo réu.
XII. Acontece que da contestação (cfr. item 19º e 20º a 29º da contestação), do requerimento de 19/01/2023 (Ref.ª citius 34489617) e dos depoimentos das testemunhas em sede de audiência de julgamento, nomeadamente os actuais sócios gerentes e o Autor, este em declarações de parte, resulta claro que a única divergência da Recorrida prende-se com a qualificação e natureza do montante pecuniário entregue pelo Recorrente e não relativamente à sua entrega à sociedade e integração nesta última.
XIII. A inobservância do ónus processual de impugnação, como sucede no caso vertente, tem como consequência dar como assente no processo determinados factos alegados pela parte contrária, através da figura da admissão, entendida como pura omissão, designada por “confissão presumida”, conceitualmente autónoma da confissão judicial espontânea em articulado (enquanto declaração de ciência expressa) - cf. Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, pág. 461 e segs.
XIV. Como consequência directa e necessária da inobservância do ónus de impugnação que deriva do artigo 574º CPC, há que considerar admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, concretamente no que respeita à prova do facto inerente à entrega do montante de € 15.000,00 pelo Autor à Ré.
XV. Reconhecendo a Ré a entrega do montante pecuniário, é irrelevante se o Recorrente juntou aos autos mais do que a cópia do rosto de um cheque para prova dos factos alegados, sendo que, em rigor, até poderia nem ter juntado qualquer elemento documental, conquanto a Ré, como de facto sucedeu, reconhecesse aquela entrega.
XVI. Se o Tribunal, ainda assim, tinha dúvidas quanto à entrega do valor pecuniário à sociedade Ré, tinha o poder-dever de oficiosamente ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade com vista à justa composição do litígio e que, neste caso, se bastaria no simples facto de oficiar, por sua iniciativa, junto da entidade bancária em questão pela informação relativa às vicissitudes daquele cheque, ou seja, se foi descontado da conta do Autor, quando e a favor de quem.
XVII Não se trata de um poder discricionário, pelo que, existindo dúvidas por parte do Tribunal, tinha este o dever de agir e, oficiosamente e por imposição legal, determinar as diligências que entendesse necessárias e pertinentes para o apuramento da verdade e boa decisão da causa.
XVIII. O princípio do inquisitório assume cada vez maior preponderância com vista à realização do verdadeiro desiderato do processo afirmado nos artigos 8.º, n.º 1 e 411.º do CPC: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.

CONTRA- ALEGAÇÕES

A recorrida veio contra-alegar, apresentando as seguintes Conclusões

1 - O Recorrente não se conforma com a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.
2 – Contudo, julgamos que tal pretensão está condenada ao insucesso.
3 - Pois que, por um lado, o recurso apresentado é inadmissível por incumprimento das exigências legais, e, ainda que assim não se entendesse, certo é que falecem os argumentos aduzidos.
Senão vejamos,
4 - O recurso não cumpre o ónus da impugnação quanto à requerida reapreciação da matéria de facto, e ainda, quanto à reapreciação do direito, não invoca as normas que entende terem sido violadas.
5 - Pelo que, deve ser o recurso rejeitado, por violação do disposto no artigo 640.º, nº 1, b) e n.º 2 a) do CPC.
6 - A não admissão do recurso quanto à matéria de facto determinará – como se crê – a improcedência total do recurso apresentado, porquanto, percorridas as conclusões de recurso verifica-se que o Recorrente não coloca em crise a aplicação do direito, realizado na sentença proferida pelo Tribunal a quo.
Sem prescindir,
7 - O Recorrente sindica a matéria que foi considerada como não provada pelo Tribunal a quo, alegando que a Recorrida não impugnou a factualidade alegada pelo Recorrente quanto ao alegado empréstimo, concluindo que o Tribunal a deveria ter dado como provada por acordo das partes.
8 - Acontece que, conforme doutamente decidido pelo Tribunal a quo, não lhe assiste razão.
9 – Pois que, da contestação apresentada pelo Recorrida – vide artigo 16.º - consta expressamente que “(…) A impugna, por falsos, deturpados ou incompletos os artigos 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 17.º, 21.º. (…)”.
10 - Desta forma, os factos foram expressamente impugnados pela Recorrida, pelo que, não ocorreu qualquer inobservância do ónus da impugnação – único argumento aduzido pelo Recorrente para fundamentar a sua pretensão.
11 - Tendo a factualidade alegada pelo Recorrente sido, expressa e declaradamente, impugnada pela Recorrida, apenas a eventual prova – pelo Recorrente – de tais alegações permitiriam considerar assentes tais factos.
12 - O que não se verificou, conforme doutamente reconheceu o Tribunal a
quo.
13 - Atento o supra exposto, e sem prejuízo da manifesta inadmissibilidade do recurso apresentado, certo é que, improcede in tottum a alegação recursiva do Recorrente.
14 - Devendo manter-se integralmente a decisão proferida pelo Tribunal a quo.

Termos em que deve o recurso apresentado ser rejeitado por inadmissível, o que expressamente se requer a esse Venerando Tribunal se digne reconhecer e declarar; Sem prescindir, caso assim não se entenda, deve ser julgado improcedente o recurso interposto pelo Recorrente e confirmada a sentença recorrida,
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, as questões a decidir prendem-se com:
Impugnação da matéria de facto:
● Erro na apreciação da matéria de facto – pontos 1 a 5 deviam considerar-se provados.
● Violação do princípio do inquisitório

Questão de direito
● Incongruência entre a impugnação da entrega do montante em causa e a afirmação de que esse montante foi entregue a título de suprimentos.

III. FUNDAMENTAÇÃO

A. OS FACTOS

Decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto controvertida.
Factos Provados:
A ré foi constituída a 07/10/1987, tendo como objeto social a “manutenção e reparação de equipamentos industriais eléctricos e electrónicos, montagem e assistência e equipamentos eléctricos e electrónicos” e o capital social inicial de € 6.000,00 que, após aumentos, se cifra atualmente em € 45.000,00.
O aqui autor foi sócio da ré desde a sua constituição e foi seu gerente desde 12-12-2003 até 29-11-2019, esta última a data em que foi registada a transmissão das quotas do aqui autor a favor dos outros dois sócios da ré na altura, bem como a renúncia à gerência por parte do autor.
A 20-11-2019 o aqui autor, na qualidade de cedente, e os outros dois sócios da aqui ré na altura, BB e CC, como cessionários, celebraram o acordo que designaram de “contrato de cessão de quotas”, mediante o qual o autor cedeu ao referido BB a sua quota no valor nominal de € 2.250,00 e cedeu ao referido CC a sua quota no valor nominal de € 18.000,00, nos termos que constam do documento junto com a petição inicial e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
No mesmo acordo aludido em c), o aqui autor declarou que renunciava ao cargo que exercia de gerente da ora ré.
No mesmo acordo aludido em c) os cedentes declararam que “a situação contributiva da sociedade perante o fisco se encontrava regularizada e que perante a segurança social apresentava uma dívida de € 42.427,67…”.
No mesmo acordo aludido em c), o sócio cedente, o aqui autor, assim como a esposa, declararam “…abdicar do valor registado em prestações suplementares a favor dos cessionários”.
A referida cessão de quotas e a renúncia à gerência foram objeto de deliberação social, no âmbito da assembleia geral extraordinária, realizada no dia 22/11/2019.
Por carta registada com aviso de receção, datada de 05/12/2019, e recebida no dia 06/12/2019, o autor interpelou a ré para que procedesse à restituição da mencionada quantia de €15.000.
A ré respondeu à comunicação aludida em h) por carta registada com aviso de receção, datada de 12/12/2019, informando estar a analisar a situação e que daria uma resposta em breve ao autor.
Com data de 07/01/2020, e recebida no dia 09/01/2020, através de advogado, o autor remeteu carta à ré, a solicitar o reembolso da quantia de € 15.000,00, nos termos que constam da cópia de tal carta junta com a petição inicial e que aqui se dão por reproduzidos.
No artigo 4.º do contrato de sociedade da aqui ré consta que “mediante deliberação da assembleia geral, poderão ser exigidas aos sócios, prestações suplementares de capital…”, nos termos ali previstos.
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Da discussão da causa não resultou provado que:
No dia 01/12/2015, e devido à situação financeira difícil da sociedade ré e a necessidade de financiamento da mesma para fazer face aos seus encargos correntes, o autor emprestou à ré a quantia de € 15.000,00.
A ré obrigou-se a restituir o valor aludido em 1) sem ter sido fixado qualquer prazo para tal restituição ou que a ré se obrigou a restituir o valor aludido em prazo acordado de seis meses e, no máximo, de um ano.
A quantia aludida em 1) é a titulada pelo cheque n.º ..., sacado sobre o banco “Banco 1..., S.A.”, conta n.º ....
Tal quantia foi disponibilizada à sociedade ré com recurso a fundos próprios do autor, encontrando-se refletida na contabilidade da ré.
A ré utilizou efectivamente tal quantia, destinando-a à satisfação dos encargos decorrentes da sua atividade.
Os valores que os sócios foram entregando à ré ao longo dos anos visavam apenas atribuir maior capacidade financeira à sociedade.

NB: bold da nossa autoria.

QUESTÃO PRÉVIA LEVANTADA PELA RECORRIDA: o recurso não cumpre o ónus da impugnação quanto à requerida reapreciação da matéria de facto, e ainda, quanto à reapreciação do direito, não invoca as normas que entende terem sido violadas, pelo que deve ser o recurso rejeitado, por violação do disposto no artigo 640.º, nº 1, b) e n.º 2 a) do CPC.

APRECIANDO
Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.

Seguiremos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-04-2023, tirado no processo 13205/19.1T8PRT-A.P1.S1, relatado pela Sr.ª Conselheira Maria João Tomé.
Pode ler-se: Para efeitos do disposto nos arts. 640.º e 662.º, n.º 1, do CPC, de acordo com a abundante jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, importa distinguir, de um lado, entre as exigências da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a)), da especificação dos concretos meios probatórios convocados (art. 640.º, n.º 1, al. b)) e da indicação da decisão a proferir (art. 640.º, n.º 1, al. c)) - que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto – e, de outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados (art. 640.º, n.º 2, al. a)) – que visa facilitar o acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação.
Enquanto a inobservância das primeiras (art. 640.º, n.º 1, als. a), b) e c)) implica a rejeição imediata do recurso na parte infirmada, o incumprimento ou o cumprimento deficiente da segunda (art. 640.º, n.º 2, al. a)) apenas acarreta a rejeição nos casos em que dificultem, gravemente, a análise pelo tribunal de recurso e/ou o exercício do contraditório pela outra parte1. (…) Recorde-se, nesta sede, que a impugnação da matéria de facto não se destina a reiterar um julgamento na sua totalidade, mas antes a corrigir determinados aspetos que o Recorrente entenda não terem merecido um tratamento adequado por parte do Tribunal a quo. Efetivamente, uma das funções mais relevantes do Tribunal da Relação consiste na reapreciação da decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto, quando impugnada, em sede de recurso, porquanto é da fixação dessa matéria que depende a aplicação do direito determinante do mérito da causa e do resultado da ação. O dever de fundamentação e de motivação crítica da prova que impende sobre o Tribunal, estabelecido no art. 607.º, n.º 4, do CPC, encontra o seu contraponto na exigência imposta ao Recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto, no respetivo ónus de impugnação. (…) Assim, ao ónus que impende sobre o Recorrente, na interposição de qualquer recurso, de apresentar a sua alegação na qual deve concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, a que se reporta o art. 639.º do CPC, acrescem os ónus previstos no art. 640.º, estabelecidos especificamente para os casos em que seja impugnada a decisão proferida pelas Instâncias sobre a matéria de facto. Porém, nas situações em que essa modificabilidade não depende da iniciativa do Tribunal da Relação (que pode fazê-la oficiosamente nos termos do n.º 2 do art. 662.º), cabe ao Recorrente que pretende ver alterada a decisão sobre a matéria de facto proferida pela 1ª instância impugná-la nos termos previstos no art. 640.º do CPC. Exige-se, pois, ao Recorrente que observe o ónus de alegação, devendo, desde logo, obrigatoriamente especificar “Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, i.e., circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento. De resto, os ónus consagrados naquele preceito encontram nos princípios da cooperação, da lealdade e da boa fé processuais a sua ratio e visam garantir a seriedade do próprio recurso interposto, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.(…) A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a firmar posição no sentido de que as especificações referidas no art. 640º, nº 1, do CPC, se bastam com a indicação no corpo da alegação, não se exigindo que tais concretizações constem das conclusões do recurso, desde que nas mesmas se identifiquem as questões controversas que o Recorrente pretende ver decididas. Como é sabido, a reforma processual de 1995/96 introduziu no nosso ordenamento jurídico-processual a possibilidade de recurso contra a decisão proferida sobre os factos, designadamente na parte em que essa decisão assentava na livre apreciação da prova por parte do julgador. Contudo, era “(…) rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto (…)” e “(…) tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”. A jurisprudência que se debruçou sobre a interpretação do art. 690º-A do CPC de 1961, depois art. 685º-B, na redação resultante do DL n.º 303/2007, de 24 de agosto, semelhantes ao art. 640.º do CPC de 2013, não prescinde da especificação, nas conclusões de recurso, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados. O CPC de 2013, no art. 640.º, consagrou com toda a clareza a necessidade dessa especificação, estabelecendo um elevado grau de exigência que visa garantir a seriedade da impugnação que é suscetível, por outro lado, de permitir ao Recorrente contribuir para a realização de uma justiça mais perfeita e eficaz. Na verdade, se um dos fundamentos do recurso é o erro de julgamento da matéria de facto, entende-se facilmente que os concretos pontos de facto sobre que recaiu o alegado erro de julgamento tenham de ser devidamente especificados nas conclusões do recurso. Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo Recorrente, importa que os pontos de facto por si considerados incorretamente julgados sejam devidamente identificados nas conclusões, pois só assim se coloca ao Tribunal ad quem uma questão concreta e objetiva para apreciar, sendo que, via de regra, apenas sobre estas se poderá pronunciar. Assim, se nas conclusões não forem indicados os pontos de facto que o Recorrente pretende impugnar, o Tribunal de recurso não poderá tomar conhecimento deles. Importa, todavia, evitar que o referido grau de exigência possa prejudicar o objetivo almejado. Efetivamente, “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; (…)”. No caso sub judice, o Recorrente não especificou corretamente os concretos pontos de facto, cuja alteração pretendia, mediante a referência explícita à designação que os mesmos mereceram na descrição da matéria de facto julgada como provada na sentença. Mas fê-lo de outro modo com clareza suficiente para a delimitação da quaestio decidendi e da respetiva solução. A lei (art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC) não impõe, nem na letra e nem no espírito, que a identificação dos factos seja feita pela indicação do seu número ou do seu teor exato. Pode considerar-se suficiente qualquer outra referenciação cuja elaboração não deixe dúvidas sobre aquilo que o Recorrente pretende ver sindicado, definindo o objeto do recurso nessa parte mediante uma enunciação suficientemente clara das questões que submete à apreciação do Tribunal de recurso. (…)
“Vem sendo entendimento deste STJ que: “1. Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta atualmente do nº1 do art. 640 do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes (e que consta atualmente do art. 640, nº 2, al. a) do CPC). 2. Este ónus de indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exata e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da ata, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento complemente tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso” - Proc. nº 233/09.4..., Ac. de 29-10-2015. “5. Nessa conformidade, enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” – Ac. STJ de 19-02-2015, Proc. nº 299/05.6... “V- O cumprimento dos diversos itens do art. 640 do CPC não constitui um fim em si, antes se perfila teleologicamente como um meio de delimitar a quaestio decidendi e respetiva solução. VI- Ao indagar da suficiência da alegação deverá tomar-se em linha de conta o princípio da proporcionalidade; trata-se de um princípio intrínseco e mesmo estruturante do Estado de direito, postulando o entendimento de que as medidas a adotar pelo juiz, nomeadamente restritivas, deverão conter-se na “justa medida” do necessário à prossecução dos fins a que vão intentadas". Ac. STJ de 6-11-2018, Proc. nº 349/14.5.... Em termos gerais, pode afirmar-se que, na sua jurisprudência, o STJ tem seguido, essencialmente, um critério de proporcionalidade e da razoabilidade, entendendo que os ónus enunciados no art. 640 do CPC pretendem garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objeto do recurso e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido, pelo que a rejeição do recurso há-de ser uma consequência adequada, proporcionada e razoável considerando a gravidade da falha do recorrente, como salienta o Ac. do STJ de 05-02-2020, no Proc. nº 3920/14.1...
Também assim se entendeu no Ac. do STJ de 18-02-2020 no Proc. n.º 922/15.4...“I - Estando em causa um direito fundamental, como o direito ao recurso na vertente da impugnação da matéria de facto, só em casos de erro grosseiro ou omissão essencial, que dificulte a compreensão do objeto do recurso e das questões a decidir, é que o recurso pode ser rejeitado por incumprimento do ónus previsto no art. 640 do CPC”.E no mesmo sentido, se pronunciou o Ac. do STJ de 14-02-2017, Proc. nº 1260/07.1..., segundo o qual apenas podem conduzir à rejeição liminar e imediata do recurso violações grosseiras, por exemplo, uma omissão absoluta e indesculpável do cumprimento do ónus contido no artigo 640 do CPC, que comprometa decisivamente a possibilidade do Tribunal da Relação proceder à reapreciação da matéria de facto. Está essencialmente em causa o incumprimento do ónus de alegação, previsto no art. 640 do CPC, relativo à impugnação da decisão da matéria de facto, nomeadamente no que concerne à não enunciação (não identificação) dos concretos pontos de facto que a apelante considera incorretamente julgados. (…) - O acórdão do STJ de 21-03-2019 no Proc. n.º 3683/16.6... refere: “I - Para efeitos do disposto nos arts. 640 e 662, n.º 1, ambos do CPC, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. a), b) e c) do n.º 1 do citado art. 640.º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do n.º 2 do mesmo art. 640.º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. II - Na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado art. 640, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. III - Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no n.º 1, als. a), b) e c) do referido art. 640 implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o n.º 2, al. a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso”. - Acórdão do STJ de 26-03-2019, no Proc. n.º 659/11.3... refere: “III - Muito embora se possa admitir a não exigência de reprodução nas conclusões dos demais elementos, referidos no n.º 1 do art. 640.º do CPC, o mesmo já não sucede em relação à indicação dos concretos pontos da matéria de facto sobre os quais incide a impugnação – os quais, sob pena de rejeição, deverão ser mencionados nas conclusões”. E no mesmo sentido os acórdãos: -Acórdão do STJ de 08-01-2019, Proc. n.º1601/16.0T8STS-A-P1.S2; Acórdão do STJ de 08-01-2019, Proc. n.º 1601/16.0T8STS-A-P1.S2; Acórdão de 31-01-2019, Proc. n.º 2344/16.0T8PNF.P1.S1; Acórdão do STJ de 19-02-2019, Proc. n.º 7223/12.8TBSXL.L1.S1; Acórdão do STJ de 19-03-2019, Proc. n.º 3505/15.5T8OER.L1.S1; Acórdão do STJ de 30-05-2019, Proc. n.º 23040/16.3T8LSB.L1.S1; Acórdão do STJ de 19-06-2019, Proc. n.º 7439/16.8T8STB.E1.S1; Acórdão do STJ de 11-07-2019, Proc. n.º 9696/15.8T8VNG.P1.S1; Acórdão do STJ de 08-10-2019, Proc. n.º 581/15.4T8ABT.E1; Acórdão do STJ de 27-09-2018, Proc. nº 2611/12.2TBSTS.L1.S1.”7.” Nb: bold da nossa autoria.

Não se compreende esta questão levantada pela Recorrida.
O Recorrente, nas conclusões do recurso, indica expressamente quais os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados.
Assim, cfr. Ponto I. “Na perspectiva do Recorrente, consideram-se os pontos 1) a 5) da matéria de facto dada como não provada incorretamente julgados, devendo ser alterada em conformidade a resposta dada aos mesmos, no sentido de se considerarem julgados como provados.”
Nas alegações, de forma inequívoca, refere quais os meios probatórios que impunham decisão diversa e qual a decisão a proferir- cfr. fls. 5 a 11 do recurso.

No que respeita às normas jurídicas violadas, diz o Recorrente que na decisão em crise houve inobservância do ónus de impugnação que deriva do artigo 574 CPC e do princípio do inquisitório afirmado nos artigos 8.º, n.º 1 e 411.º do CPC: o apuramento da verdade e a justa composição do litígio.

Conclui-se que o Recorrente cumpriu de forma correcta o ónus em causa, não se verificando o invocado fundamento para o não conhecimento do recurso.
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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Passemos, assim, à análise da questão em concreto relativa ao erro na apreciação dos factos 1 a 5 considerados provados.
Este tribunal de recurso ouviu toda a prova produzida em audiência e analisou os documentos juntos, tendo concluído de forma idêntica à que chegou o Tribunal a quo.
Na verdade, a Srª Juiz motivou, de forma exemplar, a decisão que tomou relativamente aos factos.
Escreveu a mesma: “Relativamente à matéria que se deu como não provada, designadamente nos pontos 1) a 5), alegada pelo autor (quer quanto ao empréstimo em causa, na data em que refere, titulado pelo cheque a que alude, bem como o acordo que concretamente esteve subjacente a tal entrega do valor, por que prazo, a invocada obrigação assumida pela ré de restituir aquela quantia e o destino dado ao montante em causa), tal ficou a dever-se à manifesta insuficiência da prova produzida para dar como assente tal factualidade.
Com efeito, para prova de tal matéria, e para além das declarações do próprio autor e da esposa, a quem também pertenceria tal quantia (pois referiram que se tratava de dinheiro comum do casal e saído de conta de ambos) e com óbvio interesse em confirmar a própria alegação do autor, apenas foi junta aos autos a cópia do rosto de um cheque, datado de 01-12-2015, e que foi junta com a petição inicial.
A ré impugnou tal matéria, inclusive que na data aludida pelo autor e nas demais circunstâncias aludidas por este, tivesse sido emprestado o valor em causa à ré, com a obrigação desta o restituir. E, por sua vez, os atuais legais representantes da ré não confirmaram a versão do autor, inclusive que tivesse sido entregue o concreto valor em causa, na data aludida pelo autor, pelos motivos a que este se refere, o destino dado, e com a obrigação da ré restituir tal valor (tanto mais face ao teor do contrato de cessão das quotas do autor, em que este declara abdicar do valor registado em prestações suplementares a favor dos cessionários).
O autor não juntou aos autos quaisquer elementos que suportassem a sua versão de empréstimo à ré do concreto montante aqui em causa, na data indicada pelo autor e destino dado (sendo que por todos foi dito que ao longo dos anos foram sendo entregues diversos valores, por vários dos sócios, alguns que já não estão sequer na sociedade, não resultando claro se estavam a falar dos aumentos de capital, de prestações suplementares ou suprimentos, nomeadamente).
Pelo autor não foi, sequer, junto aos autos os documentos comprovativos de ter sido efetivamente descontado o valor titulado pelo cheque a que se refere o autor e depositado em conta da ré, nem sequer a junção de cópia integral do cheque e, essencialmente, como se disse, que o mesmo foi descontado de conta do autor (ou conta titulada também pela esposa, como referiu) para entrar em conta da ré, com o extrato, na parte do período que releva, de tal conta do autor.
Sem esses elementos e perante a impugnação da ré, não há qualquer elemento objetivo que corrobore a versão do autor, não sendo possível concluir nos termos por aquele alegados.
Veja-se que toda a documentação junta aos autos para se tentar aferir da entrada de valores dos vários sócios à ré, do valor aqui em causa e do destino dado, foi junta pela ré, a 19-01-2023 e a 31-03-2023, mas os mesmos não se revelam suficientes para concluir em qualquer dos sentidos alegados.
O autor, como se disse, não juntou aos autos qualquer elemento relevante nessa parte, limitando-se a juntar cópia do rosto de um cheque (sem sequer se perceber as vicissitudes que possa ter sofrido e sem qualquer prova de ter sido descontado, em que data, e a favor de quem, sendo que de tal cheque consta uma data que não corresponde a nenhuma das que constam dos elementos contabilísticos da ré como entradas de valores).
Com efeito, os elementos juntos pela ré a 19-01-2023 e a 31-03-2023 (balancetes analíticos, balanços e as IES da sociedade), não permitem concluir que tenha dado efetiva entrada o valor titulado pelo cheque, na data invocada pelo autor, em conta da sociedade ora ré, nem os motivos de tal entrega, nem o destino dado.
Da análise de tais elementos juntos pela ré, não é possível concluir a origem dos financiamentos obtidos pela sociedade, da caixa e depósitos bancários. Só a análise dos elementos de suporte da contabilidade, designadamente os relativos às entradas de valores em contas da sociedade e o percurso que tiveram na mesma permitiriam concluir pela efetiva existência de crédito ou débito a favor do aqui autor (sendo que a ré invoca até um crédito a seu favor, por assim constar do balancete geral a que aludiu).
Por outro lado, a ré evidenciou que da análise dos elementos contabilísticos resulta que no balancete de novembro de 2019, na conta ... e na conta ..., estão registadas, em nome do autor o valor de €10.714,86, a título de prestações suplementares. E que, no balancete de janeiro de 2022, cumprindo os termos acordados na cessão de quotas, as prestações suplementares foram distribuídas pelos restantes sócios da ré, atendendo a que o autor declarou que abdicava do valor das prestações suplementares.
O autor impugnou tais elementos e a qualificação jurídica que a ré pretendeu retirar do que consta de tais elementos contabilísticos.
Porém, como se disse, não há outros documentos de suporte que permitissem concluir noutro sentido, designadamente no do alegado pelo autor, pois este não juntou a necessária prova documental, sendo certo que no contrato de cessão de quotas que celebrou, consta expressamente o autor a declarar que abdicava do “valor registado em prestações suplementares a favor dos cessionários…”.
Ora, o que consta registado em contabilidade são as aludidas prestações suplementares e em valor que não corresponde ao invocado pelo autor nestes autos.
Pelo que, se é verdade que aqueles elementos contabilísticos, por si só, não permitem qualquer qualificação jurídica, certo é que também não corroboram a versão do autor.
Acresce que se o autor ficou a declarar que prescindia das prestações suplementares registadas (e seria o autor enquanto foi sócio gerente da ré que acompanhava a contabilidade, remetia os elementos a tal referentes e sabia do seu estado como foi referido por todos), é porque entendia ou sabia que existiriam prestações suplementares, sob pena de tal declaração não fazer qualquer sentido.
Também quanto ao facto 6) que se deu como não provado, tal ficou a dever-se à contradição da prova produzida nessa parte, designadamente com os depoimentos de parte e as declarações de parte prestados em audiência.
E, vendo com mais detalhe os depoimentos, declarações de parte e depoimento da testemunha (próximo a um depoimento de parte, pois também a esposa do aqui autor poderia ter essa qualidade), resultou que:
Por CC (que já era sócio da ré na altura em que o autor “saiu” da sociedade e que atualmente é um dos legais representantes da ré) foi referida a altura em que o autor disse que queria sair da sociedade (em que até houve um episódio com alguma violência por parte do autor), após um período em que esteve doente, sendo que até tal período de doença era o autor quem fornecia os elementos para a contabilidade, confiavam nele, que já estava antes dele na sociedade (a área do depoente é engenharia eletrotécnica). O depoente nunca tinha tratado de nada relacionado com a contabilidade, desconhecendo os concretos valores entrados e se efetivamente os sócios tinham entrado com os valores que iam sendo referidos como necessários para fazerem um investimento mais forte e melhorar o capital da sociedade, não sabendo dizer se eram aumentos de capital, etc., até porque nem sabia dizer que valores entraram, se é que entraram, porque não era ele que tratava desses assuntos, referindo ser o autor que tratava.
Do concreto valor a que alude aqui o autor, disse, pois, que não sabia se entrou efetivamente o valor, e que já tinha sido referido ao longo dos tempos que outros sócios também tinham entregue valores à sociedade, referindo-se ao Eng. DD, em tempos mais recuados, e que o sócio “BB” também teria entrado com o valor de € 25.000,00, sem que tivessem sido devolvidos. Teria sido numa altura em que “estavam a tentar abordar o mercado para ter obras maiores. Estavam a tentar melhorar a sociedade”. Porém, não foi ver para trás, designadamente no período a que alude o autor, se aquele valor do cheque tinha entrado em conta da sociedade e naquele período só o autor é que “falava” com a contabilidade.
Não soube dizer se os valores que teriam sido entregues seriam restituídos aos sócios ou o destino a dar, limitando-se a referir que seria “para melhorar a sociedade”, não revelando ter conhecimento dos concretos valores efetivamente entrados, o seu destino, os motivos de tais entradas e eventual restituição.
Em relação ao teor do contrato de cessão de quotas e o que pudesse ter sido falado para além do que do mesmo consta, referiu que a única coisa que o autor referiu que queria era receber o mês que trabalhou, acha que de setembro desse ano, não queria mais nada, e que se ia embora. E que, para além da reunião que teve com os outros dois sócios para dizer que queria sair da sociedade, o autor foi lá para falar com a contabilidade e para se fazer e ler o contrato para sair da sociedade. Não se queixou nem reclamou ouros valores na altura.
Disse, ainda, que desde que está na sociedade como sócio nunca recebeu quaisquer lucros, apenas os salários, que nunca estiveram por pagar, pelo menos os dele sempre foram pagos, assim como nunca teve conhecimento que a sociedade estivesse com falta de liquidez.
O outro sócio gerente da sociedade, BB, também declarou não se recordar de ter entrado o valor a que alude o autor, até porque aquele não tinha acesso às contas. O depoente referiu que anda sempre nas obras e quem sempre tratava da contabilidade era o autor, até sair da sociedade.
Pelo que, afirmou, não sabe do cheque aqui invocado, se o valor entrou para a sociedade nem o destino dado.
Referiu-se aos valores que o próprio entregou à sociedade, bem como um anterior sócio, Eng. DD, referindo que entravam com os valores consoante as necessidades do mercado, e já nem as entradas dele conseguia precisar, embora a última vez tenha sido de € 25.000,00, referindo que tais entradas serviam para “mostrar a imagem da sociedade”.
Mais afirmou que não acordavam nada quando entregavam tais valores, que referiu serem “para reforçar o capital”, não se percebendo que concretos acordos eram celebrados entre os sócios. Disse o depoente “que cada um podia reforçar o capital que entrava” e que mesmo após o autor ter saído da sociedade já fez um reforço de capital. E, referiu, como a empresa ainda não tem lucros, porque há dívidas por pagar, nem se tem preocupado em saber se um dia vai reaver o valor (!) e acha que mesmo que vá para a reforma e deixe a sociedade, não irá receber os valores que entregou, até porque quando entrou para a sociedade também não teve que pagar a sua quota, assim como não têm sido pagas as quotas por outros sócios que foram entrando (não obstante ser esta a primeira e fundamental entrada de dinheiro na sociedade por cada um dos sócios).
Em relação ao que pudessem ter falado sobre os termos do contrato de cessão de quotas, referiu que não falaram de nada, nem do que era suposto receber. E antes do contrato, quando reuniram, a pedido do autor, que queria sair da sociedade, o autor só falou em receber o salário que faltava, e um telemóvel, que era recente, e talvez também um subsídio de férias, sem ter a certeza. Disse que nem sabia o que são prestações suplementares (nem suprimentos) e que antes do contrato de cessão não falaram nada sobre isso, assim como manteve que não sabe dos € 15.000,00 a que se refere o autor, e se entrou efetivamente tal valor na sociedade, até porque raramente está na sociedade, por estar sempre nas obras.
Em declarações de parte, o autor referiu-se aos litígios agora existentes entre si e os outros sócios (a que também os outros se referiram), e confirmou o que alegou na petição inicial, que fez o empréstimo, no final de 2015, à sociedade, por necessidade de tesouraria da empresa na altura. Foi para pagar a fornecedores, salários em atraso, subsídios de natal, ao Estado, e que” tudo podia ser confirmado com as contas da empresa” (sendo certo que não foi indicado para depor qualquer contabilista da empresa, nem foram requeridos outros elementos sobre a entrada do valor). Referiu que a empresa necessitava de um empréstimo de € 45.000,00, mas não o obteve da banca, porque a empresa tinha muitas dívidas. Por isso, ele emprestou à sociedade os € 15.000,00 e o sócio BB € 25.000,00 (que não atinge o valor que o autor referiu ser o necessário), sendo que o sócio CC não teve para emprestar. Esse dinheiro seria restituído o mais brevemente possível e no máximo num ano (referiu seis meses e no máximo de um ano, sendo que, nesta parte, na petição inicial o autor tinha referido que não tinha sido fixado qualquer prazo e que a longa permanência do valor na sociedade indiciaria que se tratava de suprimentos).
Mais referiu que os sócios sempre fizeram vários empréstimos ao longo dos tempos e sempre foram restituídos os valores aos sócios pela sociedade.
Ora, também nesta parte, não faz grande sentido que se sempre houve valores emprestados e restituídos pela sociedade em curto período de tempo, porque é que este valor em concreto nunca foi restituído ao autor, que até acompanhava a contabilidade, durante os quatro anos posteriores em qua ainda se manteve na sociedade.
Por outro lado, pelo sócio BB foi dito que os valores que entregou e que um outro sócio tinham entregue nunca foram restituídos.
Também em relação aos motivos da entrega de tal valor, referiu o autor que não foram os invocados pelos outros sócios, que não foi para aumentar a capacidade da sociedade, porque esta capacidade vê-se pelo valor do alvará (o deles era de classe um, mas depois acha que aumentaram, mas não sabia precisar) e pelas certidões de não dívidas ao Estado.
Referiu, ainda, que o valor a que alude ficou refletido na contabilidade e que quando houve cessão de quota foram ter ao gabinete do contabilista, e disse que ainda faltava pagar-lhe 15.000,00. Porém, como se disse, tal valor não se encontra refletido na contabilidade, nem nesses termos.
Também ele se referiu ao facto de não haver efetiva entrega do valor das quotas (e que na altura da cessão também não recebeu o valor das quotas) nas alterações de sócios (embora referindo que quando entrou o sócio BB entrou com valor, não se percebendo a que título, se valor da quota, se entrada de capital a outro título) e que quando se fala em aumento de capital, nunca entregavam valor efetivamente, saía das reservas.
A testemunha EE, como se disse, esposa do autor e a quem pertenceria, também, o valor em causa, apenas confirmou que o valor saiu de “conta conjunta” e que o autor lhe disse que a sociedade estava com dificuldades, mas com a expectativa de receber num prazo de seis meses a um ano. Porém, a própria referiu que só falava com o marido sobre esses assuntos e nem se lembrava se na altura em que assinou o contrato de cessão estavam ou não outras pessoas.
Assim sendo, tais depoimentos, e na ausência de outra documentação, nos termos já acima aludidos, são manifestamente insuficientes para se dar como assente a matéria supra aludida que, por isso, se considerou não provada.” Nb: bold da nossa autoria.

Na verdade, quer CC (sócio da Ré), quer BB, sócio e actualmente gerente, fizeram um relato da forma como funcionava a sociedade. O Autor era o homem da contabilidade e eles os que estavam no terreno.
Daí que se compreenda a forma como depuseram, demonstrando um desconhecimento de todas as questões relativas à parte financeira da sociedade.
Diz o Recorrente que os depoimentos de testemunhas e os depoimentos de parte dos sócios gerentes da Ré são relevantes para dar como provados os factos impugnados.
Cita partes dos depoimentos/declarações. Porém, ignora outros segmentos que são de extrema relevância.
Assim, relativamente a CCa área dele é engenharia eletrotécnica. Não acompanhava a parte da contabilidade. Quem tratava da contabilidade era o Sr. AA em quem sempre confiou. A cessão de quotas foi antecedida por um problema de saúde por parte do Autor. Nessa altura – 2019 – teve um código de acesso às contas bancárias.
Não conseguiu verificar se o cheque entrou na empresa. Na conta do banco não consegue ver. Nunca pediu à empresa de contabilidade que verificasse se existia ou não o cheque. Não sabe se aquele valor entrou. Nunca teve acesso às contas, mas sabe que não houve ordenados por pagar. Havia falta de liquidez? Não sabe. Só o A. é que sabia. Lembra-se de, aquando da cessão de quotas, o A. ter declarado que queria receber o mês que tinha trabalhado (Setembro) e que não queria mais nada. Nunca falou em qualquer valor que estivesse em dívida.”
BB - Não se recorda da situação dos 15.000. Não tinha acesso à contabilidade. Quem sempre tratou da contabilidade foi o A. O A quando se foi embora só pediu o dinheiro do mês de Agosto ou Setembro e queria ficar com o telemóvel e o subsídio de férias. Não queria mais nada.”

Consideramos que o depoimento do actual sócio gerente é de certa forma displicente pois, assumindo agora funções de gestão, continua a demonstrar não ter conhecimentos do que se passa em termos contabilísticos.
Porém, não podemos esquecer quais eram os factos controvertidos a apurar e constituíam os temas da prova:
1) Se o autor entregou à ré a quantia de € 15.000,00, a 01-12-2015, com recurso a meios próprios do primeiro.
2) Se a ré assumiu a obrigação de restituir ao autor a quantia aludida em 1).
3) Dos motivos subjacentes e objetivos visados com a entrega do referido valor pelo autor à ré.
4) Do destino que foi dado pela ré ao referido valor.
5) Se o autor já solicitou à ré, por que forma e em que datas, a restituição do valor aludido em 1).

A simples leitura destes permite, desde logo, concluir que a prova dos factos essenciais cabia ao Autor e este não cumpriu esse ónus.
Não demonstrou a entrega do dinheiro em causa – junta uma cópia de um cheque, apenas do rosto, não demonstrando que o dinheiro saiu da sua conta (e da mulher), nem que entrou na conta da sociedade.
Esta prova não se faz com declarações de parte e com o testemunho do cônjuge. Exigia-se prova documental que, a existir, seria facilmente junta pelo Autor.
A documentação junta pela Ré é inconclusiva. Não se consegue relacionar a alegada entrada dos 15.000 com os elementos contabilísticos de onde resulta a entrada de capitais.
Os elementos objectivos juntos ao processo não corroboram a versão do Autor. Pelo contrário, infirmam-na. Veja-se que no balancete de Novembro de 2019, na conta ... e na conta ..., estão registadas, em nome do Autor o valor de €10.714,86 a título de prestações suplementares e que no balancete referente a Janeiro de 2022 essas prestações foram distribuídas pelos restantes sócios, corroborando o que constava da escritura de cessão de quotas.
Pese embora o Autor ter impugnado estes elementos, a verdade é que não se compreende como não arrolou o contabilista como testemunha.

Não se fazendo prova, sequer, da entrega do montante em causa, torna-se inócua a prova dos restantes temas, não obstante se ter dado como provado o pedido de restituição por parte do Autor, afirmação essa que, isoladamente, não permite concluir nos termos pretendidos por este.

Deste modo e em conclusão, entende este tribunal de recurso não existir qualquer fundamento para a alteração da matéria de facto dada como não provada na decisão em crise.

Por último, alega o Autor que “se o Tribunal tinha dúvida quanto à entrega do valor pecuniário à sociedade Ré, tinha o poder-dever de oficiosamente ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade com vista à justa composição do litígio e que, neste caso, se bastaria no simples facto de oficiar, por sua iniciativa, junto da entidade bancária em questão pela informação relativa às vicissitudes daquele cheque, ou seja, se foi descontado da conta do Autor, quando e a favor de quem. (…) Correlativamente, verificou-se um reforço do princípio inquisitório no plano da instrução (art. 411º do CPC). Sobre o juiz, impende o poder-dever de, uma vez determinado o objeto do litígio (art. 596º, nº 1, do CPC), ir em busca da verdade material, apreendendo não só todos os factos instrumentais que brotem da instrução - art. 5º, nº 2, a), do CPC -, os factos notórios - artigo 412º, nº 1, do CPC - e os factos de que tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções - art. 412º, nº 2, do CPC -, mas também “os factos que sejam complementares ou concretizadores dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar” (art. 5º, nº 2, b), do CPC)»

VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Quanto a esta violação do princípio do inquisitório que o A. imputa à Sr.ª Juiz, citamos o Acórdão da relação de Évora de 29-09-2022, tirado no processo 6613/18.7T8STB-C.E1 onde se escreve “ O princípio do inquisitório, constante no Código de Processo Civil, não pode ser analisado isoladamente, devendo ser interpretado de acordo com as limitações inerentes aos princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilização das partes, razão pela qual aquele apenas deve operar no âmbito em que estes não sejam de aplicar. III – Assim, o juiz apenas deve recorrer ao princípio do inquisitório, quanto a meios de provas, se, de algum modo, a não apresentação desses meios de prova pela parte que deles beneficia não resulte de um comportamento negligente dessa parte.” E o Acórdão da Relação do Porto de 12-09-2022, tirado no processo 866/20.8T8VCD-A.P1O princípio do inquisitório, quando confere ao juiz a faculdade de fundar a sua decisão em factos não alegados pelas partes, ou quando lhe permite proceder oficiosamente à realização e recolha de provas (artigo 411.º do CPCivil), não conduz a que o juiz tenha que se substituir às partes, no que se refere à alegação da factualidade essencial, integradora da causa de pedir, ou no que se refere à recolha de prova pela qual as partes não curaram de diligenciar.”

Improcede, também, o recurso nesta parte.

B. DIREITO

Diz o Recorrente que “a alegação da Ré é manifestamente incompatível com a impugnação da factualidade relativa à entrega do montante pecuniário em causa. Não é possível dizer, por um lado, que não corresponde à verdade que o aludido montante foi entregue e, por outro, dizer que esse mesmo montante foi entregue a título de prestação suplementar e não suprimentos. Não pode a Ré impugnar a entrega do montante pecuniário e afirmar no mesmo ato que esse montante foi entregue a título de prestação suplementar e não suprimentos. Como diz o ditado, “não se pode ter sol na eira e chuva no nabal.” Desta incompatibilidade há algo que se pode extrair com segurança: a confissão da sociedade Ré quanto à entrega do montante pecuniário de € 15.000,00.”

APRECIANDO
Para podermos analisar correctamente a questão colocada pelo recorrente não podemos deixar de transcrever parte da contestação.
Assim:
“III) Da defesa por impugnação
15.º A Ré aceita o alegado pelo Autor na Petição Inicial nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 15.º, 16.º.
16.º A Ré impugna, por falsos, deturpados ou incompletos os artigos 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 17.º, 21.º.
17.º Os restantes artigos, por assumirem teor meramente jurídico, ou se limitarem a emitir conclusões, não serão suscetíveis a impugnação, dando-se por impugnadas as consequências que dos mesmos o Autor pretende retirar.
Isto posto,
18.º Vem o Autor alegar que efetuou suprimentos à Sociedade aqui Ré.
Sucede que,
19.º Todos os valores entregues pelo Autor, enquanto sócio da Ré, constituíram prestações suplementadas que se foram sucedendo ao longo dos anos.
20.º Aliás, prestadas por si e pelos demais sócios.
21.º Não existem, pois, quaisquer suprimentos devidos pela Ré ao Autor,
22.º Sendo certo que, decorre das contas da Sociedade que o Autor é devedor e não credor desta, o que se apurará em sede própria.
Na verdade,
23.º A constituição de suprimentos depende da celebração de contrato entre o sócio e a sociedade que determine “(...) o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência (…)”.
24.º Contrato este que jamais foi celebrado entre o Autor e a Ré.
25.º Não existem, pois, quaisquer suprimentos constituídos pelo Autor.
26.º Sendo que, nem sequer vem alegado a obrigatoriedade da Sociedade devolver quaisquer montantes que houvessem sido recebidos a tal titulo (o que competia ao Autor nos termos do artigo 342.º, nº 1 do CC).
27.º Quanto à caracterização das prestações suplementares esclarece a nossa jurisprudência que “(…) as prestações suplementares (art.ºs 210.º a 213.º do CSCom.), que têm natureza distinta dos suprimentos – estes são vistos como empréstimos à sociedade ou, pelo menos, negócios jurídicos equiparáveis, a que são aplicáveis as regras respetivas –, constituem atribuições em dinheiro determinantes de um implemento do património social, incrementando o capital (o chamado “capital flutuante”, embora diferenciado do capital social fixo, restituível quando desnecessário, sem vencimento de juros) (…)” (in Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de março de 2017, processo 698/09.4TBLSA-Z.C1, disponível em www.dgsi.pt).
28.º Aliás, o contrato de sociedade da Ré prevê expressamente a possibilidade de serem exigidas aos sócios prestações suplementares (cf. documento 1 que se junta) em cumprimento do disposto no artigo 210.º, nº 1, 2 e 3 do CSC.
29.º O que aliás estes sempre efetivaram nas inúmeras vezes que constituíram prestações suplementares, assim atribuindo maior capacidade financeira à sociedade.
30.º Pois que, estas prestações suplementares também funcionam como atos de capitalização da sociedade.
Isto posto,
31.º Conforme resulta do contrato de cessão de quotas o Autor, em novembro de 2019, cedeu a quota que detinha na Ré
32.º Sendo que, no mesmo ato, o Autor declarou “(…) abdicar do valor registado em prestações suplementares a favor dos cessionários (…)”.
33.º Desta forma, o Autor prescindiu, de forma expressa e reconhecida, de qualquer direito a exigir o reembolso das prestações suplementares efetuadas, se o houvesse.
Acresce que,
34.º Ainda que tal não tivesse ocorrido, certo é que as prestações suplementares apenas podem ser restituídas aos sócios quando se verificam as circunstâncias previstas no artigo 213.º, nº 1 e 2 do CSC.
35.º Ou seja, as prestações suplementares só podem ser restituídas aos sócios desde que a situação líquida não fique inferior à soma do capital e da reserva legal e o respetivo sócio já tenha liberado a sua quota.
36.º E ainda a restituição das prestações suplementares depende de deliberação dos sócios.
37.º Ora, in casu, não se verificam tais circunstancialismos pelo que também por esta via improcederia o petitório do Autor.”

Parece-nos claro que não há qualquer incongruência na alegação da Ré efectuada na contestação.
A Ré impugna que o Autor tenha entregue os 15.000 referidos, em concreto, na petição inicial.
De seguida, nos artigos 17º a 37º da contestação, esclarece que durante o tempo em que o Autor foi sócio da sociedade, as quantias entregues foram sempre a título de prestações suplementares (não existem suprimentos efectuados pelo Autor), prestações essas relativamente às quais prescindiu de qualquer direito a exigir o reembolso.

Não podemos, pois, concordar com o Recorrente.
A Ré não confessa a entrega do valor dos €15.000. Diz, sim, confessando, que o Autor fez entregas de dinheiro durante o tempo em que esteve ligado à sociedade, mas não aqueles 15.000.
Ora, as consequências que o Autor pretendia retirar desta confissão não têm acolhimento legal.
O Autor, no articulado de 02.02.2022 a propósito do despacho que o notifica da pretensão de dispensar a audiência prévia, diz o seguinte “ Assim, se a Ré afirma com tanta certeza que aquelas prestações, efetuadas por todos os sócios, revestiram a natureza de prestações suplementares, é de exigir que a mesma se digne demonstrar e juntar aos autos tais elementos probatórios, nomeadamente a ata de assembleia geral da sociedade de onde resulte tal deliberação, que comprovem que a sociedade deliberou exigir as ditas prestações a todos os sócios, e que as mesmas foram prestadas.”
Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07.03.2024, tirado no processo 2937/19.4T8PTM.E1 “1. A confissão simples (admissão de um facto desfavorável ao confitente e favorável à parte contrária) tem força probatória plena. 2. A confissão qualificada ou complexa (reconhecimento de factos desfavoráveis ao confitente, à qual são aditados factos ou circunstâncias desfavoráveis à parte contrária) só faz prova após a parte contrária se pronunciar. 3. Nessa pronúncia, a parte pode prescindir da confissão (deixando a confissão de ter força probatória plena, ficando sujeita à livre apreciação), aceitar a confissão, bem os factos e circunstâncias que lhe são desfavoráveis (abrangendo a força probatória plena da confissão todos os factos) ou declarar que pretende aproveitar a confissão e provar a inexatidão dos factos e circunstâncias que lhe são desfavoráveis (ocorrendo, nesse caso, uma inversão do ónus de prova em relação aos factos desfavoráveis que passam a estar a seu cargo). 4. No caso dos autos, não tendo o Autor aceite a confissão parcial dos Réus e tendo impugnado os factos alegados na reconvenção, que lhe são desfavoráveis, a confissão não tem força probatória plena, sendo livremente valorada pelo tribunal.”

Deste modo e em conclusão, improcede, na totalidade, o recurso interposto pelo Autor.

III. DECISAO

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso totalmente improcedente e em consequência confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.
Registe e notifique.
DN

Porto,11 de Dezembro de 2024.
Raquel Correia de Lima
Anabela Dias da Silva
Márcia Portela

(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
Por expressa opção da relatora, não se segue o Acordo Ortográfico de 1990.