Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1615/24.7T8STS-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MIRANDA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INCUMPRIMENTO DO DEVER DE APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP202510281615/24.7T8STS-C.P1
Data do Acordão: 10/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na qualificação da insolvência como culposa, decorrente do incumprimento do dever de apresentação à insolvência, a lei exige a prova de que essa omissão agravou esse estado, no período suspeito, ou seja, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
II - Não tendo sido demonstrado o nexo de causalidade entre a inobservância desse dever e o agravamento da insolvência, a insolvência é fortuita.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1615/24.7T8STS-C.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunto: João Ramos Lopes

Adjunto: Rodrigues Pires


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO

A sociedade “A...-UNIPESSOAL, LDA.”, com sede na Rua ..., Nº ..., R/C Dto, ..., ... – Gondomar, foi declarada insolvente, por sentença de 12.08.2024, não tendo sido deduzida oposição.

A credora “B..., LDA.”, com fundamento na falta de apresentação à insolvência, requereu a qualificação da insolvência como culposa.

O Ex.mo Sr. Administrador da Insolvência requereu a qualificação da insolvência da sociedade como culposa e a afetação do gerente AA, com a concordância do Ministério Público.

Por terem sido considerados citados e não terem apresentado oposição proferiu-se, em 14/02/2025, o seguinte despacho:

“Tendo sido cumprido o art.º 188.º, n.º 9 do CIRE, os requeridos não contestaram o presente incidente, sendo entendimento do Tribunal que a falta de contestação implica a confissão dos factos em causa no incidente de qualificação de insolvência, ao abrigo do disposto no art.º 567.º do CPC ex.vi dos artigos 188.º, n.º 11, 136.º e 17.º do CIRE, e cumprido o disposto no seu n.º 2, o Tribunal proferirá sentença.

Pelo exposto, nos termos do disposto no art.º 567.º, n.º 1 do CPC ex vi art. 17.º do CIRE, declaro confessados os factos indicados no requerimento inicial da credora B... LDA (referência 50233913), e nos pareceres do Sr. Administrador da insolvência (referência 50786867) e do Ministério Público (referência 466964925).

Cumpra o disposto no n.º 2 do art.º 567.º do CPC.

Notifique.

(…)”


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Proferiu-se sentença que julgou o incidente nos seguintes termos:

1)Qualifica-se como culposa a insolvência da sociedade A... - UNIPESSOAL, LDA., pessoa coletiva nº ..., com sede na Rua ..., n.º ..., R/C Dto., ..., ... – Gondomar.

2)Considera-se afetado pela qualificação culposa o gerente AA, NIF ....

3)Fixa-se ao gerente AA, a sanção de inibição para o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 3 (três) anos.

4)Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo requerido AA, e a condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.

5) Mais se condena o requerido AA, a indemnizar os credores no montante dos créditos que não vierem a ser satisfeitos.


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Inconformado com a sentença, o Requerido interpôs recurso, finalizando com as seguintes

Conclusões

(…)


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II—Delimitação do Objecto do Recurso

As questões principais decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber se ocorreu falta de citação do Requerido e se os pressupostos legais dos quais depende a qualificação da insolvência como culposa se encontram preenchidos.


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III—FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS (elencados na sentença)

1.ºA sociedade requerida encontra-se matriculada na Conservatória do registo Comercial sob o número único de matrícula e fiscal ... e com o capital social de 5.000,00 € pertencente à sócia BB e tem como gerente AA.

2.ºForam reclamados créditos do valor total de 62.442,84 €.

3.ºA sociedade requerida constitui-se sociedade por quotas em 21.05.2019.

4.ºE em 23.05.2024, foi requerida sua insolvência e decretada a mesma por sentença de 12.8.2024, sem que houvesse qualquer oposição da insolvente.

5.ºO crédito da credora requerente reconhecido é de 5.814,60 € e reporta-se a fornecimentos efetuados entre 29/7/2022 e 27/6/2023, acrescido de outros encargos legais e juros.

6.ºEm relação à credora requerente, a devedora deixou de cumprir desde julho de 2022, data da primeira fatura emitida pela credora requerente.

7.ºComo também não pagou as restantes faturas, sendo a última de junho de 2023.

8.ºA insolvente encontra-se em incumprimento com a credora requerente desde julho de 2022.

9.ºA insolvente não possui qualquer ativo ou património.

10.ºA insolvente não apresentou contas em 2023 (referentes a 2022) e em 2024 (referentes a 2023), informação também omitida pelo AJ.

11.ºA insolvente não tem qualquer atividade nem instalações.

Do parecer do Sr. AI

13.ºA insolvente apresenta a seguinte estrutura/hierarquia:

NIPC: ...

Firma: A... UNIPESSOAL LDA

Natureza Jurídica: SOCIEDADE POR QUOTAS

Sede: Rua ..., ..., r/c D

Distrito: Porto Concelho: Gondomar Freguesia: ... ... ...

Objecto: Comércio têxtil. Publicidade e design. Eventos.

Capital: 5.000,00 Euros

CAE Principal: ...-R3

CAE Secundário (1): ...-R3

CAE Secundário (2): ...-R3

CAE Secundário (3): ...-R3

Data do Encerramento do Exercício: 31 Dezembro

Forma de Obrigar: Com a intervenção de um gerente.

Prazo de duração dos(s) Mandato(s): Menção não aplicável à presente entidade.

Órgãos Sociais/Liquidatário/Administrador ou Gestor Judicial:

GERÊNCIA:

Nome: AA

NIF/NIPC: ...

Cargo: Gerente

Insc.1 AP. ... 11:25:38 UTC - CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADE, DESIGNAÇÃO DE MEMBRO(S) DE ÓRGÃO(S) SOCIAL(AIS)

FIRMA: A... UNIPESSOAL LDA

NIPC: ...

NATUREZA JURÍDICA: SOCIEDADE POR QUOTAS

SEDE: Rua ...

Distrito: Porto Concelho: Gondomar Freguesia: ...

... ...

OBJECTO: Comércio têxtil. Publicidade e design. Eventos.

CAPITAL: 5.000,00 Euros

Data de Encerramento do Exercício: 31 Dezembro SÓCIOS E QUOTAS:

QUOTA: 5.000,00 Euros

TITULAR: BB

NIF/NIPC: ...

Estado civil: Divorciado(a)

Residência/Sede: Avenida ..., nº ... - 10º Esqº Frente ... VILA NOVA DE FAMALICÃO

FORMA DE OBRIGAR/ÓRGÃOS SOCIAIS

Forma de obrigar: Com a intervenção de um gerente.

Estrutura da gerência: Fica a cargo de quem vier a ser nomeado gerente pelo sócio único.

ORGÃO(S) DESIGNADO(S):

GERÊNCIA:

Nome/Firma: AA

NIF/NIPC: ...

Cargo: Gerente

Residência/Sede: ..., nº ... ... ...

Data da deliberação: 21 de maio de 2019

Menção Dep. .../2020-09-30 12:17:45 UTC - TRANSMISSÃO DE QUOTA(S)

QUOTA E SUJEITO ACTIVO:

QUOTA: 5.000,00 Euros

TITULAR: CC

NIF: ...

Estado civil: Solteiro Maior

Residência: Avenida ..., ...

Código Postal: ... ... SUJEITO PASSIVO:

QUOTA: 5.000,00 Euros

Titular: BB

NIF: ...

Residência: Avenida ..., ..., 10º Esq, V. N. de Famalicão, Código Postal: ... VILA NOVA DE FAMALICÃO

14.ºA Gerência da sociedade era exercida por AA, NIF ....

15.ºA insolvente apresentou contas até ao dia 08.07.2022 referente à gestão de 2021.

16.ºA insolvente deixou de exercer qualquer atividade na sua sede desde meados do ano de 2022, tendo sido objeto de um despejo pelo senhorio o qual recuperou a posse do imóvel no início do ano civil de 2023.

17.ºNo locado, apenas se encontravam bens de valor exíguo, sendo a sua maioria resíduos sem qualquer valor venal.

18.ºPelo que de acordo com as informações obtidas, a insolvente deixou de ter atividade desde meados do ano civil de 2022.

19.ºDa contabilidade apresentada nos autos, verifica-se que o ativo líquido é insuficiente para suportar o passivo existente.

20.ºA insolvente incumpriu com as suas obrigações de pagar a vários credores no valor de sensivelmente 62.442,84 € - melhor descritos na Lista Definitiva de Credores junta nos autos.

21.ºA insolvente não conseguiu cumprir com as suas obrigações encontrando-se inclusive já encerrada desde meados do ano civil de 2022, data em que deixou de laborar no locado arrendado.

22.ºNo âmbito das diligências efetuadas na tentativa de apreender qualquer bem, o Sr. AI verificou que a insolvente não possui bens suscetíveis de valor para efetuar a apreensão nem para pagar as custas inerentes ao presente processo.

23.ºNesse âmbito a credora requerente da insolvente, B... intentou uma ação executiva previa aos presentes autos, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Execução de Guimarães - Juiz 2 sob processo n.º ....

24.ºE já ali foi aferido que a sociedade se encontrava encerrada e que a mesma não possuía qualquer ativo.

25.ºO Sr. AI efetuou as buscas junto do registo automóvel e do registo predial e todas elas revelaram-se infrutíferas quanto à existência de património pertencente à Insolvente passível de ser apreendido e liquidado.


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Questão prévia-Falta de citação do Requerido

O Apelante declarou não ter recebido qualquer correspondência do tribunal, do Sr. AI, ou do credor requerente da insolvência, quer por não residir na morada fiscal para onde foi dirigida, que é a casa dos seus pais, quer por tal morada estar deficientemente indicada; e acrescentou que nenhuma correspondência lhe foi entregue com exceção da carta que continha a decisão recorrida, entregue em mão por terceira pessoa em 17.03.2025.

Considera, por isso, que se impunha ao tribunal o apuramento da sua efetiva morada para evitar a falta e/ou nulidade da citação pessoal face à clara referência nos autos da receção da correspondência por outra pessoa.

Nesta parte do recurso, afigura-se-nos manifesta a falta de razão do Recorrente.

Segundo o art. 219.º, n.º 1 do C.Civil “A citação é o acto pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender; emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa.”

Por conseguinte, esse acto processual destina-se a permitir o exercício do direito de defesa, sem o qual o tribunal não pode resolver o conflito de interesses-art. 3.º n.º 1 do CPC.

A citação pessoal das pessoas singulares é feita mediante as formas previstas no art. 225.º, n.º 2, als. a) a c) do CPC.

Mas, nos casos expressamente previstos na lei, é equiparada à citação pessoal (quase-pessoal) a efectuada em pessoa diversa do citando, encarregada de lhe transmitir o conteúdo do acto, presumindo-se, salvo prova em contrário, que o citando dela teve oportuno conhecimento- (n.º 4).

Esta norma está em consonância com o regime substantivo das presunções concretamente com o art. 350.º, n.º 2 do C.Civil “As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário excepto nos casos em que a lei o proibir.”

A prova do contrário tem como objectivo mostrar não ser verdadeiro o facto dela objecto-v. art. 347.º do C.Civil.

Pode suceder que falte a citação (nulidade absoluta-arts. 187.º a) e 188.º) ou ocorram irregularidades que sejam equiparadas à sua falta; neste último caso, o acto foi realizado mas não foram observadas as formalidades prescritas na lei (nulidade secundária-191.º).

O Recorrente limitou-se a alegar que não recebeu qualquer correspondência (do tribunal, do AI ou do credor) por não residir na morada fiscal para onde foi dirigida (que é a casa dos seus pais) quer por tal morada estar deficientemente indicada.

No entanto, reconheceu que a carta que continha a decisão recorrida, foi-lhe entregue em mão, 17.03.2025, por terceira pessoa.

E concluiu que se impunha ao Tribunal o apuramento da sua efetiva morada para evitar a falta e/ou nulidade da citação pessoal face à clara referência nos autos da recepção da correspondência por outra pessoa.

Resulta claramente dos autos que o tribunal seguiu as normas aplicáveis, ou seja, enviou a correspondência para a morada oficial do Recorrente, que foi recebida provavelmente pela mãe ou pelo pai (o apelido de quem assinou o AR é o mesmo do Recorrente).Competia ao receptor da missiva, enviada para a residência onde moram os pais do Requerido, proceder à sua entrega.

A prova do contrário que a lei exige não se basta com a mera alegação do não recebimento da carta principalmente quando foi enviada, segundo o Recorrente, para a residência dos seus pais e que o mesmo indicou para efeitos fiscais.

Nesta conformidade, conclui-se que inexiste qualquer falta de citação ou irregularidade do acto de citação.


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IV-DIREITO

A questão principal do recurso prende-se com a discordância da qualificação da insolvência como culposa, que o tribunal integrou no art. 186.º, n.º 2, al. i) (incumprimento reiterado dos deveres de apresentação e de colaboração) e n.º 3, al. a) (dever de requerer a insolvência).

O inconformismo manifestado no recurso baseia-se na inexistência de nexo de causalidade entre a actuação do Apelante e a situação de insolvência.

Explicitando que “nada consta na matéria de facto provada que permita, ainda que por ilação devidamente fundamentada, concluir pela verificação do nexo de causalidade entre a eventual omissão do Apelante e a criação e/ou o agravamento da situação de insolvência da “A..., Lda”.” e nem a sentença recorrida concretizou qualquer circunstância que constitua agravamento da situação de insolvência da empresa, decorrente da falta de apresentação tempestiva à insolvência.

Estamos perante um caso em que os factos apurados não são minimamente suficientes para se concluir pela qualificação da insolvência como culposa.

Regime jurídico aplicável

O regime da qualificação da insolvência é uma novidade introduzida no C.I.R.E. que sofreu a influência do direito espanhol, ou seja, do regime homólogo consagrado na recente Ley Concursal, de Julho de 2003.[1]

No ponto 40 do Preâmbulo do CIRE[2] o legislador revelou o objectivo de se conseguir uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares da empresa e dos administradores de pessoas colectivas, o que seria útil para evitar o surgimento de condutas altamente prejudiciais à protecção e segurança do tráfego jurídico-mercantil.

Como esclarece Catarina Serra[3], o objectivo do incidente é apurar se houve culpa de algum ou de alguns sujeitos na criação ou no agravamento da situação de insolvência e aplicar certas medidas (sanções) aos culpados.

Segundo o artigo 186.º, n.º 1 do CIRE a insolvência deve ser qualificada como culposa na hipótese de ter sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Na anotação a este normativo, de indiscutível importância, Carvalho Fernandes e João Labareda[4] esclarecem que “a insolvência culposa implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto…” que “…deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.”

A última parte do preceito legal referente ao designado período suspeito é de enorme relevância porquanto só a actuação culposa causadora da insolvência ou do seu agravamento, ocorrida no triénio anterior ao início do processo de insolvência, pode ser considerada pelo juiz para efeito de qualificação da insolvência como culposa.

Por outras palavras, qualquer comportamento prejudicial ao interesse dos credores, anterior a esse período de três anos, ainda que subsumível nas hipóteses legais demonstrativas de uma insolvência culposa, nenhuma relevância jurídica assume, devendo a insolvência ser qualificada como fortuita.

Sobre as hipóteses legais caracterizadoras de comportamentos que configuram uma situação de insolvência culposa, auxiliadoras do intérprete, rege o n.º 2, do art. 186º, do C.I.R.E., o qual, na parte que interessa, considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto tenham: (…) i)Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º.

A Lei n.º 9/2022 de 11.02 introduziu no n.º 3 do citado preceito uma nova redação com vista a esclarecer as dúvidas entretanto suscitadas sobre a exigência do nexo causal nas hipóteses aí contempladas.

Assim, nos termos do n.º 3 do art. 186.º do CIRE “Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:

a)O dever de requerer a declaração de insolvência;

b)A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.

(…).”

Analisando as alíneas do nº 2 do art. 186º, Maria do Rosário Epifânio[5] considera que “podem ser agrupadas em três categorias fundamentais, a saber: 1) atos que afetam, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; 2) atos que, prejudicando a situação patrimonial, em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros; 3) incumprimento de certas obrigações legais.

(…) O proémio do nº 2 do art. 186º prevê um elenco de presunções iuris et de iure, considerando “sempre culposa a insolvência” quando se preencha alguma das suas alíneas.”

Nesta conformidade, se o(s) facto(s) praticado(s) pelos legais representantes da devedora for(em) subsumível(is) a qualquer uma das situações previstas no n.º 2 do art. 186.º do C.I.R.E. presume-se que a insolvência é culposa, sendo considerado, pela doutrina e jurisprudência, que estamos perante uma presunção iuris et de iure, ou seja, inilidível de acordo com o preceituado no art. 350.º do C.Civil.

O Tribunal Constitucional[6] pronunciou-se no mesmo sentido: “E assim, uma vez verificado o facto típico previsto na lei (nas várias alíneas deste nº 2), “fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento.”

Em suma, ocorrendo qualquer um dos factos típicos previstos no art. 186º nº 2 do CIRE, praticado pelo administrador da insolvente, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência- a insolvência deve sempre qualificar-se como culposa por se presumir não só que foi praticado com dolo ou culpa grave mas também que criou ou agravou a situação de insolvência, dispensando-se a prova quer da culpa do administrador quer do nexo de causalidade entre o facto ilícito e a situação de insolvência.

Ao invés, quando os administradores, de direito ao de facto, incumpram as obrigações elencadas nas alíneas do n.º 3 do citado preceito legal, e apesar de se presumir a culpa grave dos administradores, para que a insolvência seja qualificada como culposa, a lei exige a prova do nexo de causalidade entre esse incumprimento e a situação de insolvência ou o seu agravamento.

Na doutrina, Catarina Serra[7] reconhece que a alteração da norma com a introdução do advérbio unicamente “tem como inequívoco propósito de esclarecer que a presunção (relativa) aí consagrada respeita apenas ao requisito da culpa grave e a mais nenhum.”

A referida autora esclarece que a solução legal traduz uma medida intrigante por ser “dificílimo provar os restantes requisitos da insolvência culposa.

E questiona “Em quantos casos se demonstrará o nexo de causalidade entre o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência ou entre o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, de submeter as contas à fiscalização ou de depositar as contas na conservatória do registo comercial e a criação ou o agravamento da insolvência? Desde logo, o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência nunca poderá ser a causa da criação da insolvência, uma vez que é na situação de insolvência que reside a fonte desta obrigação.”

Anteriormente à alteração do mencionado n.º 3, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 22/05/2012[8], analisando as respectivas alíneas bem como as alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE também questionou o conteúdo normativo nos seguintes termos:

“Em que medida é que a não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respectivos documentos – enfim, irregularidades contabilísticas – geram ou agravam a insolvência? Em nenhuma medida; quando muito escondem e ocultam a situação de insolvência, mas não geram ou agravam a situação de insolvência [12].

Em que medida é que o incumprimento do dever de apresentação à insolvência pode ser causa da sua criação (da insolvência)? Em nenhuma medida; quando muito tal incumprimento não revela a, em si pressuposta, situação de insolvência.

Em que medida é que o incumprimento dos deveres de elaboração e de depósito das contas podem ser causa duma insolvência ou sequer do seu agravamento? Em nenhuma medida; quando muito escondem e ocultam a situação de insolvência, mas não geram ou agravam a situação de insolvência.

Em que medida a falta sistemática de comparência e de apresentação, aos órgãos processuais, dos elementos exigidos contribuem para a situação de insolvência? Em nenhuma medida; desde logo, tal falta sistemática de comparência e de apresentação apenas ocorre e releva em momento posterior à própria declaração judicial de insolvência.

Enfim, os actos/factos constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 e das alíneas a) e b) do n.º 3 são “estranhos” à ideia de nexo lógico, de conexão substancial, de relação causal com a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

O que basicamente está em causa, nas alíneas h) e i) do n.º 2 e nas alíneas a) e b) do n.º 3, é o incumprimento/violação dos deveres específicos dos comerciantes (v. g. art. 18.º do C. Comercial) e/ou dos deveres gerais dos insolventes (cfr. art. 83.º do CIRE)[13]; é a violação ilícita e culposa de tais deveres legais que leva a lei determinar a aplicação do regime (da insolvência culposa) a estas situações.”

Sobre o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência, devemos articular com o prescrito sobre a mesma no art. 18º, n.º 1 do CIRE «[o] O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº1 do artigo 3º ou à data em que devesse conhecê-la.»

Especificamente sobre o conhecimento da situação de insolvência o nº 3 estatui que «[q]uando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº1 do artigo 20º.”

Este incumprimento generalizado refere-se às obrigações tributárias; contribuições e quotizações para a segurança social; dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação; rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva hipoteca, relativamente ao local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou residência.

No caso sub judice o tribunal, perante a matéria de facto provada, concluiu, como vimos, que a insolvência culposa resulta do incumprimento do dever de apresentação à insolvência e da inobservância repetida dos deveres de colaboração.

Análise do Quadro Factual e Subsunção ao Direito

Importa recordar que o Recorrente apontou como falha no enquadramento jurídico não ter ficado demonstrada qualquer omissão susceptível de ter causado ou agravado a insolvência.

Da análise do quadro factual afigura-se-nos que lhe assiste razão, como iremos verificar.

A sociedade insolvente, que se dedicava ao comércio têxtil, apresentou contas até ao dia 08.07.2022 referente à gestão de 2021 e deixou de exercer qualquer atividade na sua sede desde meados do ano de 2022, tendo sido objeto de um despejo pelo senhorio o qual recuperou a posse do imóvel no início do ano civil de 2023.

Incumpriu com as suas obrigações de pagar a vários credores no valor de sensivelmente 62.442,84 €. e, em 23.05.2024, foi requerida sua insolvência.

Se, por um lado, o comportamento omissivo do Requerido em não apresentar a sociedade à insolvência a partir de 2022, que, na altura, deixou de ter qualquer actividade, desrespeitou esse dever, por outro, não ficou minimamente demonstrado que essa omissão agravou a insolvência.

Por outras palavras, não ficou provado que, por via da omissão de apresentação à insolvência e de elaboração das contas anuais, a insolvência da sociedade sofreu um agravamento nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Efectivamente, não foi apurado em que medida esse incumprimento contribuiu para o indemonstrado agravamento, nos anos de 2021, 2022 e 2023, da situação de insolvência, que era manifesta em 2022 com a cessação da actividade.

Como se observou no Acórdão da Relação de Coimbra, de 06/10/2020[9] referente a um caso similar “Da própria alegação da autora ressalta a irrelevância do atraso posterior a julho de 2016 para a criação ou agravamento da situação de insolvência, uma vez que, em tal data, já a sociedade insolvente se encontrava destituída de qualquer património e inativa, pelo menos, desde 30 de setembro de 2015.”

Ademais tem sido entendido, sobre esta questão, que o mero decurso do tempo designadamente com o aumento dos juros vencidos nesses três anos não integra o agravamento da insolvência, exigido pela lei.[10]

O Tribunal qualificou ainda a insolvência com fundamento no n.º 2, al. i) do art. 186.º do CIRE referindo que foram solicitados os documentos contabilísticos que nunca foram remetidos ao Sr. AI.

Esta declaração, extraída do parecer do Sr. AI, não foi incluída no elenco dos factos considerados relevantes para a decisão.

Em primeiro lugar, tal declaração (conclusiva) não nos habilita a concluir pela existência de uma falta grave de colaboração do Requerido.

E mesmo que tivesse ficado devidamente provada essa falta de colaboração, a verdade é que lei exige que seja reiterada, o que não ficou demonstrado, pelo que também não se mostra preenchida a mencionada hipótese legal.

Pelas razões expostas, o recurso merece provimento nesta parte, devendo a insolvência ser qualificada como fortuita e não culposa.


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V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso, e em consequência, revogam a sentença, declarando a insolvência fortuita.

Custas pelo credor Recorrido.

Notifique.


Porto, 28/10/2025
Anabela Miranda
João Ramos Lopes
Rodrigues Pires
________________
[1] Serra, Catarina, “O Novo Regime Português da Insolvência, uma Introdução”, 2.ª edição, Almedina, 2005, pág. 67.
[2] Dec-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
[3] Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, pág. 156.
[4] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, QJ, 3.ª edição, nota 4, pág. 680.
[5] In Manual de Direito da Insolvência, 6ª edição, págs. 129 e segs.
[6] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 570/2008, Processo n.º 217/08, de 26/11/2008, DR, 2.ª série, n.º 9 de 14.01.2009, consultável em www.tribunalconstitucional.pt.
[7] Revista Julgar, n.º 48, págs. 20 e segs.
[8] Rel. Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt
[9] Rel. Maria João Areias disponível em www.dgsi.pt
[10] A título de exemplo v. Ac. TRG de 11/05/2023 (Maria João Matos) disponível em www.dgsi.pt.