Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5287/24.0T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA LAGE
Descritores: EXAME POR JUNTA MÉDICA / FUNDAMENTAÇÃO
APRECIAÇÃO DO JULGADOR
Nº do Documento: RP202511265287/24.0T8MAI.P1
Data do Acordão: 11/26/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE. CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O exame por junta médica tem em vista a perceção ou apreciação pelo Juiz de factos em relação aos quais o mesmo não dispõe dos necessários conhecimentos técnico-científicos.
II - A Junta Médica é constituída por três peritos, conforme imposto pelo art. 139.º, n.º 1, do CPT, daí que “a abordagem técnico-científica das questões médico-legais controvertidas efetuadas por 3 peritos médicos tem a virtualidade de permitir uma mais segura aproximação à verdade material, desiderato primacial do Processo Civil, conduzindo a uma mais sólida formação da convicção do julgador”.
III - Tal não significa que o Juiz não possa prevalecer-se do resultado do exame médico singular, dado que a força probatória desses pareceres periciais é livremente apreciada pelo tribunal, no quadro do disposto no art. 389.º, do Código Civil., e art. 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil e a lei não estabelece uma hierarquia entre eles.
IV - No laudo pericial coletivo o Juiz pode ainda aderir ao laudo unânime, maioritário ou minoritário que, em qualquer dos casos devem estar fundamentados, de forma a permitir a formulação do juízo crítico subjacente à formação da convicção do julgador.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5287/24.0T8MAI.P1

I -Relatório

1. Na presente ação emergente de acidente de trabalho em que é sinistrado AA e entidade responsável a companhia de seguros “A...– Companhia de Seguros, S.A.”, as partes não se conciliaram na tentativa de conciliação realizada no dia 5 de Junho de 2025 em virtude de a seguradora não ter aceite o resultado do exame médico singular no qual foi reconhecida ao sinistrado a IPP de 9% (6% x 1,5[1]).

2. Os autos prosseguiram para a fase contenciosa, tendo a seguradora apresentado requerimento para realização de perícia por Junta Médica (arts. 117.º, n.º 1, al. b), 119.º, n.º 1, e 138.º, n.º 2, todos do Código de Processo do Trabalho).

3. A seguradora apresentou os seguintes quesitos que foram fixados por despacho judicial de 30.06.2025, como objeto de perícia médico-legal:

“1-Qual o evento que provocou a lesão?

2-Qual a lesão sofrida no evento?

3-O sinistrado é dextro ou esquerdino?

4-Qual a sequela resultante do evento?

5-Qual a amplitude dos movimentos de pronação e supinação a partir da posição neutra de 0° (o examinando de pé, braço pendente, cotovelo flectido a 90° e mão no prolongamento do antebraço com o polegar para cima)?”

4. No dia 7 de julho 2025, teve lugar a realização de perícia por Junta Médica a qual, por laudo maioritário (Perito do Tribunal e da seguradora), concluiu que as sequelas que o sinistrado é portador lhe determinam a afetação com IPP com coeficiente de desvalorização de 7,5% (5% x, 1,5) . O Sr. Perito do sinistrado entendeu que o coeficiente de desvalorização era de 9% (6% x 1,5).

No Auto de Junta Médica consta, além do mais o seguinte:

Por maioria dos peritos médicos da Seguradora e do Tribunal, estes respondem aos quesitos formulados em fls. 72 dos autos da seguinte forma:

1 - Segundo a declaração do sinistrado, foi atropelado.

2 - O sinistrado sofreu fratura dos ossos do antebraço direito.

3 - Segundo a declaração do sinistrado, é dextro.

4 - O sinistrado apresenta limitação na pronação do antebraço direito.

5 - O sinistrado apresenta, no antebraço direito, supinação conservada e limitação da pronação aos 35º.

Pelo perito do Sinistrado foi dito que subscreve a resposta aos quesitos 1 a 3, contudo apresenta, além da limitação da pronação do antebraço direito (que se encontra limitado aos 15º), uma atrofia muscular do braço direito e, segundo o Sinistrado, refere também parestesias do antebraço até à mão desse lado que o perito considera adequadas à intervenção cirúrgica a que foi sub, considerando que o sinistrado se encontra afetado de uma IPP de 9% (0,06 x 1,5), conforme o artigo do Cap. I - 7.2.2.3 b) da TNI.”

5. O auto de Junta Médica foi notificado às partes, não tendo estas a ele oposto reclamação ou solicitado esclarecimentos adicionais.

6. Foi proferida sentença que «reconhece[u] e atribui[u] ao sinistrado, por força do sinistro que se reportam os autos, uma incapacidade permanente parcial que se fix[ou] em 9%.

7. Inconformada, a seguradora interpôs recurso para esta Relação, terminando a sua alegação de recurso com as seguintes conclusões:

(…)

8. O sinistrado não apresentou contra-alegações.

9. A Mmª Juiz a quo, em 06.10.2025, proferiu despacho a admitir o recurso, fixou o valor da ação em € 8.389,60 e pronunciou-se sobre a invocada nulidade da sentença.

10. O Exm.º Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu douta Parecer no qual refere que a sentença recorrida não padece de nulidade, se encontra bem fundamentada e não violou qualquer preceito legal, pelo que se deve manter.

11. A recorrente respondeu mantendo a posição já afirmada em sede de recurso.

12. Cumprido o disposto na primeira parte do n.º 2 do art. 657.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT), e realizada a Conferência, cumpre decidir.

II – OBJETO DO RECURSO

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente – art. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC, aplicáveis ex vi do art. 1.º, n.º 2, alínea a), do CPT– e ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado fixam-se, como questões a resolver:

- nulidade da decisão proferida por excesso de pronúncia;

- se a decisão padece de erro de julgamento por, louvando-se na perícia médica singular e na posição minoritária da pericial médica colegial, ter atribuído ao sinistrado a IPP de 9% (6,5%x1,5).

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na decisão recorrida consta o seguinte:

“Com relevo para a decisão da causa, de acordo com os documentos juntos aos autos e o acordo das partes expresso no auto de conciliação, mostram-se provados os seguintes factos:

“a) O Sinistrado nasceu no dia ../../1965.

b) No dia 10 de outubro de 2023, pelas 7h40m, o Sinistrado quando exercia as funções de vidraceiro, sob as ordens, direção e fiscalização da sociedade Comercial “B..., Lda.”, com o NIPC ...18, com sede na rua ..., ... Porto, foi vítima de um acidente ao atravessar a rua na passadeira foi atropelado por um veículo automóvel, no percurso para o local de trabalho.

c) Como consequência do acidente referido em b) resultaram-lhe lesões ao nível do antebraço direito, na região torácica e joelhos.

d) O Sinistrado auferia o salário anual de € 11.794,34 (€ 760,00 x 14 meses + € 104,94 x 11 meses – salário base e subsídio de refeição).

e) A responsabilidade infortunística-laboral da entidade empregadora encontrava-se transferida para a empresa de seguros A... – Companhia de Seguros, S.A. pela totalidade da retribuição anual mencionado em d), mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...67.

f) A consolidação médico-legal das lesões ocorreu em 13/03/2025.

g) O Sinistrado esteve em situação de ITA (incapacidade temporária absoluta para o trabalho) desde 11/10/2023 a 10/11/2024.

h) O Sinistrado esteve em situação de ITP de 50% (incapacidade temporária parcial para o trabalho) desde 11/11/2024 a 05/03/2025.

i) O Sinistrado esteve em situação de ITP de 40% (incapacidade temporária parcial para o trabalho) desde 06/03/2025 a 13/03/2025.

j) Pelos períodos de incapacidade temporária que sofreu o Sinistrado recebeu da Companhia de Seguros a quantia de € 10.404,57.

k) O Sinistrado despendeu a importância de € 20,00 em deslocações para comparecer neste Tribunal e no Instituto Nacional de Medicina Legal, na fase conciliatória. “

E, ainda:

“ Falta decidir a questão da determinação do grau de incapacidade que afeta o Sinistrado.

O Colégio de Peritos em junta médica concluiu, por maioria, que o Sinistrado em consequência do acidente de trabalho em referência sofreu lesões e sequelas determinantes de um coeficiente global de incapacidade (IPP) de 7,5%, que corresponde ao coeficiente de desvalorização de 5%, com a aplicação do fator de bonificação de 1,5, por causa da idade do Sinistrado à data da alta clínica.

Já a posição minoritária expressa pelo Exmo. Sr. Perito nomeado pelo Tribunal ao Sinistrado fixou um coeficiente global de incapacidade (IPP) de 9%, que corresponde ao coeficiente de desvalorização de 6%, com a aplicação do fator de bonificação de 1,5, por causa da idade do Sinistrado à data da alta clínica, indo de encontro do coeficiente de desvalorização fixado no auto de exame médico do INML.

Dispõe o artigo 388.º do Código Civil que “A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial”.

No acidente de trabalho, visto estar em causa a perceção das lesões sofridas pelo sinistrado em consequência do acidente e o apuramento do grau de incapacidade que essas lesões e respetivas sequelas lhe acarretam, a lei prevê a realização obrigatória de exames médicos (cf. artigos 101.º, 105.º, 117.º, 138.º e 139.º do Código de Processo de Trabalho). Ou seja, a lei determina que o Tribunal recorra a peritos, dado que a perceção das lesões sofridas pelo sinistrado e a incapacidade delas decorrentes pressupõe conhecimentos médicos que o julgador não possui.

Contudo, tal como decidido pelo Tribunal da Relação do Porto no Acórdão de 20/09/2021, com o n.º de processo 5216/18.0T8MAI.P1, com o n.º convencional JTRP000, relatado pela Veneranda Juíza Desembargadora Rita Romeira, disponível para consulta in www.dgis.pt/jtrp que “VI - O exame por junta médica tem em vista a perceção ou apreciação pelo Juiz de factos em relação aos quais o mesmo não dispõe dos necessários conhecimentos técnico-científicos, sendo os peritos médicos quem dispõem desse conhecimento especializado, cabendo-lhes a eles emitirem “o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem”.

VII – No entanto, pese embora isso, as conclusões do laudo pericial, mesmo que unânimes, não vinculam o Juiz, dado estarem sujeitas ao princípio da livre apreciação do julgador (art.s 389.º do Cód. Civil e 489.º do CPC)”.

No caso dos autos temos um juízo pericial singular no relatório junto aos autos (datado de 30/04/2025) que posteriormente foi corroborado pela junta médica por um juízo minoritário emitido pelo Perito Médico nomeado pelo Sinistrado, no que tange ao coeficiente de desvalorização de 6%.

O Instituto Nacional de Medicinal Legal enquadrou as sequelas de que o Sinistrado ficou a padecer no capítulo I, n.º 7.2.2.3. b) “Pronação:

b) Mobilidade inferior a 45º……….Ativo 0,05-0,08 Passivo 0,04-0,06”.

De acordo com o quadro que consta do relatório datado de 30/04/2025, o INML enquadrou o lado Passivo no máximo da moldura em 6%, considerando o que consta desse relatório “Membro superior direito: Cicatrizes no antebraço. Rigidez do antebraço: pronação até 20º”.

Contudo em sede de Junta Médica constatou-se que o Sinistrado é dextro (resposta ao quesito 3.º), o que significa que a moldura a considerar se reporta ao Ativo desde 0,05 a 0,08.

O Colégio de Peritos reunido em Junta Médica manteve o enquadramento das sequelas no capítulo I, n.º 7.2.2.3., contudo, fixou o coeficiente de desvalorização de acordo com a moldura de 0,05 a 0,08, no mínimo de 5% - posição maioritária.

O Perito nomeado pelo Tribunal ao Sinistrado, afasta-se do mínimo da moldura, mantendo o coeficiente de desvalorização em 6%. Para tanto justificou que “subscreve a resposta aos quesitos 1 a 3, contudo apresenta, além da limitação da pronação do antebraço direito (que se encontra limitado aos 15º), uma atrofia muscular do braço direito e, segundo o Sinistrado, refere também parestesias do antebraço até à mão desse lado que o perito considera adequadas à intervenção cirúrgica a que foi submetido, considerando que o sinistrado se encontra afetado de uma IPP de 9% (0,06 x 1,5), conforme o artigo do Cap. I – 7.2.2.3. b) da TNI”.

Temos assim, dois Peritos (o do INML e o Perito em Junta Médica nomeado pelo Tribunal ao Sinistrado) que ao exame direto verificam a limitação da pronação a 20º/15º.

Temos outros dois Peritos (os peritos em Junta Médica do Tribunal e da Responsável) que ao exame direto constataram a limitação da pronação aos 35º.

Como explicar esta diferença?

Explicou o Perito com a posição minoritária em Junta Médica além da limitação da pronação do antebraço direito (que se encontra limitado aos 15º), uma atrofia muscular do braço direito e, segundo o Sinistrado, refere também parestesias do Esta explicação mostra-se sustentada na descrição da intervenção cirúrgica descrita nos elementos clínicos dos autos “OS com placa e parafusos (placas Synthes) 5 meses RX cubito em pseudartrose atrófica” e, ainda no período de consolidação médico-legal das lesões, desde 11/10/2023 a 13/03/2025, isto é, um ano e cinco meses.

O INML (considerando erradamente que se tratava de passivo), aplicou a moldura máxima de 6%. Corrigindo para Ativo, a posição minoritária afastou-se do mínimo (5%) e fixou 6%, com a justificação já explicitada.

A posição maioritária ficou-se pelo mínimo da moldura, fixando uma limitação da pronação em 35º, sem justificar a razão pela qual se afastou da limitação de 20º da pronação fixada pelo INML e, sem refutar a atrofia muscular do braço direito e as queixas ao exame direto do Sinistrado de parestesias do antebraço até à mão desse lado que se mostram adequadas face à intervenção cirúrgica a que foi submetido.

Em face do exposto, tendo em consideração os elementos clínicos remetidos aos autos pela Entidade Responsável, a perícia singular realizada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e a fundamentação do Perito nomeado pelo Tribunal ao Sinistrado em Junta Médica, decide o Tribunal fixar a IPP do Sinistrado de acordo com o juízo efetivado pelo Perito do Instituto Nacional de Medicina Legal em sede de perícia singular e pelo Perito nomeado ao Sinistrado, em detrimento do Perito do Instituto Nacional de Medicina Legal em sede de junta médica e do Perito nomeado à Responsável porque de acordo com os elementos clínicos dos autos, o tipo de sequela verificado e respetivas consequências que acarretam durante uma jornada completa de trabalho, ao invés de uns minutos de exame direto numa junta médica.

Assim, tendo em conta a sobredita prova pericial devidamente analisada, as informações clínicas constantes dos autos sobre a natureza das lesões, a gravidade destas, as suas sequelas, o estado geral, a idade e a profissão do Sinistrado, nos termos do artigo 140.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, considera-se que o Sinistrado em consequência do acidente de trabalho em referência ficou afetado de um coeficiente global de incapacidade de 9% (IPP de 6%, à qual é aplicável o fator de bonificação de 1,5, por imposição da Instrução Geral 5.ª, alínea a) da TNI atenta a idade do Sinistrado à data da alta clínica).”

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Nulidade da decisão recorrida por excesso de pronúncia

O artigo 615.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe, “Causas de nulidade da sentença”, preceitua, no que ora releva, que:

« 1. É nula sentença quando:

(…)

d)O juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento;

(…).

Este normativo legal tem de ser conjugado com o disposto no n.º 2 do art.º 608.º do CPC, nos termos do qual “ o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

Importa, assim, ter em atenção que o dever de decidir se impõe apenas quanto a questões suscitadas e quanto a questões do conhecimento oficioso, logo a omissão de pronúncia, geradora de nulidade da sentença, consubstancia-se apenas no incumprimento do dever de decidir aquelas questões.

E como se pode ler no Ac. RL de 22/06/2023[2] “de salientar ser absolutamente pacífico que o conceito de “questões” que o juiz deve resolver na sentença, a que alude aquele normativo legal, se relaciona com a definição do âmbito do caso julgado, não abrangendo os meros raciocínios, argumentos, razões, considerações ou fundamentos (mormente alegações de factos e meios de prova) produzidos pelas partes em defesa das suas pretensões.”

4.2. A primeira questão a enfrentar concerne à alegada nulidade da decisão por excesso de pronúncia.

A recorrente entende que tendo sido requerida Junta Médica, a apreciação do Tribunal a quo não podia sustentar a sua posição no relatório do IML, já que uma vez requerida Junta Médica apenas se poderia socorrer deste auto não se podendo estender à perícia singular relativamente à qual as partes não se conformaram, o que consubstancia uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos consagrados na alínea d) do n.º 1 do art. 615º do CPC.

No caso em apreço estava em causa a fixação da incapacidade do sinistrado e dos montantes que seriam devidos, em função do grau de incapacidade que viesse ser fixado, bem como o pagamento de despesas

As questões a conhecer traduziam-se, pois, essencialmente em apurar o grau de incapacidade do sinistrado.

O art. 140.º, do CPT, estatui que «[s]e a fixação da incapacidade tiver lugar no processo principal, o juiz profere decisão sobre o mérito, realizadas as perícias referidas no artigo anterior, fixando a natureza e o grau de incapacidade e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.º».

Desta normativo decorre que, na decisão a proferir, é ao Juiz que cabe fixar a natureza e o grau de desvalorização, socorrendo-se dos pareceres dos peritos médicos existentes nos autos, seja em perícia médica singular, seja em perícia médica colegial (junta médica), e, sendo o caso, de exames e pareceres complementares que entenda mandar proceder ou requisitar, sendo certo que a força probatória desses pareceres periciais é livremente apreciada pelo tribunal, no quadro do disposto no art. 389.º, do Código Civil., e art. 607.º, n.º 5, do CPC, o que significa que o Juiz não está vinculado ao parecer dos peritos, ou a um em detrimento do outro, podendo dele desviar-se, sem prejuízo da necessidade de fundamentação da sua discordância, dever de fundamentação que, aliás, se impõe em qualquer decisão judicial, cfr. art. 154.º, do CPC..

A recorrente, salvo o devido respeito por opinião contrária, confunde questão a resolver pelo Tribunal, no caso, - fixação do grau de incapacidade – com os elementos probatórios de que o Juiz se pode socorrer para fundamentar os factos que julga provados ou não provados, n.º 4 e 5 do art. 607º do CPC.

E, como já vimos, o Juiz pode socorrer-se dos pareceres médicos existentes nos autos, bem como de exames complementares que entenda mandar proceder ou requisitar para fundamentar a sua decisão de facto.

No caso em apreço a Mm.ª Juiz a quo fundamentou a sua decisão, além do mais em perícia médica singular, o que não lhe estava vedado fazer.

Mas para o que releva, em sede de nulidade de decisão, tendo a decisão recorrida apreciado a questão da fixação do grau de incapacidade, não se antevê face ao conceito de questão que avulta da lei que lhe possa ser assacado o vício de excesso de pronúncia, sendo questão diferente a existência de erro de julgamento a apreciar.

Improcedem, pois, as conclusões da alegação de recurso atinentes à arguição de nulidade da decisão.

4.2. Erro de julgamento

Nas ações emergentes de acidente de trabalho que prossigam para a fase contenciosa destinadas à fixação da natureza e o grau de incapacidade do sinistrado, ao exame médico singular que haja sido realizado na fase conciliatória do processo seguir-se-á a perícia por Junta Médica, de acordo com os arts. 117.º, n.º 1, al. b), e 138.º, n.º 2, do CPT.

O exame por Junta Médica tem em vista a perceção ou apreciação pelo Juiz de factos em relação aos quais o mesmo não dispõe dos necessários conhecimentos técnico-científicos,

A Junta Médica é constituída por três peritos, conforme imposto pelo art. 139.º, n.º 1, do CPT, daí que “a abordagem técnico-científica das questões médico-legais controvertidas efetuadas por 3 peritos médicos tem a virtualidade de permitir uma mais segura aproximação à verdade material, desiderato primacial do Processo Civil, conduzindo a uma mais sólida formação da convicção do julgador”[3].

Tal não significa que o Juiz não possa prevalecer-se do resultado do exame médico singular, dado que a força probatória desses pareceres periciais é livremente apreciada pelo tribunal, no quadro do disposto no art. 389.º, do Código Civil., e art. 607.º, n.º 5, do CPC e a lei não estabelece uma hierarquia entre eles.

No entanto, se a questão da fixação da natureza e do grau de incapacidade que afeta o sinistrado é reservada para decisão na fase contenciosa do processo, justamente por sobre ela incidir o dissenso das partes, afigura-se claro atribuir ao exame colegial maior preponderância, “já que envolve um juízo colectivo, precedido de discussão entre os três peritos e de troca de conhecimentos técnico-científicos que hão-de aportar ao juízo que emitam um maior grau de aproximação à verdade material e, daí, uma força persuasiva diversa e, de certo modo, de maior concludência e segurança. Isto é, a composição colegial da perícia sugere um maior grau de ponderação, daí que ao juízo que dela provenha deva o julgador dar prioridade((…). Assim não fora e careceria de sentido ou relevância a realização da perícia por Junta Médica, cujos peritos têm o dever de fundamentadamente se pronunciarem sobre as razões suscitadas pela parte que impulsiona a fase contenciosa do processo e/ou de dar resposta aos quesitos que apresente, sendo o requerimento que para o efeito formule que baliza o objecto da perícia (art. 117.º, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho), sem prejuízo dos poderes oficiosos que, neste conspecto, a lei concede ao juiz (art. 139.º, n.º 6, do Código de Processo do Trabalho).

É esta a razão de ser da intervenção da junta médica nas acções emergentes de acidente de trabalho – cfr., os arts. 139.º e 145.º, n.º 5, do Código de Processo do Trabalho – em que os mesmos factos já apreciados no primeiro exame voltam agora à apreciação de outros peritos mais numerosos (…).

Do que vem de ser dito decorre que para que o juiz se afaste do juízo médico-legal emitido pela Junta Médica, designadamente para aderir ao juízo constante da perícia singular quando este seja divergente daquele, terão que existir fundadas razões para a discordância, não apenas por as questões sobre que as quais incide a junta médica serem de natureza essencialmente técnica, mas também por resultarem de um juízo emitido por três peritos e cujo escopo é o de corrigir a eventual inexactidão dos resultados da primeira perícia. Portanto, para divergir do parecer da Junta Médica, deve o juiz dispor de elementos seguros e substancialmente relevantes que lhe permitam assim proceder.”[4]

Do exposto resulta que, na prolação da decisão para fixação da incapacidade, o Juiz não pode deixar de ponderar a prova obtida por meios periciais. Mas tal não significa que o Juiz não possa afastar-se do laudo médico, ainda que unânime, sendo esse o caso será, então, necessário que esteja sustentado em fundamentos bem precisos e concretos, que tenha entendido serem decisivos para a formação da sua convicção nesse sentido, os quais devem ser expressos na fundamentação.

E, ainda, quanto ao laudo pericial coletivo, o Juiz pode aderir ao laudo unânime, maioritário ou mesmo ao minoritário que, em qualquer dos casos devem estar fundamentados, de forma a permitir a formulação do juízo crítico subjacente à formação da convicção do julgador.

Por isso, o nº 8, das Instruções Gerais, constantes do Anexo I, da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho ou Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, impõe aos senhores peritos o dever de fundamentarem “todas as suas conclusões”.

4.2.1. Insurge-se a recorrente quanto à valoração da prova pericial efetuada pelo Tribunal a quo, designadamente pelo acolhimento que faz da perícia singular do INML que entende corroborar a posição minoritária assumida pelo perito do sinistrado, em sede de Junta Médica.

Refere a recorrente a este propósito o seguinte:

“A sequela de que padece o Recorrido enquadra-se no Cap. I - 7.2.2.3 b) da TNI, conforme entendem todos os Senhores Peritos da junta médica [e, bem assim, o Senhor Perito do IML].

O Cap. I - 7.2.2.3 b) da TNI prevê dois critérios: o grau de mobilidade do punho [se inferior a 45º ou entre 45º e 90º] e o lado da lesão [ativo ou passivo].

Ora, o Recorrido é destro, conforme resulta do auto de junta médica. Apesar de devidamente informado, o Senhor Perito do IML aplicou o intervalo de 0,04-0,06, destinado às sequelas do lado passivo, quando a lesão foi sofrida no lado dominante.

Nos termos da TNI, o intervalo aplicável in casu é 0,05-0,08. Tanto o Senhor Perito do IML como o Senhor Perito do Recorrido entenderam que seria de fixar uma IPP de 6% (a ser agravada com fator de bonificação) - mas fizeram-no com base em diferentes pressupostos: aquele atendeu ao lado passivo e este ao ativo. Significa isto que, para a escolha do grau de incapacidade, os Senhores Peritos tinham intervalos de valores diversos.

Por esse motivo, não se pode concluir que o parecer do Senhor Perito do IML foi “corroborado” pelo parecer minoritário da junta médica, conforme se lê no último parágrafo da terceira página da sentença. É que o coeficiente de 6% foi proposto por ambos por diferentes razões.”

Do exame efetuado no INML já resultava claro que o sinistrado era destro, localizando-se as sequelas apresentadas pelo sinistrado no lado direito, como resulta claramente do ponto B) do Exame Objetivo:

“B. EXAME OBJECTIVO

1. Estado geral

O(a) Examinando(a) apresenta-se: consciente, orientado(a), colaborante, com bom estado geral, idade aparente de harmonia com a idade real ..................................................................................

O(a) Examinando(a) é dextro(a) e apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação .......................................................................

2. Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento

O(A) examinando(a) apresenta as seguintes sequelas: ....................

Membro superior direito: Cicatrizes no antebraço. Rigidez do antebraço: pronação até 20º. .............................................................

Membro inferior direito: Cicatriz na crista iliaca. ...............................“

A constatação de que o sinistrado é destro não resulta, assim, de verificação efetuada em sede de Junta Médica.

Por outro lado, o Capítulo I 7.2.2.3 da TNI prevê, para a Pronação, para o lado ativo e passivo, respetivamente, os seguintes graus de mobilidade e coeficientes de incapacidade:


E, tendo o sinistrado uma mobilidade de 20º, no lado ativo, a desvalorização teria de ser encontrada nos coeficientes de incapacidade previstos na TNI, no lado ativo, entre o coeficiente de desvalorização de 0,05 – 0,08 e não no apontado na pericial singular de 0,04-0,06, já que este corresponderia ao lado passivo.

Assim a perícia singular, ao considerar o lado passivo e respetivos coeficiente previstos na TNI, para valorar o grau de incapacidade do sinistrado incorreu em erro, erro que não podia deixar de ser ponderado na decisão recorrida.

De todo o modo, e como se apreende com meridiana clareza da fundamentação da decisão recorrida, esta não se limitou a conferir prevalência ao parecer singular do INML tendo também efetuado valoração do laudo colegial.

Assim, a questão que se coloca é a de saber se (in)existem motivos que justifiquem o desvio ao parecer maioritário da junta médica.

No caso dos autos, quanto ao entendimento do perito do sinistrado ficou consignado, no auto da Junta Médica, o seguinte: “ [p]elo perito do Sinistrado foi dito que subscreve a resposta aos quesitos 1 a 3, contudo apresenta além da limitação da pronação do antebraço direito (que se encontra limitado aos 15º), uma atrofia muscular do braço direito e, segundo o Sinistrado, refere também parestesias do antebraço até à mão desse lado que o perito considera adequadas à intervenção cirúrgica a que foi submetido.”

Foram estes os motivos apresentados pelo perito do sinistrado para não subscrever o entendimento maioritário quanto às respostas aos quesitos 4 e 5 e considerar que o sinistrado se encontra afetado de uma IPP de 9 % (0,06x1,5), conforme o artigo do Cap. I -7.2.2.3.b) da TNI.

A posição do perito do sinistrado mostra-se, pois, fundamentada em obediência ao n.º 8 das Instruções Gerais, constantes do Anexo I, da TNI que impõe aos senhores peritos o dever de fundamentarem “todas as suas conclusões” e, ainda, nos elementos clínicos dos autos, dos quais o Tribunal se pode socorrer.

Em apreciação à fundamentação consta da sentença recorrida que “ [e]sta explicação mostra-se sustentada na descrição da intervenção cirúrgica descrita nos elementos clínicos dos autos “OS com placa e parafusos (placas Synthes) 5 meses RX cubito em pseudartrose atrófica” e, ainda no período de consolidação médico-legal das lesões, desde 11/10/2023 a 13/03/2025, isto é, um ano e cinco meses .”

Relativamente à posição maioritária, não se surpreende, no Auto da Junta Médica, fundamentação para além da menção de que se procedeu ao exame do sinistrado.

O entendimento afirmado pelo Tribunal a quo aparece, assim, sustentado em parecer médico devidamente fundamentado e com recurso a outros elementos clínicos, com fundamentação suficiente e clara, merece a nossa concordância.

Em suma, é de concluir que a decisão recorrida deverá ser mantida.

V- Responsabilidade pelas custas

No que concerne a custas, na improcedência do recurso estas ficam a cargo da recorrente, art. 527, n.º 1 e 2º do CPC.

VI – Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação, em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Porto, 26 de novembro de 2025

Alexandra Lage

António Luís Carvalhão

Rita Romeira

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[1]  “ 1,5” corresponde ao factor de bonificação pela idade.
[2] Proferido no processo n.º 12225/21.0T8SNT.L1-2, disponível in www.dgsi.pt
[3]  Ver sumário do Acórdão desta Relação de 7 de Outubro de 2013, proferido no Processo n.º 9217/10.9TBVNG-A.P1, acessível em www.dgsi.pt..
[4] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo n.º 4646/24.3T8LSB, de que a ora relatora foi 1ª adjunta, ao que julgamos não publicado.