Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11/21.2GEVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: ANIMAIS
ANIMAL CANINO
ANIMAIS DE COMPANHIA
CONCEITO
CRIME DE MAUS TRATOS
INCRIMINAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
DETENÇÃO DE ANIMAIS
POSSUIDOR
RESPONSABILIZAÇÃO
Nº do Documento: RP2024050811/21.2GEVFR.P1
Data do Acordão: 05/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA ARGUIDA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Tendo o Tribunal Constitucional decidido recentemente, em plenário, não declarar a inconstitucionalidade das normas incriminatórias da morte e maus tratos de animal de companhia, contidas no artigo 387º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, e no artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, com fundamento na violação dos art.ºs 18º, nº 2, 27º e 29.º, n.º 1, da CRP, justifica-se que no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade daquelas mesmas normas se atenda ao sentido de uma tal decisão, na medida em que não sobrevenham outras razões ou fundamentos que pudessem servir a possibilidade de pôr em causa a orientação ali adotada e assim também a segurança jurídica e a igualdade de tratamento que por via dela se procurou alcançar;
II – Resulta da norma do art.º 389º, nº 1, do CP que animal de companhia é não só aquele que é detido por seres humanos no seu lar para seu entretenimento e companhia, mas também os que a tal estejam destinados por natureza, como acontece com os animais das espécies sujeitas a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia, criado pelo DL nº 82/2019, cujo art.º 4º, nº 1, remete para a parte A do Anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013, e a parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, cujos artigos 3º, al. b), e 4º, nº 11, definem como animais de companhia os das espécies listadas no Anexo I, ou seja, entre outros, e em lugar de topo os Cães, eloquentemente aí mencionados entre parêntesis com a expressão latina Canis lupus familiaris.
III – Ao detentor de um canídeo, com o sentido que a uma tal detenção é dado pelas disposições conjugadas dos art.ºs 3º, al. a), do DL nº 82/2019, de 27 de junho e 1253.º do Código Civil, seja porque exerça o poder de facto sobre o animal sem intenção de agir como beneficiário do direito, ou simplesmente se aproveite da tolerância do titular do direito, ou porque é representante ou mandatário do possuidor, assim como, de um modo geral, porque o possui em nome de outrem, incumbe o dever jurídico de atuar, prestando os cuidados necessários à alimentação, abeberamento, acomodamento, cuidados médico-veterinários e outros necessários e adequados a evitar o sofrimento do animal ou a sua morte.
IV – Comete o crime de morte e maus-tratos de animal de companhia, previsto no art.º 387º do CP, por omissão, o mero possuidor de um canídeo que não o alimentou convenientemente, nem lhe prestou cuidados de higiene ou propiciou a assistência clínica de que o animal necessitava, deixando-o deliberadamente acorrentado no logradouro da sua casa, numa casota tipo gaiola, na qual o animal não conseguia sequer manter-se de pé, vindo o mesmo a adoecer, e não obstante a terapêutica que lhe foi administrada, dado não apresentar quaisquer sinais de recuperação, acabou por ter de ser eutanasiado.

(sumário de responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 11/21.2GEVFR.P1- 4ª Secção

Relator: Francisco Mota Ribeiro

SUMÁRIO

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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO

1.1 Após realização da audiência de julgamento no Proc.º n.º 11/21.2GEVFR, que corre termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 3, Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, por sentença de 20/11/2023, depositada na secretaria do Tribunal na mesma data, foi decidido o seguinte:

“a) Condenar a Arguida AA pela prática de um crime de morte e maus tratos de animais de companhia, previsto e punido pelo art.º 387.º, n.ºs 1 e 2 e art.º 389.º, n.º 1, ambos do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), num total de € 1100,00 (mil e cem euros);

b) Condenar a Arguida AA na pena acessória de proibição do direito de detenção de animais de companhia, prevista no art.º 388.º-A, n.º 1, al. a) do CP, pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses.

c) Condenar a Arguida AA no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC’s.


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Adverte-se a Arguida de que, caso não cumpra a pena acessória de privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses em que foi condenada, pode incorrer na prática de um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punido pelo art.º 353.º do CP”

1.2. Não se conformando com tal decisão, dela veio interpor recurso a arguida, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões (transcrição das que verdadeiramente poderão traduzir um resumo das razões do pedido – art.º 412º, nº 1, do CPP):

“(…)

2. Salvo o devido respeito, não andou bem o Julgador a quo ao julgar da forma como decidiu.

3. Com efeito, a Recorrente não se conforma com a douta decisão, desde logo no que concerne à matéria dada como assente no respeitante à sua atuação, ao extravasamento do princípio da livre apreciação da prova, ao total desrespeito pelo princípio in dubio pro reo, uma vez que considera que o Meritíssimo Tribunal a quo fez uma errada apreciação da matéria de facto e de direito juridicamente aplicável e resultante da prova produzida nos autos, além de que, suscita a inconstitucionalidade da norma incriminadora prevista no artigo 387º do Código Penal.

4. A Sentença recorrida deu como provado, no ponto 1 da matéria assente que “desde o ano de 2018, pelo menos, a Arguida, é a cuidadora de um cão de grande porte, cor preta e de raça serra da estrela”, no ponto 3 que “a Arguida possuía o mencionado canídeo na sua residência” e no Ponto 6 que “a Arguida detinha o referido animal na sua residência, fechado numa casota de madeira tipo gaiola”.

5. O Julgador convenceu-se que a Recorrente era cuidadora do animal e que se absteve de lhe prestar os cuidados necessários, o que o levou à morte, praticando desse modo um crime de morte e maus tratos a animais de companhia, por omissão.

6. O Julgador baseou a sua convicção no depoimento de duas testemunhas – BB e CC – agentes da GNR que acudiram o animal no local e identificaram a Arguida como sendo a sua cuidadora, por esta se ter referido, em determinado momento, que era quem cuidava do animal.

7. Porém, ao longo dos seus depoimentos, estas duas testemunhas referiram, coincidentemente, que a Arguida havia negado que era a cuidadora do animal, que naquela residência habitavam outras duas pessoas, e que nunca haviam avistado o canídeo perto daquela.

8. A testemunha BB admitiu que supôs que o animal pertencia à Arguida uma vez que estava na propriedade que aquela habitava e a testemunha CC referiu que atribuiu responsabilidades à Arguida por esta ter afirmado que cuidava do cão e não ter sido possível comprovar a propriedade do mesmo através de qualquer meio documental.

9. Sucede que a expressão “cuidar do cão” é amplamente vaga e pode significar somente que a Arguida tenha alimentado o animal abandonado e esfomeado por mera compaixão, sem nunca ter assumido qualquer responsabilidade sobre o mesmo.

10. O significado daquela afirmação não foi apurado em sede de audiência de julgamento, enquanto que a Arguida prestou declarações e afirmou terminantemente nunca ter sido cuidadora do animal.

11. A sua versão dos factos foi corroborada pelas testemunhas DD e EE, que consigo coabitavam, e tinham conhecimento privilegiado sobre os acontecimentos, tendo estas referido perentoriamente que o animal era do irmão da Arguida.

(…)

17. Assim, inexistem quaisquer elementos que permitam diferenciar o comportamento da Recorrente do comportamento destas duas testemunhas que consigo coabitavam, e o Julgador absteve-se de explicar por que motivo considerou a Arguida detentora do animal.

18. Posto isto, e tendo sido acarreados elementos que demonstram que uma terceira pessoa mantinha o domínio sobre o animal, de modo algum se poderá considerar que a Recorrente assumiu qualquer responsabilidade sobre o mesmo.

19. Na verdade, o Julgador baseou-se em meros indícios e suposições, ignorando toda a prova produzida em julgamento que imponha decisão diversa.

20. Competia ao tribunal fazer prova cabal de que a Arguida era garante do animal - o que nunca fez, nem sequer tentou fazer.

21. Com efeito, não existe prova direta sobre a responsabilidade Arguida perante o animal em referência e o que o Tribunal a quo fez, foi socorrer-se de mera prova indiciária.

22. A decisão em escrutínio baseou-se no facto dos agentes da GNR chamados ao local terem identificado a Arguida como sendo a cuidadora do animal.

23. Porém, ignoraram todos os elementos recolhidos em sentido contrário, nomeadamente os depoimentos das testemunhas DD e EE que tornam, além de plausível, mais que provável que o cuidador do animal fosse uma terceira pessoa.

24. O artigo 127º do CPP consagra o princípio da livre apreciação de prova, contudo, este não é arbitrário ou ilimitado.

25. É da prova produzida em Julgamento que resulta a absolvição ou condenação de um arguido, constituindo esta o cerne do sistema penal, pelo que a mesma não poderá ser meramente indiciária, pelo contrário, terá de demonstrar com grande grau de probabilidade, de acordo com as regras da experiência, que os factos ocorreram da forma que foram descritos na Acusação.

26. Face à insuficiência da prova produzida nos presentes autos, deveria prevalecer o princípio in dubio pro reo, segundo o qual, a insuficiência da prova tem de ser sempre valorada a favor do arguido.

(…)

30. Face a tudo o supra exposto e a todos os demais elementos paralelos que dos raciocínios supra expostos se têm necessariamente de inferir, requer-se que sejam alterados os factos vertidos na matéria assente supra designada, passando os mesmos a constar da matéria dada como não provada nos autos e que em consequência, seja a Recorrente absolvida do crime pelo qual foi condenada.

31. Ademais, tendo-se em conta que a Recorrente foi condenada por se ter abstido de prestar ao animal a assistência necessária, invoca-se o artigo 10º n.º 2 do Código Penal, que consagra que “a comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado”.

(…)

33. Como consta da motivação da sentença, a fls. 7, não existe registo da propriedade do animal na respetiva base de dados, e por tal a Recorrente não foi considerada sua dona.

34. De igual modo, não poderá ser classificada como sua possuidora pois a posse implica a prática de atos materiais sobre a coisa – neste caso, o animal – e a Recorrente foi condenada precisamente por se ter eximido de exercer quaisquer atos materiais sobre o animal, nunca tendo agido como se fosse sua dona.

35. Pelo mesmo argumento não poderá ser classificada de detentora, pois o detentor é quem exerce sobre a coisa – ou animal - um simples poder de facto, por mera tolerância do seu titular, nos termos do artigo 1253º, al. b) do Código Civil.

36. Destarte, não se encontra preenchido o elemento objetivo do ilícito típico em apreço – o dever de garante.

37. Ademais, ficou provado que o animal se encontrava permanentemente no logradouro e nunca entrou na habitação, pelo que não poderá ser incluído no conceito de animal de companhia estatuído no artigo 389º n.º 1 do Código Penal que o define como “qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”.

38. Assim sendo, não se encontram preenchidos os elementos integradores do tipo legal do crime e por tal, a Arguida não deveria ter sido condenada.

39. Sem conceder, sempre se suscitará a inconstitucionalidade da norma incriminadora do artigo 387º do Código Penal, por violação de diversos preceitos constitucionais.

40. O bem-estar animal não possui consagração constitucional e por tal carece de tutela penal, nos termos do artigo 18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

41. Por outro lado, a descrição do ilícito apresenta inúmeros conceitos vagos e indeterminados, o que viola o princípio da tipicidade legal, a que reporta o artigo 29º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

42. Em face, o crime de maus tratos a animais de companhia, previsto no artigo 387.º do Código Penal deverá ser declarado materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 18º n.º 2, 27º e 29º n.º 1.º da Constituição da República Portuguese a consequentemente, a Recorrente ser absolvida do mesmo.

43. Face a tudo o supra exposto, o Acórdão condenatório deve ser revogado, substituído por outro, que reapreciando a matéria de facto e de direito, absolva a Arguida da prática do crime pelo qual foi acusada e condenada.”

1.3. Respondeu o Ministério Público, concluindo pela negação de provimento ao recurso, nos seguintes termos:

“I. A sentença recorrida revelou adequadamente e com suficiência como chegou à fixação da matéria de facto provada, tendo apreciado as declarações da arguida e de todas as testemunhas, conciliando-as com a prova documental (designadamente, o auto de notícia, relatório clínico do Centro Veterinário, informação constante do Sistema de Informação de Animais de Companhia, o assento de óbito da mãe e do cunhado da arguida), extraindo conclusões lógicas, válidas e admissíveis;

II. Assistida a prova pessoal em audiência de julgamento conjugada com a prova documental e, depois de efetuada a leitura da sentença que se debruçou sobre ela na fundamentação da matéria de facto, não se pode concluir que o Tribunal “a quo” tenha apreciado arbitrariamente a prova e que se impunha uma decisão diversa;

III. Resulta claramente do texto da sentença que o Tribunal “a quo”, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida, obteve a convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados à arguida e que motivaram a sua condenação;

IV. O Tribunal “a quo” não incorreu num erro de julgamento na matéria de facto provada e, em consequência, não violou o disposto no art.º 127º do Código de Processo Penal e o princípio in dubio pro reo previsto no art.º 32, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa;

V. O cão é um animal destinado a ser detido por seres humanos para seu entretenimento e companhia;

VI. É a finalidade do animal (para entretenimento e companhia) que define o conceito legal de “animal de companhia” previsto no art.º 389º, n.º 1 do C.P., independentemente do local onde ele esteja;

VII. Não é o facto de um cão estar acorrentado no pátio de uma casa (e não no seu interior) que retira essa função social que lhe é caraterística e intrínseca como também essa função não é excluída pelo facto do seu detentor desfrutar ou não da companhia ou entretenimento que o cão lhe pode proporcionar;

VIII. O bem jurídico protegido no crime de maus tratos a animais de companhia é a vida e a integridade física do animal de companhia;

IX. O fundamento constitucional encontra-se ínsito no art.º 66.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “ambiente e qualidade de vida” que, contempla a proteção dos animais, os quais são elementos ambientais concretos absolutamente imprescindíveis para o livre e saudável desenvolvimento da personalidade dos homens de hoje;

X. Os conceitos indeterminados previstos no tipo legal do crime de maus tratos a animais de companhia (“infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos”) “não preveem um conjunto indeterminado de condutas, de atos ou de objeto sobre os quais recaem os atos, mas sim uma previsão ampla e determinável, de forma a que a previsão legal abranja factos facilmente apreensíveis pelos destinatários e que, através de um juízo de razoabilidade destes, alcancem quais as condutas proibidas e sobre o que essas condutas são proibidas” com a ressalva dos factos que possam corresponder a qualquer “motivo legítimo”.

XI. Mais recentemente, o Plenário do Tribunal Constitucional no Ac. n.º 70/2024 pronunciou-se no sentido de não declarar a inconstitucionalidade da norma que prevê a incriminação de maus-tratos de animais de companhia;

XII. O art.º 387º do C.P. não é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 18º, n.º 2, 27º e 29º, n.º 1 da C.R.P.”

1.4. A Exma. Senhora Procuradora-Geral-Adjunta, junto deste Tribunal, emitiu douto parecer, nele concluindo pela negação de provimento o recurso, nos seguintes termos:

“Avaliada a sentença entendemos que a mesma não merece censura e que contrariamente ao alegado, o tribunal fez devido uso do princípio da livre apreciação da prova e relativamente ao principio in dubio pro reo, o mesmo não tem aplicação ao caso atento que não estamos perante uma dúvida irredutível quanto à propriedade e detenção do animal, já que se conclui da prova efetuada que o cão se mantinha naquele local, amarrado, desde a morte da mãe da arguida, momento em que também o seu irmão, original dono do cão, ali o deixou, isto em 2018, sendo a arguida que passou a tratar do mesmo, dando-lhe comida, água e acolhimento básico.

Resulta da prova que era a arguida a responsável pelo cão e que era sobre a mesma que recaia o dever de cuidado uma vez que o irmão há muito que não exercia essa qualidade de “dono” e só ia ao local esporadicamente. No caso em apreço o princípio in dubio pro reo jamais teria utilização.

Fazemos nossos os argumentos da I. colega do Ministério Público na 1ª Instância, entendendo que o recurso não merece acolhimento.”

1.5. Foi cumprido o art.º 417º, nº 2, do CPP.

1.6. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pela arguida, importa apreciar e decidir as seguintes questões:

1.6.1. Inconstitucionalidade das normas dos art.ºs 387º, nºs 1 e 2, e 389º, nº 1, do Código Penal;

1.6.2. Impugnação da decisão de facto;

1.6.3. Existência do dever de garante, relativamente a um animal de companhia.
1. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Factos a considerar

2.1.1. Na sentença condenatória recorrida foi considerada provada a seguinte factualidade:

“1. Desde o ano de 2018, pelo menos, a Arguida, é a cuidadora de um cão de grande porte, cor preta e de raça serra da estrela.

2. O referido animal possuía, em julho de 2021, cerca de 10 anos de idade.

3. A Arguida possuía o mencionado canídeo na sua residência sita na Rua ..., em ....

4. Sucede que, a Arguida, apesar de colocar água à disposição do canídeo, não o alimentava convenientemente e não lhe prestava a assistência clínica de que aquele necessitava.

5. Além disso, a Arguida não cuidava da sua higiene e da vacinação, mantendo-o diariamente acorrentado.

6. Assim, no dia 1 de julho de 2021, pelas 17h00m, a Arguida detinha o referido animal na sua residência, fechado numa casota de madeira tipo gaiola, não conseguindo este sequer manter-se em pé.

7. No dia seguinte, o canídeo foi recolhido e entregue no Centro Veterinário ..., onde ficou internado, com prognóstico muito reservado.

8. Com efeito, o aludido animal, para além de soltar um cheiro nauseabundo, apresentava ectoparasitas (por falta de higiene), alopecia da cauda, região dorsal, peito e membros posteriores, assim como pelo rarefeito e cheio de nós, com várias lesões crónicas resultantes de decúbito e dermatite alérgica à picada de pulga.

9. Acresce que, a nível ortopédico, apresentava ainda défices propriocetivos a nível dos membros posteriores, com bastante dor à manipulação.

10. E, devido à má alimentação que a Arguida lhe fornecia, o canídeo apresentava ainda anemia e sofria ainda de insuficiência renal e elevação das enzimas hepáticas.

11. Em virtude de permanecer sempre acorrentado e num espaço muito pequeno (uma casota em madeira), o referido canídeo não conseguia levantar-se sem ajuda, movimentava-se com extrema dificuldade, urinava e defecava apenas quando manipulado.

12. O referido animal, não obstante a terapêutica que lhe foi administrada, não apresentou quaisquer sinais de recuperação, acabando por ser eutanasiado.

13. A Arguida sabia que, ao privar o seu cão e animal de companhia de cuidados de higiene, médicos e alimentares, lhe causava doença e dor, sabendo ainda que lhe cabia prestar os cuidados necessárias à sua alimentação e recuperação da sua saúde, nada tendo feito, contudo.

14. Ao agir da forma descrita AA pôs em perigo a saúde e a vida do canídeo, perigo esse tanto mais real, quanto o referido animal veio a falecer.

15. A Arguida atuou da forma acima descrita sem que nada o justificasse.

16. A Arguida atuou da forma descrita, conhecedora de que a sua conduta teria como consequência necessária a morte do animal.

17. A Arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punida.

18. A Arguida encontra-se desempregada, auferindo pensão social no valor mensal de € 250,00, reside em casa própria com a sua irmã e com o filho, ambos desempregados; como habilitações literárias possui o 1.º ano de escolaridade.

19. A Arguida não possui antecedentes criminais.”

2.1.2. O Tribunal a quo motivou a decisão de facto, nos seguintes termos:

A consideração da factualidade suprarreferida como provada resulta da análise crítica e ponderada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, de acordo com as regras da experiência comum e à luz do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do Código de Processo Penal.

Concretamente, o Tribunal valorou: o auto de notícia (a fls. 4 e ss.), relatório clínico do Centro Veterinário (a fls. 9 e ss.), informação constante do Sistema de Informação de Animais de Companhia (a fls. 15), o assento de óbito da mãe e do cunhado da Arguida e o certificado de registo criminal da Arguida.

A Arguida prestou declarações em sede de audiência de julgamento, afirmando, através de um discurso confuso e desordenado, que o cão não era seu, mas do seu irmão que o levou para residência de ambos há cerca de 10 anos. Disse que o irmão mudou de residência, aquando da morte da mãe de ambos, tendo mantido o animal no mesmo local e, não obstante este ter saído da morada comum, era ele que diariamente se deslocava até ali para alimentar o animal. Assim, nunca foi a Arguida a responsável por alimentar o animal, e, por esse motivo, nunca deu qualquer alimento ao cão, só cuidando de fornecer água àquele e, de igual forma, admitiu que o animal nunca recebeu qualquer assistência veterinária, por não considerar o canídeo como sua responsabilidade.

Confirmou ainda que o animal se encontrava sempre acorrentado nas imediações da casota que lhe estava destinada e que observou o estado débil em que o animal se encontrava.

As testemunhas BB e CC, ambos militares da Guarda Nacional Republicana e aqueles que procederam à remoção do animal da residência da Arguida, em discurso isento, coerente e uníssono, relataram que se deslocaram à residência desta e que observaram o cão muito magro, debilitado, sem conseguir erguer-se, com algumas partes do seu corpo sem pelo, encontrando-se acorrentado a uma casota, que seria de tamanho adequado ao porte do animal. Disseram que, quando se apresentaram na residência da Arguida falaram com esta e com a sua irmã, explicando que a primeira relatou que o cão não era seu, mas do seu irmão, contudo era a Arguida que se encontrava entregue dos seus cuidados.

Afirmaram que, quando confrontada com o estado do animal, foi-lhes mostrada uma embalagem de ração para animais e, questionada sobre os motivos para o animal se encontrar naquele estado debilitado, a Arguida retorquiu que se devia a motivos financeiros.

A testemunha FF, através de um testemunho credível, imparcial e escorreito, descreveu que, na altura dos factos em apreciação costumava realizar caminhadas passando na residência da Arguida, tendo escutado um cão a gritar muito, que indicava sofrimento, durante um lapso temporal que estima ser aproximadamente de 10 dias.

Especificou que, o cão gritava tanto e de forma tão atroz que julgou que durante fim-de-semana o mesmo morreria, contudo terminado o fim-de-semana e voltando a passar na residência da Arguida, voltou a ouvir o cão a gemer, pelo que, impressionada pelo tempo em que o animal já se encontrava naquele estado e a forma como o mesmo gemia, pediu à sua filha que procedesse a queixa nas autoridades.

Afirmou que, durante os anos em que percorreu o caminho que passa pela casa da Arguida observou algumas vezes o cão, mas nunca atentou no estado daquele nem assistiu a alguém a maltratá-lo.

A testemunha GG, filha de FF, corroborou este depoimento, esclarecendo que nunca viu nem ouviu o choro do animal, somente se deslocou a casa da Arguida a fim de apurar qual era a morada correta daquela para realizar formalmente a denúncia.

As testemunhas HH, DD e EE, amigo, irmã e filho da Arguida, em depoimentos comprometidos e vagos, afirmaram perentoriamente que o animal era do irmão da Arguida, tendo sido este que o levou para a residência, enquanto cachorro e, que quando a mãe de ambos faleceu, o irmão deixou de residir ali, fixando residência em ..., contudo o cão permaneceu aos cuidados das pessoas ali residentes. Estas testemunhas foram uníssonas ao afirmar que o animal se encontrava, de forma ininterrupta, acorrentado e que era a Arguida que alimentava o animal.

DD, habitante da residência da Arguida desde há 4 anos, concretizou que o irmão passava muito tempo sem se deslocar ao local, sendo que, mesmo antes de ir morar para a residência da Arguida, adquiria pontualmente alimentos para o animal, dado que mais ninguém o fazia.

A testemunha EE tentou transmitir a ideia de que o seu tio, irmão da Arguida, se deslocava à sua residência frequentemente para alimentar o cão e, nas ocasiões em que não podia, pedia-lhe para ser ele a alimentá-lo.

Estas testemunhas afirmaram que, cogitaram levar o animal ao veterinário, contudo como este não lhes pertencia, decidiram não o levar.

Ante toda a prova produzida, documental e testemunhal, ao Tribunal não restaram dúvidas em dar como provado os factos pelos quais a Arguida vem acusada, ficando convencido que os factos ocorreram tal como constam na acusação.

Desde logo, assinale-se que o Tribunal não teve qualquer hesitação em considerar a Arguida como a detentora e cuidadora do animal.

Com efeito, não-obstante existirem mais habitantes na residência onde se encontrava o animal, o certo é que a Arguida reclamou para si a detenção do mesmo aquando da deslocação dos elementos militares à sua casa, não existindo registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia a demonstrar a propriedade do animal por terceiro.

É de relevar que todas as testemunhas asseveraram que era o irmão da Arguida o dono do animal, contudo as mesmas atestaram que aquele não reside na Rua ..., em ..., desde que a sua mãe faleceu, pelo que, tendo esta falecido a 12/03/2018, resulta que o mesmo não habitava aquela residência, na data dos factos há, pelo menos, 3 anos. Daqui resulta que, durante 3 anos a Arguida se encontrou encarregue dos cuidados do animal, devendo ser esta a prover pelo seu sustento e pelos seus cuidados, atenta a proximidade e imediação que detinha com o animal.

Isto posto, ressalte-se que não pode a Arguida escudar-se na justificação de que o animal era do seu irmão quando este foi levado para a sua residência há mais 10 anos, permanecendo toda a sua vida no logradouro da sua habituação e, desde o ano de 2018, despreze o mesmo entregando-o “à sua sorte”, aguardando que terceiros prestem os cuidados que o animal precisaria.

Além de que, não se desconsidera o facto de que, não reúne a mínima razoabilidade o argumento de que o irmão teria levado o animal para a residência comum com a Arguida e somente uma pessoa estaria entregue de todos os cuidados do animal, e, mesmo que assim fosse, o expectável e decorrente da normalidade dos factos seria que, quando essa pessoa se ausentasse, outro residente assumisse os cuidados.

É de relevar ainda o facto de a irmã da Arguida, II, não poder ser considerada a detentora do animal, pois como esta testemunha referiu no seu depoimento apenas se mudou para a residência da Arguida após a morte do seu cônjuge que ocorreu a 23/04/2021, pelo que à data dos factos, esta residia há escassos meses naquele local.

Depois, assinalem-se os factos admitidos pela Arguida.

Assim, admitiu que nunca forneceu qualquer alimento ao animal, nunca cuidou de prover pela assistência veterinária àquele, que estava permanentemente acorrentado à casota e ainda que observou o estado frágil em que o animal se encontrava.

Apenas com estes factos, é patente a incúria empreendida para com o canídeo e, tanto assim o é, que as testemunhas militares descreveram o mau trato que este sofreu por falta de cuidados, que demonstra uma falta de cuidados por um período prolongado de tempo.

O que não pode ser considerado como vulgar e normal é que um animal acorrentado, aguarde pela chegada de uma pessoa para ser alimentado e cuidado, ainda para mais, como foi referido pelas testemunhas DD e EE, quando a ida do irmão da Arguida não era regular e frequente.

Outro elemento que o Tribunal tem de valorar é a descrição realizada pela testemunha FF que descreveu ao Tribunal que, durante vários dias, escutou os gemidos do animal com sofrimento, que descreveu como tão doloroso de ouvir que a motivou a pedir à sua filha para realizar uma denúncia.

Ora, se uma pessoa que passe na via pública escuta tais gemidos provindos do animal, a Arguida que dividia o espaço com aquele, com toda a certeza também os ouviria.

Quanto ao estado de saúde do animal, relevou o teor do relatório clínico e as imagens fotográficas ali constantes que, descreve as patologias de saúde e o estado clínico do animal, atestando um mau estado geral do animal, com cheiro nauseabundo, falta de cuidados de higiene evidentes e muito debilitado, apresentando alopecia da cauda, região dorsal, zona do peito e membros posteriores, pelo rarefeito e cheio de nós, com várias lesões de pele crónicas resultantes de decúbito e dermatite alérgica à picada de pulga, tendo os ouvidos sujos, possuindo seborreia, cataratas em estado maduro. Foi ainda verificado a presença de anemia, insuficiência renal e elevação das enzimas hepáticas. Em face de todas estas condições, foi considerado que não havia recuperação viável, pelo que foi determinada a eutanásia humanitária.

Note-se que, não obstante o relatório clínico não se encontrar assinado, o mesmo contém a identificação expressa da médica veterinária com o respetivo número de cédula profissional e todas as páginas que o compõem encontram-se devidamente rubricadas. Assim, não se suscitam dúvida no que respeita à identificação do seu autor e nem quanto ao facto de o relatório ter sido emitido por entidade com competência para atestar o que nele consta, por isso, foi o relatório clínico valorado ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova (art.º 125.º do Código de Processo Penal).

A inexistência de justificação para os comportamentos da Arguida, ficaram patentes da conjugação de toda a prova produzida, realçando-se a postura assumida por esta de desresponsabilização de todos os atos, pelo facto do animal não ser seu, pois o mesmo encontrava-se na sua esfera de poder, podendo empreender em cuidados mínimos de saúde, de forma a minimizar o sofrimento sentido pelo mesmo.

No que concerne à consciência e vontade de assim atuar, o Tribunal considerou as declarações prestadas pela Arguida e pelas testemunhas DD e EE, através das quais, mais uma vez, ficou patente que a Arguida atuou assim por o canídeo não ser seu, tendo plena consciência de que um animal acorrentado, de forma permanente, se encontra impossibilitado de diligenciar por alimento e ainda pelo facto de não pretender suportar os custos económicos associados aos cuidados de higiene e saúde.

Com esta conduta, a Arguida sabia qual era o resultado que advinha do seu comportamento, sendo o agravamento da saúde, a dor e mesmo o resultado morte do animal, consequência direta e necessária de tal decisão tomada pela Arguida, resultado que esta figurou que pudesse acontecer, agindo sempre de forma livre, voluntária e consciente.

Quanto às condições socioeconómicas da Arguida, o Tribunal valorou as declarações prestadas pela mesma em sede de audiência de julgamento, não emergindo razões para que se questione a veracidade das mesmas.

E, por último, valorou-se o teor do certificado de registo criminal quanto à inexistência de antecedentes criminais da Arguida.

O facto considerado como não provado, resulta das declarações de todas as testemunhas e do próprio depoimento da Arguida que foram perentórios e assertivos em atestar que quem acolheu o canídeo foi o irmão desta, sendo que só após este sair da residência de ambos é que a Arguida ficou encarregue dos cuidados do animal.”

2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos

Comecemos por sublinhar que é entendimento pacífico, enquanto resumo das razões do pedido, nos termos do art.º 412º, nº 1, do CPP, que são as conclusões da motivação do recurso que delimitam o seu objeto, por ser à luz delas que se extrai o essencial e o âmbito de todas as questões a apreciar, sem prejuízo, nos termos do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, do conhecimento oficioso dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito, ou ainda das nulidades da sentença, previstas no art.º 379º. Ou seja, como ensina o Professor Germano Marques da Silva, após afirmar que são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso: “As conclusões devem ser concisas, precisas e claras, porque são as questões nelas sumariadas que hão de ser objeto de decisão. As conclusões resumem a motivação e, por isso, que todas as conclusões devem ser antes objeto da motivação (…) Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal só poderá considerar as conclusões; se vão além também não devem ser consideradas porque as conclusões são o resumo da motivação e esta falta.”

2.2.1. Da inconstitucionalidade das normas dos art.ºs 387º, nºs 1 e 2, e 389º, nº 1, do Código Penal

Suscita a recorrente a inconstitucionalidade das normas dos art.ºs 387º, nºs 1 e 2, e 389º, nº 1, do Código Penal, por violação dos artigos 18º, n.º 2, 27º e 29º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Para além da tópica e conclusiva referência à inconstitucionalidade dos artigos apontados, e aos artigos da Constituição por eles alegadamente postos em causa, não aduz a recorrente um qualquer concreto fundamento, desde logo na motivação do recurso, que pudesse dar sentido à inconstitucionalidade por si invocada.

Vem sendo entendimento reiteradamente sustentado pelo Tribunal Constitucional, com fundamento ainda no disposto no art.º 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional[1], que no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, é necessário invocar uma questão de inconstitucionalidade normativa, em termos análogos aos referidos no Acórdão nº 269/94 do Tribunal Constitucional, ou seja, “de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir”. Continuando-se o no referido aresto: “Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma), que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringidos”. E isto porque a questão de inconstitucionalidade tem de ser concreta, porquanto respeite a ato normativo a aplicar num determinado caso concreto, ou seja, “tal como foi aplicada no caso concreto”, pois é isso que distingue a fiscalização concreta da fiscalização abstrata da constitucionalidade: esta “consiste num confronto abstrato entre uma norma infraconstitucional e a Constituição, independentemente de qualquer caso concreto (…) Ao invés, a fiscalização concreta incide sobre uma norma tal como foi aplicada ou desaplicada na decisão recorrida, isto é, na sua incidência limitada  ao caso do processo[2].

De qualquer modo, sobre a inconstitucionalidade da norma incriminatória contida no art.º 387º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, e especificamente sobre a norma incriminatória contida no artigo 387.º, n.º 3, do Código Penal, na redação também introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto, já se pronunciou o Tribunal Constitucional, em plenário, através do Acórdão nº 70/2024, de 23/01/2024, decidindo não declarar a inconstitucionalidade daquelas normas, com fundamento na violação dos art.ºs 18º, nº 2, 27º e 29.º, n.º 1, da CRP. Juízo de não inconstitucionalidade que é também válido para a norma do art.º 389º do Código Penal, relativamente à qual não vislumbramos, como não vislumbrou o Tribunal Constitucional no Acórdão referido para as normas ali sindicadas, uma qualquer inconstitucionalidade por violação dos art.ºs 18º, nº 2, 27º e 29º, nº 1, da CRP, relativamente à qual, aliás, como relativamente às restantes, não aduz a recorrente um mínimo e concreto fundamento. Cumprindo realçar que, mesmo considerando ter sido o citado Acórdão do Tribunal Constitucional tirado por simples maioria de votos, a verdade é que, além de ter sido muito recente a sua prolação, também não descortinamos a existência de novas razões ou fundamentos que pudessem servir a possibilidade de pôr em causa a orientação ali adotada e assim também a segurança jurídica e a igualdade de tratamento que por via dela se visou alcançar.

Razão por que, neste segmento, irá ser negado provimento ao recurso.

2.2.2. Impugnação da decisão de facto

Entende o recorrente que “não se logrou realizar prova” dos factos descritos nos pontos 1., 3., 4., 5., 6., 15., 16. e 17. da decisão recorrida, concluindo que os mesmos deverão ser dados como não provados.

Como fundamento para uma tal afirmação seleciona excertos dos depoimentos das testemunhas BB, CC, agentes da GNR que compareceram no local onde se encontrava o canídeo nas circunstâncias dadas como provadas, DD, irmã da arguida, e EE, filho da arguida, que com esta vivia, na casa onde o referido animal se encontrava. Excertos de depoimentos que, aliás, a recorrente transcreve na motivação do recurso.

Ora, sobre os depoimentos das duas últimas testemunhas acima referidas, assim como relativamente ao depoimento da testemunha HH, amigo da arguida, pronunciou-se o Tribunal a quo nos seguintes termos (já acima transcritos, mas que a economia da decisão a proferir justifica se volte a transcrever neste concreto segmento):

As testemunhas (…) em depoimentos comprometidos e vagos, afirmaram perentoriamente que o animal era do irmão da Arguida, tendo sido este que o levou para a residência, enquanto cachorro e, que quando a mãe de ambos faleceu, o irmão deixou de residir ali, fixando residência em ..., contudo o cão permaneceu aos cuidados das pessoas ali residentes. Estas testemunhas foram uníssonas ao afirmar que o animal se encontrava, de forma ininterrupta, acorrentado e que era a Arguida que alimentava o animal.

DD, habitante da residência da Arguida desde há 4 anos, concretizou que o irmão passava muito tempo sem se deslocar ao local, sendo que, mesmo antes de ir morar para a residência da Arguida, adquiria pontualmente alimentos para o animal, dado que mais ninguém o fazia.

A testemunha EE tentou transmitir a ideia de que o seu tio, irmão da Arguida, se deslocava à sua residência frequentemente para alimentar o cão e, nas ocasiões em que não podia, pedia-lhe para ser ele a alimentá-lo.

Estas testemunhas afirmaram que cogitaram levar o animal ao veterinário, contudo como este não lhes pertencia, decidiram não o levar.

Ante toda a prova produzida, documental e testemunhal, ao Tribunal não restaram dúvidas em dar como provado os factos pelos quais a Arguida vem acusada, ficando convencido que os factos ocorreram tal como constam na acusação.

Desde logo, assinale-se que o Tribunal não teve qualquer hesitação em considerar a Arguida como a detentora e cuidadora do animal.

Com efeito, não obstante existirem mais habitantes na residência onde se encontrava o animal, o certo é que a Arguida reclamou para si a detenção do mesmo aquando da deslocação dos elementos militares à sua casa, não existindo registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia a demonstrar a propriedade do animal por terceiro.

É de relevar que todas as testemunhas asseveraram que era o irmão da Arguida o dono do animal, contudo as mesmas atestaram que aquele não reside na Rua ..., em ..., desde que a sua mãe faleceu, pelo que, tendo esta falecido a 12/03/2018, resulta que o mesmo não habitava aquela residência, na data dos factos há, pelo menos, 3 anos. Daqui resulta que, durante 3 anos a Arguida se encontrou encarregue dos cuidados do animal, devendo ser esta a prover pelo seu sustento e pelos seus cuidados, atenta a proximidade e imediação que detinha com o animal.

Isto posto, ressalte-se que não pode a Arguida escudar-se na justificação de que o animal era do seu irmão quando este foi levado para a sua residência há mais 10 anos, permanecendo toda a sua vida no logradouro da sua habituação e, desde o ano de 2018, despreze o mesmo entregando-o “à sua sorte”, aguardando que terceiros prestem os cuidados que o animal precisaria.

Além de que, não se desconsidera o facto de que, não reúne a mínima razoabilidade o argumento de que o irmão teria levado o animal para a residência comum com a Arguida e somente uma pessoa estaria entregue de todos os cuidados do animal, e, mesmo que assim fosse, o expectável e decorrente da normalidade dos factos seria que, quando essa pessoa se ausentasse, outro residente assumisse os cuidados.

É de relevar ainda o facto de a irmã da Arguida, II, não poder ser considerada a detentora do animal, pois como esta testemunha referiu no seu depoimento apenas se mudou para a residência da Arguida após a morte do seu cônjuge que ocorreu a 23/04/2021, pelo que à data dos factos, esta residia há escassos meses naquele local.

Depois, assinalem-se os factos admitidos pela Arguida.

Assim, admitiu que nunca forneceu qualquer alimento ao animal, nunca cuidou de prover pela assistência veterinária àquele, que estava permanentemente acorrentado à casota e ainda que observou o estado frágil em que o animal se encontrava.

Apenas com estes factos, é patente a incúria empreendida para com o canídeo e, tanto assim o é, que as testemunhas militares descreveram o mau trato que este sofreu por falta de cuidados, que demonstra uma falta de cuidados por um período prolongado de tempo.”

Em primeiro lugar, importa dizer que os excertos dos depoimentos invocados não constituem concretos meios de prova que especificadamente imponham decisão diversa da recorrida, nos termos exigidos pelo art.º 412º, nº 3, al. b), do CPP. Só assim seria, como parece acreditar a recorrente quando diz que “não se logrou realizar prova” dos factos, se além daqueles excertos não existissem outros e outros meios de prova que atestassem a realidade dos factos dados como provados pelo Tribunal quo, como efetivamente existem, e melhor veremos mais adiante. Para não falar no critério com que os excertos dos depoimentos são escolhidos, omitindo a recorrente muitos outros, num contexto de argumentação em prol de uma convicção alternativa à que foi formada pelo Tribunal a quo, mas com um modo de procedimento que os torna também patentemente inócuos para lograr a pretendida alteração da decisão da matéria de facto, ademais se considerarmos ainda as declarações da própria arguida, e sobretudo da testemunha FF, cujas declarações ouvimos na integra, e a recorrente ostensivamente ignora, numa mera tática processual que legitimamente usa para procurar obter sucesso na pretensão por si deduzida. Como, nomeadamente, se extrai das suas declarações prestadas em audiência de julgamento, quando a partir do minuto 7:32 diz que soltava às vezes o cão (“soltava-o eu às vezes”), revelando assim que tinha afinal com o canídeo uma mínima relação, mas de seguida, repetindo-se pela enésima vez, afirma: “o cão não era meu”. Ou quando perguntada ao minuto 11:40 se o cão estava fechado, responde: “o cão estava no meu quinteirito. No terraço vá.” Confirmando de seguida que estava fechado com um cadeado. E quando lhe foram exibidas fotografias que revelavam o estado em que se encontrava o animal, e perguntada se tinha visto como estava o cão, a resposta evasiva foi, mais uma vez: “Mas ele não era meu”. E insistindo-se na pergunta, responde ao minuto 16:00: “Eu sei”. Ou seja, que sabia do estado em que se encontrava o canídeo. E perguntando-se-lhe de seguida o que é que ela fez, respondeu novamente que o cão não era dela, era do irmão. E persistindo-se na pergunta, responde “Ai eu não fiz nada, Senhor (…) o cão era do meu irmão!” E ao minuto 17:40, novamente: “Eu não fiz nada ao bicho”. Olvidando que a grande questão sub iudice foi o não ter feito nada, enquanto omissão do dever de cuidado que sobre ela recaia. Sendo que a testemunha BB e CC confirmaram que a irmã da arguida, na presença desta, confirmou ser a arguida a arrendatária da habitação e a detentora do cão, embora também dissesse que o cão era do irmão. Declarando a testemunha CC, a partir do minuto 04:05, que na altura o animal tinha apenas água e que depois a arguida ou a irmã lhes mostraram um saco com ração que estava dentro da habitação. Circunstância que denuncia a realidade muito plausível de que, tanto o cão como a ração a ele destinada, se encontravam no espaço habitacional da recorrente, e assim na esfera da sua disponibilidade empírica, sob o seu poder de facto.

Finalmente, a testemunha FF, que a partir do minuto 1:40 disse ter passado muitas vezes à frente da casa da arguida e ter ouvido um cão a gritar de sofrimento, “dias e dias seguidos”, a partir do minuto 7:035, quando é interpelada sobre se sabia quem é que era o responsável pelo cão, responde a testemunha que só sabia que o cão estava ali, acrescentando, eloquentemente: “Uma vez perguntei a alguém que vivia perto, quando comecei a ouvir aquele sofrimento daquele cão, disse assim: o que é que se passa com aquele animal? E disseram-me: - Nós não sabemos.” Retorquindo então a testemunha: “E vós tendes coragem de viver à beira assim dum animal e ele sofrer de noite e de dia? E eu disse assim: deve ser impossível poder viver em frente ou aqui à beira, com o sofrimento do animal”.

Ou seja, era impossível o alheamento da arguida relativamente à situação de sofrimento em que o canídeo se encontrava, precisamente no logradouro da sua habitação, numa casota acorrentado, que ficava entre o portão da entrada e as escadas que davam para o piso da habitação propriamente dita, e assim também não ter noção de que o canídeo se encontrava sob o seu domínio de facto, tanto mais que, tendo a sua mãe falecido em 12/03/2018 e tendo sido nessa altura que o irmão abandonou a casa, separando-se desse modo do animal, é do mais elementar senso comum que também a partir dessa data o cão ficaria entregue ao cuidado da recorrente, pois abandonado ficou na casa desta, e só nesta casa em bom rigor podia estar ou não nas condições em que efetivamente se encontrava.

É consabido que os critérios da apreciação do mérito do recurso da decisão proferida sobre a matéria de facto resultam claramente enunciados no art.º 412º, nº 3, al. a) e b), do CPP. Estando tal apreciação dependente da especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, assim como das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, sendo que tal requisito só resultará satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida[3]. E tendo tais provas sido gravadas, como dita o nº 4 do mesmo artigo, as especificações previstas na al. b) deverão ser feitas por referência ao consignado em ata, nos termos do disposto no nº 3 do art.º 364º, indicando o recorrente concretamente as passagens em que funda a impugnação. Sendo que, na ausência de consignação em ata, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 3/2012[4] do Supremo Tribunal de Justiça determina que bastará a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da recorrida, desde que as mesmas sejam transcritas.

Subjacente às disposições normativas do art.º 412º, nºs 3, al. a) e b), e 4, do CPP, está a circunstância de o recurso da decisão da matéria de facto visar a correção de erros de julgamento concretamente identificados e não um novo julgamento ou a repetição do julgamento já realizado, porquanto nesse novo julgamento o tribunal de recurso não gozaria das vantagens advenientes da oralidade e da imediação na produção da prova de que gozou o tribunal da primeira instância, estando nessa medida menos apetrechado que este para formar devidamente a sua convicção e com ela alcançar eficazmente a descoberta da verdade material.

Voltando ao caso dos autos, é certo que a recorrente especificou os concretos pontos de facto da decisão recorrida que considera terem sido erradamente julgados. Fê-lo, todavia, com uma fundamentação essencialmente assente numa rebuscada  argumentação, em grande parte com um exercício hermenêutico de desconstrução da motivação da decisão de facto recorrida, procurando razões que configuram verdadeiras reapreciações da prova produzida, de um modo parcial, porque baseado ainda em excertos de declarações ou depoimentos anódinos, sobretudo porque ostensivamente alheados de outros e de outros meios de prova que claramente sustentam a bondade da decisão recorrida, e fundamentalmente sem que, em algum momento suscitasse verdadeiramente a existência de um erro específico relativamente a um concreto ponto de facto, sustentado num específico segmento probatório que indubitavelmente permitisse afirmar que a decisão recorrida estava errada e que se impunha por isso uma outra decisão, ou nos levasse a concluir pela existência de uma dúvida séria, relevante e insuperável sobre a realidade de algum facto dado como provado pelo Tribunal a quo, que impusesse a aplicação do princípio in dubio pro reo,  isto é, a persistência de uma dúvida razoável e insanável que determinasse ao julgador uma pronúncia favorável ao arguido, no sentido de ser dado tal facto ou tais factos controvertidos como não provados. Sendo que o que resulta da apreciação do mérito da impugnação da decisão de facto deduzida pela recorrente é que a mesma não logra pôr em causa tal decisão, assim como a fundamentação que a sustenta, esta expendida e assente nas regras da experiência comum, como dita o art.º 127º do CPP.

Razão por que irá ser julgada improcedente a impugnação da decisão de facto deduzida pela arguida.

2.2.3. Da existência do dever de garante, bem como a sua verificação relativamente a um animal de companhia

Neste segmento do recurso alega a recorrente que “não se encontra preenchido o elemento objetivo do ilícito típico, quando o mesmo é praticado por omissão – o dever de garante”. Acrescentando que “o animal em apreço além de nunca ter sido detido pela Arguida, nunca permaneceu no interior do seu lar, e em momento algum desempenhou a função social de lhe proporcionar entretenimento e companhia”, à luz do art.º 389º do CP. E com base no facto de o animal ter permanecido “sempre acorrentado e num espaço muito pequeno - uma casota em madeira”, conclui que o mesmo “terá de ser excluído do conceito de animal de companhia protegido pela norma incriminadora”.

O dever de garante invocado pela recorrente prende-se com o facto de o preenchimento do tipo de crime ter ocorrido por omissão da ação adequada a evitar o resultado de maus tratos nele previsto, de harmonia com o disposto no art.º 10º, nºs 1 e 2, do CP: o nº 1 ao estabelecer que “Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a ação adequada a produzi-lo como a omissão da ação adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei”; e o nº 2 que “A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado”.

A questão da comissão por omissão coloca-se fundamentalmente ao nível da imputação objetiva do resultado típico à conduta do agente, isto é, do nexo de causalidade adequada, assente num “perigo idóneo” à produção de um resultado típico ou, centrando-nos no aperfeiçoamento que teoricamente vem sendo dado no âmbito da imputação objetiva pelas conceções doutrinais mais atuais, de que um tal resultado só poderá ser imputado a uma determinada ação quando ela haja criado, aumentado ou incrementado um risco proibido para o bem jurídico protegido pela norma incriminadora e que um tal risco se haja “materializado no resultado típico”[5]. Sendo que, tratando-se de crime cometido por omissão, e enquanto “delito de dever” que é, tal nexo de imputação só existirá quando o agente, em violação de um dever de garante que lhe estava imposto, não diminuiu o perigo que se veio a materializar ou a concretizar no resultado típico[6].

Ora, foi isso exatamente o que aconteceu no caso dos autos, como bem referiu o Tribunal a quo, definindo logo à partida, de forma literalmente coincidente com a descrição feita pelo Professor Paulo Pinto de Albuquerque, o crime de morte e maus tratos de animal de companhia, como “um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação)[7], acrescentando-se na decisão recorrida:

Ora, dos factos provados resulta que o animal permanecia no logradouro da habitação da Arguida, pelo que tem de se considerar a mesma como a sua detentora e, isto porque, sem prejuízo da Arguida não ser a responsável pela ida do animal para a sua habitação, o certo é que a mesma se responsabilizou pelo mesmo, assumindo os cuidados por este, permitindo e aceitando que permanecesse naquele local. Destes fatores a única conclusão que se retira é que a Arguida era, sem dúvida, a detentora do canídeo.

(…)

O elemento objetivo contido no art.º 387.º consiste na provocação de morte, dor, sofrimento ou outros maus-tratos físicos infligidos um animal de companhia, segundo Paulo Pinto de Albuquerque os maus-tratos incluem as condutas de confinamento de um animal de companhia num espaço demasiado exíguo, de privação de alimentos ou de manutenção em condições insalubres (in ob. cit., pág. 1357).

Constituindo um crime de resultado, os elementos objetivos são passíveis de ser preenchidos por ação, através da prática da conduta apta a produzir o resultado, ou por omissão da ação adequada a evitar o resultado, isto é, quando sobre o omitente recaia um dever jurídico de garante (art. 10.º, n.ºs 1 e 2 do CP).

É, por outro lado, o art.º 3º, al. a), do DL nº 82/2019, de 27 de junho, diploma que veio criar o Sistema de Informação de Animais de Companhia, que define 'Detentor', como “a pessoa singular ou coletiva que se encontre na situação de possuidor precário, nos termos previstos no artigo 1253.º do Código Civil, de animal de companhia, e que, por esse facto, e enquanto se mantiver como detentor, se torna responsável pela sua guarda, acomodação ou utilização, com ou sem fins comerciais, num determinado momento[8]. E possuidor precário, ou mero detentor, nos termos do art.º 1253º do Código Civil são todos aqueles que exerçam o poder de facto sem intenção de agir como beneficiário do direito, ou os que simplesmente se aproveitem da tolerância do titular do direito, ou os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem – al. a) a c) do art.º 1253º do CC.

Não havendo dúvidas, portanto, face aos factos dados como provados, de que a ora recorrente era a detentora do canídeo, desde logo porque o mantinha sob a sua esfera de disponibilidade, ou poder de facto, e relativamente ao qual lhe competia entregá-lo àquele que a mesma recorrente alegou ser o seu dono, ou dando-lhe prazo para o retirar da esfera espacial do seu domínio de facto, concretamente o logradouro da sua casa, onde o tinha enjaulado e acorrentado, ou, não o fazendo, diligenciar para que o mesmo fosse entregue a entidade competente para o receber, nomeadamente um canil ou qualquer organização que lhe pudesse dar o tratamento adequado, que a recorrente efetivamente não deu.

E sobre o dever jurídico de atuar nos crimes de maus tratos a animais por omissão, que no caso dos autos decorria do facto de ser a recorrente a detentora do animal, refere a Professora Conceição Valdágua que “nada há a acrescentar em relação à generalidade dos crimes omissivos impuros ou impróprios. Valem aqui as mesmas fontes formais (lei, contracto e ingerência) e materiais (fundamentalmente a proximidade fáctica com o bem jurídico e domínio fáctico sobre as fontes de perigo) da posição de garante que funcionam para qualquer outro crime comissivo por omissão.

A omissão desempenha um papel extremamente importante no âmbito dos crimes de maus tratos a animais de companhia, porquanto, a maioria dos crimes de maus tratos a animais são cometidos por omissão de alimentação, de abeberamento, de cuidados médico-veterinários, de proteção contra golpes de calor e intempéries, por omissão de atuação dos agentes policiais para fazerem cessar a execução do crime, etc., que frequentemente provocam grande sofrimento e a morte a muitos animais.

Assim, cometerá o crime de maus tratos por omissão quem, tendo ao seu cuidado um animal de companhia não lhe fornecer alimentos e água, sujeitando-o à fome e à sede ou não lhe prestar a assistência médico-veterinária de que neste concreto ponto, necessite em caso de doença”[9].

Ou seja, a recorrente, com fundamento no dever de garante que sobre si impendia, por ser a detentora do animal, cometeu o crime de maus tratos de que vinha acusada, na medida em que o resultado típico verificado adveio do facto de não alimentar convenientemente, nem prestar os cuidados de higiene ou propiciar a assistência clínica de que o animal necessitava, deixando-o deliberadamente acorrentado numa casota tipo gaiola, na qual o animal não conseguia sequer manter-se de pé, apresentando um cheiro nauseabundo, ectoparasitas (por falta de higiene), alopecia da cauda, região dorsal, peito e membros posteriores, assim como pelo rarefeito e cheio de nós, com várias lesões crónicas resultantes de decúbito e dermatite alérgica à picada de pulga, e ainda ao nível ortopédico, apresentava défices propriocetivos dos membros posteriores, com bastante dor à manipulação, sendo que, devido à má alimentação que a recorrente lhe fornecia, apresentava ainda anemia e sofria de insuficiência renal e elevação das enzimas hepáticas, não conseguindo o canídeo  levantar-se sem ajuda, movimentando-se com extrema dificuldade, urinando e defecando apenas quando manipulado – cf. pontos 4 a 11 dos factos provados.

Invocando o art.º 389º, nº 1, do CP, no qual se fornece o conceito geral de animal de companhia, e assim o âmbito dos animais que são objeto da proteção típica do art.º 387º do CP, diz a recorrente que o canídeo dos autos não pode ser considerado animal de companhia, pois o mesmo encontrava-se “permanentemente no logradouro e nunca entrou na habitação”.

A recorrente pretende assim, sem qualquer suporte na letra e no espirito da lei, limitar o alcance da hipótese da norma citada, reduzindo-a aos casos em que se demonstre o destino efetivamente dado ao animal por quem o detém na sua esfera de disponibilidade empírica, o que redundaria na afirmação do império da vontade do respetivo detentor, que arbitrariamente decidiria se um determinado animal deveria ou não ser considerado da “sua” companhia, nomeadamente por partilhar ou não com ele o espaço habitacional propriamente dito, ou seja, o local onde o próprio detentor dormisse, tomasse as refeições e fizesse a sua higiene, com a consequência de o animal que ficasse fora desse espaço, à luz do entendimento agora defendido pela recorrente, não poderia ser tido como animal de companhia, logo, e assim ficariam à partida legitimados, do ponto de vista jurídico-penal, por atipicidade, quaisquer maus tratos sobre animais que não vivessem com o dono ou possuidor naquele restrito espaço da sua habitação.

Não é isso, porém, o que resulta da norma do art.º 389º, nº 1, do CP, quando aí se diz que animal de companhia é não só aquele que é detido por seres humanos no seu lar para seu entretenimento e companhia, mas também os que a tal estejam destinados, por natureza, como acontece com os animais das espécies sujeitas a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia, criado pelo DL nº 82/2019, cujo art.º 4º, nº 1, remete para a parte A do Anexo I do Regulamento (UE) n.º 576/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de junho de 2013, e a parte A do anexo I do Regulamento (UE) n.º 2016/429, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de março de 2016, cujos artigos 3º, al. b), e 4º, nº 11, definem como animais de companhia os das espécies listadas no Anexo I, ou seja, entre outros, e em lugar de topo os Cães, eloquentemente aí mencionados entre parêntesis na expressão latina “Canis lupus familiaris”. É também o que resulta do art.º 389º, nº 3, do CP, ao estabelecer que “São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância”.

Usando as palavras do Professor Paulo Pinto de Albuquerque, “o animal de companhia inclui, entre outros, todas as espécies sujeitas a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (cães, gatos e furões)[10], coincidentemente, aliás, com o que resulta das normas supracitadas, dos também referidos Regulamentos do Parlamento Europeu e do Conselho.

A demonstração do destino dado ao animal, isto é, de animal de companhia ou de entretenimento, só será necessária nos casos de animais que não estejam a tal normalmente ou habitualmente destinados, como acontecerá, por exemplo, com os répteis.

Chegados a este ponto, somos levados a concluir que, ao contrário do pretendido pela recorrente, não só esta era a detentora do animal, relativamente ao qual se lhe impunha um dever jurídico de garante, como tal animal era ainda um animal de companhia, nos termos e para os efeitos dos art.ºs 387º e 389º do CP.

Razão por que, também neste segmento, improcederá o recurso.

2.3. Responsabilidade pelo pagamento das custas
Uma vez que a arguida decaiu totalmente no recurso interposto é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal).
Nos termos do disposto nos art.º 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii.
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 UC.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal (4ª Secção Judicial) deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a impugnação da decisão de facto deduzida pela arguida AA, negando quanto ao mais provimento ao recurso pela mesma interposto.
Custas a cargo da Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

Porto, 2024-05-08
Francisco Mota Ribeiro
Manuel Soares
William Themudo Gilman
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[1] Ao dispor que “Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”.
[2] J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª Edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, p. 941.
[3] Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2011, p. 1144.
[4] Publicado no Diário da República nº 77, Série I, de 2012-04-18.
[5] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3ª dição, GESTLEGAL, Coimbra, 2019, p. 387 e ss.
[6] Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Idem, p. 1061.
[7] Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2021, p. 1321.
[8] Noção que se harmoniza com a do art.º 2º, al. v), do DL nº 276/2001, de 17/10, que visou a aplicação em Portugal da Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia e um regime especial para a detenção de animais potencialmente perigosos, ao considerar “‘Detentor’ qualquer pessoa, singular ou coletiva, responsável pelos animais de companhia para efeitos de reprodução, criação, manutenção, acomodação ou utilização, com ou sem fins lucrativos”.
[9] Maria da Conceição Valdágua, “O CRIME DE MAUS TRATOS A ANIMAIS DE COMPANHIA”, Revista Jurídica Luso-Brasileira, Ano 7 (2021), nº 2, p. 1144 e ss.
[10] Idem, p. 1327.