Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MANUEL DOMINGOS FERNANDES | ||
Descritores: | DEVER DE ACATAMENTO DE DECISÕES DE TRIBUNAL SUPERIOR NULIDADE INSUPRÍVEL | ||
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Nº do Documento: | RP202411114024/22.9T8VFR-B.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A indiscutível consagração da independência dos magistrados judiciais, no exercício da sua função judicante, é feita com a expressa salvaguarda do seu dever de acatamento das decisões que, em via de recurso, sejam proferidas por Tribunais superiores. II - A violação desse dever constitui uma nulidade insuprível da decisão que assim venha a ser proferida. III - Quando a parte se recuse a juntar aos autos documento, depois de devidamente notificada para o efeito, deverá o tribunal recorrido seguir a tramitação adjetiva adequada e, concretamente, a que vem referida nos artigos 417.º, nº 2 e 433.º do CPCivil, aplicáveis ex vi artigo 430.º do mesmo diploma legal, sendo que, quando o citado artigo 417.º, nº 2 se refere aos “meios coercitivos que forem possíveis” quer-se significar os meios admitidos por lei, que se mostrem idóneos a obter o resultado pretendido como seja, por exemplo, a apreensão do documento em questão. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo nº 4024/22.9T8VFR-B.P Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira-J1 Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes 1º Adjunto Des. Drª Carla Jesus Costa Fraga Torres 2º Adjunto Des. Drª Ana Paula Amorim 5ª Secção Sumário: …………………………………………………… …………………………………………………… …………………………………………………… * I - RELATÓRIO Acordam no Tribunal da Relação do Porto: AA intentou ação ordinária, com processo comum contra BB e mulher, CC, DD, e marido EE, FF e marido GG, HH e marido II, e BB, e mulher JJ, pedindo que os réus sejam condenados a: A) Verem declarado que a renúncia da apelante ao direito de pedir a anulação das vendas que os primeiros RR. efetuaram a favor dos seus filhos é nula; B) Verem declarada a anulação do termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como compradores HH, FF, BB e DD, no que exceder a venda de duas ações. * A autora na petição inicial atribuiu à causa o valor de € 50.000,01 euros, por desconhecer os termos do contrato de compra e venda de participações socias, nomeadamente o preço fixado, cuja anulação pede na ação.* B) O tribunal recorrido por despacho de 14/05/2023, não concordando com o valor atribuído pela A. e não impugnado pelos RR., decidiu atribuir o valor de € 30.000.000,00.* Deste despacho recorreu a autora para esta Relação que, por acórdão de 19/12/2023 decidiu dar provimento ao recurso anulando a decisão da 1ª instância, nos seguintes moldes: “Termos em que, julgando a apelação procedente, revoga-se o despacho recorrido, determinando que seja fixado à causa o valor que resultar do Termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como compradores HH, FF, BB e DD, cuja anulação a apelante peticiona“.* Em 09/04/2024, em conformidade com o exarado no citado acórdão, o tribunal recorrido proferiu o seguinte despacho:“Conforme determinado pelo Acórdão proferido nos autos apensos, em obediência ao Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, a fim de habilitar o Tribunal a decidir e fixar qual o valor da causa, de acordo com o critério superiormente determinado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, notifique os RR. para, querendo, juntarem aos autos documento “ Termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como HH, FF, BB e DD, cuja anulação a apelante peticiona”. * Os Réus, por requerimento de 22/04/2024, vieram declarar que se recusavam a juntar o documento, tendo a Mª Juiz convidado a autora a pronunciar-se sobre esta recusa, o que fez em 29/05/2024.* O tribunal recorrido lavrou então despacho do seguinte teor:“Compulsados os autos, concatenando a informação para estes carreada e face à decisão do Venerando Tribunal da Relação do Porto que revogou o valor fixado por despacho datado de 14/05/2023, fixo à ação o valor de € 50.000,01 (cinquenta mil euros e um cêntimo) [cf. art.º 296.º e art.º 305.º, nº 4 do C.P.C., sem prejuízo do disposto no art.º 299.º, nº 4 do mesmo diploma)]. * Notifique.”* Não se conformando com o assim decidido veio a autora recorrer, rematando com as seguintes conclusões:1- O valor a atribuir à causa terá de corresponder ao valor que resultar do “Termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como compradores HH, FF, BB e DD, cuja anulação a apelante peticiona”, conforme determinado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto no seu Acórdão de 19.12.2023, proferido nestes autos e neles dotado da força do caso julgado. 2- Não estando o contrato nos autos e sendo desconhecido o preço estipulado pelas partes outorgantes deve o julgador recorrer ao disposto no artigo 308.º do CPC notificando os possuidores do documento, no caso os Réus porque nele outorgantes, para o virem juntar. 3- No caso de recusa dos notificados em cumprirem o que lhes foi ordenado deverão ter lugar as medidas coercivas previstas na Lei de modo a obstar ao não cumprimento. 4- Recusando-se os Réus a juntarem o contrato não pode o julgador voltar a atribuir o valor inicialmente indicado na p.i. como se não tivesse suscitado ele próprio o incidente de atribuição do valor à causa por entender que esse valor não cumpre os critérios da Lei e ignorando que por decisão superior, obrigatória no processo, havia sido estabelecido o critério concreto a ser seguido. 5- Ao decidir como decidiu a Mª juiz a quo não deu cumprimento ao que resulta do Acórdão do Tribunal da Relação violando o principio do caso julgado. 6- O douto despacho recorrido violou ainda o que se encontra disposto nos artigos 301.º, nº 1 e 308.º do C.P.C., devendo ser revogado e substituído por um outro que determine um valor da causa equivalente ao preço que constar do contrato de compra e venda de ações o qual os Réus serão notificados para juntar aos autos com as legais consequências em caso de recusa. * Devidamente notificada contra-alegaram os Réus concluindo que deve ser fixado à ação o valor de € 2.196.134,00 (dois milhões cento e noventa e seis mil cento e trinta e quatro euros).* Foram dispensados os vistos. * II- FUNDAMENTOS O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.Civil. * No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:a)- saber se o despacho recorrido ao fixar o valor da ação cumpriu ou não o que foi determinado no acórdão proferido por esta Relação. * A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A dinâmica factual a ter em consideração para a resolução da questão supra enunciada é a que resulta do relatório e que aqui se dá integralmente por reproduzida. * III. O DIREITO Como se referiu é apenas a questão que cumpre apreciar e decidir: a)- saber se o despacho recorrido ao fixar o valor da ação cumpriu ou não o que foi determinado no acórdão proferido por esta Relação. Como se vidência do relatório a autora na petição inicial atribuiu à causa o valor de €50.000,01 euros, por desconhecer os termos do contrato de compra e venda de participações socias, nomeadamente o preço fixado, cuja anulação pede nesta ação. O tribunal recorrido por despacho de 14/05/2023, não concordando com o valor atribuído pela autora e não impugnado pelos Réus, decidiu atribuir o valor de € 30.000.000,00. No recurso do citado despacho interposto pela autora, o tribunal da Relação proferiu acórdão em que, revogando o citado despacho, ordenou que fosse fixado à causa o valor que resultasse do termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como compradores HH, FF, BB e DD, cuja anulação a apelante peticiona. Acórdão esse devidamente transitado em julgado. Repare-se, porém, que, antecedentemente do citado dispositivo, se havia exarado o seguinte: “Aqui chegados, importa concluir que o despacho recorrido não pode subsistir, pois, sendo o segundo pedido aquele que corresponde à utilidade económica da pretensão da apelante, o seu valor há de ser determinado nos termos do artigo 301.º, n.º 1, CPC. Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes. No caso vertente, não se mostra possível determinar qual o valor do ato jurídico por que a apelante declarou desconhecê-lo; o mesmo será apurado logo que o documento que o incorpora seja junto aos autos” (negrito e sublinhados nossos). Daqui resulta, sem margem para qualquer dúvida, que para a fixação do valor da ação necessário se tornava que fosse junto aos autos o documento que incorpora o ato jurídico que expressa a utilidade económica do pedido, ou seja, “o termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como HH, FF, BB e DD”. Dando cumprimento ao decidido pelo tribunal da Relação, o tribunal a quo determinou que os Réus fossem notificados para, querendo, juntar aos autos o documento em causa, o que estes recusaram. Ora, salvo o devido respeito, o tribunal recorrido só podia ter exarado o despacho nos termos em que o fez (a junção do documento ficava ao critério e livre arbítrio dos réus) se tivesse elementos nos autos (o que, manifestamente, não tinha face ao despacho objeto de recurso) que lhe permitissem fixar o valor à causa nos termos determinados pela Relação sem a junção do documento em causa, pois que, não sendo esse o caso, devia ter ordenado aos réus, tout court, a sua junção. * Acontece que, o tribunal recorrido, perante a recusa dos Réus em juntar o documento em questão, fez tábua do que havia sido decidido pelo tribunal da Relação e fixou à ação o valor de € 50.000,01 (cinquenta mil euros e um cêntimo), ou seja, o valor que a autora tinha atribuído na petição inicial esquecendo que, ele próprio, não havia concordado com esse valor por não cumprir os critérios da lei suscitando o respetivo incidente (cf. despacho exarado em 12/04/2023). * Diante do exposto, torna-se evidente que o despacho recorrido não pode subsistir, por valor fixado à ação não refletir os critérios elegidos pelo tribunal superior no acórdão que prolatou para tal desiderato, em clara violação, pois, do que foi decidido superiormente.* Importa, reter que se lê no art.º 4.º, n.º 1, da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais), que os “magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores”; e, de forma idêntica, no art.º 4.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que os “juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores”. Logo, a indiscutível consagração da independência dos magistrados judiciais, no exercício da sua função judicante, é feita com a expressa salvaguarda do seu dever de acatamento das decisões que, em via de recurso, sejam proferidas por Tribunais superiores. O exposto é reafirmado, no particular campo do processo civil, no art.º 152.º, n.º 1, do CPC, onde se lê que os “juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes e cumprindo, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores”. Compreende-se, por isso, que se leia no art.º 42.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, que os “tribunais judiciais encontram-se hierarquizados para efeito de recurso das suas decisões”. * Aliás, a violação de um tal dever de acatamento de prévia decisão proferida por Tribunal superior, proferida em via de recurso e transitada em julgado, constitui uma nulidade insuprível da decisão que assim venha a ser proferida, nomeadamente por o objeto de renovada pronúncia do Tribunal inferior constituir questão de que o mesmo não podia tomar conhecimento [art.ºs 613.º, nº 3 e 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, ambos do CPCivil].[1]* Diante do exposto, deverá o tribunal recorrido ordenar que os Réus juntem aos autos o documento em causa[2], decidindo depois em conformidade o incidente do valor da ação nos moldes exarados no acórdão proferido pela Relação em 19/12/2023.* Na hipótese de os Réus recusarem a junção do referido documento, deverá o tribunal a quo seguir a tramitação adjetiva adequada e, concretamente, a que vem referida nos artigos 417.º, nº 2 e 433.º do CPCivil, aplicáveis ex vi artigo 430.º do mesmo diploma legal.É que, quando o citado artigo 417.º, nº 2 se refere aos “meios coercitivos que forem possíveis” quer-se significar os meios admitidos por lei, que se mostrem idóneos a obter o resultado pretendido com seja, por exemplo, a apreensão do documento em questão. * Procedem, assim, as conclusões formuladas pela apelante e, com elas, o respetivo recurso. * IV-DECISÃO Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogando a decisão recorrida deverá o tribunal a quo fixar o valor da ação nos moldes supra enunciados. * Custas da apelação pela Réus apelados (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil). * Porto, 11 de novembro de 2024. Des. Dr. Manuel Fernandes Des. Dr.ª Carla Jesus Costa Fraga Torres Des. Dr.ª Ana Paula Amorim. __________________________ |