Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
156/16.0JAAVR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: EXAMES
ZARAGATOA BOCAL
EXAME COMPULSIVO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20190508156/16.0JAAVR-B.P1
Data do Acordão: 05/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 799, FLS 313-320)
Área Temática: .
Sumário: I – Visa o processo penal a aplicação do direito penal substantivo, mediante exercício de atividade probatória que se destina a convencer da existência ou não dos factos penalmente relevantes, fazendo-se a distinção entre meios de obtenção de prova e meios de prova.
II - Entre aqueles contam-se os exames.
III – A colheita de vestígios biológicos (saliva) através de uma zaragatoa bucal constitui um exame.
IV – A colheita de vestígios biológicos para posterior determinação de perfis de ADN, em caso de falta de consentimento do visado, é da competência reservada do juiz, que decide, após ponderação, da necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado e as necessidades da Justiça.
V - Do artigo 18° da CRP resulta que os direitos fundamentais e as liberdades públicas podem ser comprimidos, desde que se respeite o princípio da legalidade, da intervenção mínima e da proporcionalidade.
VI - A propósito da recolha de material biológico a arguido, pronunciou-se o Tribunal Constitucional referindo que a Constituição não proíbe, em absoluto, a recolha coativa de material biológico de um arguido (designadamente de saliva, através da utilização da técnica da zaragatoa bucal) e a sua posterior análise, não consentida, para fins de investigação criminal.
VII - Quer a Convenção Europeia dos Direitos Humanos quer a Declaração Universal dos Direitos Humanos apresentam também instrumentos de harmonização e concordância prática em tudo semelhantes aos constantes do artigo 18º da CRP.
VIII – É legal o despacho que determinou o exame respeitando a concordância prática entre as finalidades da realização da justiça e de descoberta da verdade material e de proteção dos direitos fundamentais das pessoas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 156/16.0JAAVR-B.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Instrução Criminal de Aveiro - Juiz 2
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Acordam em conferência na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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1-RELATÓRIO
Nos autos de inquérito n.º 156/16.0JAAVR, a Mma. Juíza de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo de Instrução Criminal de Aveiro - Juiz 2, proferiu despacho a ordenar a colheita coativa de vestígios biológicos do arguido B…, exclusivamente de saliva, com vista à comparação do seu perfil genético com os vestígios biológicos recolhidos no âmbito destes autos.
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Não se conformando com esta decisão, o Arguido recorreu para este Tribunal da Relação, apresentando na sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):
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……………………………
……………………………
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O Ministério Público respondeu à motivação apresentada pelo Arguido, concluindo pelo não provimento do recurso do Arguido.
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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação pronunciou-se no sentido de não ser dado provimento ao recurso do Arguido.
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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2-FUNDAMENTAÇÃO
2.1-QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, as questões a apreciar e decidir são:
- a da legalidade e constitucionalidade do despacho que determinou a recolha coativa da saliva por zaragatoa bocal e consequente nulidade da prova recolhida;
- a da extemporaneidade e consequente nulidade da diligência de recolha de saliva por ter sido realizada fora do prazo judicialmente ordenado.
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2.2-A DECISÃO RECORRIDA E CIRCUNSTÂNCIAS RELEVANTES EXTRAÍDAS DOS AUTOS.
Com relevo para a resolução das questões colocadas importa, desde logo, considerar como pertinentes o despacho recorrido e as circunstâncias que a seguir se descrevem.
2.2.1- o despacho recorrido.
O teor do despacho recorrido, proferido em 17.12.2018 (cfr. fls. 220 deste apenso – Ref. 104908634), é o seguinte:
«*
I – Atenta a impossibilidade, por razões operacionais, de executar os mandados com o fito de obtenção de colheita coativa de vestígios biológicos ao arguido B…, vem o Ministério Público solicitar a emissão de novos mandados.
II – Apreciando.
Sem grandes delongas expositivas, renovando os fundamentos de facto e de direito insertos no despacho judicial de fls. 240 a 241, verso, respetivamente, impor-se-á proceder porque a realização dos atos de inquérito solicitados pelo Ministério Público.
III – Pelo exposto, decido ordenar a colheita coativa de vestígios biológicos do arguido B…, exclusivamente de saliva, com vista à comparação do seu perfil genético com os vestígios biológicos recolhidos no âmbito destes autos.
Em face da situação da reclusão do arguido, passe e entregue os necessários mandados de condução à Polícia Judiciária, com um prazo de cumprimento que se fixa em 30 dias, que deverão ser comunicados ao Diretor do Estabelecimento Prisional onde o arguido se encontra.
Inutilize os mandados existentes no processo, cujo prazo de cumprimento se mostra esgotado.
Após, devolva os autos ao Ministério Público.
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AVR, ds.»

2.2.2- Circunstâncias relevantes extraídas dos autos.
1- O teor do despacho proferido em 05.09.2018 (constante de fls. 240 a 241, verso, do processo principal e fls. 192-193v. do presente apenso, Ref. 103392970), para o qual o despacho recorrido fez a remissão relativa aos fundamentos de facto e de direito, que é o seguinte:
«*
Da obtenção de prova – vestígios biológicos:
I – O Ministério Público veio requerer a recolha de saliva através de zaragatoa bucal ao arguido B… a fim de proceder ao exame comparativo com os vestígios biológicos recolhidos no corpo da ofendida e em peças de vestuário que se mostram apreendidas no âmbito destes autos.
Depois de salientar que o arguido se recusa à recolha da sua saliva através de zaragatoa bucal tendente à determinação do seu perfil de ADM, acrescenta que tal obtenção de prova é necessária e imprescindível para a confrontação com a eventual recolha de vestígios biológicos já recolhido, absolutamente determinantes para o apuramento da autoria material do facto ilícito em investigação do âmbito destes autos.
II – Cumpre apreciar e decidir.
Espelhando o valor da dignidade humana que subjaz e perpassa todos os princípios informadores da nossa Constituição e constituindo corolário do princípio garantístico, em processo penal, da presunção de inocência do arguido, o artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio das proibições de prova, prescrevendo que são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa à integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, princípio que é corroborado por diversos instrumentos de direito internacional, nomeadamente pelos artigos 5.º e 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelos artigos 3.º e 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 7.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
Neste cotejo Jorge Miranda, in Constituição Portuguesa anotada, Tomo I, pág. 361, salienta que a eficácia da Justiça é também um valor que deve ser perseguido, mas, porque numa sociedade livre os fins nunca justificam os meios, só é aceitável quando alcançada lealmente, pelo engenho e arte, nunca pela força bruta, pelo artifício ou pela mentira, que degradam quem os sofre, mas não menos quem os usa…
Refletindo tais preceitos constitucionais, o legislador ordinário consagrou no artigo 125.º do Código de Processo Penal o princípio da aquisição de prova, densificando o seu conteúdo no artigo 126.º do mesmo código, que, no que nos importa, estatui no seu n.º 1 que são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa à integridade física ou moral das pessoas, concretizando o n.º 2, do mesmo artigo que são ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante: a) perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus-tratos, ofensas corporais, (…) c) utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei.
Nesta esteira, no âmbito dos meios de obtenção de prova, dispõe o artigo 171.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que por meio de exames das pessoas, dos lugares e das coisas, inspecionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido.
Porém, acrescenta o artigo 172.º, n.º 1, do mesmo código, que se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.
Contudo, se o exame pretendido visar sobre as características físicas ou psíquicas de uma pessoa que não haja prestado o seu consentimento, caberá ao juiz (que em fase de inquérito será o de instrução) determinar a sua submissão coativa a exame, ponderando a conflituosidade entre a necessidade da realização do mesmo e o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado – cfr.: artigos 154.º, n.º 2 e 156.º, nºs. 5 e 6, por remissão do artigo 172.º, n.º 2, do CPP.
Nesta senda, acompanhando de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 09/01/2002, relatado pelo Venerando Desembargador Oliveira Mendes, disponível in www.dgsi.pt, sempre diremos que pese embora a Constituição da República Portuguesa repute o direito à integridade corporal, à autodeterminação corporal e à identidade pessoal como de natureza inviolável – cf.: artigos 25.º e 26.º, n.º 1, da CRP –, a verdade é que essa inviolabilidade, que lhes é inerente, não reveste carácter absoluto, uma vez que o artigo 18.º da lei fundamental permite que a lei ordinária os restrinja. Todavia, como tratamos de direitos, liberdades e garantias, essas restrições só são permitidas nos casos, expressa e constitucionalmente, previstos e devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Ora, nos presentes autos de inquérito investiga-se a eventual prática pelo arguido de um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, do Código Penal, punido em abstrato com pena de prisão de 3 a 10 anos, cuja ofendida C… denunciara e imputara a autoria a B….
Coligidas as diligências de inquérito, resulta dos autos que no decurso do exame médico-legal realizado a C… foram recolhidos vestígios biológicos, sendo que após a realização de análises de Genética e Biologia Forense foi detetada presença de um haplótipo do cromossoma Y na zaragatoa da sua mama direita e em peças de vestuário que usava (cfr. fls. 121 a 125), pelo que, se torna essencial para a descoberta da verdade e da autoria do referido crime a realização de recolha de zaragatoas bucais ao arguido B… com vista à realização duma análise comparativa dos mesmos.
Porém, tal diligência saiu frustrada em virtude do não consentimento expresso do arguido para o efeito – cfr.: fls. 163 a 165.
No caso vertente, há que ponderar os interesses em confronto, por um lado o da realização da justiça como forma de descoberta da verdade material e satisfação do interesse estadual na administração da Justiça, pilares do Estado de Direito Democrático, e, por outro, a integridade física do arguido, in casu, potencialmente violada através da recolha forçada de saliva.
A este propósito Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, 437 e sgs, defende que o arguido pode constituir meio de prova, em sentido material, através das declarações prestadas sobre os factos, e em sentido formal, na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objeto de exames (…) Na medida, porém, em que o objeto do exame seja uma pessoa, que assim se vê constrangida a sofrer ou suportar uma atividade de investigação sobre si mesma, o exame constitui um verdadeiro meio de coação processual (…) tendo por isso de submeter-se aos princípios (já acima referidos) que estritamente demarcam a admissibilidade de tais meios de coação. Na verdade, a colheita de cabelos ou sangue não consentidas consubstanciam-se em objetivas intervenções no corpo que, ainda que realizadas por perito médico com rigorosa observância da leges artis, se podem e devem graduar como ofensas, ainda que mínimas ou insignificantes, do direito à integridade corporal e à autodeterminação corporal, posto que afetam, transitória e momentaneamente, o corpo físico e o sistema volitivo do interveniente.
Todavia, no que diz respeito à recolha de saliva (ou por exemplo de urina) afigura-se-nos que nem sequer se pode considerar suscetível de ofender o direito à integridade corporal do arguido, mas tão só o direito à autodeterminação corporal, que, em nosso entendimento, será de uma intensidade quase irrelevante.
Aqui chegados, considerando que o arguido não consentiu na realização desse exame, rectius, colheita de vestígios biológicos através de uma zaragatoa bucal, entendemos que o exame que se quer ver ordenado, constitui um meio de prova suscetível de ofender o direito à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal do arguido, uma vez que se traduz numa intervenção não autorizada no corpo do arguido e no seu sistema volitivo.
Porém, de encontro aos argumentos aduzidos pela Digna Magistrada do Ministério Público, atendendo a que a realização desse exame será a forma necessária para contribuir para a sustentação da autoria dos factos em investigação – concatenado a natureza do crime com a natureza dos vestígios recolhidos –, consideramos que ao arguido B… deve ser, coativa e coercivamente, recolhido o requerido exame de recolha de vestígios biológicos, desde que limitados à colheita de saliva, uma vez que, in casu, imperarão os valores da realização da justiça e da descoberta da verdade material, o que determinarei – cfr. artigos 269.º, n.º 1, al. b), 172.º, nºs 1 e 2, todos do CPP.
III – Pelo exposto, ordeno a colheita coativa de vestígios biológicos do arguido B…, exclusivamente de saliva, com vista à comparação do seu perfil genético com os vestígios biológicos recolhidos no âmbito destes autos.
Em face da situação da reclusão do arguido, passe e entregue os necessários mandados de condução à Polícia Judiciária, com um prazo de cumprimento que se fixa em 30 dias, que deverão ser comunicados ao Diretor do Estabelecimento Prisional onde o arguido se encontra.
*
AVR, ds»

2- Nos presentes autos de inquérito investiga-se a eventual prática pelo arguido de um crime de violação, p. e p. pelo artigo 164.º, n.º 1, do Código Penal, punido em abstrato com pena de prisão de 3 a 10 anos, cuja ofendida C… denunciara e imputara a autoria a B….
3- Coligidas as diligências de inquérito, resulta dos autos que no decurso do exame médico-legal realizado a C… foram recolhidos vestígios biológicos, sendo que após a realização de análises de Genética e Biologia Forense foi detetada presença de um haplótipo do cromossoma Y na zaragatoa da sua mama direita e em peças de vestuário que usava (cfr. fls. 114 a 116 e 121 a 135 dos autos principais e 142-144 e 149-163 do presente apenso).
4- Após a sua constituição como arguido foi solicitado a B… o seu consentimento para a realização de zaragatoa bucal, tendo o mesmo declarado que não autorizava que tal diligência fosse concretizada, pelo que não se procedeu à realização de zaragatoas bucais ao mesmo (cfr. fls 163-165 dos autos principais, fls. 170-171 do presente apenso).
5- Após promoção do Ministério Público, em 05.09.2018, foi proferido pelo Juiz de Instrução Criminal supra transcrito, em que se ordenou a colheita coativa de vestígios biológicos do arguido B…, exclusivamente de saliva, com vista à comparação do seu perfil genético com os vestígios biológicos recolhidos no âmbito destes autos.
6- Na impossibilidade, por razões operacionais de execução dos mandados, de cumprimento do ordenado, foi proferido em 05.11.2018 despacho renovando os fundamentos de factos e de direito do anterior despacho e ordenada a colheita coativa dos ditos vestígios.
7- Em face de nova impossibilidade, por razões operacionais de execução dos mandados, de cumprimento do ordenado, foi proferido em 17.12.2018 o despacho recorrido supratranscrito, renovando os fundamentos de factos e de direito do despacho de 05.02.2018 e ordenada a colheita coativa dos ditos vestígios.
8- Na referida decisão foi ordenado que se passassem e entregassem os necessários mandados de condução à Polícia Judiciária, com um prazo de cumprimento que se fixou em 30 dias.
9- Os referidos mandados para colheita foram emitidos em 19.12.2018 (cfr. ref. 104919706 e fls. 269 dos autos principais e 221 do presente apenso), remetidos ao Ministério Público e por este entregues à Polícia Judiciária para cumprimento no dia 09.01.2019 cfr. fls. 225 do presente apenso e ref. 105136273).
10- Os mandados foram cumpridos em 18.01.2019, tendo-se procedido à colheita dos vestígios pela realização de zaragatoa bucal ao arguido (cfr. fls. 233-237 do presente apenso).
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2.3.- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
2.3.1-Da legalidade e constitucionalidade do despacho que determinou a recolha coativa da saliva por zaragatoa bocal e da consequente nulidade da prova obtida.
Entende o recorrente que o despacho que determinou a recolha coativa da saliva por zaragatoa bucal violou o princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 6.°, n°1 na CEDH, e no artigo 20°, n.°4 da Lei Fundamental, bem como o privilégio contra a auto-incriminação decorrente do princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32°, n.°266, da CRP e proclamado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1798, no seu artigo 9.º, n.°267, e na CEDH, no seu artigo 6°, n.°2, bem como o artigo 58.°, n.°5, do CPP e o disposto no artigo 126º do CPP.
Como é comummente aceite, o processo penal prossegue três finalidades essenciais: a realização da justiça e a descoberta da verdade material; a proteção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas; e o restabelecimento da paz jurídica posta em causa com a prática do crime[1]. Dada a antinomia existente entre estas finalidades, é necessário operar a concordância prática entre as mesmas, procurando minimizar as perdas para cada uma delas e respeitando o limite da dignidade da pessoa humana, o que se faz conjugando os princípios constitucionais e normas vigentes na ordem jurídica.
Destinando-se o processo penal à aplicação do direito penal substantivo, a aplicação das consequências jurídicas deste depende da existência ou verificação dos factos que as desencadeiam. A atividade probatória que se destina a convencer da existência ou não dos factos penalmente relevantes é regulamentada pelo processo penal. Com efeito e desde logo, de acordo com o artigo 124º do CPP, constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.
No artigo 125º do Código de Processo Penal, onde se dispõe que «São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei», encontram-se consagrados os princípios da legalidade e liberdade da prova.
No nosso processo penal faz-se a distinção entre meios de obtenção de prova e meios de prova, sendo através dos meios de obtenção de prova que são obtidos os meios de prova a partir dos quais se forma a convicção das autoridades judiciárias[2].
O Código de Processo Penal prevê, entre outros, como como meios de obtenção de prova os exames (artigo 171º do CPP), dispondo o seguinte, no seu n.º 1: «Por meio de exames das pessoas, dos lugares e das coisas, inspeccionam-se os vestígios que possa ter deixado o crime e todos os indícios relativos ao modo como e ao lugar onde foi praticado, às pessoas que o cometeram ou sobre as quais foi cometido.»
Dúvidas não resultam que a colheita de vestígios biológicos (saliva) através de uma zaragatoa bucal constitui, nos termos e para os efeitos do artigo 171º do CPP, um exame e, por aí, um meio de obtenção de prova.
Por outro lado, dispõe o artigo 172º, n.º 1 do CPP que «Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente
Em relação ao exame para colheita de vestígios biológicos para posterior determinação de perfis de ADN, a determinação do mesmo, em caso de falta de consentimento do visado, é da competência reservada do juiz, que decide após ponderação a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado (Cfr. artigos 172º, n.º 2 e 269º, n.º 1, al.b do CPP e artigo 8º, n.º 1 da Lei n.º 5/2008, de 12.2).
Dúvidas não restam que, face ao não consentimento do arguido, o exame realizado nos autos foi determinado por despacho fundamentado do juiz, tendo sido levado a cabo através de método não invasivo – zaragatoa bucal – como determina o artigo 10º da Lei 5/2008, de 12.2.
Posto isto, resta saber se, como pretende o recorrente, o despacho que determinou o dito exame violou direitos fundamentais do arguido, nomeadamente o direito a um processo justo e equitativo, o privilégio contra a auto-incriminação ou qualquer outro direito fundamental, constituindo-se por isso em método de prova proibido, e correspondendo à prova assim obtida, nos termos do artigo 126º do CPP, a sanção da nulidade e a proibição da sua utilização.
Nos termos do artigo 126º, n.º1 do CPP, «São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.» E no n.º 2 do deste artigo prevê-se que «São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante: a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos; (…) c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;(…).»
Este artigo 126º acaba por ser uma concretização do disposto nos artigos 25.º, 26.º e 32.º da CRP que dispõem[3]: artigo 25.º- “A integridade moral e física das pessoas é inviolável. 1. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis ou desumanos.”; Artigo 26.º - “1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.” Artigo 32.º- “8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.”
Com interesse ainda para a matéria em causa nos autos, o artigo 35.º da CRP, onde se estabelece um autêntico direito à autodeterminação informativa em relação aos dados pessoais, ao estatuir-se que “A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis” (n.º 3), sendo certo que “Os dados pessoais constantes de ficheiros manuais gozam de protecção idêntica à prevista nos números anteriores, nos termos da lei” (n.º 7)[4].
De que no regime dos meios de obtenção de prova, em especial nos exames para recolha de amostras biológicas, é evidente o conflito entre a finalidade da realização da justiça e de descoberta da verdade material e a de proteção dos direitos fundamentais das pessoas, já nos tínhamos podido dar conta ao verificar os requisitos de que as normas do CPP e da Lei n.º 5/2002 atrás citadas fazem depender a utilização daqueles. Acrescem agora as normas constitucionais citadas.
Para a harmonização e concordância prática das referidas finalidades do processo penal, cabe fazer uso do disposto no artigo 18º da CRP, onde se dispõe no seu n.º 2 que «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos», e no seu n.º 3 que «As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.»
Deste artigo 18º da CRP resulta que os direitos fundamentais e liberdades públicas podem ser comprimidos, desde que se respeite o princípio da legalidade, da intervenção mínima e da proporcionalidade.
A propósito da recolha de material biológico a arguido, pronunciou-se o Tribunal Constitucional referindo que a Constituição não proíbe em absoluto, a recolha coativa de material biológico de um arguido (designadamente de saliva, através da utilização da técnica da zaragatoa bucal) e a sua posterior análise não consentida para fins de investigação criminal, no caso concreto para subsequente comparação com vestígios biológicos colhidos no local do crime, impondo, no entanto, que essa determinação seja judicial e não apenas por decisão do Ministério Público; e também que essa recolha não integra qualquer violação do privilégio contra a auto-incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), o qual se encontra consagrado nos artigos 2.º, 26.º, 32.º, n.º 2 e 4 da Constituição (Ac TC 155/2007; 228/2007)[5].
Em relação aos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos, cabe referir que quer a Convenção Europeia dos Diretos Humanos quer a Declaração Universal dos Direitos Humanos, apresentam também instrumentos de harmonização e concordância prática em tudo semelhantes aos já atrás referidos a propósito do artigo 18º da CRP.
Estão neste caso os artigos 3º, 6º e 8º da CEDH e artigo 12º da DUDH, onde se estabelecem por um lado os direitos protegidos e por outro, expressa ou implicitamente, a possibilidade da sua restrição proporcional para se atingirem outros fins relevantes numa sociedade democrática, como a segurança social, a segurança pública, o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, a proteção dos direitos e das liberdades de terceiro.
Regressando ao caso dos autos, verificamos que está em causa a investigação de um crime de violação do artigo 164º do Código Penal, crime esse que se integra no conceito de ‘Criminalidade especialmente violenta' da alínea l) do artigo 1º do CPP. Por outro lado, constata-se a necessidade do exame ordenado para o apuramento da verdade dos factos e realização da justiça. Acresce que se trata de um exame não invasivo, tendo sido determinado por despacho proferido por juiz e devidamente fundamentado, ainda que parcialmente por remissão para despacho anterior. Finalmente, o exame e a diligência ordenada têm suporte legal, entre outros, nos artigos 171º, 172º do CPP e 8º da Lei n.º 5/2002.
Concluindo, o despacho que determinou o exame em causa nos autos operou de forma proporcionada a concordância prática entre as finalidades da realização da justiça e de descoberta da verdade material e a de proteção dos direitos fundamentais das pessoas, pelo que não se mostram violados quaisquer direitos fundamentais do arguido, nomeadamente o direito a um processo justo e equitativo, o privilégio contra a auto-incriminação ou qualquer outro direito fundamental.
Tudo visto, por a diligência ordenada e realizada nos presentes autos se mostrar legal, proporcionada, necessária e adequada, não enferma de qualquer nulidade o despacho recorrido nem constitui prova proibida a prova emergente da recolha de saliva para identificação de ADN, através de zaragatoa bucal, contra a vontade do visado.
2.3.2-Da extemporaneidade e consequente nulidade da diligência de recolha de saliva por ter sido realizada fora do prazo judicialmente ordenado.
Entende o recorrente que tendo o douto despacho sido proferido por conclusão em 17 de Dezembro de 2018, os 30 dias terminariam em 16 de Janeiro de 2019 (em virtude do mês de Dezembro ter 31 dias) e a diligência foi realizada 2 dias mais tarde, ou seja, em 18 de Janeiro de 2019, e pelo que a diligência de recolha de saliva enferma de manifesta nulidade por ter sido realizada fora do prazo judicialmente ordenado e ao qual estava ao coberto e em tal despacho encontraria legitimidade.
Não tem razão o recorrente.
Com efeito, a data a considerar para o início do prazo do cumprimento dos mandados, por definição, não é a do despacho, mas sim uma das duas seguintes, ou a da emissão dos próprios mandados ou, até mesmo, a da entrega dos mandados à Polícia Judiciária. É que antes da passagem e assinatura dos mandados pelo juiz nem sequer há mandados para cumprir.
O despacho recorrido foi proferido em 17.12.2018, nele se ordenou que se passassem e entregassem os necessários mandados de condução à Polícia Judiciária, com um prazo de cumprimento que se fixou em 30 dias, tendo estes sido emitidos em 19.12.2018, remetidos ao Ministério Público e por este entregues à Polícia Judiciária para cumprimento no dia 09.01.2019. Os mandados foram cumpridos em 18.01.2019, tendo-se procedido à colheita dos vestígios pela realização de zaragatoa bucal ao arguido.
Ainda que se considerasse a data da emissão dos mandados (19-12-2018), o seu prazo de cumprimento não se mostrava excedido à data da realização da diligência (18.01.2019), pelo que não se verifica qualquer irregularidade ou nulidade da diligência realizada.
Concluindo, é totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido, devendo ser confirmada a decisão recorrida.
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3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça, em 3 UC, ao abrigo do disposto nos artigos 513 nº1 e 514 nº1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.
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Notifique.
(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º n.º 2, do CPP)
Porto, 8 de Maio de 2019
William Themudo Gilman
António Luís Carvalhão
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[1] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2017, p. 14-15.
[2] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2017, p. 110 -111.
[3] Cfr. sobre a legalidade e constitucionalidade dos exames de ADN, os AC. TRP de 11-10-2017 (Rel. Arisa Caldinho); TRP de 10-07-2013 (Rel. Joaquim Gomes), ambos em dgsi.pt.
[4] Cfr. o AC. TRP de 10-07-2013 (Rel. Joaquim Gomes) em dgsi.pt.
[5] Cfr. os Acs do Tribunal Constitucional: TC 155/2007 e TC 228/2007 (in www.tribunalconstitucional.pt)