Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ARISTIDES RODRIGUES PIRES | ||
Descritores: | REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS | ||
Nº do Documento: | RP202401118521/22.8T8VNG-C.P1 | ||
Data do Acordão: | 01/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - A liberdade de circulação do progenitor não pode contender com o superior interesse da criança. II - Pode justificar-se a proibição de o progenitor levar a criança consigo para fora do país se isso implicar o risco de a saída do país ser definitiva e irreversível e ter por objectivo privar a criança dos contactos com o outro progenitor III - O facto de o progenitor ser nacional de outro país não é, por si só, suficiente para justificar essa proibição. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2024:8521.22.8T8VNG.C.P1 * SUMÁRIO:……………………………… ……………………………… ……………………………… ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: I. Relatório: AA, contribuinte fiscal n.º ..., portador do cartão de cidadão n.º ..., residente em Vila Nova de Gaia, instaurou contra a ex-mulher BB, contribuinte fiscal n.º ..., portadora do cartão de cidadão n.º ..., residente em Vila Nova de Gaia, acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais do filho menor de ambos CC, nascido a .../.../2018. Realizada conferência dos progenitores, não foi obtido o acordo destes sobre o regime a fixar. Após diligências, foi fixado o seguinte regime provisório de regulação: «1. O menor ficará à guarda e cuidados da mãe. 2. As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do menor serão exercidas em comum por ambos os progenitores, salvo, nos casos de manifesta urgência, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações de mediato ao outro, por chamada telefónica ou em caso de impossibilidade por SMS. 3. O exercício das responsabilidades relativas às questões de vida corrente do menor caberá ao progenitor com quem se encontre em cada momento, não podendo, no entanto, o progenitor, ao exercer as suas responsabilidades, contrariar as orientações educativas mais relevantes tal como elas são definidas pela progenitora. 4. O pai poderá estar com o menor todos os dias, indo busca-lo à escola e entregando-o na casa de morada de família até às 19h30, bem com aos Sábados e Domingos entre as 14 e as 17 horas. 5. O pai entregará à progenitora, a título de pensão de alimentos, a quantia mensal de 100 euros, que deverá depositar até ao dia 8 de cada mês, em conta bancária a indicar pela mãe. 6. O pai suportará ainda metade das despesas médicas, medicamentosas e com materiais escolares necessários ao menor, sempre na parte não comparticipada pelos serviços competentes, mediante a apresentação de factura ou recibo, em nome da criança e com o seu NIF. 7. Todas as despesas com saúde, caso se tratem de despesas não comparticipadas pelo sistema nacional de saúde, deverão reunir o consenso de ambos os progenitores, dado que se tal não ocorrer, o progenitor que leve o menor a consultas privadas e/ou exames em instituições particulares ou não comparticipadas, assume as mesmas sem que ao outro possa imputar e peticionar algo que com as mesmas se relacione.» As partes foram remetidas para audição técnica especializada, ao abrigo do disposto no art.º 38.º, al. b), do RGPTC, após a qual foi novamente convocada conferência dos progenitores, os quais acordaram somente um regime provisório para as férias de Verão subsequentes, pelo que foram notificados para fazerem alegações e indicarem meios de prova. Após a conferência, o progenitor apresentou nos autos um requerimento alegando que recebeu uma comunicação electrónica de requerida que confirma o desabafo dela na conferência dizendo que o melhor era regressar ao seu País de origem, Angola; que ela tem em seu poder todos os documentos de identificação do menor, incluindo o passaporte Português e o Angolano, em virtude de o menor possuir dupla nacionalidade; por esses motivos tem justo e fundado receio de que a requerida se possa ausentar para Angola levando o CC, impedindo que o requerido possa mais estar com o filho e retirando-o da sua zona de conforto onde possui todos os acompanhamentos necessários à sua situação, quer relativos à terapia da fala, quer referente ao desenvolvimento motor que tem, bem como as consultas e acompanhamento médico que lhe está assegurado; acresce que a progenitora tem uma personalidade que não se compadece com o facto de fazer sofrer o requerente utilizando o filho e sentindo-se em situação que ela entende não ser confortável para si, poderá ausentar-se para Angola levando consigo o menor. Com esses fundamentos requereu ao tribunal que «com carácter de urgência, sob prévia vista ao Ministério Público» seja notificada a requerida «para não se ausentar do território nacional na companhia do menor e … proceder à entrega dos passaportes do menor ao pai, ou que os mesmos fiquem à guarda dos presentes autos», e ainda que se «oficie pelo meio mais expedito o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, … que o menor … não poderá ausente-se do território nacional, … enquanto decorrer o processo … e mesmo posteriormente sem que se mostre autorizado por escrito pelo pai …». Aberta vista ao Ministério Público foi promovido que «se defira o requerido, com nota de urgência, fazendo-se advertência à requerida que a falta de entrega do(s) passaporte(s) do menor ao progenitor ou a estes autos, no prazo de 5 dias, poderá de determinar a revisão do regime de regulação das responsabilidades parentais aqui fixado provisoriamente (artigo 28.º do RGPTC), com atribuição da guarda provisória do menor ao progenitor». Logo após, foi proferido o seguinte despacho: «Notifique a Requerida, … para não se ausentar do território nacional na companhia do menor, bem como para proceder à entrega dos passaportes do menor ao pai, no prazo de cinco dias, ou aos presentes autos, no mesmo prazo, que os mesmos fiquem à guarda dos presentes autos enquanto correr o processo … com a advertência de que a falta de entrega do(s) passaporte(s) do menor … naquele prazo, poderá de determinar a revisão do regime de regulação das responsabilidades parentais aqui fixado provisoriamente (artigo 28.º do RGPTC), com atribuição da guarda provisória do menor ao progenitor. Notifique ainda o Requerente do teor do presente despacho. Oficie, pelo meio mais expedito possível, ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, … que o menor … não poderá ausente-se do território nacional, face à oposição do pai, e que tal impedimento se manterá enquanto decorrer o processo … e mesmo posteriormente, sem que se mostre autorizado por escrito, pelo pai, a viajar para fora do território nacional.» A progenitora apresentou oposição ao requerimento sustentando nunca teve o propósito de abandonar o país com o menor, nem ameaçou o progenitor com essa possibilidade, pretendeu apenas com a mensagem reaver os seus pertencentes, tanto mais que vive e trabalha em Portugal há vários anos, tem património imobiliário e a sua vida estabilizada neste País, não tem qualquer intenção de desenraizar o seu filho, deixar o seu trabalho ou residir noutro local sequer dentro de fronteiras; que o seu passaporte e bilhete de identidade angolanos estão caducados ou inválidos, tal como o passaporte português do menor não sendo possível sair do país com eles; que a medida adoptada para além de não radicar num justificado receio cerceia a sua liberdade de circulação de uma forma inadmissível num estado de direito democrático, além de carecer de sentido e violar os direitos fundamentais do menor. O progenitor respondeu à oposição, reiterando o seu requerimento. De seguida a progenitora interpôs recurso do aludido despacho, arguindo, além do mais a respectiva nulidade por falta de fundamentação da decisão recorrida. O recurso foi admitido e mandado subir a esta Relação, omitindo-se, no entanto, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 617.º do Código de Processo Civil nos termos do qual o juiz recorrido deve apreciar a nulidade no despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso. Nesta Relação foi ordenada a baixa dos autos à 1.ª instância a fim de o juiz a quo se pronunciar sobre a nulidade por falta de fundamentação da decisão recorrida, «sendo que para o efeito de sanar a nulidade e dotar a decisão recorrida da devida e indispensável fundamentação de facto e de direito poderá realizar as diligências que entender necessárias, tal como deverá levar em conta que quando a decisão foi proferida já a requerida havia exercido (no mesmo dia mas várias horas antes) o contraditório em relação ao requerimento, razão pela qual ficou prejudicada em definitivo a possibilidade de se tratar de uma decisão exercida sem contraditório prévio». Regressados os autos à 1.ª instância, foi proferida a seguinte decisão não antecedida de qualquer diligência probatória: «[…] Apreciando: Veio o requerente manifestar o seu receio de que a requerida se possa ausentar para Angola levando o Menor CC, retirando-o da sua zona de conforto onde possui todos os acompanhamentos necessários à sua situação, quer relativos à terapia da fala, quer referente ao desenvolvimento motor que tem, bem como às consultas e acompanhamento médico que lhe está assegurado, privando ainda o menor do contacto com o pai. Funda o seu receio no facto de (…). Não sendo, alegadamente, propósito da requerida sair do país, não se compreende porque razão solicitou ao requerente, no próprio dia da Conferência de Pais, a sua “mala vermelha de cabine”. A requerida tem na sua posse os documentos de identificação do menor, que possui dupla nacionalidade, nada obstando a que efectue um pedido de emissão de novos documentos, mostrando-se aqueles caducados. No ano transacto, a requerida ausentou-se com o Menor CC, que recolheu no infantário, para uma Casa Abrigo, alegando, na Conferência de Pais que teve lugar no dia 9/11/2022, ter sido vítima de violência doméstica perpetrada pelo requerente. Dos autos resulta cópia do despacho de arquivamento proferido no âmbito do inquérito 44/22.1GBVNG, iniciado pela eventual prática do crime de violência doméstica por parte do Requerente AA. No âmbito da referida conferência, foi dito pela requerida que considerava prejudicial para o menor a manutenção de contactos com o pai, sem, no entanto, ter explicitado as razões que a levaram a ter essa percepção. Posto isto, ponderando os argumentos invocados pelo requerente para justificar o seu receio de que a requerida se possa ausentar para Angola levando consigo o menor CC, o anterior comportamento da requerida, - que se ausentou com o menor para parte incerta, alegando ter sido vítima de violência doméstica perpetrada pelo requerente, sem que se mostre indiciado nos autos que a requerida tenha sido alvo do crime de violência doméstica, - o superior interesse e bem-estar do menor CC e a protecção da sua relação com a figura paterna, afigura-se indispensável, nos termos do disposto no art.º 28.º, n.º 1, do RGPTC, diligenciar no sentido requerido pelo progenitor, a fim de assegurar a execução efectiva da decisão provisória proferida em 2/2, que fixou, além do mais, que as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do menor sejam exercidas em comum por ambos os progenitores. Sustenta a requerida que «não é pelo simples facto de correr termos um processo de regulação das responsabilidades parentais que se justifica um qualquer controlo ou restrição da liberdade de movimentos da requerida e do seu filho. Que deverão poder viajar temporariamente por motivos de lazer, familiares ou laborais, pese embora não vislumbre a requerida que qualquer uma dessas situação se venha a verificar num futuro razoável.» E «que introduzir uma qualquer restrição ao direito de circulação de ambos será desnecessária, desproporcional e desadequada e, portanto, inconstitucional.» Todavia, não foi equacionada nos autos qualquer saída temporária do menor CC com a requerida para o estrangeiro por motivos de lazer, familiares ou laborais, a qual, uma vez requerida, será devidamente apreciada pelo tribunal, após exercido o respectivo contraditório e efectuadas as diligências probatórias tidas por necessárias. Trata-se, no momento, como já referido, de assegurar a execução efectiva da decisão provisória proferida em 2/2, ao abrigo do disposto no art.º 28.º, n.º 1, do RGPTC, sendo que, conforme referido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/07/2021, proc. 4145/20.2T8PRT-B.P1.S1, «A questão da legalidade e constitucionalidade de uma decisão de regulação das responsabilidades parentais que condiciona ou limita a deslocação da criança, e do progenitor com o qual aquela reside, para o estrangeiro equaciona-se em termos diferentes se estiver em causa uma decisão provisória ou antes uma decisão definitiva, uma vez que a índole restritiva da segunda decisão é muito superior à da primeira.» Em face do exposto, defere-se o requerido em 3/7 e, por conseguinte, determina-se a notificação da Requerida, (…) para não se ausentar do território Nacional na companhia do menor, bem como para proceder à entrega dos passaportes do menor ao pai, no prazo de cinco dias, ou aos presentes autos, no mesmo prazo, que os mesmos fiquem à guarda dos presentes autos enquanto correr o processo de Regulação das Responsabilidades Parentais, com a advertência de que a falta de entrega do(s) passaporte(s) do menor ao progenitor ou a estes autos, naquele prazo, poderá de determinar a revisão do regime de regulação das responsabilidades parentais aqui fixado provisoriamente (artigo 28.º do RGPTC), com atribuição da guarda provisória do menor ao progenitor. Notifique, e oficie, pelo meio mais expedito possível, ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, para o e-mail indicado no requerimento de 3/7, que o Menor CC (…) não poderá ausente-se do território nacional, face à oposição do pai, e que tal impedimento se manterá enquanto decorrer o processo de Regulação das Responsabilidades Parentais, e mesmo posteriormente, sem que se mostre autorizado por escrito, pelo Pai, a viajar para fora do Território Nacional.» Notificada desta decisão a progenitora reformulou o seu recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões: 1. A Requerida recorre do despacho que a notificou para não se ausentar do território Nacional na companhia do menor, bem como para proceder à entrega dos passaportes do menor ao pai, no prazo de cinco dias, ou aos presentes autos, no mesmo prazo, com a advertência de que a falta de entrega do(s) passaporte(s) do menor ao progenitor ou a estes autos, naquele prazo, poderá de determinar a revisão do regime de regulação das responsabilidades parentais aqui fixado provisoriamente (artigo 28.º do RGPTC), com atribuição da guarda provisória do menor ao progenitor. 2. E que informou o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que o Menor CC não poderá ausente-se do território nacional, face à oposição do pai, e que tal impedimento se manterá enquanto decorrer o processo de Regulação das Responsabilidades Parentais, e mesmo posteriormente, sem que se mostre autorizado por escrito, pelo Pai, a viajar para fora do Território Nacional. 3. Na douta decisão foram violados os princípios constitucionais da igualdade - artigo 13º da CRP, da legalidade, da imparcialidade, da boa-fé - artigos 266º, nº 2 da CRP, e da proporcionalidade - artigos 2º, 18º nº 3 e 266º, nº 2 da CRP. 4. Verifica-se, ainda, nulidade por falta de notificação à Requerida da promoção do Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 195º, nº 1, e no artigo 3º, nºs 1 a 3, do CPC. 5. Sem prescindir, o douto despacho recorrido foi proferido em violação do direito fundamental de circulação do menor, sem qualquer fundamentação, na ausência de fundado receio justificativo de uma medida cautelar e sob advertência de uma consequência totalmente desajustada, desproporcional e absolutamente violadora do superior interesse do menor. 6. Em processo de regulação das responsabilidades parentais do Menor CC foi estabelecido um regime provisório do seu exercício tendo sido a guarda e cuidados entregues à mãe que passou a exercer responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente do filho. 7. A saída do menor do território nacional será, a maior parte das vezes, uma questão de vida corrente do menor e, portanto, da responsabilidade da Requerida. 8. Não tem cabimento na lei o pedido de autorização ao Tribunal de saída temporária do menor, que mais não é do que entupir o sistema judicial com bagatelas. 9. Contudo, nos casos em que se configure como questão de particular importância para a sua vida existe o procedimento previsto no artigo 44º do RGPTC, destinado, precisamente, a resolver os diferendos relativos às questões de particular importância. 10. A liberdade de circulação no interior do território nacional é um direito fundamental, consagrado de forma genérica nos artigos 26º, nº 1 e 27º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e, mais especificamente, no artigo 44º, nº 1 da mesma. 11. O nº 2 deste último prevê o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar. 12. O direito de circulação está também previsto no artigo 21º, nº 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no artigo 45º, nº 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e no artigo 4º, nº 1 da Directiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Abril de 2004, directamente aplicáveis na ordem jurídica portuguesa por força do disposto no artigo 8º, nº 1 da CRP. 13. De acordo com o disposto no artigo 18º da CRP as restrições dos direitos, liberdades e garantias apenas podem ser feitas de acordo com os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, tudo que a douta decisão recorrida não é. 14. A douta decisão recorrida violou o disposto no artigo 44º, nºs 1 e 2 da CRP e é, portanto, inconstitucional. 15. O requerimento que originou o douto despacho não relatou factos concretos que manifestassem a vontade e risco iminente de fuga da Requerida com o menor para Angola. 16. A Requerida vive e trabalha em Portugal há vários anos, tem património imobiliário com o próprio Requerente e tem a sua vida totalmente estabilizada neste País, pelo que não tem qualquer intenção de desenraizar o seu filho, deixar o seu trabalho ou residir noutro local sequer dentro de fronteiras. 17. Portanto, não há qualquer indício factual ou elemento probatório que sustente o pedido do Requerente e a decisão recorrida, pelo que o douto despacho foi proferido sem fundamentos, na ausência absoluta de fundado receio justificativo de uma tal medida cautelar e com determinações para a fase pós- processual apesar de se tratar de uma decisão intercalar e não de uma sentença. 18. Como tal, ao ordenar a comunicação ao SEF da interdição de viajar o douto despacho recorrido violou também o disposto no artigo 31º-A da Lei 23/2007, de 4 de Julho, uma vez que o CC não se encontra em risco concreto, manifesto e/ou iminente de rapto por um dos progenitores. 19. Finalmente, refira-se que o artigo 28º do RGPTC não comporta a revisão do regime provisoriamente estabelecido pelo Tribunal enquanto sanção pelo incumprimento de uma decisão judicial. 20. Por outro lado, a sanção escolhida viola flagrantemente os princípios orientadores dos processos tutelares cíveis, conforme estabelecidos pelo artigo 4º, nº 1, alínea c) do RGPTC e pelas alíneas a), d), e) e g) do artigo 4º da Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro - Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo. 21. A guarda provisória foi entregue pelo Tribunal à progenitora e essa revelou-se ser a decisão acertada, já que o CC tem crescido uma criança feliz, bem cuidada, equilibrada, com os cuidados de saúde que necessita e todos os apoios ao seu desenvolvimento físico, intelectual e emocional. 22. Não existem nos autos quaisquer factos que determinem a revisão do regime de guarda ou sequer que recomendem o reequacionar do mesmo. 23. Ao estabelecer que se a mãe não entregar os passaportes do menor a guarda será entregue ao pai o Tribunal está a decidir castigar o menor por um incumprimento da Requerida que nada tem a ver com o seu interesse e direitos. 24. Tal decisão viola todos os parâmetros que vinculam a intervenção judicial, desde o primado dos interesses e direitos da criança, nomeadamente, à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas, passando pela intervenção mínima, proporcional, necessária e adequada. 25. Este despacho destrói as relações afectivas estruturantes de grande significado e de referência para o CC. 26. A Requerida, repita-se, não pretende levar o menor para residir em Angola, pelo que não se justifica qualquer intervenção judicial, devendo, portanto, ser revogado o douto despacho recorrido. Termos pelos quais deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência serem declaradas as nulidades indicadas e ser revogado o douto despacho recorrido. O recorrido que tinha respondido às alegações de recurso iniciais, defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado, não respondeu às alegações reformuladas. O Ministério Público respondeu a estas alegações sustentando a confirmação da decisão. Após os vistos legais, cumpre decidir. II. Questões a decidir: As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões: i. Se a decisão recorrida é nula. ii. Se estão reunidas as condições para a adopção de alguma medida que acautele o risco de o menor ser levado para o estrangeiro e nesse caso qual a medida necessária e proporcional ao risco existente. III. Nulidades da decisão recorrida: A recorrente sustenta que por não ter sido notificada da promoção do Ministério Público foi cometida uma nulidade e uma violação do princípio do contraditório. Na sua resposta, o Ministério Público parece defender que não obstante a falta de notificação da promoção a recorrente teve conhecimento dela quando veio apresentar a sua oposição ao requerimento do progenitor. Os dados processuais não confirmam essa ilação porque a oposição da recorrente é da mesma data, mas cronologicamente anterior ao despacho recorrido, além de que este não menciona qualquer promoção, e não é exigível a qualquer interveniente processual que só por ter acesso ao processo através do Citius o esteja continuamente a consultar para ver e tomar conhecimento dos actos que nele são praticados e dos quais haverá que ser formalmente notificado. Como quer que seja, independentemente do mérito da arguição da recorrente, certo é que a mesma desconsidera a diferença entre nulidades processuais e nulidades das decisões. As primeiras consistem na prática de actos vedados por lei ou na omissão de actos impostos pela lei, as segundas nos vícios expressa e taxativamente consagrados no artigo 615.º do Código de Processo Civil. O regime de conhecimento das primeiras exige que as mesmas sejam arguidas e conhecidas pelo tribunal que as praticou, só sendo permitido suscitar de novo a questão perante um tribunal de recurso através do recurso do despacho que conhecer das nulidades, se tal recurso for admissível nos termos gerais. Apenas as nulidades da decisão elencadas no artigo 615.º do Código de Processo Civil é que podem constituir fundamento de recurso e, por isso, serem constituírem objecto de recurso e poderem ser suscitadas em primeira mão e directamente perante um tribunal de recurso. Segundo o adágio bem conhecido «das nulidades processuais reclama-se, das decisões recorre-se». Logo, caso se entenda que a promoção do Ministério Público carecia de ser notificada à recorrente (o que, em regra, não é necessário, atenta a natureza da intervenção do Ministério Público e das suas promoções, mas que, no caso, parece necessária porque no seu parecer o Ministério Público aditou à medida a decretar pelo tribunal uma cominação a que o requerente não havia feito referência e que não obstante foi acolhida pelo tribunal), a falta dessa notificação, enquanto irregularidade processual passível de gerar uma nulidade, devia ter sido arguida perante o tribunal a quo, ao qual competia apreciar esse vício e ordenar ou não a sua sanação, e só dessa decisão seria possível interpor recurso. Essa questão encontra-se, pois, fora do poder de cognição deste tribunal. A recorrente diz ainda estar-se perante uma violação do princípio do contraditório. Assim é, mas esse enquadramento não altera os dados da questão. O vício cometido foi (a entender-se que sim) a omissão do acto e consubstanciou uma irregularidade processual com o regime acabado de referir. Se o acto omitido era uma notificação, como esta visa em qualquer caso permitir ao notificando exercer o contraditório em relação ao conteúdo da notificação recebida, a omissão da notificação impede o exercício do contraditório. Todavia, estamos perante a consequência, não perante a causa, sendo que é a causa que caracteriza o vício e permite apurar o seu regime jurídico, servindo a consequência apenas para determinar se a irregularidade processual se converte em nulidade ou não (atento o seu relevo para o exame ou a decisão da causa – artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e para apurar quais os actos a anular para repor a situação que existiria se a irregularidade não tivesse sido praticada. Improcede nesta parte o recurso. IV. Fundamentação de facto: A decisão recorrida não elenca qualquer facto para lhe servir de fundamentação, mas a recorrente declarou nas novas alegações considerar sanada a nulidade por falta de fundamentação, a qual deixou por isso de fazer parte do objecto do recurso. V. Matéria de Direito: Devidamente interpretada, a decisão recorrida tem exclusivamente o seguinte conteúdo: 1. Proibição da progenitora de levar o menor para fora do território nacional. 2. Intimação da progenitora para proceder à entrega dos passaportes do menor ao progenitor ou nos autos, enquanto correr o processo com a advertência de que a falta de entrega daqueles documentos poderá determinar a revisão do regime vigente de regulação das responsabilidades parentais e a atribuição da guarda provisória do menor ao progenitor. 3. Informar o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que o menor não poderá ausentar-se de Portugal «face à oposição do pai, enquanto decorrer o processo … e mesmo posteriormente, sem que se mostre autorizado por escrito, pelo pai, a viajar para fora do território nacional». O primeiro aspecto necessita de ser deixado claro porque na sua literalidade o que está dito é a proibição da progenitora de se ausentar do território nacional na companhia do menor. Obviamente que no presente processo a progenitora não está nem pode ser limitada na sua liberdade de circulação, seja para onde for. O que o tribunal tinha em mente e só esse aspecto se relaciona com o objecto do presente processo e aqui pode ser apreciado e decidido, são as deslocações do menor, mais especificamente a possibilidade de ele ser levado para outro país e por essa via privado dos contactos com o pai e subtraído ao poder das entidades judiciais competentes de regularem o exercício das respectivas responsabilidades parentais. O segundo ponto carece igualmente de uma precisão. Com efeito foi-lhe associada uma cominação que não tem cobertura legal (não existe uma norma legal que consagre um efeito cominatório tal), como é inteiramente desproporcionado e desadequado porque aquilo que se refere que terá lugar em caso de incumprimento terá sempre de ser avaliado no devido tempo e em função das circunstâncias do caso. Aliás, se bem vimos, não se tratou de estabelecer uma cominação, mas sim de assinalar uma ameaça com finalidades dissuasoras, o que não corresponde à natureza de uma intervenção judicial, a qual não faz ameaças, toma medidas desde que elas se justifiquem e tenham previsão legal, se necessário de natureza cautelar (mas ainda assim medidas, não ameaças de medidas). Este aspecto contra o qual a recorrente se insurge e bem, parece não ter mais acuidade no processo porque a progenitora fez entrega no tribunal dos documentos assinalados na decisão (cf. requerimento de 18/07/2023, ref.ª 36260822). No entanto, nessa parte por absoluta falta de fundamento legal, a decisão recorrida terá de ser revogada. O terceiro ponto também tem de ser corrigido. Naturalmente não está em causa saber se o pai autoriza ou proíbe que o menor saía para fora do país, o que está em causa é a necessidade de assegurar que o regime que se encontra fixado provisoriamente é acatado e que até à fixação do regime não provisório não se criam as condições para que a decisão judicial seja insusceptível de ser executada. Logo, o que ao SEF pode ser informado é que o menor está impedido de sair sem autorização do tribunal emanada do presente processo, já que a entender-se que a saída coloca em risco aquela execução terá de ser o tribunal a apreciar caso a caso a situação e a autorizar ou não a saída, se nisso os progenitores não estiverem de acordo. É com esse sentido que se entenderá o último ponto da decisão. Feitos estes esclarecimentos, o que cabe apurar é se está justificada a adopção de medidas para impedir a saída do menor de Portugal, levado pela mãe, e se para o efeito, para além do estabelecimento da proibição em si mesma é ainda necessário e adequado apreender os documentos pessoais do menor e informar as autoridades que controlam as saídas e entradas no país da referida proibição. Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 28.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro, em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efectiva da decisão. Como vimos, o progenitor teve dúvidas sobre a intenção da progenitora quando recebeu desta um SMS com o seguinte conteúdo: «Podes pôr a casa a venda, a arrumação e as visitas ficam por tua conta. Faça isso o quanto antes. Preciso da minha mala vermelha de cabine, e do álbum de fotos do CC, podemos sempre repartir ao meio. Estou a limpar o quarto principal, as tuas coisas estão na entrada na casa.» É evidente que a referência à mala de cabine pode ser interpretada como indício de uma intenção de viajar. Todavia, referindo-se igualmente na mensagem a colocação da casa à venda e a retirada de bens da casa para o permitir, a mala pode representar uma necessidade simples da progenitora de recolher e transportar para outro local os seus pertences, desconhecendo-se se a mesma possui outras malas suficientes para essa finalidade. Aliás, o próprio progenitor afirma no seu requerimento que «em condições e no âmbito das relações e posturas normais, o requerente não atribuiria a importância que agora atribui, à referida comunicação», numa demonstração de que nem ele considera forçosa a interpretação que o tribunal fez. É certo que também afirma logo de seguida, que a mensagem «surge no seguimento do desafogo (sic) da requerida durante a Conferência de Pais onde mencionou que o melhor era regressar ao seu País de origem, ou seja Angola». Todavia, não existe na Acta da referida Conferência qualquer menção a esse desabafo, nem se percebe porque, a ter sido proferido, não se requereu de imediato ao tribunal que essa matéria também ficasse definida no regime provisório. A decisão recorrida também não lhe faz menção. Acresce que não tendo sido realizada nenhuma diligência de instrução prévia à tomada da decisão os autos não fornecem e esta Relação não tem à sua disposição qualquer ponto de facto que confirme o desabafo em causa e, em simultâneo, lhe confira um grau de probabilidade consistente que o torne em algo mais que um mero desabafo, o qual, em si mesmo e independentemente do mais, parece aceitável no estado em que a relação dos progenitores se encontra, no estado psicológico em que a progenitora parece encontrar-se e na circunstância de ser originária de Angola. Significa isto que nada há que justifique a adopção de alguma medida cautelar destinada a assegurar que o menor permanece em Portugal para assegurar o seu direito a manter os contactos com o progenitor e a participação deste nas responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do menor? Em primeiro lugar há que referir que o juízo a formular a esse respeito é um juízo meramente provisório, de natureza cautelar, alicerçado essencialmente em indícios (prova sumária) e visando evitar o risco de que algo aconteça que coloque seriamente em perigo os direitos da criança. Em segundo lugar, as medidas a adoptar não têm de cercear a liberdade de circulação da progenitora, só têm de fixar limites que impeçam que no exercício ou sob o pretexto desse direito de liberdade de circulação ela aproveite para levar o menor para fora do país, não de um modo temporário, limitado e reversível, como por exemplo em viagem de férias ou visita à família, mas com intenção de que tal seja irreversível e definitivo. Em terceiro lugar, mesmo os direitos individuais da progenitora têm de ser compatibilizados de forma adequada e proporcional com a necessidade imperiosa de preservação dos direitos do menor, designadamente no seu relacionamento com o pai, pelo que não podem ser vistos como direitos absolutamente inatingíveis, o que não permitiria assegurar o superior interesse da criança que deve prevalecer sobre os interesses particulares dos pais. Em quarto lugar, a manutenção e o desenvolvimento dos contactos do menor com a família do lado materno cuja vida se situa em Angola corresponde ao superior interesse da criança, pelo que tal como a progenitora não pode ser obrigada, durante toda a menoridade do filho, a conservar em Portugal o seu centro de vida pessoal e/ou profissional, designadamente por ser Angolana, também o pai não pode, só porque o seu centro de vida se situa agora em Portugal, impedir as viagens necessárias para assegurar aqueles contactos. Em quinto lugar, a subordinação das viagens a autorizações casuísticas do tribunal em vez da sua proibição absoluta, permitirá avaliar a necessidade e a justificação da viagem, suprindo o desacordo dos pais e permitindo que, caso a caso, seja ponderado o risco que as mesmas representarão ou não para o superior interesse da criança. Dos elementos constantes dos autos resulta, a nosso ver, que a progenitora parece atravessar um período difícil do ponto de vista da sua saúde mental, caracterizado pela depressão que é um estado mental que lhe retira lucidez, presença de espírito e capacidade de análise e ponderação das circunstâncias externas. Resulta que o divórcio provocou mudanças profundas na sua vida e ela parece ainda não ter encontrado o rumo para essa mudança e ter poucas condições pessoais (v.g. económicas) para a encetar com sucesso. Resulta que a progenitora já adoptou comportamentos de risco como as participações de violência doméstica que não foram consideradas fundamentadas pelo Ministério Público, a fuga para uma Casa de Acolhimento para vítimas dessa violência desta e o posterior abandono dessa Casa de modo voluntário e sem adesão às regras e opiniões de técnicas. Resulta, por fim, que a sua ligação pessoal e familiar a um país estrangeiro facilita e propicia deslocações sob um qualquer pretexto que depois pode não ser cumprido colocando em sério perigo o superior interesse do menor. Tendo presentes as ideias acima expostas e os factos acabados de referir, é nosso entendimento que se justifica a adopção de medidas cautelares guiadas pelos contornos e critérios antes identificados, com o objectivo estrito de assegurar que o menor não é levado para fora do país até que se encontre definitivamente regulado o exercício das responsabilidades parentais, sem prejuízo das deslocações que venham a ser autorizadas casuisticamente mediante a apresentação de uma justificação que o tribunal decida acolher. Desse modo, decide-se alterar a decisão recorrida substituindo-a pela seguinte que ao mesmo tempo que não limita desproporcionadamente a liberdade da progenitora adopta as medidas cautelares que se mostram necessárias e adequadas à salvaguarda do superior interesse do menor: a) proibir a progenitora de levar o menor para fora do país sem prévia autorização do tribunal através deste processo, autorização que será concedida caso a caso mediante pedido devidamente justificado a apreciar pelo tribunal; b) informar o serviço que actualmente controla a entrada e saída das fronteiras nacionais da referida proibição e de que a saída do menor apenas pode ser permitida se houver autorização deste processo. A concretização desta medida deverá ser feita na 1.ª instância. VI. Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, alteram a decisão recorrida, substituindo-a pelas seguintes medidas cautelares: 1) determina-se a proibição da progenitora de levar o menor para fora do país sem prévia autorização do tribunal através deste processo, autorização que será concedida caso a caso, mediante pedido devidamente justificado a apreciar pelo tribunal; 2) determina-se que o serviço que actualmente controla a entrada e saída pelas fronteiras nacionais seja informado da referida proibição e de que a saída do menor apenas pode ser permitida, independentemente dos documentos pessoais apresentados, mediante apresentação de certidão de decisão expressa deste processo que a autorize. As custas do recurso, correspondentes à taxa de justiça, eram pela recorrente, a qual as não paga por estar dispensada do seu pagamento. * Porto, 11 de Janeiro de 2024.* Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 790)Os Juízes Desembargadores Ernesto Nascimento Manuela Machado [a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas] |