Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
371/06.5GBVNF.P1
Nº Convencional: JTRP00043509
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: PROVAS
PROIBIÇÃO DE PROVA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: RP20100203371/06.5GBVNF.P1
Data do Acordão: 02/03/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Indicações Eventuais: 1º SECÇÃO - LIVRO 616 - 184.
Área Temática: .
Sumário: Não é proibida a prova obtida por sistemas de videovigilância colocados em locais públicos, com a finalidade de proteger a vida, a integridade física, o património dos respectivos proprietários ou dos próprios clientes perante furtos ou roubos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 371/06.5GBVNF.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Colectivo que correu termos no .º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão com o nº 371/06.5GBVNF, foi submetido a julgamento o arguido B………., tendo a final sido proferido acórdão que condenou o arguido:
- como autor material de um crime de furto qualificado p. e p. nos artºs. 203º e 204º nº 2 al.e) do C.Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão;
- pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal p. e p. no artº 3º nº 2 do Dec-Lei nº 2/98, na pena de oito meses de prisão;
- pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. no artº 291º nº 1 al.b) do Cód. Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão;
- em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de três anos e seis meses de prisão.
Inconformado com a decisão condenatória, dela veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respectivas motivações as seguintes conclusões:
1 - Afigura-se ao aqui Recorrente que, salvo o devido respeito, carece de fundamento de facto e de direito o douto Acórdão de fls, que condenou o aqui arguido B………. na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, o aqui arguido pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. nos arts. 203° e 204°, n.° 2, al.e), do Código Penal, na pena parcelar de dois anos e seis meses de prisão; de um outro crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. no art. 3°, n.° 2, do D.L. 2/98, na pena parcelar de oito meses de prisão, e de um outro de condução perigosa de veículo rodoviária, p. e p. no art. 291°, n.° 1, al. b), do Código Penal, na pena parcelar de um ano e seis meses de prisão, que merecem a discordância do recorrente e se lhe afigura passível de reparo;
2 – Encontra-se erradamente e incorrectamente julgada a matéria de facto dada como provada nos pontos 1, 2, 3, 4, 5 a 13 dos factos provados, os quais deveriam antes ter sido dados como não provados;
3 – Contudo, como ponto prévio, não queremos deixar de salientar, sem prescindir as demais críticas que faremos, que é nosso entendimento que o Tribunal a quo não efectuou, salvo o devido respeito, com pequenas e relevantes excepções no que se refere aos crimes dos autos imputados ao arguido recorrente e à fixação da pena, uma criteriosa e cuidada apreciação da prova produzida em julgamento;
4 - Não podemos deixar de começar por salientar, a este respeito, que, na formação da convicção, o Tribunal a quo deveria ter sempre como presente — o que não teve — que, tal como preceitua o artigo 32°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (...)”, e que deste princípio da presunção de inocência decorre, como salienta JOSÉ M ZUGALDÍA ESPINAR, que “partindo ele da ideia que o acusado é, em princípio, inocente (...), a sentença condenatória contra o mesmo só pode pronunciar-se se da audiência de julgamento resultar a existência de prova que racionalmente possa considerar-se suficiente para desvirtuar tal ponto de partida” (JOSÉ M ZUGALDÍA ESPINAR (dir.)/ESTEBAN J. PÉREZ ALONSO (coord.), Derecho Penal, Parte Generaj,2002, pág. 231);
5 - Ora, tal só sucederá quando, por um lado, a prova produzida em audiência permita logicamente (no sentido de racionalmente, coerentemente, etc.) afirmar a presença, no caso concreto, de todos os elementos (objectivos e subjectivos) dos crimes trazidos a Juízo, e, por outro lado, conduza, nos mesmos moldes, à conclusão de que foi o arguido o responsável pela sua ocorrência (assim, MERCEDES FERNANDEZ LÓPEZ, Prueba y presuncion de inocência, 2005, pág. 143 e nota 89);
6 - No fundo, do que se trata é de que só se pode condenar alguém se for possível imputar-lhe a realização de todos os pressupostos e condições legais exigidos para o efeito, devendo ditar-se uma absolvição se se provarem factos que neguem a possibilidade dessa imputação, ou se aqueles pressupostos e condições se não se verificarem no caso concreto (em sentido convergente, vd NEVIO SCAPJNI, La prova per indizi nel vicente sistema de processo penaL 200], pág. 2);
7 - E nestes autos claramente também deveria ter sido ditada uma absolvição dos crimes de furto qualificado, de condução sem habilitação legal e de condução perigosa de veículo rodoviário, uma vez que, de forma alguma, racional e logicamente, se poderia ter dado como provada a imputação ao arguido desses crimes, previstos e punidos pelos artigos arts. 203° e 204°, n.° 2, al.e), do Código Penal, art. 3°, n.° 2, do D.L. 2/98, e no art. 291°, n.° 1, al. b), do Código Penal.
8 - Desde logo, no ponto 1 dos factos assentes foi dado como provado que foi o arguido o autor do furto ocorrido no dia 18 de Dezembro de 2006 no “C……….”, sito na ………., ………., loja ., em ………., Vila Nova de Famalicão. Ora, salvo o devido respeito não se pode concluir que o arguido, ora recorrente tenha sido o autor de tais factos. Desde logo o próprio arguido nega a autoria — cfr. depoimento gravado em suporte digital e que parcialmente transcrevemos;
9 - Acresce que o próprio proprietário do estabelecimento além de não se recordar da data dos factos, e de nunca ter sido confrontado com o arguido em fase de inquérito para eventual reconhecimento, afirmou em julgamento que não conhecia o arguido — cfr. depoimento da testemunha D………., gravado em suporte digital, que parcialmente transcrevemos;
10 - Salvo o devido respeito não existiam quaisquer indícios e a existir não eram de todo suficientes para que se pudesse chegar à conclusão que foi o arguido, ora recorrente o autor dos factos. Face ao depoimento da testemunha E………. confirma-se que apenas os indícios existentes basearam-se nas imagens retiradas do sistema de videovigilância instalado no Estabelecimento Comercial visionadas por si 38 dias depois da ocorrência do crime, tendo o mesmo referido que as imagens não eram nítidas, estava desfocada, mas que não teve dúvidas que era o arguido pelo facto de quando ia a passar ter alegadamente, no dia em que ocorrera o crime — ou seja 38 dias antes de ter visionado as imagens supra referidas e ter visto nestas ultimas a figura/vulto do alegado autor do crime —, avistado o arguido nas imediações, resultando do seu depoimento uma mera convicção, chegando mesmo a colocar a hipótese de não ser o arguido, mas o seu irmão — Cfr. depoimento da testemunha E.........., agente da GNR, que aqui parcialmente transcrevemos e damos por reproduzidos para os devidos e legais efeitos;
11 - No ponto 2 dos factos assentes foi dado como provado que o arguido “aproximou-se da entrada e com um instrumento metálico em tudo similar a uma chave de fendas, forçou a porta de entrada, entrou dirigiu-se à caixa registadora e retirou cerca de 100,00 euros em dinheiro, abandonando-o de seguida o local”.
12 - Ora, salvo o devido respeito, em momento algum foi referido ou visionado por qualquer testemunha o objecto usado para forçar e abrir a porta do estabelecimento, nem foi encontrado, pelo menos não é feita qualquer referência nos autos, qualquer instrumento metálico no interior do referido estabelecimento. Acresce que o próprio proprietário no que respeita a este facto apenas refere que “houve ali um pé de cabra ou qualquer coisa que rebentou a fechadura “, mas não sabe precisar;
13 - No que respeita à quantia de dinheiro que foi furtada, só temos a versão do proprietário do estabelecimento, que nem sequer referiu que foi ele quem retirou o dinheiro da caixa antes de ir almoçar, nem soube especificar quanto ficou na caixa — cfr. Depoimento da testemunha D………., que parcialmente transcrevemos e damos por reproduzido para os devidos e legais efeitos;
14 - No que respeita aos crimes de condução sem habilitação legal e de condução perigosa de veículo rodoviário, sem prescindir o principio da livre apreciação da prova e da imediação, além do depoimento da testemunha F………., agente da PSP, não há nenhuma outra prova, nomeadamente testemunhal que comprove que o arguido conduzia o referido carro no dia dos factos, antes havendo um depoimento, da companheira à data dos factos do recorrente B………., G………., alegadamente vista pela testemunha F………. na companhia do recorrente, nas circunstâncias de tempo e lugar em que alegadamente ocorreu o crime, que refere que não viu o recorrente a conduzir o veículo dos autos, nem o acompanhava naquele dia - cfr. depoimento da testemunha G………. que parcialmente transcrevemos e aqui damos por reproduzido para os devidos e legais efeitos;
15 - Assim, e tendo em conta que além do depoimento do gente da PSP F………., mais nenhuma prova existe que possa corroborar este depoimento, logo, em nosso entendimento, tal depoimento não é suficiente para se dar como provados os factos dos pontos 5 a 13, pelo que deveriam ter sido dados como não provados, face à ausência de prova;
16 - DA NULIDADE DA UTILIZAÇÃO DAS IMAGENS:
O regime de proibições de prova no âmbito do processo penal, encontra-se essencialmente regulado pelo preceituado nos art. 125.°, 126.°, do Código Processo Penal, os quais devem ser conjugados com as garantias constitucionais de defesa, consagradas no art. 32.°, CRP, mormente a injunção imposta pelo seu n.° 8, bem como, com as disposições específicas que disciplinam a obtenção do meio de prova de que pretende se fazer uso;
17 - Deste regime podemos destacar que a realização da justiça penal, num Estado de Direito Democrático, como pretende ser o nosso, deve sempre assentar no respeito e garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, mormente da preservação da dignidade humana;
18 - Assim, logo o citado art. 32.°, n.° 8 da CRP, é claro ao preceituar que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.”
19 - No mesmo sentido, se situa o estatuído no art. 126.°, ao enunciar discriminatoriamente no seu n.° 2, quais são as provas “ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas”;
20 - Nesta conformidade, podemos desde já concluir que o regime da legalidade da prova, enquanto “imperativo de integridade judiciária”, que tanto versa sobre os meios de prova, como os meios de obtenção de prova, vem assim comprimir o princípio da livre apreciação da prova decorrente do art. 127.°, estabelecendo as correspondentes proibições de produção ou de valoração de prova;
21 - Por outro lado, tratando-se de prova proibida, a mesma deve ser oficiosamente conhecida e declarada em qualquer fase do processo, surgindo como autênticas nulidades insanáveis, a par daquelas que expressamente integram o catálogo do art. 119º;
22 - O arguido em julgamento suscitou a proibição da valoração ou nulidade de tal prova, por violação do n.° 4 do artigo 126° do Código Processo Penal e artigo 26° da Constituição da República Portuguesa, contudo esse não foi o entendimento do Tribunal a quo;
23 - Ora, salvo o devido respeito não podemos concordar com o entendimento do Tribunal a quo, uma vez que a utilização de um sistema de videovigilância, fora dos casos previstos na Lei, resulta numa intromissão manifesta na vida privada e numa constrição inaceitável do direito à imagem, e as provas obtidas através dessa intromissão e violação do direito à imagem são nulas nos termos do n.° 3 do artigo 126° do Código Processo Penal e 26° da Constituição da República Portuguesa, são nulas as provas, no caso as imagens obtidas pelo sistema de videovigilância do estabelecimento comercial denominado “C……….”;
24 - Acresce que perante a prova feita em audiência de discussão e julgamento, a mesma afigura-se insuficiente para atribuir ao recorrente a autoria nos crimes dos autos e a quantia efectivamente furtada, estando deste modo a violar o princípio in dúbio pró reo. O princípio in dúbio pró reo “pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como do dolo ou da negligência do seu autor”, Cristina Líbano Monteiro “Perigosidade de inimputáveis e «in dúbio pró reo»”, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 11;
25 - Ao não ter aplicado o principio in dubio pro reo, o Tribunal a quo violou o preceituado no art. 32.°, n.° 2 da Lei Fundamental;
26 - A escolha da pena reconduz-se, numa perspectiva político-criminal a um movimento de luta contra a pena de prisão. A este propósito dispõe o art.° 70º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Assim exprime, o legislador, a preferência pelas penas não privativas da liberdade;
27 - Por conseguinte, a opção pela pena de prisão só se justificará quando tal for imposto pelos fins das penas — previstos no art.° 40º, n.° 1 do Código Penal: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”;
28 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção conforme dispõe o art° 71°, n.° 1 do Código Penal. Na determinação concreta da pena devem ponderar-se todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal, depuserem a favor ou contra o agente, nomeadamente as referidas no n.° 2 da mesma disposição legal;
29 - Na determinação da medida da pena há omissões irreparáveis:
a) Não atende ao valor do depoimento do arguido, bem como ao depoimento da testemunha G……….;
b) As condições pessoais do agente e a sua situação económica — nesta matéria está provado que o agente/recorrente à data dos factos tinha 16 anos e que era toxicodependente, nomeadamente de heroína, cocaína e drogas sintéticas, continuando a ter quer o apoio da companheira, quer o apoio da família, uma vez em liberdade;
c) Apesar de ter sido posta em causa a possibilidade de aplicação do Regime penal dos Jovens, regime previsto no D.L. n.° 401/82, de 23.09, uma vez que o arguido à data dos factos era menor de 21, o mesmo não foi aplicado, pelo que não se entende, salvo o devido respeito, pois o arguido apenas tinha 16 anos de idade, e além disso, como supra se referiu era consumidor de produtos estupefacientes;
d) O aqui Recorrente foi condenado na pena única de três anos e meio de prisão efectiva, como tal deveria, salvo o devido respeito, ter sido aplicado o regime previsto no artigo 50° do Código Penal;
30 - Ora, no caso dos autos, sem prescindir o supra referido quanto à inocência do arguido, sempre se dirá que, a pena concretamente aplicada é manifestamente exagerada e desajustada não tendo o Tribunal a quo valorado devidamente nenhuma circunstância que depusesse a favor dos arguidos (?);
31 - Logo, a pena concretamente aplicada de 3 anos e 6 meses de prisão foi exagerada e, salvo o devido respeito, determinada arbitrariamente, não tendo em conta as concretas necessidades de prevenção geral e especial, que ao caso eram devidas;
32 - Pelo exposto, e sem prescindir o supra referido, e admitindo-se a prática dos crimes pelo arguido, ora recorrente, o que só se alega para mero efeito de raciocínio, deveria o Tribunal a quo, considerado também a desqualificação do crime de furto e a respectiva moldura penal, ter optado por uma pena única não superior a dois anos e ser a mesma substituída por trabalho a favor da comunidade nos termos do artigo 58° do Código Penal, para a qual o arguido deu o seu consentimento expresso, uma vez que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição;
33 - Sem prescindir e assim não se entender, deverá a pena de três anos e 6 meses em que o arguido foi condenado ser suspensa na sua execução, nos termos propugnados.
34 - Foram violadas as disposições legais supra referidas, nomeadamente os arts. 203° e 204°, n.° 2 al.e) e e n.° 4, 29 1°, n.° 1, ai. b), do Código Penal, art. 3°, n.° 2, do D.L. 2/98, o DL. 401/82 de 23 de Setembro, arts. 3° e 4° da Lei 1/2005 de 10 de Janeiro; os artigos 125°, 126°, 127 e 119° do Código de Processo penal e os artigos 40°, n.° 1 e 2, 50°, 70°, 71°, n.° 1 e 2 e 72°, todos do Código Penal e 26° e 32° da Constituição da República Portuguesa.
Conclui pela revogação do acórdão recorrido e consequente absolvição do recorrente ou, se assim se não entender, ser a pena de prisão reduzida para dois anos e substituída por trabalho a favor da comunidade. Ou então, a pena de 3 anos e seis meses de prisão aplicada ser suspensa na sua execução.
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Na 1ª instância, o Mº Público respondeu à motivação de recurso, alegando em suma que:
- o recorrente tece comentários à apreciação da prova feita pelo tribunal, tentando fazer vingar a sua visão das coisas, que não colhe por violar o disposto no artº 127º do C.P.P.;
- os factos foram dados como provados com base no conjunto da prova produzida e nas regras da experiência comum, tendo o tribunal explicado devidamente o desvalor do depoimento da companheira do arguido;
- quanto à nulidade da utilização das imagens, tal consistiria um nítido abuso de direito, descaracterizador de outros direitos também constitucionalmente consagrados;
- o conteúdo do acórdão recorrido, quer na parte relativa à enunciação dos factos provados e não provados, quer na parte relativa à fundamentação da convicção, não espelha qualquer dúvida por parte do tribunal;
- o tribunal fez ponderada e equilibrada escolha da medida da pena, não tendo ultrapassado os limites da culpa ou as finalidades da punição, embora a idade e personalidade do arguido permitissem a aplicação do regime penal especial para jovens e a suspensão da execução da pena de prisão.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta limitou-se a apor o seu visto.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. “No dia 18 de Dezembro de 2006, pelas 12H53, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "C……….", sito na ………., ………., loja ., em ………., área desta comarca de Vila Nova de Famalicão, com o intuito de aí entrar após forçar a entrada, com vista a daí retirar tudo o que encontrasse, para fazer seu, contra a vontade do dono, bem sabendo que nada do que aí estava guardado lhe pertencia.
2. Para o efeito, aproximou-se da porta de entrada e com um instrumento metálico em tudo similar a uma chave de fendas, forçou a porta de entrada, entrou, dirigiu-se à caixa registadora e retirou cerca de 100,00 euros em dinheiro, abandonando-o de seguida o local.
3. O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta, para além de censurável, era punida por lei.
4. O arguido, após forçar a entrada no espaço como descrito, quis fazer sua a quantia que retirou, como fez, bem sabendo que não lhe pertencia e que agia contra a vontade do legítimo dono, actuando por forma apta a atingir o fim perseguido.
Proc. Apenso
5. No dia 16 de Janeiro de 2007, pelas 14H25, o arguido B………. conduzia o veículo de matrícula ..-..-BF, na rua ………., nesta cidade de Vila Nova de Famalicão, quando foi avistado pela Polícia de Segurança Pública, que, sabendo que o arguido não era titular de habilitação de condução, o abordou junto da rotunda………. exigindo-lhe que saísse da viatura.
6. Apercebendo-se da presença da Polícia de Segurança Pública, o arguido reiniciou a marcha, passando a conduzir a viatura em que seguia em total desrespeito pelas regras estradais e pela segurança de terceiros.
7. Assim, sempre circulando à máxima velocidade que a viatura lhe permitia e excedendo a velocidade de segurança aconselhada: - ingressou na rotunda ………., sem cuidar da circulação de outros veículos que nela já circulavam com prioridade, obrigando-os a parar bruscamente para evitar o embate com a viatura conduzida pelo arguido; - na ………., o arguido transpôs repetidamente a linha contínua delimitadora de trânsito nos dois sentidos, para ultrapassar viaturas que seguiam à sua frente, circulando várias vezes na faixa reservada ao sentido contrário, obrigando os condutores que seguiam no sentido contrário a desviar as viaturas para evitar o embate frontal com a viatura conduzida pelo arguido.
8. O arguido só não embateu lateralmente ou frontalmente noutras viaturas que circulavam na rotunda e no sentido contrário ao seu, devido a facto de tais condutores se terem apercebido e terem conseguido evitar tais embates.
9. À data dos factos descritos, o arguido não era titular de habilitação legal para conduzir veículos automóveis.
10. O arguido, ingressando na rua ………. e fugiu para local incerto.
11. O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta, para além de censurável, era punida por lei.
12. O arguido quis conduzir um veículo automóvel na via pública, bem sabendo que não estava habilitado legalmente a conduzir e que tal habilitação era obrigatória.
13. O arguido quis conduzir um veículo automóvel, na via pública, desrespeitando grosseiramente as regras estradais relativas aos cuidados exigíveis durante a execução de uma manobra de ultrapassagem e de circulação na faixa reservada ao sentido que seguia, colocando em risco a vida e saúde de terceiros.
Consta dos Relatórios Sociais, em suma
14. B………. é oriundo de um agregado familiar numeroso constituído pelo casal e cinco descendentes de estrato socioeconómíco carenciado. Os baixos rendimentos auferidos resultavam da prestação irregular de serviços indiferenciadas por parte do progenitor e das prestações familiares comparticipadas pela Segurança Social.
15. Integrado no sistema de ensino em idade própria, o comportamento de B………. precocemente demonstrou dificuldades de adaptação às regras e exigências do contexto escolar pelo que, a irreverência e a inadequação associadas às dificuldades de aprendizagem, ao elevado absentismo e á falta de supervisão e controlo parentais determinaram o fracasso do seu percurso académico e a edificação de um processo de socialização desviante.
16. Desde os dez anos de idade que B………. não detém qualquer ocupação regular estruturada ganhando a convivência com o grupo de pares, conotado com comportamentos transgressivos e aditivos, a prevalência educativa, assumindo um estilo de vida auto-gerido.
17. Abandonou o ensino no ano lectivo de 2001/2002 após ter frequentado a escola durante dois meses. Aos treze anos B………. foi pai, fruto de uma relação pontual com uma jovem de 15 anos. Na sequência de uma determinação judicial, B………. retomou a frequência do 4º ano de escolaridade no ano lectivo de 2004/2005, novamente frustrado pelo absentismo e incapacidade de adaptação.
18. O agravamento dos consumos e o crescente estado de dependência de estupefacientes evidenciaram a ocorrência de comportamentos agressivos direccionados, sobretudo, à progenitora. Era frequente ausentar-se do agregado de origem por longos períodos de tempo sem que estabelecesse qualquer contacto com os pais.
19. A medida tutelar educativa aplicada a B………. em 2006 nunca foi cumprida.
20. Entre 12.03. e 11.08.2007, o arguido esteve preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de Guimarães donde se evadiu acabando por ser recapturado em 29.12.2007. No âmbito do processo n° …...7TAVNF, do .º Juízo Criminal de Vila Nova de Famalicão, aquela medida de coacção foi comutada para a de termo de identidade e residência.
21. À data da ocorrência dos factos descritos no presente processo, B………. compunha o agregado de origem da ex-namorada e encontrava-se vinculado aos consumos de estupefacientes.
22. Uns dias antes da sua presente reclusão, B………. tinha regressado ao agregado de origem. Apresentava um aspecto desorganizado indiciando aos familiares as suspeitas que mantinha os hábitos aditivos.
23. O agregado de origem é composto pelos progenitores, um irmão, e por uma irmã menor, reside na Rua ………., …, ………., Vila Nova de Famalicão, domicílio com sofríveis condições de habitabilidade.
24. O agregado continua a evidenciar vulnerabilidades sociais e económicas, cuja sobrevivência material é assegurada com a actividade assalariada da mãe e pelos proventos auferidos com os trabalhos pontuais do pai.
25. A conduta institucional de B………. foi alvo de sancionamento disciplinar com dez dias de lnternamento em cela de habitação por posse de telemóvel. Beneficia de acompanhamento especializado de Psiquiatria, de Psicologia e de Clínica Geral, procurando superar a problemática da toxicodependência.
26. No meio social de residência B………. é alvo de rejeição por ser descrito como sendo um jovem problemático, com comportamentos criminais e associado ao grupo de pares, composto por indivíduos mais velhos.
Antecedentes Criminais
27. O arguido já foi julgado e condenado: em sentença de 27.3.2007, por um
crime de furto simples, praticado em 13.8.2006, e por outro de condução sem habilitação legal, praticado na mesma data, na pena de 160 dias de multa; em 14.7.2007, por vários crimes de condução sem habilitação legal, na pena de 140 dias de multa.
Contestação
28. O arguido era, à data dos factos descritos na acusação (16.1.2007), toxicodependente, consumindo com regularidade haxixe e também consumia cocaína.
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Foram considerados não provados os seguintes factos:
Da acusação:
O arguido conseguiu iludir os militares da Guarda Nacional Republicana.
Da contestação:
O período que o arguido atravessou teve como consequência a desestruturação pessoal, perda de auto estima e desintegração de projecto de vida.
Após detenção, o arguido de imediato abandonou o consumo de produtos estupefacientes e procurou reestruturar a sua vida, com auxilio de familiares e amigos, procurando iniciar (com as limitações naturais e intrínsecas) um percurso que se afigura ajustado e socialmente integrado.
Actualmente é estucador e reside com a sua namorada G………. e a mãe desta, contribuindo para a economia comum, sendo sua intenção constituir família e ter um futuro distinto do seu passado, do qual se possa orgulhar e que possa servir de exemplo para os seus filhos - que pretende ter.
Toda a actividade (social, biológica, etc ...) do arguido resumia-se a satisfazer a necessidade psicológica e biológica de consumir produtos estupefacientes (no caso haxixe) e de obter alimentos, tendo que para o efeito de arranjar fontes de rendimento.
Ora a toxicodependência é uma doença que, para além de grave é também do plano psicológico e capaz de incapacitar e impossibilitar o agente de se determinar de acordo com qualquer avaliação prévia da ilicitude dos actos que pratica - como aconteceu no caso dos autos.
Acresce que - uma vez que o arguido nada podia fazer contra a tendência que os arrastava para o crime e para a actividade delinquente - se afigura, salvo melhor opinião, que o recurso à culpa na formação da personalidade será, em tal caso, ficção.
O arguido tinha, a capacidade para avaliar a ilicitude de qualquer facto e para se determinar de acordo com essa avaliação, diminuída.
Qualquer agente ou sujeito que sofra de toxicodependência está, em todos os seus actos, de algum modo condicionado na sua capacidade de escolha, no seu livre arbítrio”.
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O acórdão recorrido encontra-se motivado nos seguintes termos:
“O tribunal fundamentou a sua convicção positiva, nos termos do art. 127º, do Cód. de Proc. Penal, e de acordo com as regras da experiência comum, nos seguintes meios de prova.
Nas declarações do arguido, na parte em que admitiu o consumo estupefacientes, circunstância corroborada pelo relatório social junto.
Na prova documental, consubstanciada nas imagens registadas em suporte digital (vide fls. 22) e papel (fls. 23 a 28), onde se pode observar a imagem do arguido a introduzir-se no estabelecimento que furtou no apontado dia 18. Essa prova foi contestada pela versão trazida pelo arguido, que negou a autoria de qualquer um dos factos vertidos nas acusações em julgamento. No entanto, a similitude dessas imagens com a fisionomia do arguido e a circunstância de ter sido observado nesse dia, pela hora do evento, com a mesma roupa, nas imediações, por agente da GNR (a testemunha E……….) que o conhece há algum tempo, afasta qualquer dúvida relevante sobre essa identificação.
Rejeitamos aqui a invocada proibição ou nulidade de tal prova, uma vez que não foi, por qualquer forma, obtida em violação do preceituado no disposto no art. 126º, do Cód. de Proc. Penal. Não está em causa, nomeadamente, qualquer violação da vida privada do arguido, quando o mesmo, de forma não autorizada, por arrombamento, violando por várias formas o património de outrem, se introduz num estabelecimento público, por sinal fechado naquela altura. Como é óbvio, a protecção da vida privada deste cidadão/arguido não é tão abrangente que lhe permita, impunemente, a coberto de normas que visam a defesa desse direito fundamental, pôr em causa outros direitos fundamentais de terceiros (v.g., o da propriedade afectada – art. 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e art. 1305º, do Código Civil), de forma criminosa. O art. 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa, que está na génese do art. 126º, nº 3, do Cód. de Proc. Penal, tem de ser interpretado de forma que previna a violação da substância desse direito fundamental mas não ao ponto de o mesmo constituir um abuso ou a descaracterização de outros, sendo irrelevante, por um lado, o facto de o sistema não ter sido comunicado à Comissão Nacional de Protecção de Dados (cf. fls. 162) ou, por outro, o presumido consentimento, dado o arguido ter sido advertido da sua existência com aviso escrito no interior do visado estabelecimento (como adiantou o seu proprietário)! (vide nesse sentido o Ac. da Relação do Porto, de 26.03.2008, e a diversa jurisprudência nele citada, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/24cd01e84ff51ff88
025741e0034cc7e?OpenDocument&Highlight=0,imagens,v%C3%ADdeo,prova).
Relevaram-se também, nos factos datados de 18.12.06, os depoimentos das testemunhas: D………., proprietário do estabelecimento que foi assaltado; E………., agente da G.N.R., que conhece o arguido desde pequeno, pois ele mora na zona do Posto da GNR, que o observou nas circunstâncias acima referenciadas.
Essa prova pessoal, em alguns aspectos discordante da versão do arguido, convenceu-nos pela sua coerência e segurança, nada havendo a apontar à sua credibilidade, conjugada que foi com a prova documental acima identificada.
Nesta matéria, considerámos irrelevante o depoimento da testemunha F………., agente da P.S.P., que não tinha conhecimento directo de nenhum facto relevante.
Já no que diz respeito aos factos ocorridos em 16.1.2007, relevamos o depoimento desta mesma testemunha, que se revelou coerente e seguro na reprodução da versão apurada. O arguido pretendeu pôr em causa, de forma presuntiva, a sua credibilidade, alegando a habitual teoria da perseguição ou da cabala policial, sem que no entanto tivesse alegado ou demonstrado qualquer facto que sustentasse tal afirmação.
Pelo contrário, a ligação emotiva existente entre a testemunha G………., e o arguido, seu companheiro, justifica que, em face da credibilidade inatacada daquela testemunha, se tivesse considerado não crível a sua versão (aliás diversa da que relatam as antecedentes criminais apurados!) em sustento da tese negatória do arguido.
No plano subjectivo, na falta de uma confissão ponderámos o iter criminis apurado.
Existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica (M. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Proc. Penal. vol. II, 1981, p. 292), os relativos ao aspecto subjectivo da conduta criminosa.
Em correcção e simultânea corroboração desta afirmação, diz-nos N. F. Malatesta (In “A Lógica das Provas em Matéria Criminal”, p. 172 e 173) que exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas passa-se a concluir pela sua existência.
Na prática, como refere este mesmo autor (Ibidem, p. 176 e 177.), afirma-se muitas vezes sem mais nada o elemento intencional mediante a simples prova do elemento material (...) O homem, ser racional, não obra sem dirigir a suas acções a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim.
No caso, as condutas objectivas apuradas permitem concluir pelo dolo assente.
No que diz respeito aos antecedentes criminais, transcrevemos o que consta do respectivo C.R.C..
Sobre a situação socioprofissional do arguido, transcrevemos o que o resulta dos relatórios sociais juntos.
Nos factos não provados, relevamos a falta de prova dos mesmos e o que em contrário afirmou a testemunha F………. .
Em especial, sobre os invocados na contestação, além da falta de sustento em prova produzida, o Tribunal considerou o resultado negativo do exame médico-legal psiquiátrico relatado a fls. 142, onde se afirma que o único traço psicopatológico de que padece o arguido é de personalidade anti-social, a qual não gera a invocada inimputabilidade”.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente na respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso em apreço, resulta das motivações do recurso e das respectivas conclusões que o recorrente pretende ver apreciadas as seguintes questões:
- a nulidade da prova obtida através de recolha de imagens por sistema de videovigilância;
- impugnação da matéria de facto provada;
- violação do princípio “in dubio pro reo”;
- da medida concreta da pena.
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Da nulidade da prova obtida por sistema de videovigilância:
Defende o recorrente que a utilização do sistema de videovigilância fora dos casos previstos na lei, constitui intromissão manifesta na vida privada e na contrição inaceitável do direito à imagem, pelo que as provas assim obtidas são nulas, porque proibidas, nos termos dos artºs. 126º nº 3 do C.P.P. e 26º da CRP.
Na esteira da doutrina alemã, as proibições de prova representam meios processuais de imposição da tutela de direitos materiais, constituindo limites à descoberta da verdade que têm em si subjacentes o fim de tutela de um direito. Nesta perspectiva as proibições de prova representam, portanto, «meios processuais de imposição do direito material» que visam «prevenir determinadas manifestações de danosidade social» e garantem «a integridade de bens jurídicos prevalentemente pessoais», como entre nós tem sido defendido pelo Professor Manuel da Costa Andrade[3].
Significa isto que o regime da legalidade da prova, ao estabelecer proibições de produção ou valoração da mesma, comprime o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Cód. Proc. Penal.
Dito de forma simples e sucinta: as proibições de prova assumem, na prática, um papel de tutela dos direitos fundamentais.
A nossa Constituição adoptou uma concepção dos direitos fundamentais diferente da concepção liberal que via naqueles direitos exclusivamente direitos subjectivos de defesa perante o Estado, considerando, nos termos do seu art. 18.º/1, estes direitos relevantes não apenas nas relações entre os particulares e o Estado, como também nas relações entre os particulares[4].
Sem se por em causa a sua eficácia vinculativa abrangendo poderes públicos e entidades privadas, nem todas as normas constitucionais atinentes a direitos, liberdades e garantias são, porém, exequíveis por si mesmas. Exemplo de normas daquele tipo que não são exequíveis por si mesmas, podemos encontrar no art. 26.º/2 e 35.º da CRP[5], garantias contra a utilização abusiva de informações.
É frequente a necessidade de recurso às soluções assumidas pelo legislador ordinário em concretização dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados para apreciar a conformidade da vinculação dos particulares aos mesmos.
Por outro lado, importa ainda reter que na vinculação das entidades privadas às normas constitucionais atinentes a direitos, liberdades e garantias não estão em causa «direitos que apenas podem ter por destinatário passivo o Estado, como as garantias de Direito e de processo penal» como ensina ainda o mesmo ilustra constitucionalista[6].
Transpondo estes ensinamentos para o processo penal («direito constitucional aplicado», como de há muito classificado), temos assim que as regras de proibição de prova constitucionalmente definidas ou concretizadas pelo legislador ordinário na legislação processual penal, mormente o CPP, servindo a tutela dos direitos fundamentais, dirigem-se em primeira mão às instâncias formais de controle, designadamente aos investigadores, ministério público e juiz de instrução. São eles, por exemplo, os destinatários expressamente eleitos das normas contidas no art. 34.ª/4 da CRP e 187.º e 188.º do CPP. São também eles, os destinatários da norma contida no art. 6.º da Lei 5/2002, de 11.1 que faz depender da prévia autorização judicial o registo de voz ou imagem sem consentimento do visado, para a investigação de determinados crimes.
No caso dos autos, as imagens recolhidas não o foram, porém, pelos órgãos de polícia criminal, antes por uma câmara de videovigilância particular.
Significará o que acima se deixou dito que os particulares não devem respeito pelo direito à imagem dos seus concidadãos? Certamente que não. Simplesmente, os seus deveres de respeito pelos referidos direitos pessoais constitucionalmente consagrados (art. 26.º da CRP) encontram-se concretizados na legislação ordinária, não decorrendo de nenhuma norma processual penal em particular. Estas visam disciplinar a investigação e o procedimento penal, indicando aos agentes de investigação e às autoridades judiciárias, bem como aos sujeitos processuais, os instrumentos de que se podem valer e os procedimentos que devem respeitar para sustentar a sua posição nos autos. Não regulam os direitos e deveres dos particulares.
Assim, ao prescrever a proibição de prova obtida mediante intromissão na vida privada sem o consentimento do respectivo titular, o art. 126.º/3 do CPP indica o dever dos investigadores e autoridades judiciárias respeitarem normativos que, excepcionalmente, e para prossecução de outros direitos ou fins constitucionalmente contemplados, designadamente a perseguição penal, autorizam restrições aos direitos fundamentais. É o caso de normativos como os já acima referidos arts. 187º CPP ou 6.º da Lei 5/2002, em concretização ainda do respeito pelos direitos fundamentais contemplados nos arts. 26.º e 34.º da CRP. No que respeita, por seu lado, a provas obtidas por particulares, o legislador remete-nos para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal como tutela do referido direito fundamental à privacidade.
Bem ilustrativo desta linha de concretização legislativa se revela o normativo inserto no art. 167.º do CPP ao fazer depender a validade da prova produzida por reproduções mecânicas da sua não ilicitude penal.
Aqui chegados cumpre verificar se a conduta traduzida na captação das imagens que o tribunal considerou, configura, ou não, um ilícito penal. É essa, com efeito, a apreciação que traz em si a resolução da questão suscitada neste recurso. A verificação da existência, ou não, de licença concedida pela CNPD para a colocação da(s) câmara(s) de videovigilância no estabelecimento comercial do denunciante, poderá, eventualmente, integrar desrespeito pela legislação de protecção de dados, designadamente a Lei nº 67/98, aplicável à videovigilância nos termos do seu art. 4.º nº 4. Mas não define a licitude ou ilicitude penal da recolha ou utilização das imagens.
Com efeito, de acordo com o art. 43º da citada lei, só o não cumprimento intencional das obrigações relativas à protecção de dados, designadamente a omissão das notificações ou os pedidos de autorização a que se referem os art.s 27º e 28º, é que constituem crime, já que uma conduta negligente traduzir-se-á apenas em contra-ordenação (prevista no art. 37º).
É o art. 199.º do Cód. Penal que tipifica o crime de gravações ou fotografias ilícitas. Ora, nos termos deste preceito deve ser punido «quem, sem consentimento, gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas (...) mesmo que licitamente produzidas». Nos termos do n.º 2 do referido artigo, no mesmo crime incorre ainda quem, «contra vontade fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou utilizar ou permitir que se utilizem fotografias ou filmes referidos na alínea anterior, mesmo que licitamente obtidos».
Tal como sublinhado por Costa Andrade[7] «o art. 199.º contém duas incriminações autónomas – a saber: gravações e fotografias ilícitas – preordenadas à tutela de dois bens jurídicos distintos: o direito à palavra e o direito à imagem. Trata-se de duas incriminações homólogas, mas não inteiramente sobreponíveis». E entre as diferenças que é possível encontrar nas duas incriminações em referência, destaca o ilustre Professor, desde logo, que a gravação da palavra é ilícita logo que obtida “sem consentimento”, enquanto que a fotografia só será ilícita desde que produzida “contra a vontade”, o que traduz uma redução significativa da dimensão da tutela penal do direito à imagem relativamente à dimensão conferida à tutela penal do direito à palavra, diferenciação que deve ser compreendida face à maior externalidade da imagem que torna este direito necessariamente mais incontornavelmente exposto à ofensa.
Ora, no caso em apreço, não é possível afirmar que a gravação da imagem do arguido foi efectuada contra a sua vontade, pois, como resulta da motivação de facto do acórdão recorrido (v. fls. 193), segundo declarações do respectivo proprietário, no interior do estabelecimento em causa, existe um aviso escrito advertindo o público da existência de sistema de videovigilância.
Por outro lado, como tem sido entendimento da jurisprudência não constitui crime a obtenção de imagens, mesmo sem consentimento do visado, sempre que exista justa causa para tal procedimento, designadamente quando sejam enquadradas em lugares públicos, visem a protecção de interesses públicos ou hajam ocorrido publicamente[8].
Aliás, o próprio art. 79º n.º 2 do Cód. Civil prevê a desnecessidade do consentimento da pessoa retratada quando assim justifiquem exigências de polícia ou de justiça, o que, naturalmente, também deverá ser considerado extensível ao direito penal, face à sua natureza fragmentária e ao seu princípio de intervenção mínima. Consagrando o princípio de que o ordenamento jurídico deve ser encarado no seu conjunto, dispõe o art. 31º, n.º 1, do Cód. Penal, que o facto não é criminalmente punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade. Significa isto que as normas de um ramo do direito que estabelecem a licitude de uma conduta têm reflexo no direito criminal, a ponto de, por exemplo, nunca poder haver responsabilidade penal por factos que sejam considerados lícitos do ponto de vista civil.
Aquela justa causa apenas será afastada pela inviolabilidade dos direitos humanos, designadamente a inadmissibilidade de atentados intoleráveis à liberdade, dignidade e integridade moral das pessoas, como seja o direito ao respeito pela sua vida privada.
Ora, a citada norma do Cód. Civil não só afasta a ilicitude dos art.s 199º do Cód. Penal e 167º do Cód. Proc. Penal, como também não é inconstitucional, uma vez que, embora comprima o direito à reserva da vida privada, não o faz de uma forma de todo intolerável, como parece evidente à luz do mais elementar bom senso[9].
Assim, tem a jurisprudência, de um modo geral, entendido não ser proibida a prova obtida por sistemas de videovigilância colocados em locais públicos, com a finalidade de proteger a vida, a integridade física, o património dos respectivos proprietários ou dos próprios clientes perante furtos ou roubos, por as imagens não serem captadas em locais privados, total ou parcialmente restritos, nos quais, segundo as concepções morais vigentes, uma pessoa não deve ser retratada, justificando-se, pois, essa excepção aos métodos proibidos de prova por razões de polícia ou de justiça.
Como se refere no voto de vencido lavrado pelo Des. Mário B. Morgado no Ac. R.Lx. de 03.05.2006[10] “Afigura-se-nos que a captação de imagens em causa não integra o crime p. e p. pelo art. 199º, nº 2, a), CP: a captação de imagem dirigida a provar factos ilícitos em locais públicos ou no local de trabalho deve considerar-se desprovida de tipicidade (aquele tipo criminal deve sofrer uma redução da área de tutela de sentido vitimodogmático) ou, pelo menos, de ilicitude (com base, segundo as diferentes posições doutrinárias, em “quase legítima defesa”, legítima defesa, direito de necessidade, prossecução de interesses legítimos ou num critério geral de interesses) – cfr. sobre esta problemática Costa Andrade, Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 834-840, e Sobre as proibições de prova em processo penal, 242-272. Também não se descortina no caso vertente qualquer violação da integridade física ou moral do arguido ou ofensa da sua dignidade/intimidade – como se sabe, nem toda a lesão de um direito de personalidade viola a dignidade humana”.
Por outro lado, a obtenção de imagens nas circunstâncias em apreço também não constitui qualquer crime de devassa contra a vida privada (previsto no art. 192º) ou de devassa por meio de informática (do art. 193º, ambos do Cód. Penal), uma vez que com estes ilícitos pretende-se tutelar apenas o núcleo duro da vida privada e mais sensível de cada pessoa, como seja a intimidade, a sexualidade, a saúde, a vida particular e familiar mais restrita, que se pretende reservada e fora do conhecimento das outras pessoas, o que não é manifestamente o caso da situação que nos ocupa. Com efeito, as imagens do arguido não foram registadas no contexto da esfera privada e íntima deste, nem foram captadas às ocultas, tanto mais que a existência das câmaras de videovigilância estava devidamente assinalada através da aposição dos competentes dísticos.
Conclui-se assim que as imagens captadas em circunstâncias e condições semelhantes àquelas em que foram recolhidos os fotogramas juntos aos autos e examinados em audiência, não correspondem a qualquer método proibido de prova, tanto mais que apenas foram obtidas com o fim de identificação, confinando-se, pois, à estrita ligação à identidade do titular do direito, o que exclui qualquer exposição arbitrária da imagem e muito menos qualquer manipulação da mesma.
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Da alegada impugnação da matéria de facto:
Defende o recorrente que não houve produção de qualquer prova directa sobre a autoria dos factos pelo arguido e que o tribunal apenas teve em linha de conta o depoimento das testemunhas D………. (ofendido), E………. (agente da GNR), F………. (agente da PSP), não tendo valorado o depoimento do arguido e da testemunha de defesa G………. .
O que se extrai da motivação de recurso é que o recorrente pretende afinal impugnar a valoração que o tribunal efectuou de toda a prova produzida e a consequência a que chegou, após análise dessa prova.
Contudo, esquece o recorrente que a regra geral de que, na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, o tribunal é livre de formar a sua convicção, encontra-se consagrada no art. 127º do C.P.P.
Assim, o juiz que em primeira instância julga, goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, dentro da globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova. Nada obsta, pois, que, ao fazê-lo, se apoie num certo conjunto de provas e, do mesmo passo, pretira outras às quais não reconheça suporte de credibilidade.
É na audiência de julgamento que este princípio assume especial relevância, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355º do C.P.P., pois é aí o local de eleição onde existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na recepção directa de prova[11]. “Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”[12].
No respeito destes princípios, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum[13].
É que a livre apreciação da prova “não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica”[14].
Se a apreciação da prova é discricionária, esta discricionariedade tem limites, decorrentes do dever de perseguir a chamada "verdade material", de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo.
A efectivação desse controlo implica que a apreciação da prova esteja sujeita ao dever de fundamentação que, no âmbito do processo penal e como já foi referido, constitui uma das garantias constitucionais de defesa do arguido consagradas no nº 1 do art. 32º da C.R.P.
É óbvio que, como se escreveu no Ac. do Tribunal Constitucional nº 165/96 de 19/11[15], o julgador ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras de experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo. Também segundo Germano Marques da Silva[16] “a livre valoração da prova deve ser racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão. E, apesar da objectivação da livre convicção do julgador “esta há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável portanto capaz de se impor aos outros.”
É também neste sentido que Figueiredo Dias afirma[17]:“...a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais –, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando (....) o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável”.
Assim se explica que a fundamentação da decisão de facto, por vezes de difícil concretização, seja essencial para que o tribunal de recurso possa alterar ou confirmar a decisão da matéria de facto nos casos, como este, em que dela há recurso pois, nos termos do princípio da livre apreciação da prova, não está impedido de, com base nas provas utilizadas pela 1ª instância, concluir por forma diversa.
Contudo, é o Tribunal de 1ª Instância o que se encontra em melhor posição para avaliar a prova testemunhal carreada para os autos e valorar os depoimentos, pois ouve-os directamente da boca das testemunhas, vê as suas reacções e comportamentos perante o que lhes é perguntado, enquanto que ao Tribunal da Relação faltam esses dois princípios essenciais – o da oralidade e da imediação –, já que o registo da prova “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”[18].
No caso, a decisão recorrida, mostra-se bem fundamentada, indicando, com precisão e clareza, a razão pela qual foi dada credibilidade às declarações das testemunhas arroladas pela acusação, conjugada com os restantes documentos juntos aos autos, designadamente os fotogramas extraídos do sistema de videovigilância e as razões porque não considerou credível a negação do arguido/recorrente bem como o depoimento da testemunha G………., ressaltando todo o processo lógico de convicção que permitiu dar como provados os factos impugnados. Isto é, a decisão recorrida indica as provas em que se baseou para dar como provados os factos e faz o seu exame crítico, dando a conhecer a este Tribunal as razões pelas quais, apesar de o arguido os ter negado, os deu como provados.
E o raciocínio que esteve na base da convicção dos Juízes que integraram o Tribunal Colectivo afigura-se-nos lógico e racional, não violando as regras da experiência comum na apreciação da prova.
Aliás, tendo-se procedido à audição da prova produzida em audiência e documentada em suporte digital, não vislumbramos que o Tribunal Colectivo tenha violado as regras da livre apreciação da prova e da experiência comum, na análise dos diversos depoimentos prestados.
Improcede, assim, nessa parte o fundamento invocado pelo recorrente.
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Da violação do princípio “in dubio pro reo”:
Alega o recorrente que a prova produzida é insuficiente para lhe atribuir a autoria dos crimes dos autos pelo que, ao não ter aplicado o princípio in dubio pro reo, o Tribunal a quo violou o preceituado no artº 32º nº 2 da CRP:
Por outro lado, com base no mesmo princípio, o tribunal deveria ter condenado o arguido pelo crime de furto simples p. e p. no artº 203º do C.Penal, por não se ter conseguido apurar com rigor o valor da quantia furtada.
Antes de mais, importa realçar que o princípio “in dubio pro reo”, não significa dar relevância às dúvidas que o recorrente pretexta na decisão ou na sua divergente interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, pois que terá também de resultar manifesto no texto da decisão.
Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
É à luz deste princípio de investigação que recai sobre o juiz que pode acontecer que, pese embora a busca de todos os factos relevantes (quer sobre o facto criminoso – em todos os seus elementos objectivos e subjectivos-, quer sobre a personalidade do arguido, quer quanto à pena) para decisão, o juiz não consiga ultrapassar a dúvida razoável de modo a considerar o facto como provado, com a certeza que se exige para tal; desta forma e porque não pode haver um “non liquet”, tem de valorar o facto a favor do arguido.
Esta dúvida a favor do arguido, é corolário do princípio da presunção de inocência. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador; o juiz terá de expressar que não logrou esclarecer, em todas as suas particularidades juridicamente relevantes, um dado substracto de facto; não já quando o juiz se convence de uma comprovação alternativa dos factos e pode encontrar um enquadramento factual num quadro constitucional e processual jurídico-penalmente aceite, desde logo não incorrendo no erro notório na apreciação da prova, que não resulta do texto da decisão.
Não se constata pois, na decisão, a ofensa deste princípio, em desfavor do recorrente/arguido, com excepção da situação que adiante abordaremos.
Alega o recorrente que o tribunal deveria tê-lo condenado pelo crime de furto simples p. e p. no artº 203º do C.Penal, por não se ter conseguido apurar com rigor o valor da quantia furtada.
Vejamos:
O crime de furto integra-se na categoria dos crimes materiais – a cuja tipicidade interessa o resultado – condicionado à lesão do património de outrem, pelo que não se pode falar em furto quando não há uma efectiva diminuição do património do lesado.
O valor patrimonial da coisa constitui no dizer o Prof. Faria Costa[19], um elemento implícito do tipo legal de crime de furto. Se a coisa objecto do crime de furto tem de ter um valor patrimonial, por outro lado, este tem que ultrapassar um limiar mínimo para que a sua protecção enquanto coisa alheia, ascenda à dignidade penal.
O tipo legal de crime enunciado no artigo 203º do Código Penal exige, para a sua verificação, uma efectiva lesão no património do lesado, devendo necessariamente ter algum valor, embora mínimo, mas não desprezível, de modo a que sua subtracção cause prejuízo à pessoa lesada[20].
Entendimento que tem subjacente a ideia de que a coisa subtraída deve representar para o dono - senão um valor reduzível a dinheiro - pelo menos uma utilidade, valor de uso, seja qual for, de modo que possa ser considerada como integrante no seu património.
A punição do crime de furto está relacionada com o valor do objecto subtraído.
O valor da coisa furtada determina, quer a qualificação dos factos como de furto simples, de furto qualificado em 1º ou em 2º grau, ou de furto simples por desqualificado, quer, as inerentes molduras penais abstractas (artºs. 203º e 204º do Cód. Penal).
Assim, a dúvida sobre se o valor do objecto de furto é ou não diminuto, porque se refere a um elemento de facto, tem de solucionar-se a favor do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo, considerando-se ser esse valor diminuto e, em consequência, qualificar-se os factos como furto simples. Neste sentido decidiu o STJ em acórdão de 12/11/1997[21], e também, em relação a crime de roubo, em acórdão de 17/12/1997, proferido no processo nº 1037/97, ainda que com anotação discordante do Conselheiro Simas Santos[22].
Sobre a matéria escreveu o Prof. Figueiredo Dias: “ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude (…), de exclusão da culpa (…) e de exclusão da pena (…), bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos, a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado prova completa da circunstância favorável ao arguido”[23].
Com a previsão contida no nº. 4 do artigo 204º, o que acontece é que se considera que o comportamento - em princípio, susceptível de ser enquadrado como adequada expressão de qualificação - deve ser degenerado para a integração no crime matriz – o furto simples (de salientar que o valor diminuto a que alude o nº 4 do preceito, é aquele que não excede uma unidade de conta avaliada no momento da prática do facto – artº 202º al. c) do Cód. Penal)
Assim para se afirmar o preenchimento das diversas previsões atinentes ao crime de furto, importa saber qual o valor do objecto subtraído para se incluir no valor elevado ou consideravelmente elevado ou diminuto e assim estar preenchido o tipo de furto qualificado, em 1º e ou 2º grau (no caso de valor elevado ou consideravelmente elevado) ou perante um crime de furto simples (no caso de valor inferior a elevado ou quando existindo outras circunstâncias qualificativas, o valor for diminuto).
Donde, para a verificação do tipo legal de furto qualificado será ainda necessário, a acrescer aos elementos constitutivos do crime de furto simples, matriz, a verificação de uma qualquer das circunstâncias previstas no elenco do nº. 1 ou do nº. 2 do artigo 204º C Penal e que o valor da coisa exceda o valor da UC, reportado ao momento da prática dos factos.
Se o valor da coisa não exceder o valor da UC, não se pode ter como preenchido o tipo legal qualificado, apenas e tão só, o da matriz, referencial, furto simples.
Em apertada conclusão, quando no nº. 4 do artigo 204º C Penal, se dispõe que, “não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor”, tal deve ser lido e interpretado como constando, implicitamente de qualquer das alíneas – com excepção das alíneas a) – dos nºs. 1 e 2 do artigo 204º, a referência “desde que o valor do objecto da apropriação seja de valor superior à UC”.
No caso em apreço, os factos foram praticados em 2006, ano em que a UC correspondia a € 89,00 euros.
Ora, da matéria de facto provada, resulta que, após ter penetrado no estabelecimento do ofendido, o arguido dirigiu-se à caixa registadora e retirou cerca de € 100,00 em dinheiro, abandonando o local.
A circunstância de se dizer “cerca de“, corresponde naturalmente a alguma indeterminação, tanto podendo referir-se a um valor superior como inferior aos aludidos € 100,00. Dada a proximidade deste valor com o montante da UC à data dos factos (€ 89,00), a incerteza quanto à concreta quantia subtraída pelo arguido (sendo certo que sobre este não impendia o ónus de prova quanto a qualquer dos elementos do ilícito constante da acusação), atentas as considerações supra, terá de solucionar-se a favor do arguido, em obediência ao citado princípio “in dubio pro reo”.
Conclui-se assim que não pode o arguido ser condenado pela prática do crime – que o MP lhe imputa - de furto qualificado p. e p. no nº. 2 al. e) do artigo 204º do Cód. Penal, que tem como pressuposto que o valor seja superior a 1 UC, donde, se há-de considerar como verificada a causa de desqualificação prevista no nº. 4 da mesma norma.
*
Da medida concreta da pena:
Insurge-se o recorrente pelo facto de o tribunal recorrido não ter atenuado especialmente a pena ao abrigo do regime previsto no Dec-Lei nº 401/82 de 23,09, substituindo-a por prestação de trabalho a favor da comunidade e não ter procedido à suspensão da execução da pena.
O regime especial para jovens previsto no Dec-Lei n.º 401/82, de 23.09 constitui um regime de favor, conforme consta da parte preambular do respectivo diploma, tendo em vista a instituição de um direito mais reeducador do que sancionador, sem esquecer que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e de exigir, sempre que a pena prevista seja a de prisão, que esta possa ser especialmente atenuada, nos termos gerais, se para tanto concorrerem sérias razões no sentido de quem assim, se facilitará aquela reinserção.
Por outro lado, do preâmbulo do diploma em apreço também consta que as medidas no mesmo propostas devem ceder quando isso se torne necessário para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade.
Daqui decorre que a atenuação especial da pena só pode e deve ser aplicada quando o tribunal tiver sérias razões para crer que da atenuação resultam vantagens para a reinserção social do condenado, tal qual textua o art.4º da lei em questão, bem como quando não colida com a adequada defesa da comunidade e a prevenção da criminalidade.
No caso sub judicio, conquanto estejamos perante delinquente jovem, concretamente com 16 anos de idade à data dos factos, a verdade é que o elevado grau de ilicitude daqueles factos, a pluralidade dos mesmos, a intensidade do dolo e a personalidade reveladora de grande desvio de valores, o abandono escolar precoce e a recusa em assumir responsabilidades, designadamente através do exercício de uma actividade profissional, antes adoptando um estilo de vida ocioso e desregrado, o consumo de estupefacientes aliado a comportamentos agressivos, a circunstância de, mesmo em reclusão, já ter sido alvo de sancionamento disciplinar, apontam no sentido de uma acrescida necessidade de prevenção, geral e especial.
Ora, tal necessidade mostra-se incompatível com a utilização do instituto da atenuação especial da pena, a significar que bem andou o tribunal a quo ao afastar a aplicação do regime especial do DL n.º 401/82.
Decidida esta questão, vejamos se as penas parcelares cominadas ao recorrente foram ou não correctamente determinadas, tendo-se por certo que, relativamente aos crimes puníveis, em alternativa, com pena privativa e pena não privativa da liberdade, atentas as necessidades de prevenção, geral e especial, a preferência legal constante do art. 70º do Código Penal, foi bem afastada.
A determinação da medida da pena faz-se com recurso ao critério geral estabelecido no art.71º, do Código Penal, tendo em vista as finalidades próprias das respostas punitivas em sede de Direito Penal, quais sejam a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – art. 40º, n.º 1 –, sem esquecer, obviamente, que a culpa constitui um limite inultrapassável da medida da pena – art. 40º, n.º 2.
Com efeito, a partir da revisão operada em 1995 ao Código Penal, a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena, no sentido de que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que dentro desse limite máximo a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
É este o critério da lei fundamental – art.18º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995[24].
Como refere Anabela Rodrigues[25] o art.40º, do Código Penal, após a revisão de 1995, condensa em três proposições fundamentais um programa político-criminal – a de que o direito penal é um direito de protecção dos bens jurídicos, de que a culpa é tão-só limite da pena, mas não seu fundamento, e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena, de onde resulta que: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas».
Daqui decorre que o juiz pode impor qualquer pena que se situe dentro do limite máximo da culpa, isto é, que não ultrapasse a medida da culpa, elegendo em cada caso aquela pena que se lhe afigure mais conveniente, tendo em vista os fins das penas, com apelo primordial à tutela necessária dos bens jurídico-penais do caso concreto, tutela dos bens jurídicos não, obviamente, num sentido retrospectivo, face a um facto já verificado, mas com significado prospectivo, correctamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; neste sentido sendo uma razoável forma de expressão afirmar-se como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou de prevenção de integração, dando-se assim conteúdo ao exacto princípio da necessidade da pena que o art.18º, n.º 2, da CRP, consagra[26].
Quanto à pena adequada à culpabilidade, isto é, consonante com a culpa revelada – máximo inultrapassável –, certo é dever corresponder à sanção que o agente do crime merece, ou seja, deve corresponder à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade.
Há que ter em atenção, porém, que aquilo que é “merecido” não é algo preciso, resultante de uma concepção metafísica da culpabilidade, mas sim o resultado de um processo psicológico valorativo mutável, de uma valoração da comunidade que não pode determinar-se com uma certeza absoluta, mas antes a partir da realidade empírica e dentro de uma certa margem de liberdade, tendo em vista que a pena adequada à culpa não tem sentido em si mesma, mas sim como instrumento ao serviço de um fim político-social, pelo que a pena adequada à culpa é aquela que seja aceite pela comunidade como justa, contribuindo assim para a estabilização da consciência jurídica geral[27].
Do quadro fáctico apurado verifica-se estarmos perante uma pluralidade de factos delituosos, um deles de gravidade acentuada – condução perigosa de veículo rodoviário.
Todos os factos foram perpetrados com dolo directo.
Por outro lado, o seu efeito externo é significativo.
O recorrente já foi objecto de censura jurídico-penal por diversas vezes, foi-lhe aplicada medida tutelar educativa que nunca chegou a ser cumprida, esteve preso preventivamente durante cinco meses, tendo-se evadido do estabelecimento prisional e sendo recapturado decorridos quatro meses. Cumpriu 93 dias de prisão subsidiária por crime de condução sem habilitação legal.
De realçar porém, que à data dos factos pelos quais deve ser censurado nestes autos, o arguido ainda não sofrera qualquer condenação criminal.
No sector atenuativo não se verifica qualquer circunstância susceptível de mitigar a responsabilidade do recorrente, sendo certo que em audiência, não assumiu a responsabilidade pela prática dos factos que lhe eram imputados.
Assim sendo e, atendendo à operada alteração do enquadramento jurídico no que respeita ao crime de furto – que, com a referida desqualificação, passou a integrar um crime de furto simples p. e p. no artº 203º do Cód. Penal – e à respectiva moldura penal (que corresponde a prisão até 3 anos ou multa), sendo certo que considerámos correcto o afastamento da opção pela pena não detentiva, entendemos como adequada e suficiente a pena de um ano de prisão, relativamente ao ilícito em causa.
Ponderando as circunstâncias atrás referidas e tendo em atenção as condições pessoais do recorrente, não nos merecem qualquer censura as restantes penas parcelares aplicadas, uma vez que, situando-se dentro da medida da culpa, satisfazem as exigências de prevenção geral, mostrando-se consentâneas com as necessidades de prevenção especial.
Quanto à pena conjunta cominada, a qual tem por limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas e por limite mínimo a mais elevada das penas parcelares fixada – art.77º, n.º 2, do Código Penal –, deve ser encontrada em função do critério geral atrás consignado e do critério especial previsto no art.77º, n.º1, ou seja, segundo os ensinamentos de Figueiredo Dias[28], «como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique», relevando, na avaliação da personalidade – unitária – do agente, «sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade», sem esquecer o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente, sendo que só no caso de tendência criminosa se deverá atribuir à pluralidade de crimes efeito agravante dentro da moldura da pena conjunta.
Tendo em vista as considerações feitas é evidente que a pena conjunta cominada pelo tribunal – 3 anos e seis meses – deve sofrer agora a redução necessária decorrente da alteração da qualificação do crime de furto e da pena parcelar correspondente.
Ponderando os referidos factores, em especial os critérios fixados no artº 77º do C.Penal, bem como os limites mínimo e máximo do concurso – entre um ano e seis meses e três anos e dois meses de prisão – entende-se como adequada a pena única de dois anos e seis meses de prisão.
A medida da pena imposta impede que a mesma seja substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, uma vez que, em conformidade com o disposto no artº 58º do Cód. Penal, esta pena de substituição apenas poderá ser aplicada nos casos em que a pena concreta não ultrapasse os dois anos de prisão.
Poderá o arguido beneficiar do regime de suspensão de execução da pena, nos termos do artº 50º do Cód. Penal, como subsidiariamente pretende?
Em conformidade com o disposto no artº 50º do Cód. Penal, só há lugar à suspensão da execução de um pena de prisão, se a simples censura do facto e a ameaça daquela pena forem bastantes para afastar o arguido da criminalidade, satisfazendo simultaneamente as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
Para o efeito será de atender que a pena de prisão suspensa, sujeita ou não a certas condições ou obrigações, é a reacção penal por excelência que exprime um juízo de desvalor ético-social e que não só antevê, como propicia ao condenado, a sua reintegração na sociedade, que é um dos vectores dos fins das penas.
Porém, outros dos seus vectores é a protecção dos bens jurídicos violados e, naturalmente, a protecção da própria vítima e da sociedade em relação aos agentes do crime, de modo que, responsabilizando suficientemente estes últimos, se possa esperar que os mesmos não venham a adoptar novas condutas desviantes.
Será pois nesta dupla perspectiva que deverá incidir um juízo de prognose favorável à suspensão da correspondente pena de prisão, sendo certo que para o efeito o seu ponto de partida será sempre o momento desta decisão e não da prática do crime[29].
A jurisprudência tem assim vindo a acentuar, que a suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido condenado, em que na sua base está sempre um juízo de prognose social favorável ao agente, baseada num risco de prudência, em que se deverá “reflectir sobre a personalidade do agente, sobre as condições da sua vida, sobre a sua conduta ante et post crimen e sobre o circunstancialismo envolvente da infracção.
Como se salientou no Ac. do STJ de 08.05.97 (Proc. nº 1293/96) “factor essencial à filosofia do instituto da suspensão da execução da pena é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir”.
Ponto é que as exigências mínimas de prevenção geral fiquem também satisfeitas com a aplicação da pena de substituição. “O sentido destas é, aliás, nesta sede, o de se imporem como limite às exigências de prevenção especial, constituindo então o conteúdo mínimo de prevenção geral de integração de que se não pode prescindir para que não sejam, em último recurso, defraudadas as expectativas comunitárias relativamente à tutela dos bens jurídicos”[30].
Na decisão recorrida escreveu-se (transcrição): «Ponderando que o arguido não aparenta, sequer, qualquer interiorização dos valores ofendidos e vontade de alterar o seu comportamento desviante, nada havendo que tenha alterado a sua conduta nos últimos tempos que não a prisão, julgamos que neste caso não é viável a prognose preconizada pelo artº 50º do Cód. Penal (ainda que na actual redacção), razão pela qual não se suspende a execução da pena aplicada».
Se em tese geral não temos dúvidas que a citada formulação é absolutamente correcta, não podemos esquecer que na aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão, outros factores se afiguram também (e não menos) relevantes.
Os factos a que os presentes autos respeitam ocorreram em 18.12.2006 e 16.01.2007. Nessa ocasião, o arguido não fora ainda alvo de qualquer juízo de censura penal, com excepção de uma medida tutelar educativa, cujos contornos se desconhecem.
Os ilícitos penais que constam do seu registo criminal e que foram reproduzidos no nº 27 da matéria de facto provada da sentença recorrida, tiveram lugar em datas posteriores, tendo-lhe sido aplicadas penas de multa.
A prisão preventiva a que esteve sujeito no período compreendido entre 12.03.07 e 11.08.2007 foi comutada para termo de identidade e residência.
Serve esta breve descrição para concluir que, caso o arguido tivesse sido tempestivamente julgado pelos factos que deram origem a estes autos, teria eventualmente sido tratado com uma ponderação diversa de factores, antes de mais por (nessa altura) ser um primo-delinquente.
Como muito bem se escreve no recente acórdão desta Relação de 02.12.2009[31] «Poderá dizer-se que a questão da suspensão da execução da pena tem por base finalidades exclusivamente preventivas, não finalidades da culpa. E, nesta perspectiva, seria irrelevante, se os factos são ou não contemporâneos desta apreciação. Ou seja, na formulação do prognóstico favorável com vista à suspensão da pena, o tribunal deverá reportar-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto…». Se assim deve ser em tese geral, temos de excepcionar esta mesma regra com aquelas situações que se afiguram exactamente diferentes da normalidade. E a presente situação encerra contornos próprios quanto ao momento temporal e de oportunidade da realização do julgamento pelos factos em causa, conforme já se anotou.
Dizer, afirmar neste momento que não faz qualquer sentido aplicar o instituto da suspensão da pena ao arguido quanto a uns factos ocorridos em 2005, por factos se não da mesma natureza, pelo menos simulares e quiçá menos graves que outros praticados posteriormente, em 2008, em que a pena de prisão veio a ser suspensa, seria (…) retirar toda a legitimidade e bondade das decisões na aposta feita quanto à recuperação do recorrente, no prognóstico favorável então feito.
É possível que o resultado final venha a ser esse. Mas, se assim vier a ser, não será, com certeza, por causa da prática dos factos em 2005! Será por factos que venham ainda a ser praticados, durante o período da suspensão».
A situação referida no aresto citado tem contornos muito semelhantes à situação sub judice. O recorrente foi alvo de penas de multa e já esteve preso preventivamente, mas tais condenações e medida de coacção respeitam a factos posteriores aos que ora nos ocupam, sendo certo que a todos eles não será estranho o facto de o arguido ser consumidor de estupefacientes e não beneficiar de um forte ascendente parental (como resulta aliás do teor do relatório social junto aos autos).
Actualmente, o arguido beneficia de acompanhamento especializado de Psiquiatria, de Psicologia e de Clínica Geral, procurando superar a problemática da toxicodependência.
Por outro lado, é certo que, como se diz na decisão recorrida, “o arguido não aparenta qualquer interiorização dos valores ofendidos e vontade de alterar o seu comportamento desviante”. Ou seja, não demonstrou arrependimento, o que pressupunha a confissão da prática dos factos. Porém, não podemos esquecer que, na maioria das vezes, essa atitude corresponde a uma estratégia, aliás legítima, da defesa.
Como se disse, a suspensão da pena é uma medida com um cariz pedagógico e reeducativo, visando proporcionar ao delinquente condições ao prosseguimento de uma vida à margem da criminalidade e exigir-lhe que passe a pautar o seu comportamento pelos padrões ético sociais dominantes.
Subjacente à aplicação desta medida existe um juízo favorável a que a socialização do arguido, em liberdade, possa ser alcançada. Mas este juízo deve assentar em factos que, com suficiente probabilidade, indiciem que o arguido assumirá o tal comportamento adequado ao não cometimento de novos ilícitos.
O acompanhamento médico especializado a que o arguido se encontra sujeito para ultrapassar a problemática da toxicodependência, indicia que pretende enveredar por uma nova vida, adaptando o seu comportamento às exigências da vida em sociedade, sendo certo que uma pena de prisão efectiva, nesta idade, poderá constituir um factor de dessocialização irreversível.
Acresce que, como salienta o Prof. Figueiredo Dias «a conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» assenta, obviamente, no pressuposto de que, por um lado, o que está em causa não é qualquer «certeza», mas, tão-só, a «esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda» e de que, por outro, «o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco – digamos, fundado e calculado - sobre a manutenção do agente em liberdade»[32].
Não obstante o “risco prudente” que se assume, através da suspensão da execução da pena pelo período correspondente àquela, a juventude do arguido e o seu passado recente impõem que essa pena substitutiva fique subordinada a regime de prova, de acordo com plano de reinserção a elaborar pela equipa da DGRS da sua área de residência, a qual depois de judicialmente homologada, fará parte do presente acórdão, e que integrará a obrigação de o arguido continuar o acompanhamento médico atrás referido, com vista a superar a toxicodependência, não acompanhar indivíduos ou frequentar locais habitualmente frequentados por toxicodependentes e frequentar um curso de formação profissional – artºs. 50º, 52º nº 1 al. b) e 2 al d) e 53º do Cód. Penal.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso, e, em consequência:
1. proceder à convolação do crime de furto qualificado para um crime de furto simples p. e p. nos artºs. 203º, 204º nº 2 al. e) e nº 4 do Cód. Penal alterando a pena parcelar respectiva para um ano de prisão;
2. efectuar o cúmulo jurídico da pena referida em 1. com as restantes penas parcelares impostas na decisão recorrida, condenando o recorrente na pena única de dois anos e seis meses de prisão;
3. suspender a execução da pena de prisão pelo período de dois anos e seis meses, a contar do trânsito desta decisão, subordinando porém a referida suspensão a regime de prova, de acordo com plano de reinserção a elaborar pela equipa da DGRS da sua área de residência, a qual depois de judicialmente homologada, fará parte do presente acórdão, e que integrará a obrigação de o arguido continuar o acompanhamento médico acima referido, com vista a superar a toxicodependência, não acompanhar indivíduos ou frequentar locais habitualmente frequentados por toxicodependentes e frequentar um curso de formação profissional – artºs. 50º, 52º nº 1 al. b) e 2 al d) e 53º do Cód. Penal.
Sem tributação.
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Porto, 03 de Fevereiro de 2010
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
Lígia Ferreira Sarmento Figueiredo

__________________________
[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] In “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra Editora, 1992, pág. 83.
[4] V. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, em anotação ao art. 18.º.
[5] Neste sentido, v. Jorge Miranda, in Constituição da República Portuguesa Anotada, de Jorge Miranda e Rui de Medeiros, Coimbra Editora, 2005, em anotação ao art. 18.º.
[6] Cfr., ob. cit, pág. 156.
[7] In Comentário Conimbricense do Código Penal, em anotação ao artº 199º.
[8] V. Ac. R.Coimbra de 17.04.2002, in CJ, Tomo III, pág. 40 e Ac. R.Lx de 28.11.2001, in CJ, Tomo V, pág. 138.
[9] Cfr., neste sentido, o Ac. desta Relação de 26.03.2008, relatado pelo Des. Joaquim Gomes, disponível em www.dgsi.pt, e que aqui seguiremos de perto, bem como o Ac. de 14.10.2009, também desta Relação, de que foi relator o Des. Ângelo Morais, citando decisão proferida pela 1ª instância; v. ainda o Ac. do STJ de 20.06.2001, in CJAcs. STJ, Ano IX, Tomo II, pág. 226.
[10] Disponível no site www.dgsi.pt
[11] Como se refere no Ac. STJ de 20/9/2005, www.dgsi.pt, “a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos". Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe”.
[12] Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, págs. 233-234.
[13] cfr. Ac. RC de 6/3/02, CJ, ano XXVII, t. II, pág. 44. Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”
[14] cfr. CPP de Maia Gonçalves, 12ª ed., pág. 339.
[15] In BMJ 461/93.
[16] In Curso de Processo Penal - Vol. II, pág. 132
[17] In Direito Processual Penal, 1° Vol., Coimbra Editora, 1974, pág. 205.
[18] Cfr. Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, pág. 258.
[19] In Comentário Conimbricense, Vol. II, pág. 44.
[20] Cfr. Maia Gonçalves, in Cód. Penal Português, 17ª edª., pág. 674.
[21] In CJAcs STJ, 1997, Tomo III, pág. 232.
[22] Na RPCC, Julho-Setembro de 1998, págs. 459 e ss.
[23] In “Direito Processual Penal”, Vol I, 1974, pág. 215.
[24] V. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal (2001), 104/111
[25] In Revista Portuguesa de Ciência Criminal, “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, Ano 12, n.º 2 Abril-Junho de 2002, 147/182.
[26] Cfr. Figueiredo Dias, ibidem, 105/106.
[27] V. Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevencion En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.
[28] In Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime (1993), 290/292.
[29] V., neste sentido, o Ac. do STJ de 24.05.2001, CJ Acs STJ, Tomo II,pág. 201.
[30] V. Ac. do STJ de 28.07.2007, Proc. nº 1488/07, rel. Consº. Rodrigues da Costa, louvando-se na lição de Figueiredo Dias, supra cit..
[31] Relatado pelo Des. Luís Augusto Teixeira e disponível no site www.dgsi.pt
[32] Figueiredo Dias, ob. cit. § 521.