Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PAULO COSTA | ||
Descritores: | CRIME DE HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA DEVER DE CUIDADO | ||
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Nº do Documento: | RP2023070542/20.0GTPNF.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/05/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AOS RECURSOS INTERPOSTOS PELOS ASSISTENTES | ||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - No caso em apreço, dado que a arguida decidiu realizar tal manobra quando as circunstâncias que se verificavam na altura lhe impunham que a não fizesse (falta de visão sobre toda a faixa de rodagem e o trânsito atrás de si) é evidente que omitiu o dever de cuidado que lhe era imposto pelo disposto nos artigos 11.°, n.° 2, e 35.°, n.° 1, do Código da Estrada. II – Está, assim, indiciada a prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º do Código Penal | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo n º 42/20.0GTPNF.P1 Relator: Paulo Emanuel Teixeira Abreu Costa Adjuntos: Maria Luísa Arantes Luís Coimbra Acórdão, julgado em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto: I - Relatório. Os assistentes AA e BB não se conformando com o despacho de não pronúncia proferido no Tribunal Judicial da Comarca de Porto- Juízo de Instrução Criminal do Porto-J1, que nos autos à margem referenciados decidiu não pronunciar nos seguintes termos: “Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por efectivamente esses indícios se afigurarem insuficientes, nos termos do art.º 308.º, n.º 1, 1.ª parte, do C. Pr. Penal NÃO SE PRONUNCIA a arguida CC pelos factos e imputação jurídica, constantes do requerimento de abertura da instrução dos assistentes.”, e, em consequência, ordenou o oportuno arquivamento dos autos, vieram recorrer nos termos que constam, que ora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte (partes relevantes): (transcrição) “I) o Tribunal a quo, considerou suficientemente indiciada a factualidade relativa à dinâmica do acidente de viação, tal como vem descrita pelos Recorrentes no RAI; II) Os Recorrentes estão, de resto, de acordo com boa parte das observações da douta decisão recorrida, sobre a actuação dos condutores nos momentos que antecederam a colisão; III) No entanto, não podem aceitar que, perante os factos que se reputam como suficientemente indiciados, não se tenha considerado, também, como fortemente indiciado que a arguida realizou a manobra de inversão de marcha sem se certificar que a faixa de rodagem onde a efectuou se encontrava livre e desimpedida, de forma a que a pudesse fazer em segurança, sem colocar em perigo ou causar embaraço aos outros utentes da via, conforme consta nos artigos 9º e 20°, da Acusação vertida no RAI; IV) Lendo a matéria de facto que o Tribunal a quo considera suficientemente indiciada, vemos que os factos objectivos, ou susceptíveis de apreensão exterior ou prova directa, vertidos no RAI, estão todos demonstrados; V)Apenas os factos negativos relativos à conduta da arguida (o que não fez e deveria ter feito - artigos 9o, 18° e 20°, da acusação do R.A.I.) e os do foro psíquico, relativos ao segmento subjectivo do tipo legal do crime - artigos 21° a 23°, da acusação do R.A.I., o Tribunal a quo considera que ficaram por apurar; VI) As regras da lógica e da experiência levam-nos a inferir, com toda a segurança para o grau de certeza exigível nesta fase ao juízo que sustente uma probabilidade de condenação em direito penal, que em face dos factos que na douta decisão recorrida se tiveram por suficientemente indiciados nos autos, está, igualmente, suficientemente indiciado que a arguida, ao efectuar a manobra de inversão do sentido de marcha, antes não se certificou que a faixa de rodagem se encontrava livre e desimpedida, o mesmo é dizer que da sua realização não resultava perigo ou embaraço para o trânsito; VII) Com efeito, atendendo à factualidade descrita nos pontos 5, 7, 8, 9 e 10 da Fundamentação de Facto da douta decisão instrutória é imperioso concluir que a arguida efectuou a descrita manobra de inversão de marcha sem se certificar que a faixa de rodagem se encontrava livre e desimpedida, de forma a que a pudesse fazer em segurança, sem colocar em perigo ou causar embaraço aos outros utentes da via, tal como se afirmou nos arts. 9º e 20°, da Acusação deduzida no RAI, VIII) É imperioso concluir que a arguida efectuou a descrita manobra de inversão de marcha sem se certificar que a faixa de rodagem se encontrava livre e desimpedida, de forma a que a pudesse fazer em segurança, sem colocar em perigo ou causar embaraço aos outros utentes da vi; no artigo 9° e 20°, da Acusação deduzida no RAI, IX) E, por maioria de razão, nesta sede de instrução, em que o grau de certeza que se exige não é igual à do julgamento, pelo menos, sempre se teria de dar como suficientemente indiciado tal facto; X) A admitir-se a hipótese contrária, ou seja, que após encostar à direita e antes de iniciar a inversão de marcha, a arguida verificou previamente o trânsito que vinha no mesmo sentido que o seu, a sua conduta seria ainda mais grave, pois, nesse caso, teria de se concluir que pese embora não poder deixar de ter visto os veículos que aí vinham a circular, mormente o motociclo conduzido pelo DD, em rota de colisão com o veículo que conduzia, não os deixou passar antes de realizar a referida manobra de inversão de marcha que pretendia efetuar; XI) Perante os apontados factos considerados indiciados, é igualmente inegável que da manobra de inversão do sentido de marcha realizada pela arguida resultou perigo para o trânsito que seguia atrás de si, o que leva forçosamente à mesma conclusão, isto é que antes de a realizar não observou os deveres de cuidado que a situação lhe impunha que observasse por forma a evitar que tal resultado se tivesse produzido; XII) Acresce que, de harmonia com o que se concluiu a arguida tinha duas opções para a manobra de inversão de marcha que pretendia levar a efeito: (i) aproximando-se do eixo da via, e invertendo sentido da sua marcha, logo que o trânsito circulando em sentido contrário permitisse a sua realização, (ii) ou encostando o mais possível à direita, de modo a permitir que os veículos que seguiam à sua retaguarda a ultrapassassem, para depois iniciar a inversão de marcha (negrito e sublinhados nossos); XIII) A arguida optou pela segunda alternativa, encostou à direita, mas não permitiu que os veículos que seguiam à sua rectaguarda a ultrapassassem para depois iniciara inversão de marcha; XIV) É razoável concluir que, na eventualidade da arguida ter olhado para os seus espelhos retrovisores antes de iniciar a inversão do sentido de marcha, não conseguisse visualizar toda a faixa de rodagem e o trânsito que nela circulava à sua rectaguarda, quer porque se tinha encostado à direita (alterando dessa forma o campo de visão da sua rectaguarda reflectido nos retrovisores), quer porque a carrinha que vinha atrás de si lhe diminuía o campo de visão sobre aqueles (trânsito e faixa de rodagem). XV) Todavia, independentemente do campo de visão com que ficou nos seus retrovisores, após ter encostado o seu veículo ligeiro à berma direita, é inteiramente seguro afirmar-se que o veículo ligeiro de mercadorias que circulava atrás da arguida não permitia que esta tivesse uma visão de toda a faixa de rodagem e do demais trânsito que circulava atrás de si, mesmo que tivesse olhado para os seus espelhos retrovisores; XVI) Nestas condições - falta de visão sobre toda a faixa de rodagem e o trânsito atrás de si - a arguida nunca deveria ter iniciado a inversão de marcha, pois tinha de admitir que além da referida carrinha, na faixa de rodagem atrás de si podiam vir a circular outros veículos, como, de facto, vinha o motociclo conduzido pelo DD; XVII) Dado que a arguida decidiu realizar tal manobra quando as circunstâncias que se verificavam na altura lhe impunham que a não fizesse, é evidente que omitiu o dever de cuidado que lhe era imposto pelo disposto nos artigos 11°. n° 2 e 35°, n° 1, do Código da Estrada; XVIII) Pelo exposto e em face dos factos reconhecidamente apurados no inquérito e na instrução, relativos ao segmento objectivo do tipo legal do crime de homicídio por negligência, previsto no artigo 137°, do Código Penal, as demais circunstâncias acima apontadas que os autos evidenciam, conjugados com as regras da experiência, encontram-se, igualmente, apurados ou, pelo menos, fortemente indiciados os factos descritos no RAI, no que toca à negligência (artigos 9°, 18°, e 20° a 23°, da Acusação deduzida no RAI) com que actuou a arguida (segmento subjectivo do tipo legal do crime homicídio por negligência), encontrando-se, assim, preenchidos todos os elementos, objectivos e subjectivos, constitutivos do tipo legal do crime que lhe foi imputado; XIX) Por outro lado, embora não sendo factos essenciais ao preenchimento do tipo legal do crime imputado à arguida, porque úteis para melhor compreender o modo como o acidente ocorreu não se vê razão para também não se ter considerado suficientemente indiciado o que vem descrito no artigo 11°, da Acusação proposta no RAI, até porque, no mesmo sentido, na douta decisão recorrida vem dito o seguinte: "na verdade, pode bem ter ocorrido que quando a arguida olhou pelo retrovisor; imediatamente antes de iniciar a manobra, o motociclo do DD se encontrasse a iniciar a manobra de ultrapassagem da Peugeot ... e, assim, estivesse encoberto por esta viatura, impossibilitando a arguida de visualizar esse motociclo; por seu turno, o condutor da moto, pelas mesmas razões, não se poderia ter apercebido que a arguida se aprestava para invadir as duas hemi- faixas para inverter o sentido de marcha.” Nestes termos e nos que V. Ex.as mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogando a douta decisão recorrida, determinar que seja a arguida pronunciada pelos factos descritos, sob o item "II) Acusação", do Requerimento de Abertura de Instrução dos Assistentes, aqui Recorrentes, e com base nas provas no mesmo requerimento indicadas, para ser julgada, perante tribunal singular, como autora de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido no artigo 137.°, do Código Penal, porquanto, assim, se fará JUSTIÇA!.” A arguida respondeu concluindo pela improcedência do recurso. O M.P. a quo respondeu afirmando: “(…) Mas isso não significa que, antes de iniciar a manobra de inversão de marcha, a arguida tivesse condições de visibilidade para se certificar se podia fazer aquela manobra em segurança. Com efeito, a arguida encostou-se ao lado direito da berma, num local concreto em que o traço da via de trânsito (uma recta) era já descontínuo, o que permitia que veículos que seguissem na retaguarda da viatura Peugeot ... a pudessem ultrapassar (dentro dos limites de velocidade para o local). E nessa perspectiva, consideramos como demonstrado que, efectivamente, a arguida agiu com violação de dever de cuidado, tanto mais que criou a convicção no condutor e no ocupante da viatura Peugeot ... que permaneceria parada do lado direito. Mas, por outro lado, não se pode olvidar que, como já referimos, foi a condução levada a cabo pela vítima que, em grande medida, causou o acidente em análise. Aliás, essa foi a conclusão, em termos de responsabilidade civil, da seguradora da viatura da vítima, ao atribuir a esta 75 % da responsabilidade do acidente e à aqui arguida apenas 25% de responsabilidade (cfr. fls. 370). Assim, aceita-se que a vítima tenha contribuído causal e essencialmente para a produção do resultado, mas isso não paralisa, a nosso ver, necessariamente a imputação da verificação do acidente também à arguida. A imputação objectiva deve sempre explicar-se (estabelecer-se) para além de uma lógica de pura causalidade. Seguindo posições desenvolvidas por Roxin e Jakobs, a partir do momento em que o agente começa a actuar ilicitamente, em que viola o seu dever de cuidado, há um relaxamento e um desprendimento de atitude que podem justificar a imputação. O princípio da confiança, segundo o qual o agente que adopta um comportamento adequado pode confiar que os outros procederão de idêntico modo, deixa de se aplicar quando essa confiança, em face de circunstâncias do caso, reconhecíveis para o agente, se apresente como injustificada. O princípio da confiança cede relativamente a comportamentos (mesmo ilícitos) de terceiros com os quais um agente consciente deva razoavelmente contar. No caso presente, para ter evitado o resultado teria bastado à arguida certificar-se que nenhuma viatura circulava na sua faixa de trânsito, na sua retaguarda, pois só assim a sua visibilidade seria total e poderia efectuar aquela manobra se inversão de marcha em total segurança. E se tivesse aguardado, como devia, a passagem das viaturas que seguiam imediatamente à sua retaguarda, designadamente a viatura Peugeot ..., para só depois se atravessar na via e efectuar a inversão de marcha, teria evitado a ocorrência deste concreto embate, pois dessa forma a arguida teria tido a possibilidade de verificar a aproximação do motociclo conduzido pela vítima.” Neste tribunal de recurso a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso. Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito. II. Objeto do recurso e sua apreciação. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP. Erro do julgamento indiciário da matéria fáctica por deficiente apreciação e valoração das provas. Do enquadramento dos factos. 1.Decisão instrutória. “O Tribunal é competente em razão da matéria e do território. O M. Público e os assistentes têm legitimidade para acusar. Não há nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais que importe conhecer. * Foi requerida a abertura da instrução pelos assistentes AA e BB (a fl.s 365/369), relativamente ao arquivamento do inquérito pelo M. Público (a fl.s 319/329) pelo imputado crime de homicídio por negligência à arguida CC na pessoa de DD.Fundamento do seu requerimento de abertura de instrução é a alegação em como foram recolhidos indícios no inquérito que permitem concluir que a arguida, por ter efectuado a manobra de inversão de marcha fora das condições legalmente permitidas, originou o acidente de que resultou a morte do filho dos assistentes, o referido DD. Concluem, assim, pela pronúncia da referida CC, pela comissão de um crime de homicídio por negligência. Não requereram a realização de quaisquer diligências. * Aberta a instrução, procedeu-se ao debate instrutório, em que o M. Público manifestou o entendimento em como, efectivamente, resulta do inquérito, que a arguida actuou negligentemente no exercício da condução, daí tendo resultado a morte do malogrado DD, por isso devendo ser pronunciada pelo crime de homicídio por negligência; os assistentes mantiveram o que haviam arguido no seu requerimento de abertura de instrução, concluindo pela pronúncia da arguida como autora do crime de homicídio por negligência; a defesa da arguia pediu que seja feita justiça.* O art. 286.º, n.º 1 do C. Pr. Penal proclama que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.“.Ou seja, a actividade do juiz de instrução criminal, nesta fase processual, circunscreve-se - apenas e só - a verificar (a comprovar) se a acusação alternativa deduzida pelos assistentes contra a arguida assenta em indícios suficientes em como praticou o crime de homicídio por negligência. Não pretende assim a lei que a instrução constitua um efectivo suplemento de investigação relativamente ao inquérito, não visando esta fase processual facultativa o alargamento do âmbito da investigação realizada em sede de inquérito. Ora, nos termos do art.º 308.º, n.º 1 do C. Pr. Penal, “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação aa arguida de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia a arguida pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.“. Por seu turno, e agora de acordo com o art.º 283º do C. Pr. Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de aa arguida vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.“. Conforme se refere no acordão de 02.JUN.15 da Relação de Évora (pr. 1083/13.9GDSTB) “A jurisprudência tem considerado, de modo que se nos afigura maioritário, que “indícios suficientes” correspondem à persuasão ou à convicção de que, mediante o debate amplo da prova em julgamento, se poderão provar em juízo os elementos constitutivos da infracção – cfr. entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25-06-1988, no B.M.J. nº 378, pág. 787, do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1992, no processo nº 427747, cit. em “Código de Processo Penal Anotado”, Simas Santos e Leal Henriques, vol. II, 2ª ed., e do Tribunal da Relação de Évora de 22-06-1993, no B.M.J. nº 428, pág. 706. Isto é, os indícios suficientes correspondem a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si, conduzam à convicção de culpabilidade da arguida e de lhe vir a ser aplicada uma pena. E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar a arguida quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que a arguida tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação da arguida, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”. Por seu turno, o ac. da Rel. de Guimarães, por acordão de 06.FEV.17 (pr. 224/15.6GBGMR.G1) sustenta que “…para que surja uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento. Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto em si mesmo neutro, acarretando sempre, além dos incómodos e independentemente de a decisão final ser de absolvição, consequências, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista jurídico, entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando existissem indícios suficientes da prática pela arguida do crime que lhe é imputado. Assim sendo, para fundar uma decisão de pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a, que, da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade da arguida, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal. Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação da arguida ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”. A Rel. do Porto, por ac. de 22.ABR.15 (pr. 466/13.3PAGDM.P1) sustenta que “I – Quando a lei afirma a possibilidade razoável de aa arguida vir a ser aplicada uma pena [art. 283.º, n.º 2, ex vi do art. 308.º, n.º 2, do CPP] “possibilidade razoável” não quer dizer “possibilidade mediana” ou “possibilidade mínima”. II – O juízo de probabilidade revelador dos indícios suficientes da verificação do crime e de quem é o seu agente não se contenta com um juízo de probabilidade mediano; antes pressupõe e exige uma verdadeira convicção de probabilidade dessa condenação.”, sendo que, por ac. de 25.NOV.15 (pr. 306/11.3GDOAZ.P2) estatuiu que “Os indícios são suficientes quando há uma alta probabilidade de futura condenação da arguida, ou pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”. Já em 10.SET.08, a Rel. de Coimbra (pr. 195/07.2GBCNT.C1) havia analisado tal conceito, afirmando que “I - Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação da arguida pelo crime que lhe é imputado. II – A suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final, mas apreciada em face dos elementos probatórios e de convicção constantes do inquérito (e da instrução) que, pela sua natureza, poderão eventualmente permitir um juízo de convicção que não venha a ser confirmado em julgamento; mas se logo a este nível do juízo no plano dos factos se não puder antever a probabilidade de futura condenação, os indícios não são suficientes, não havendo prova bastante para a acusação (ou para a pronúncia). III - O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade. IV - Não se exigindo o juízo de certeza que a condenação impõe - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável -, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação.”. Ou seja: o juiz de instrução criminal analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daquelas que teve no inquérito, o que é mais provável: a condenação da arguida ou a sua absolvição? A Relação de Lisboa, por acórdão de 21.MAI.15 (pr. 2/13.7GFPRT.L1-9) afirmou que, “…A jurisprudência tem considerado, nos tempos mais recentes, esta probabilidade razoável de, em julgamento, ser aplicada aa arguida uma pena ou medida de segurança, como uma “probabilidade elevada” ou “particularmente qualificada”, isto é, não se contenta com a mera hipótese de tal poder acontecer, mas, exige, antes, uma hipótese séria de tal poder vir a acontecer, em obediência ao princípio in dubio pro reo, aplicável a todas as fases do processo e da presunção de inocência.”, entendimento que a Rel. de Évora corroborou, por acórdão de 16.FEV.16 (pr. 408/13.1TABJA.E1): “Verificam-se indícios suficientes para pronunciar a arguida quando haja uma lata probabilidade de futura condenação do mesmo, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”. Se a resposta for positiva, deve pronunciar a arguida; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia: “…fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem os mesmos, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia quando: - os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior; - se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou, - quando se pressinta que da ampla discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido de condenação futura. Para a pronúncia não é necessário uma certeza da existência da infracção, bastando uma grande probabilidade de futura condenação da arguida, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. Deve assim o Juiz de Instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida, fazendo um juízo de probabilidade sobre a condenação da arguida e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.”, diz-se no ac. da Rel. de Coimbra, de 08.JUL.15 (pr. 204/14.9PCCBR.C1). * Os assistentes nos presentes autos – AA e BB - pretendem a pronúncia da arguida CC pela prática de um crime de homicídio involuntário, contrariamente ao entendimento vertido no despacho de arquivamento dos autos pelo M. Público, que concluiu pela ausência de indícios em como a arguida tenha violado qualquer dever de cuidado e que, por isso, não podia ser responsabilizada pelo acidente de que resultou a morte do filho dos assistentes, o malogrado DD.Portanto, para verificar se a pretensão deles tem viabilidade importa verificar se a arguida postergou qualquer dever de cuidado que sobre si impendesse e que tivesse contribuído em alguma medida para o acidente que vitimou o filho dos assistentes. Desde logo, estes contestam qua a manobra efectuada pela arguida fosse – conforme referido nesse despacho de arquivamento – a mudança de direcção, mas, pelo contrário, que o que ela fez foi uma inversão de marcha. Neste particular, assiste razão aos requerentes da presente instrução, pois que resulta indubitável nos autos que a arguida pretendia estacionar no lado oposto ao sentido de marcha em que seguia (que era Porto/Entre-os-Rios); por isso, necessariamente que tinha que inverter esse sentido de circulação, ou seja para Entre-os-Rios/Porto. Esta precisão é importante, como se procurará demonstrar infra. Ora, no entender dos requerentes, a manobra de inversão de marcha que aquela arguida efectuou no dia 08.OUT.20 não obedeceu ao legalmente prescrito, uma vez que, segundo a sua perspectiva, deveria ter deixado passar o tráfego que seguia atrás de si, na sua hemi-faixa, bem como aquele que, em sentido contrário, circulava na outra metade da faixa de rodagem. Segundo dispõe o art.º 35.º, n.º 1 do C. da Estrada, “O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.” (sublinhado e negrito acrescentados). Portanto, a manobra em causa (que era, sem dúvida, de inversão do sentido de marcha, uma vez que para estacionar do outro lado da faixa de rodagem, a arguida tinha que circular alguns metros em sentido contrário ao daquele que até então circulava) pode ser executada de várias maneiras, desde que “…da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.”. Ou seja, não impõe a lei – contrariamente ao que sucede, por ex., com a manobra de mudança de direcção (art.ºs 44.º e 45.º do C. Estrada) – uma forma ou maneira específica de realizar essa manobra. Assim sendo, a arguida poderia ter realizado a manobra em causa do seguinte modo: - aproximando-se do eixo da via, e invertendo o sentido da sua marcha, logo que o trânsito circulando em sentido contrário permitisse a sua realização, sem a criação de “…perigo ou embaraço para o trânsito.”; ou, - ocupando a berma do lado direito da faixa onde circulava, de modo a permitir que os veículos que seguiam à sua rectaguarda a ultrapassassem, invertendo depois o sentido da sua marcha logo que o trânsito circulando em sentido contrário permitisse a sua realização, sem a criação de “…perigo ou embaraço para o trânsito.”. Do ponto de vista da segurança e da fluidez do tráfego rodoviário, a manobra descrita em primeiro lugar (a aproximação ao eixo da via para, depois, inverter o seu sentido de circulação) recorta-se como sendo a preferível, uma vez que apenas obrigava a condutora a ter especial precaução com o trânsito que circulasse em sentido contrário ao seu; no entanto, qualquer das manobras – insiste-se: desde que não crie “…perigo ou embaraço para o trânsito.” – é conforme ao determinado pelo art.º 35.º, n.º 1 do C. Estrada. Por apelo à prova indiciária recolhida no inquérito (nomeadamente a fl.s 238/240 e 242/244), verifica-se que a arguida optou por se aproximar da berma do lado direito (atento o seu sentido de marcha), tendo depois iniciado a manobra de inversão, ocupando primeiro a hemi-faixa da via onde circulava, e, de seguida, a hemi-faixa destinada à circulação em sentido contrário, ocasião em que a viatura que conduzia foi embatida pelo motociclo conduzido pelo DD. Apesar de a arguida ter declarado em inquérito que não ocupou a berma para realizar a manobra (fl.s 303/305), as testemunhas EE e FF (que circulavam em outro veículo – uma Peugeot ... – a cerca de 70 metros atrás da Renault ... conduzido pela arguida) afirmaram que ela encostou à direita, “…indo ocupar a berma…” (fl.s 239 e 244). E faz sentido que assim fosse: considerando os cerca de 11 metros de largura que medeiam entre o local onde a arguida disse pretender estacionar o carro e a parte da berma direita que era possível ocupar (google.pt/maps/@41.0918994,- 8.5212907,64a,35y,270h/data=!3m1!1e3), o encostar o mais possível à direita para depois iniciar a inversão de marcha era o procedimento a efectuar. Com efeito, considerando o diâmetro de viragem entre passeios/muros do modelo que conduzia, de 11,3 m. (renault.pt/veiculos-passageiros/renault-.../especificacoes.html), não lhe restava outra alternativa; se se tivesse aproximado do eixo da via para, depois, iniciar a inversão de marcha, não conseguiria efectuá-la de uma vez só, por o carro que conduzia não ter brecagem suficiente para o efeito; se o fizesse, a manobra seria mais complexa, nomeadamente obrigando-a a efectuar uma manobra de marcha atrás quando se encontrava a ocupar parte da hemi-faixa destinada ao sentido Entre-os-Rios/Porto, para depois estacionar o carro na berma. Neste quadro de circunstâncias, há que reconhecer que é impressivo o argumento dos assistentes segundo o qual a arguida, depois de encostar à direita, “…o campo de visão que a arguida tinha nos seus retrovisores sobre o trânsito que circulava na faixa de rodagem atrás de si, se não desapareceu totalmente, ficou, pelo menos, substancialmente reduzido, e deixou de abranger, seguramente, a hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido contrário que o ofendido utilizou para realizar a manobra de ultrapassagem.”: não é de afastar a possibilidade de a arguida, nesse momento, não conseguir alcançar, através dos retrovisores, a visão da totalidade da outra metade da faixa de rodagem (aquela destinada ao tráfego no sentido Entre-os-Rios/Porto) por onde circulava o motociclo conduzido pelo filho dos assistentes, que nesse momento ocupava (legalmente) essa hemi- faixa para ultrapassar a referida Peugeot ... que seguia atrás do carro conduzido pela arguida. Se assim fosse, é forçoso reconhecer que, ao iniciar a manobra de inversão do sentido de marcha nessas circunstâncias – sem que pudesse ver a faixa de rodagem atrás de si, na totalidade da sua largura – a arguida teria inobservado o comando legal decorrente do art.º 11.º, n.º 2 do C. Estrada (“Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança.”), bem como do art.º 35.º, n.º 1 de mesmo código (“O condutor só pode efetuar as manobras de … inversão do sentido de marcha … por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.”). Ou seja: ao iniciar a manobra em questão sem que pudesse verificar se na hemi-faixa à sua rectaguada, destinada ao trânsito em sentido contrário ao seu não se encontrava a circular qualquer outro veículo no sentido em que até então a arguida seguia, seria lícito afirmar-se ter ela postergado o dever de cuidado ínsito nas referidas normas de circulação estradal. E apesar de, sem dúvida, o acidente mortal se dever em elevadíssima medida à conduta negligente do malogrado DD (em excesso de velocidade, com vestígios de canabinóides no sangue e com o pneu traseiro em más condições), então seria legítimo concluir, com os assistentes que “…a arguida deveria parar e verificar se a faixa de rodagem se encontrava inteiramente livre, antes de nela atravessar o veículo que conduzia, com o propósito de o estacionar, em sentido contrário, na berma do lado oposto da via.”. Todavia, não resultam dos autos indícios sérios, credíveis e consistentes que permitam afiançar – para lá de dúvida razoável – em como a arguida não conseguia visualizar, pelos espelhos retrovisores, a outra hemi-faixa, pelo facto de se achar mais à direita, com parte do veículo que conduzia na berma e que, assim, não conseguisse ver o motociclo conduzido pelo filho dos assistentes a efetuar a ultrapassagem da Peugeot ... que circulava à rectaguarda da viatura conduzida por ela; se, de facto, fosse pacífico afirmá-lo, então, não tendo a arguida aguardado que os veículos que seguiam atrás de si (incluindo o motociclo) passassem para só depois iniciar o atravessamento da via, se poderia assentar em como ela teria violado o dever de cuidado que deve estar sempre presente aquando da realização de qualquer manobra, tendo assim actuado negligentemente. Não é, porém, o caso, pelo que – sob pena de intolerável exigência, incompatível com a necessária fluidez da circulação rodoviária – não podem os utentes da via contar com a imprevidência, negligência e incompetência dos demais utilizadores das estradas e que, por isso, não fosse a negligência grave do malogrado condutor do motociclo, aquele sinistro teria sido evitado. Aliás, e como é alvitrado no relatório pericial (a fl.s 291) “…num primeiro instante os condutores do Veículo Nr.1 e Veículo Nr.2 poderão não se terem percecionado mutuamente por falta de visibilidade, consequência da presença de uma outra viatura – veículo ligeiro de mercadorias.”; na verdade, pode bem ter ocorrido que quando a arguida olhou pelo retrovisor, imediatamente antes de iniciar a manobra, o motociclo do DD se encontrasse a iniciar a manobra de ultrapassagem da Peugeot ... e, assim, estivesse encoberto por esta viatura, impossibilitando a arguida de visualizar esse motociclo; por seu turno, o condutor da moto, pelas mesmas razões, apercebido que a arguida se aprestava para invadir as duas hemi-faixas para inverter o sentido de marcha. Não resulta assim dos autos - de modo seguro, claro e inequívoco - que tenha ocorrido por parte da arguida a inobservância de quaisquer normas que disciplinam a circulação rodoviária e, assim, que tenha efectuado a manobra de inversão do sentido de marcha com negligência; a morte do DD ocorreu por uma infelicíssima convergência de circunstâncias, mas com culpa exclusiva dele (especialmente pela velocidade excessiva que imprimia ao motociclo que conduzia). Não se recortam assim razões para se pronunciar a arguida CC, como pretendem os requerentes da presente instrução. Face a esta factualidade apurada em inquérito - e tendo presente o que supra se referiu quanto ao conceito de suficiência de indícios exigível para a pronúncia - se a prova produzida em audiência de julgamento for aquela apurada em inquérito, será mais provável a condenação ou a absolvição da arguida CC pelo crime de homicídio negligente? A resposta não pode deixar de ser que seria mais provável a absolvição dela que a sua condenação; se a prova a produzir em sede de audiência de julgamento tivesse o mesmo conteúdo, sentido e alcance que teve em inquérito, recorta-se como mais provável essa absolvição, pelo que se impõe a respectiva não pronúncia da arguida por tal crime. Por isso, apenas se mostra suficientemente indiciado que: 1. No dia 8 de Outubro de 2020, pelas 13h05, momentos antes de ocorrer o embate adiante descrito, a arguida CC conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-UM-.., pela Estrada Nacional ...08, na localidade de ..., concelho ..., no sentido Porto/Entre-os-Rios, pela hemi-faixa de rodagem do lado direito, atento este mesmo sentido. 2. À retaguarda do veículo conduzido pela arguida, também no sentido Porto/Entre-os-Rios e pela mesma hemi-faixa do rodagem, circulava o veículo ligeiro de mercadorias, de marca Peugeot ..., conduzido por EE. 3. Atrás deste último veículo e, ainda no mesmo sentido e hemi-faixa de rodagem, circulava o motociclo de matrícula ..-DZ-.., conduzido por DD, filho dos assistentes. 4. Ao aproximar-se do quilómetro 9,069 da referida Estrada Nacional, a arguida decidiu efetuar uma manobra de inversão de marcha, com o propósito de estacionar o veículo que conduzia na berma do lado oposto ao que seguia, virado no mesmo sentido do trânsito Entre-os-Rios/Porto. 5. Nesse local (Km 9,069), a Estrada Nacional ...08 configura uma recta com mais de 300 metros de extensão, a faixa de rodagem, em piso betuminoso, em bom estado de conservação, mede de largura 6,30m. e é dividida em duas hemi-faixas de rodagem, por linha branca longitudinal descontínua marcada no pavimento, uma para cada sentido do trânsito. 6. A hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito Porto/Entre-os-Rios é marginada por uma berma pavimentada de 0,70m. de largura, e a hemi-faixa de rodagem contrária, destinada ao trânsito Entre-os-Rios/Porto, é marginada por uma berma pavimentada de 0,80m. de largura e, adjacente a esta, há uma berma em terra batida com a largura de 4,50m. 7. Depois de percorrer cerca de 100 metros na referida recta, a arguida inflectiu o veículo que conduzia para a direita, atento o seu sentido de trânsito, ocupando parte da berma desse mesmo lado. 8. Logo de seguida e sem chegar a parar, a arguida manobrou o veículo que conduzia para a sua esquerda e atravessou-o na faixa de rodagem, ocupando ambas as hemi- faixas que a compõem, perpendicularmente ao eixo da via, em execução de uma manobra de inversão de marcha, com o propósito de estacionar o mesmo veículo, virado no sentido Entre-os-Rios/Porto, na berma em terra batida do lado contrário, ou seja do lado esquerdo da faixa de rodagem, considerando o sentido Porto/Entre-os-Rios. 9. Na altura em que a arguida iniciou a viragem do seu veículo para a esquerda e o atravessou na faixa de rodagem, o motociclo conduzido por DD já vinha a ultrapassar o veículo ligeiro de mercadorias (Peugeot ...) que seguia atrás do veículo conduzido pela arguida, circulando esse motociclo a cerca de 105 km/h. 10. No momento em que se encontrava em plena manobra de ultrapassagem, DD foi surpreendido com a presença do veículo conduzido pela arguida atravessado na faixa de rodagem a ocupar as duas hemi-faixas da mesma, pelo que não lhe restou outra alternativa senão a de accionar de imediato o mecanismo de travagem do motociclo, tentando evitar o embate. 11. A travagem do motociclo foi de tal modo violenta que fez com que o rodado traseiro do mesmo levantasse, mas tal manobra de recurso foi insuficiente para evitar o choque da parte da frente do motociclo na parte lateral esquerda, sobre a porta de trás do veículo conduzido pela arguida, o qual ocorreu, na hemi-faixa esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido Porto/Entre-os-Rios, próximo do eixo da via, circulando esse motociclo, no momento do embate, a cerca de 89 km/h. 12. Após o embate, ambos veículos se imobilizaram na berma esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido Porto/Entre-os-Rios. 13. O corpo do malogrado DD ficou caído junto à porta da frente do lado esquerdo do veículo conduzido pela arguida. 14. Em consequência do violento traumatismo no seu corpo provocado pela colisão supra descrita entre os dois veículos, DD sofreu as lesões crânio-meningo-encefálicas e toracico-abdominais, que vieram a ser causa directa e necessária da sua morte. 15. A arguida sabia que antes de efetuar a manobra de inversão de marcha acima descrita deveria verificar se a poderia fazer sem por em perigo e embaraçar o demais trânsito que circulava na via onde a pretendia levar a cabo. 16. Só após se assegurar que a via se encontrava livre e desimpedida poderia efetuar a inversão de marcha pretendida. Pelo contrário, não se mostra suficientemente indiciado que: A.A arguida realizou a referida manobra sem se certificar que a faixa de rodagem se encontrava livre e desimpedida, de forma a que a pudesse fazer em segurança, sem colocar em perigo ou causar embaraço aos outros utentes da via. B.A altura do veículo ligeiro de mercadorias associado ao facto da arguida ter encostado o veiculo que conduzia à berma direita, levou a que, no momento em que iniciou a sua manobra de ultrapassagem, o malogrado condutor do motociclo, DD, tivesse tido a percepção de que na aludida recta da faixa de rodagem não havia mais veículos a circular para além do conduzido por ele próprio e pela "carrinha" que estava a ultrapassar. C. A arguida, antes de iniciar a manobra que efectuou, devia ter imobilizado o seu veículo, quando o encostou na berma do lado direito, para poder ver o trânsito que, nessa altura, circulava na faixa de rodagem. D. Contudo e ainda assim, a arguida decidiu realizar tal manobra sem se certificar que a mesma punha em perigo e embaraçava o restante trânsito que circulava na faixa de rodagem, como efetivamente veio a pôr e acabou por causar o violento choque que vitimou mortalmente o ofendido DD. E. Ao não actuar desse modo, a arguida violou os mais elementares deveres de cuidado na condução automóvel, nomeadamente os que lhe são impostos pelos artigos 35.º e 45.º do Código da Estrada. 22. Sabia, ainda, a arguida que a violação de tais regras estradais podia causar acidentes fatídicos como aquele que, infelizmente, veio a causar, mas ainda assim, isso não foi suficiente para tivesse adoptado outra conduta, conforme àquelas regras. 23. Mais sabia a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei. * Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por efectivamente esses indícios se afigurarem insuficientes, nos termos do art.º 308.º, n.º 1, 1.ª parte, do C. Pr. Penal NÃO SE PRONUNCIA a arguida CC pelos factos e imputação jurídica, constantes do requerimento de abertura da instrução dos assistentes.* Nos termos do art.º 214.º, n.º 1, al. b) do C. Pr. Penal, extingue-se de imediato a medida de coacção imposta à arguida.Sem custas.” Conhecendo. Passemos agora à análise dos factos indiciários constantes da pronúncia e seu enquadramento legal. Uma primeira observação para referir que esta Instância superior atentou em toda a documentação e depoimentos prestados. Estabelece o art. 308.°, n.°1 do Código Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de urna pena ou de urna medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”. Segundo o art. 283.º, n.º 2, para onde remete o art. 308.º, n.° 2, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar urna possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, urna pena ou medida de segurança”. Correlacionado com estes preceitos e por se tratar da fase de instrução, está o disposto no art. 286.º, n.° 1, segundo o qual “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”. De acordo com o princípio “in dubio pro reo” sempre que se esteja, no decurso da apreciação e avaliação da prova perante uma dúvida irremovível e razoável, quanto à verificação de certos factos que geram a sua incerteza, deve o Tribunal favorecer o arguido. Aliás, o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de realçar a relevância deste princípio e da inadmissibilidade da sua exclusão na valoração da prova que está subjacente ao despacho de pronúncia, ao “julgar inconstitucionais os artigos 286º, n°1, 298º, e 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32 nº 2, da Constituição, interpretados no sentido de que a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia se bastar com a formulação de uni juízo segundo o qual não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um acto manifestamente inútil.” [Ac. 439/02]. O mesmo tem sido assinalado pela demais jurisprudência, segundo a qual “O juízo de prognose que determinará a sujeição do arguido a julgamento é equivalente tanto na fase de inquérito, como na fase de instrução, e exige uma possibilidade de condenação em julgamento que respeite o princípio in dubio pro reo.” [Ac. R. Porto de 2011/Nov./23]. Em suma, podemos dizer que “Os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito democrático e da presunção da inocência impõem que a expressão indícios suficientes (308º/JCPP,) seja interpretada no sentido de exigir uma probabilidade particularmente qualificada de futura condenação, fruto de uma avaliação dos indícios tão exigente quanto a contida na sentença final” (Ac. R. Porto de 2010/Jan./20). Isto significa que no culminar da fase de instrução, como se refere no Ac. desta Relação de 2006/Jan./04, o juízo de pronúncia deve, em regra, passar por três fases. Em primeiro lugar, por um juízo de indiciação da prática de um crime, mediante a indagação de todos os elementos probatórios produzidos, quer na fase de inquérito, quer na de instrução, que conduzam ou não à verificação de uma conduta criminalmente tipificada. Por sua vez e caso se opere essa adequação, proceder-se-á em segundo lugar, a um juízo probatório de imputabilidade desse crime ao arguido, de modo que os meios de prova legalmente admissíveis e que foram até então produzidos, ao conjugarem-se entre si, conduzam à imputação desse(s) facto(s) criminoso(s) ao arguido. Por último efetuar-se-á um juízo de prognose condenatório, mediante o qual se conclua que predomina uma razoável possibilidade do arguido vir a ser condenado por esses factos e vestígios probatórios, estabelecendo-se sempre um juízo indiciador semelhante ao juízo condenatório a efetuar em julgamento. Está em causa um crime de homicídio negligente. Conforme do Ac. da RP de 09.05.2018 (proc. nº 20/15.0GTPNF.P2; rel. Exmº Desembargador JORGE LANGWEG) “São elementos constitutivos do crime de homicídio por negligência: - conduta humana traduzida numa acção ou omissão; - infracção do dever objectivo de cuidado; - possibilidade de imputação objectiva do resultado (a morte) à conduta contrária ao dever; - ausência de causas de justificação da conduta; - autor imputável e com as faculdades e experiência que lhe permitam reconhecer o dever de cuidado objectivamente exigido e prever o curso causal que conduz ao resultado concreto produzido. Verifica-se a negligência sempre que o agente, ao actuar, omite os deveres de cuidado que as circunstâncias concretas inerentes àquele impõe ou são exigíveis para evitar eventos danosos. Nessa medida, os resultados só se verificam por o agente não tomar as precauções adequadas a evitá-las e, como tal, não prevê ou não prevê com exactidão esse resultado como consequência normal e adequada da sua conduta. E os cuidados reclamados são tanto maiores quanto maior for a perigosidade decorrente do exercício de uma actividade para com terceiros, maxime, o tráfego rodoviário. Mas para que se possa imputar ao agente o juízo de reprovação ético-social por não conformar a sua actuação com a ordem jurídica, é necessário que o agente possa e seja capaz de, face às circunstâncias, conhecer delas e tomar as precauções devidas e idóneas para evitar o resultado. É preciso lançar mão do critério do homem concreto “individualizado”, no sentido de se saber se outra pessoa, com as mesmas qualidades do agente, não teria rodeado a sua conduta com as precauções devidas para evitar o resultado e, como tal, actuado de modo diverso.(…) (…)Seguindo de perto o Prof. Figueiredo Dias (in Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pág. 352/354), a opinião largamente maioritária da dogmática do crime negligente é a chamada doutrina do “duplo escalão”, que se exprime: a) Pelo tipo de ilícito do facto negligente: “(...) considera-se preenchido por um comportamento sempre que este discrepa daquele que era objectivamente devido em uma situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, para desse modo se evitar uma violação juridicamente indesejada. (...) Para além disso torna-se indispensável que tenha ocorrido a violação, por parte do agente, de um dever objectivo de cuidado que sobre ele impende e que conduziu à produção do resultado típico; e consequentemente, que o resultado fosse previsível e evitável para o homem prudente, dotado das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social do círculo de vida do agente; b) Pelo tipo de culpa do facto negligente: que se considera preenchido quando se conclui que “(...) o mandato geral de cuidado e previsão podia também ser cumprido pelo agente concreto, de acordo com as suas capacidades “individuais”, isto é, rigorosamente, da inteligência, da formação e da experiência de vida dos homens como agente agindo na circunstância”. É exactamente esse posicionamento perante o risco que surge como critério separador entre figuras que detêm uma topografia próxima. Assim, o conceito de dolo eventual configura-se, também, por contraposição ao conceito de negligência consciente que o limita de forma directa. A negligência consciente significa que o autor reconheceu na verdade o perigo concreto, mas não o tomou seriamente em conta, porque, em virtude de uma violação do cuidado devido em relação à valoração do grau de risco ou das suas próprias faculdades, nega a concreta colocação em perigo do objecto da acção, ou, não obstante considerar seriamente tal possibilidade, confia, também de forma contrária ao dever, em que não se produzirá o resultado lesivo. É sabido que num âmbito de dinâmica social existem condutas especialmente aptas para produzir determinados resultados. A regra nestes casos é simples: quando um sujeito leva a cabo uma conduta especialmente apta para produzir um determinado resultado lesivo e o faz sendo conhecedor da perigosidade abstracta de tal conduta e contando com um perfeito «conhecimento situacional» entende-se, num ponto de vista social, que necessariamente avaliou que a sua conduta era apta para produzir o citado resultado lesivo naquela especifica situação. A negligência é por natureza o campo onde a conduta se traduz na omissão de dever objectivo de cuidado ou de atenção, que o agente, dentro das suas possibilidades e de acordo com as circunstâncias do caso, deveria ter actuado, não o fazendo ou fazendo-o imperfeitamente, assim originando a produção de um resultado que deveria e poderia, também de acordo com as circunstâncias concretas, ter previsto. Assim, a verificação do tipo de ilícito inerente à negligência estrutura-se a partir de três elementos: a omissão de um dever objectivo de cuidado que ainda não pertence à culpa já que tal elemento intervém no que respeita à adequação causal da conduta a criar o risco de produção de resultados que a lei visa evitar (juízo normativo); possibilidade de prever o perigo de realização do tipo (previsibilidade objectiva); e, finalmente, já dentro da culpa, exigir-se que o agente possa e seja capaz de prever ou de prever correctamente a produção do resultado típico (culpabilidade). Antes do mais interessa averiguar se o arguido deixou de cumprir os deveres de cuidado a que se encontrava adstrito (conceito de cuidado objectivo e normativo). A omissão do dever objectivo de cuidado consiste em o agente não ter usado da diligência exigida, que é requerida na vida da relação social relativamente ao comportamento em causa. Na verdade, a manifestação mais evidente da falta de cuidado consiste na violação de normas estradais que pautam o exercício da condução rodoviária, que sem ser ilícita- por se reconhecer a sua utilidade social- apresenta riscos que lhe são inerentes. É evidente que a circulação rodoviária é uma actividade que envolve um especial risco e, como tal, deverá qualquer condutor ter presentes os cuidados impostos pelas regras de trânsito destinados a esbater tais riscos, e circular com atenção. Ora, para que haja negligência, além de uma actividade que viole normas de conduta, é necessário que o evento seja previsível, e só a omissão desse dever impeça a sua previsão (objectiva). Daqui resulta que torna-se necessário que esse dever vise obstar à produção do evento, isto é, seja adequado a evitá-lo, como se constatou nos presentes autos. A previsibilidade e o dever de prever, que assim objectivamente limitam a negligência é determinada de acordo com as regras gerais de experiência dos homens ou de certo tipo de homem. Neste momento importa averiguar se o nexo de causalidade se encontra estabelecido, já que deste modo se fixa objectivamente os deveres de previsão, que, quando violados, podem dar lugar à negligência. A este respeito, escreveu o Prof. Eduardo Correia (in Direito Criminal, I, p. 421 ss.,) quando abordou a causalidade nas acções por negligência, que a adequação não consiste unicamente na previsibilidade do resultado inevitável, mas antes na sua previsibilidade como consequência normal, típica de uma certa conduta, e que a mera omissão de um dever jurídico não implica desde logo a possibilidade objectiva de negligência. É necessário que esse dever vise obstar à produção do evento, isto é, que seja adequado a evitá-lo. De qualquer modo, a adequação da acção deverá referir-se a todo o processo causal e não só ao evento, o não quer dizer que a actuação de um terceiro interrompa necessariamente o nexo causal, pois tal actuação pode ser previsível pelo agente, e neste caso o resultado continuará a ser imputável Acresce que, o que é relevante para o direito é que exista previsibilidade objectiva, senão muitas condutas negligentes só conduziriam ao evento em casos raros. Importa salientar que, se as condutas do agente e da vítima se revelam como favorecedoras do resultado, haverá lugar à imputação deste ao primeiro, desde que, com a sua acção imprudente e violadora de regras estradais, foi maior a eficácia causal da sua intervenção. Assim, mesmo que a acção da vítima concorra com o comportamento do agente, enquanto comportamento negligente, o resultado é ainda imputado ao agente, visto que no direito penal, onde se lida com interesses públicos, não é admissível uma compensação de negligências, que o direito civil admite com base num critério patrimonial. Por outro lado, revestindo o concurso negligente importância mínima, a pena deverá ser atenuada, uma vez que é mínimo o contributo causal. Finalmente, é ainda necessário que o agente possa prever ou seja capaz, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, de representar ou de os representar correctamente a realização do tipo legal de crime. São duas as formas de aparecimento da conduta negligente criminalmente punível a saber: a negligência consciente e a negligência inconsciente que se encontram delimitadas no art. 15º do C. Penal. Em qualquer destas categorias se exige a capacidade do agente para proceder com os cuidados que, segundo as circunstancias, seriam os indicados. Não está aqui em causa o indiscernível poder de agir de outra maneira na situação, mas um critério subjectivo e concreto que deve partir do que seria razoavelmente esperar do homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição. Posto isto, os presentes autos tiveram início com comunicação do óbito de DD, na sequência de acidente de viação em que o mesmo e CC se envolveram, ocorrido no dia 8 de outubro de 2020, pelas 13h05, na EN...08, ao Km 9,069, na localidade de ..., em .... Nos termos da participação do acidente junta a fls. 31, temos que CC conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-UM-.., pela referida via, no sentido Porto/Entre-os-Rios. No mesmo sentido, na retaguarda daquela, seguia DD, conduzindo o motociclo da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..- DZ-... Nas descritas circunstâncias, ao Km 9,069, quando CC descrevia a manobra de inversão de marcha, ocorreu o embate com o veículo conduzido por DD, o qual, como consequência, sofreu as lesões traumáticas crânio- meningo-encefálicas e torácico-abdominais descritas no relatório de autópsia médico-legal junto a fls. 94 a 99, que foram causa direta e necessária da sua morte, verificada no local (cf. ficha do CODU de fls. 30). Conclui também o aludido relatório que o exame toxicológico ao sangue de DD revelou a presença de HC-COOH na concentração de 8,3 ng/mL e de THC na concentração de 1,5 ng/mL. O local por onde seguiam os veículos é constituído por duas vias de trânsito, com piso em asfalto, em bom estado de conservação e dotado de bermas. Dispõe de marcas rodoviárias com sinalização vertical, nomeadamente o sinal C13, que limita a velocidade máxima de circulação naquele local a 70Km/h. A fls. 187 e ss mostra-se junto o relatório fotográfico do local após o acidente no qual é visível a posição final dos veículos intervenientes e as características da via. A fls. 210 encontra-se o relatório final elaborado pelo Serviço de Química e Toxicologia Forenses da delegação do Norte do INMLCF, referente ao exame realizado a CC, que se revelou negativo para etanol e substâncias psicotrópicas. Mostra-se nos autos o suporte digital contendo imagens recolhidas através do sistema de videovigilância instalado na residência de GG que antecede o local do embate, atento o sentido de marcha dos veículos intervenientes, nos quais estes últimos são visionados à passagem. Foi inquirido EE, que começou por declarar ter presenciado o acidente, circulando, na altura, pela EN..., no sentido Porto/Entre-os-Rios, conduzindo um veículo da marca Peugeot ..., modelo ... de cor ..., e seguia à retaguarda do veículo conduzido por CC, a uma distância de cerca de 70m. Ao desfazer a curva para a esquerda, próximo do local onde o acidente ocorreu, viu uma carrinha que circulava à sua frente encostar à direita e, de seguida, a inverter o sentido de marcha. Viu a condutora do veículo ligeiro que seguia à sua frente, CC, encostar-se à direita e, antes de iniciar a inversão do sentido de marcha, acionar o pisca da esquerda. O motociclista, DD, circulava à sua retaguarda e só iniciou a ultrapassagem na reta, tendo a perceção que ainda na linha contínua. Continuou dizendo que circulava a uma velocidade de cerca de 50Km/h e que quando estava a ser ultrapassado pelo motociclo a condutora do ligeiro inicia a manobra de inversão do sentido de marcha. O condutor do motociclo, ao aperceber-se dessa manobra, trava com o travão da frente, a roda de trás levanta ligeiramente, indo colidir contra a lateral do veículo ligeiro. A colisão ocorreu junto ao eixo da via, já na via esquerda, tendo em conta o sentido Porto/Entre-os-Rios. Disse ainda que o veículo ligeiro, aquando do embate, ocupava a totalidade da via esquerda, numa posição oblíqua à faixa de rodagem e que, após a colisão, ambos os veículos ficaram imobilizados fora da faixa de rodagem. Mais referiu que a condutora do ligeiro, antes de efetuar a manobra, encostou-se à direita, ocupando a berma e, de seguida, inverteu o sentido de marcha, tendo pensado, quando a viu encostar-se à direita, que a mesma iria imobilizar-se nesse local, ficando surpreendido quando a mesma acionou o pisca da esquerda e iniciou a manobra repentinamente. Disse não conseguir precisar a velocidade de circulação do motociclo. Procedeu-se à inquirição de FF, que disse ter presenciado o acidente aqui em causa. Circulava na EN..., no sentido Porto/Entre-os-Rios, seguindo na viatura conduzida pelo seu colega EE. Confirmou que circulavam a retaguarda do veículo ligeiro interveniente no acidente e à frente do motociclo, a uma distância de cerca de 70m do primeiro. Ao descreverem a curva à esquerda, próximo ao local do embate, viu uma carrinha que circulava à sua frente encostar à direita e seguidamente inverter o sentido de marcha. A condutora do veículo ligeiro, antes de iniciar a manobra de inversão do sentido de marcha, acionou o pisca esquerdo. O motociclista que circulava à retaguarda da viatura na qual seguia iniciou a ultrapassagem já na reta. A conduta do ligeiro efetuou a manobra em contínuo, encostou-se à direita e inverteu o sentido de marcha. Circulavam a uma velocidade de cerca de 50Km/h. Quando estavam a ser ultrapassados pelo motociclo, foi também quando aquela condutora iniciou a referida manobra. O condutor do motociclo, disso se apercebendo, travou com o travão da frente, altura em que a roda traseira levantou ligeiramente, vindo a colidir contra a lateral do veículo ligeiro. Mais referiu que tal colisão ocorreu junto ao eixo da via, já na via da esquerda, atento o sentido Porto/Entre-os-Rios, quando o ligeiro já ocupava a totalidade da via esquerda, numa posição oblíqua à faixa de rodagem. Após a colisão, os veículos ficaram imobilizados fora da faixa de rodagem. A condutora do ligeiro, antes de efetuar a manobra de inversão do sentido de marcha, encostou-se à direita, ocupando a berma, sendo que pensou que a mesma iria imobilizar-se nesse local. Contudo, a mesma, acionou o pisca da esquerda para inverter o sentido de marcha, ficando surpreendido com tal manobra. Disse desconhecer a que velocidade circulava o motociclo, que o seu condutor ainda travou para evitar o embate e que o mesmo circulava com capacete. Ouvida como arguida, CC, depois de confirmar que conduzia o veículo descrito na via e sentido de trânsito também já mencionados supra, declarou que se recorda de ter efetuado uma curva, seguida de uma contracurva e, após, iniciar uma reta. Ao chegar ao local dos factos, acionou o pisca a esquerda, olhou pelo retrovisor e pelo espelho esquerdo e, como não viu nenhum veículo a iniciar a ultrapassagem, iniciou a manobra de inversão do sentido de marcha com o propósito de estacionar no lado oposto. Continuou dizendo que para tal manobra não foi ocupar a berma existente no lado direito. Disse não se recordar de quantas vezes olhou através do espelho retrovisor, mas disse recordar-se de que quando olhou viu um veículo ligeiro a circular à sua retaguarda, desconhecendo a que distância e que nunca se apercebeu da presença do motociclo a efetuar a manobra de ultrapassagem ao seu veículo. Disse também que era hábito ir para aquele local e efetuava aquela manobra frequentemente. Recorda-se de ter sido embatida na lateral esquerda traseira do seu veículo e que, após, o embate, entrou em pânico, sem saber o que tinha acontecido. Saiu do seu veículo pelo lado direito, auxiliada por populares, altura em que viu um corpo junto ao seu veículo, concretamente junto à porta do lado esquerdo. No âmbito do inquérito solicitou-se a realização de Perícia e Reconstituição do acidente, que ficou a cargo do Centro Pericial de Reconstituição Cientifica de Acidentes do INEGI. O relatório mostra-se junto a fls. 260 e ss. Considerou a perícia, para além do mais, o estado do tempo à data do acidente, concretamente que estava bom tempo e o piso encontrava-se seco e limpo, o sentido de circulação das viaturas, as manobras que empreendiam e os danos verificados. Nesta parte, constatou-se a existência de danos na zona traseira direita do automóvel ligeiro, nomeadamente ao nível da lateral esquerda, consequência do embate do motociclo, e danos no vidro para- brisas, consequência da projeção pós-acidente do motociclo. Este último apresentava danos visíveis na zona frontal, nomeadamente no que diz respeito à carenagem frontal e grupo ótico. Salientou o relatório o facto de o pneumático traseiro do motociclo aparentar estar bastante gasto e com piso insuficiente para condução segura. Quanto à compatibilidade dos danos, considera a perícia que é possível afirmar que, no momento da colisão, e de acordo com o vídeo de videovigilância fornecido atinente ao local que precede a zona do acidente, o motociclo estaria em "égua"- rodado traseiro no ar. No que concerne à velocidade de circulação, a perícia teve em conta o retratado no referido vídeo e os danos sofridos. Após determinação da distância e dos intervalos de tempo obtidos para cada veículo, foi possível ao perito determinar as velocidades médias dos intervenientes para o troço em análise, apurando-se que, DD, nos momentos anteriores ao impacto, seguiria a aproximadamente 105 Km/h e CC a aproximadamente 45Km/h para o ligeiro. Salientou a perícia que a posição do motociclo na via (em contramão), é coerente com o vídeo de videovigilância. Esse veículo estaria a realizar uma manobra de ultrapassagem a outra viatura. Concluiu também a perícia que no vídeo é possível observar o motociclo com inclinação frontal (égua), como consequência da travagem realizada pelo seu condutor DD, que aparenta iniciar a travagem a aproximadamente 25,3 metros do local de embate. No que concerne à velocidade no momento da colisão, concluiu a perícia que o ligeiro seguiria a aproximadamente 19Km/h e o motociclo a aproximadamente 85Km/h. Ainda no relatório, agora no âmbito da análise das evitabilidades, teve- se em conta também aquele vídeo para concluir que o motociclo já estaria em travagem a aproximadamente 25,3m do local de embate. Considerou o Perito o tempo médio de reação de uma pessoa adulta saudável, que é de 1 segundo, o que significa que o motociclo, a uma velocidade aproximada de 85 Km/h demoraria 1 segundo a iniciar a travagem ou a realizar uma manobra de evasão, pelo que é possível afirmar que o DD percecionou a movimentação do veículo ligeiro a uma distância mínima aproximada de 48,9metros. Contudo, teve em atenção a perícia a circunstância de DD estar sob o efeito de THC e THC-COOH e que, de acordo com a bibliografia relativa a tempos de reação em acidentes de viação, considera-se que um adulto sob o efeito de substâncias psicotrópicas poderá reagir ao perigo entre a 2 a 5 segundos. Em conformidade, é possível afirmar que DD teria percecionado o veículo ligeiro a uma distância mínima de aproximadamente 72,5metros. Alude-se ainda na perícia à presença de um terceiro veículo, o Peugeot ..., também visível no vídeo de videovigilância, concluindo que o motociclo, momentos antes do embate com o veículo ligeiro, já estaria, muito possivelmente a realizar a manobra de ultrapassagem ao referido Peugeot .... Conclui a perícia que é possível afirmar que num primeiro instante nem DD nem a arguida se tenham percecionado mutuamente por falta de visibilidade, consequência da presença da referida terceira viatura. Foram estes os elementos de prova recolhidos em sede de inquérito, não havendo conhecimento de outras testemunhas com conhecimento direto dos factos, nem se tendo produzido qualquer outra prova em fase de Instrução. Posteriormente em sede de instrução, os assistentes juntaram documento da seguradora, onde é admitida a concorrência de culpas de ambos os intervenientes na proporção de 75%/25% desfavorável à condutora arguida do veículo seguro matrícula ..-UM-.., assumindo a responsabilidade na proporção dos 75%. A questão fundamental nos presentes autos era a de apurar se à arguida podia ser imputada a prática de um crime de homicídio por negligência do art. 137°, n° 1, Código Penal, e de uma contraordenação dos artigos 1 Io e 35°, n° 1, do Código Estrada. Prevê o artigo 137°, n° 1, do Código Penal que "quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa". Pressupostos da afirmação da tipicidade nos crimes negligentes materiais ou de resultado são a violação de um dever objetivo de cuidado, a produção de um resultado típico e a imputação objetiva desse mesmo resultado típico. A imputação objetiva do resultado implica causalidade conforme as leis científico-naturais e previsibilidade objetiva, de acordo com um critério de "causalidade adequada" (art. 10° do Código Penal). Na formulação de Roxin, à causalidade e previsibilidade (que revelam que foi criado um risco) devem acrescer o carácter proibido do risco criado e a concretização desse risco proibido no resultado. Concluiu o Tribunal a quo, que o comportamento da vítima DD não pode ser excluído do processo de ponderação. E de facto está mais do que indiciado que a vítima postergou regras elementares de trânsito - transitava em velocidade excessiva para o local e conduzia sob efeito de THC-COOH e de THC. Mas já não consideramos totalmente isenta de dúvidas a conclusão de que o acidente em análise se tenha devido, apenas e só, à condução levada a cabo pela vítima. Com efeito, resulta demostrado que a colisão ocorreu junto ao eixo da via, já na faixa do lado esquerdo, tendo em conta o sentido Porto/..., que a arguida, antes de efetuar a manobra de inversão de marcha, se encostou à direita, ocupando a berma e que, logo de seguida, acionou o pisca da esquerda e, repentinamente, inverteu o sentido de marcha. Aliás, esta constatação resulta clara da conjugação dos depoimentos das únicas testemunhas do acidente em análise, EE e FF, condutor e ocupante da viatura Peugeot ..., que seguia na retaguarda do veículo da arguida e que foi ultrapassado pela viatura da vítima. Ora, ambas as testemunhas foram claras, no sentido de esclarecerem que, quando viram a viatura da arguida a encostar-se à direita, julgaram que a mesma aí ficasse imobilizada, na berma do lado direito da via, sendo que foram surpreendidos pela manobra de inversão de marcha. Assim sendo, podemos desde logo supor que só não se terá verificado perigo de embate entre a viatura da arguida e a viatura Peugeot ... porque esta seguia a uma velocidade média para o local e ainda se encontrava distante da primeira. Mas isso não significa que, antes de iniciar a manobra de inversão de marcha, a arguida tivesse condições de visibilidade para se certificar se podia fazer aquela manobra em segurança. Com efeito, a arguida encostou-se ao lado direito da berma, num local concreto em que o traço da via de trânsito (uma reta) era já descontínuo, o que permitia que veículos que seguissem na retaguarda da viatura Peugeot ... a pudessem ultrapassar (dentro dos limites de velocidade para o local). E nessa perspetiva, consideramos como indiciariamente demonstrado que, efetivamente, a arguida agiu com violação de dever de cuidado, tanto mais que criou a convicção no condutor e no ocupante da viatura Peugeot ... que permaneceria parada do lado direito. Mas, por outro lado, não se pode olvidar que, como já referimos, foi a condução levada a cabo pela vítima que, em grande medida, causou o acidente em análise. Aliás, essa foi a conclusão, em termos de responsabilidade civil, da seguradora da viatura da vítima, ao atribuir a esta 75 % da responsabilidade do acidente e à aqui arguida apenas 25% de responsabilidade (cfr. fls. 370). Aceitando-se que a vítima tenha contribuído causal para a produção do resultado, tal não paralisa, necessariamente, a imputação da verificação do acidente também à arguida. A imputação objetiva deve sempre explicar-se (estabelecer-se) para além de uma lógica de pura causalidade. Seguindo posições desenvolvidas por Roxin e Jakobs, a partir do momento em que o agente começa a atuar ilicitamente, em que viola o seu dever de cuidado, há um relaxamento e um desprendimento de atitude que podem justificar a imputação. O princípio da confiança, segundo o qual o agente que adota um comportamento adequado pode confiar que os outros procederão de idêntico modo, deixa de se aplicar quando essa confiança, em face de circunstâncias do caso, reconhecíveis para o agente, se apresente como injustificada. O princípio da confiança cede relativamente a comportamentos (mesmo ilícitos) de terceiros com os quais um agente consciente deva razoavelmente contar. No caso presente, para ter evitado o resultado teria bastado à arguida certificar-se que nenhuma viatura circulava na sua faixa de trânsito, na sua retaguarda, pois só assim a sua visibilidade seria total e poderia efetuar aquela manobra de inversão de marcha em total segurança. E se tivesse aguardado, como devia, a passagem das viaturas que seguiam imediatamente à sua retaguarda, designadamente a viatura Peugeot ..., para só depois se atravessar na via e ainda antes de efetuar a inversão certificar-se, ainda que junto ao eixo da via, que nenhum outro veículo viesse a ultrapassar ou a circular na sua direção em ambos os sentidos da via, teria evitado a ocorrência deste concreto embate, pois dessa forma a arguida teria tido a possibilidade de verificar a aproximação do motociclo conduzido pela vítima. O Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 14/10/2020, proferido no processo 616/15.0GBAMT.P1, em que foi Relator o Exm.° Senhor Juiz Desembargador Nuno Pires Salpico, num acidente em que foram intervenientes um veículo ligeiro de passageiros, que efetuava uma manobra de inversão do sentido de marcha, efetuada, também com utilização da berma direita e de forma contínua e sem parar, e um motociclo que circulava à velocidade de 62 km/h, num local em que a velocidade máxima permitida era de 50 km/h, decidiu que houve uma concorrência de culpas na ocorrência do acidente, atribuindo 80% da responsabilidade ao condutor do veículo automóvel (arguido naqueles autos) e 20% à vítima (também ali mortal) do acidente (decisão acessível em www.dgsi.pt). Por idêntica repartição de responsabilidades - 80% para o condutor que efetuou a inversão do sentido de marcha e 20% para o condutor que circulava em excesso de velocidade (pelo menos 80km/h, dentro de localidade) - decidiu o Supremo Tribunal de J de 7/6/2011, no processo n.° 833/05.1TBOBR.C1.S1, em que foi Relator c Conselheiro Mário Mendes (cfr. site do STJ, Jurisprudência Temática - A Culpa viação na Jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, pág. 155). Ocorreu, no mínimo, uma concorrência de culpas em sede de responsabilidade civil, que não nos repugna ser também chamada à colação para efeitos de imputação penal, concluindo-se que o resultado morte ainda é passível de ser explicada normativamente pela também atuação da arguida. É razoável concluir que, na eventualidade da arguida ter olhado para os seus espelhos retrovisores antes de iniciar a inversão do sentido de marcha, não conseguisse visualizar toda a faixa de rodagem e o trânsito que nela circulava à sua retaguarda, quer porque se tinha encostado à direita (alterando dessa forma o campo de visão da sua retaguarda refletido nos retrovisores), quer porque a carrinha que vinha atrás de si lhe diminuía o campo de visão sobre aqueles (trânsito e faixa de rodagem). Independentemente do campo de visão com que ficou nos seus retrovisores, após ter encostado o seu veículo à berma direita, é inteiramente seguro afirmar-se que o veículo ligeiro de mercadorias que circulava atrás da arguida não permitia que esta tivesse uma visão de toda a faixa de rodagem e do demais trânsito que circulava atrás de si, mesmo que tivesse olhado para os seus espelhos retrovisores. Nestas condições - falta de visão sobre toda a faixa de rodagem e o trânsito atrás de si - a arguida nunca deveria ter iniciado a inversão de marcha, pois tinha de admitir que além da referida carrinha, na faixa de rodagem atrás de si podiam vir a circular outros veículos, como, de facto, vinha o motociclo conduzido pelo DD. Dado que a arguida decidiu realizar tal manobra quando as circunstâncias que se verificavam na altura lhe impunham que a não fizesse é evidente que omitiu o dever de cuidado que lhe era imposto pelo disposto nos artigos 11°, n° 2 e 35°, n° 1, do Código da Estrada. Por sua vez, sem por de lado o excesso de velocidade a que ia a vítima, entende-se que o facto da roda traseira do motociclo ter levantado a quando da travagem, não se pode concluir que o estado do pneumático dessa roda tenha contribuiu para a colisão que se seguiu. Para além do mais e a propósito da imprevisibilidade e da imprevidência, negligência e incompetência dos demais condutores, o argumento não pode ser valorizado pelo lado de apenas um dos intervenientes no acidente, no caso da arguida. Também do ponto de vista do condutor do motociclo, poderemos dizer que, quando este imprimiu velocidade ao seu motociclo também não lhe era razoável exigir a imprevidência, negligência e incompetência da arguida, ao entrar faixa de rodagem, nela atravessando o veículo que conduzia, com o propósito de realizar inversão do sentido de marcha. Mais, ponderando estas duas perspetivas dos dois condutores, é experiência comum, designadamente do trânsito estradal, ser mais provável que na reta (com 300 metros) onde se deu o acidente pudesse vir alguém a circular em excesso de velocidade (perspetiva da arguida) do que surgisse um veículo frente dos outros, em inversão de sentido de marcha. No caso dos autos, afigura-se-nos que os mesmos contêm índicios suficientemente elucidativos que a arguida CC praticou o crime de homicídio por negligência que os recorrentes lhe imputam. E nessa medida deve considerar-se suficientemente indiciado que: A. A arguida realizou a referida manobra sem se certificar que a faixa de rodagem se encontrava livre e desimpedida, de forma a que a pudesse fazer em segurança, sem colocar em perigo ou causar embaraço aos outros utentes da via. B. A altura do veículo ligeiro de mercadorias associado ao facto da arguida ter encostado o veiculo que conduzia à berma direita, levou a que, no momento em que iniciou a sua manobra de ultrapassagem, o malogrado condutor do motociclo, DD, tivesse tido a perceção de que na aludida reta da faixa de rodagem não havia mais veículos a circular para além do conduzido por ele próprio e pela "carrinha" que estava a ultrapassar. C. A arguida, antes de iniciar a manobra que efetuou, devia ter imobilizado o seu veículo, quando o encostou na berma do lado direito, para poder ver o trânsito que, nessa altura, circulava na faixa de rodagem. D. Contudo, e ainda assim, a arguida decidiu realizar tal manobra sem se certificar que a mesma punha em perigo e embaraçava o restante trânsito que circulava na faixa de rodagem, como efetivamente veio a pôr e acabou por causar o violento choque que vitimou mortalmente o ofendido DD. E. Ao não atuar desse modo, a arguida violou os mais elementares deveres de cuidado na condução automóvel, nomeadamente os que lhe são impostos pelos artigos 35.º e 45.º do Código da Estrada. F. Sabia, ainda, a arguida que a violação de tais regras estradais podia causar acidentes fatídicos como aquele que, infelizmente, veio a causar, mas ainda assim, isso não foi suficiente para tivesse adotado outra conduta, conforme àquelas regras. G. Mais sabia a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei. Em face do exposto deve o Sr.º Juiz de instrução a quo, em obediência aos factos indiciados e ao Direito aplicável, elaborar despacho de pronúncia da arguida nos termos propostos pelos assistentes e em conformidade com o acima exposto relativamente aos factos indiciados, pelo que o recurso apresentado pelos assistentes será julgado integralmente procedente. Decisão. Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto pelos assistentes, devendo o Sr.º Juiz de instrução a quo, em obediência aos factos indiciados e ao Direito aplicável, elaborar despacho de pronúncia da arguida CC nos termos propostos pelos assistentes no seu Requerimento de Abertura de Instrução e ainda em conformidade com o acima exposto relativamente aos factos indiciados. Sem custas por não serem devidas. Notifique. Sumário: …………….. …………….. …………….. Porto, 05 de julho de 2023. (Elaborado e revisto pelo 1º signatário) Paulo Costa Maria Luísa Arantes Luís Coimbra |