Decisão Texto Integral: | Processo n.º 2159/18.1T8OVR-A.P1
Recorrente – AA (na qualidade de acompanhante de BB)
Recorrido – Ministério Público
Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Jorge Martins Ribeiro e Fátima Andrade.
Acordam na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:
I - Relatório
AA, na qualidade de acompanhante do beneficiário BB, seu filho, veio requerer autorização judicial para outorga de uma escritura pública de permuta, tendo feito (inicialmente) o seguinte pedido: “Requerente, na qualidade de Acompanhante de BB e em nome e representação deste, outorgue Escritura de Permuta mediante a qual o Acompanhado cede a sua metade do imóvel melhor identificado no art. 2.º do presente requerimento e, em troca, recebe o direito de uso e habitação vitalício no imóvel e a quantia de €12.500,00 por meio de cheque bancário à ordem do Acompanhado, devendo a referida escritura ter lugar no prazo de 60 dias a contar da data do trânsito em julgado da sentença.”
Alegou, para o efeito, que ao celebrar escritura de permuta mediante a qual o acompanhado cede a sua metade da propriedade do imóvel no valor de 62.500,00€, recebe, em troca, o direito de uso e habitação vitalício no imóvel, no valor de 50.000,00€ e ainda a quantia de 12.500,00€ (correspondente à diferença de valores entre a metade da propriedade e o valor do direito ao uso e habitação), o acompanhado tem a garantia de continuar a habitar o imóvel onde sempre viveu.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 1014, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), não tendo havido oposição.
O Ministério Público, em sede de contestação, defendeu a improcedência do pedido de autorização. Em síntese, considerou que: “- Do requerimento inicial não nos é possível aferir da real vantagem da alegada permuta (...) O direito de uso e habitação é um direito real que permite apenas que, quem não é proprietário de um bem, o utilize. Enquanto que o direito de usufruto, por exemplo, é um direito que permite ao seu titular que, desde que respeite o fim económico a que o bem em causa se destina, se possa comportar exatamente como se fosse proprietário do bem (...) cabe ainda referir que o direito de uso e habitação extingue-se pelo decurso do tempo (...) o negócio jurídico pretendido não acautela os interesses do Acompanhado, pois a alienação do direito de propriedade do Acompanhado sobre o prédio comum, caso venha a julgar-se necessária para satisfazer as suas necessidades ou caso a outra comproprietária queira fazer cessar a compropriedade, poderá sempre ser mais vantajosa que o mero uso e habitação do prédio urbano (...) Em caso de alienação, caso se julgue necessária, o Acompanhado poderá com os rendimentos obtidos proceder ao pagamento de despesas de saúde, de ERPI, etc”.
Por requerimento de 09.06.2023, a acompanhante veio alterar o pedido (em traços gerais substituir direito de uso e habitação, por direito de usufruto vitalício), que, agora, assim formulou: “seja concedida a competente autorização para que a Requerente, na qualidade de Acompanhante de BB e em nome e representação deste, outorgue Escritura de Permuta mediante a qual o Acompanhado cede a sua metade do imóvel melhor identificado no art. 2.º do presente requerimento e, em troca, recebe o direito de usufruto vitalício no imóvel e a quantia de €12.500,00 por meio de cheque bancário à ordem do Acompanhado, devendo a referida escritura ter lugar no prazo de 60 dias a contar da data do trânsito em julgado da sentença” e não houve oposição essa alteração do pedido e da causa de pedir.
Foi determinada a avaliação do imóvel e junto o pertinente relatório.
Conforme despacho de 15.11.23, considerou-se que os autos reuniam “todos os elementos de facto necessários para o conhecimento imediato e total do mérito, sem necessidade de produção de outras provas, nos termos do disposto no artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil” e, em conformidade, “Nos termos e fundamentos expostos, a fim de proporcionar às partes prévia discussão de facto e de direito, notifique as partes processuais para, querendo e no prazo de 10 dias, alegarem por escrito o que tiverem por conveniente, de modo a evitar decisões-surpresa, ao abrigo do disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 6.º, n.º 1 e 547.º, todos do Código de Processo Civil”.
Em sede de alegações finais escritas (24.11.23), a acompanhante voltou a alterar o pedido, o qual, em suma, passou a constituir a autorização para a outorga da “Escritura de Permuta mediante a qual o Acompanhado cede a sua metade do imóvel melhor identificado em III. e, em troca, vê constituído a seu favor o direito de usufruto do imóvel e recebe a quantia de € 19.200,00 (dezanove mil e duzentos euros) por meio de cheque bancário, à ordem do Acompanhado, devendo a referida escritura ter lugar no prazo de 60 dias a contar da data do trânsito em julgado da sentença”.
Em sede de contraditório, o Ministério Público declarou manter “a posição já assumida nos autos com a contestação” - promoção de 12.12.23.
Foi fixado o valor da causa [96.000,00€] e a factualidade provada e proferiu-se sentença com o seguinte dispositivo: “Pelo exposto, decido julgar a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, decido não conceder autorização à requerente AA para, na qualidade de acompanhante de BB e, em nome e representação deste, outorgar a escritura pública de permuta mediante a qual o acompanhado cede a sua metade do prédio urbano, sito na rua ..., freguesia ..., concelho de Ovar, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o número ... da freguesia ... e, em troca, recebe o direito de usufruto vitalício do imóvel e a quantia de €19.200,00 (dezanove mil e duzentos euros)”.
II – Do Recurso
Inconformada, a autora apelou. Conclui:
I - O processo de autorização é um processo de jurisdição voluntária, previsto no artigo 1014 do CPC, que consagra um inquisitório acrescido e predominante sobre a disponibilidade das partes.
II - Concede tal jurisdição ao tribunal, concomitantemente, o poder (dever) de deferir ou indeferir o requerido após a ponderação dos interesses do beneficiário, estes considerados e atendidos por apelo ao bem senso prático, tudo em ordem à composição da justa medida adequada à situação em causa.
III - A sentença não fez a adequada interpretação e aplicação da lei, mostrando-se desrespeitados os normativos constantes dos artigos 1305, 1889 e 1938, n.º 1. al. a) do CPC.
IV - O imóvel de que o acompanhado é comproprietário é indivisível por natureza - vide 1412, n.º 1 e 1413, n.º 1 do CPC – podendo a comproprietária, em qualquer momento e querendo, pôr termo à indivisão através de uma ação de divisão de coisa comum.
V - A divisão do prédio operada por força de tal mecanismo jurídico, além de poder prejudicar o acompanhado quanto ao preço obtido, desapossá-lo-ia/á do que verdadeiramente importa garantir: a possibilidade de residência do acompanhado e/ou receita para as suas carências obtida através do imóvel, até ao final dos seus dias.
VI - Distintamente, a permuta de metade do prédio de que é titular, em troca da constituição, a seu favor, de usufruto vitalício e do recebimento de 19.200.00€, asseguraria tal escopo.
VII - Na qualidade de usufrutuário, sempre poderá agir como “proprietário do imóvel” seja, e desta feita na sua totalidade e não apenas por referência à quota ideal, que, na qualidade de comproprietário, detém, dele dispondo como necessário se mostre.
VIII - Concomitantemente, e sobremaneira importante, a solução preconizada garantir-lhe-ia a continuidade do vínculo afetivo, na medida em que permitiria ao acompanhado viver, enquanto possível, na casa que sempre foi e é a sua, cujos cantos e recantos reconhece, cujos cheiros e sons lhe são familiares, e da qual apenas teria de sair se e quando as suas condições de saúde não lhe permitirem ali permanecer.
IX - Subsidiariamente, e por dever de patrocínio, deve ordenar-se a anulação da sentença e o prosseguimento dos autos para prolação de despacho saneador e consequente produção de prova da matéria de facto alegada pela recorrente.
O Ministério Público respondeu, concluindo:
1 – A sentença não merece censura, pois que dela consta adequada leitura da prova constante dos autos e integração correta e objetiva dos factos apurados, com o detalhe e rigor que se impunha, tal como recolhe as normas relevantes que lhe servem como fundamento jurídico e que aplica em coerência.
2 – A venda de bens e/ou permuta de bens depende de autorização do tribunal e deve ser deferida caso seja para satisfizer as necessidades do acompanhado.
3 – A autorização só deve ser permitida para obter um valor patrimonial superior para o acompanhado ou quando com tal venda ou ato de disposição se possa evitar um prejuízo patrimonial para o mesmo.
4 - Como bem é referido na sentença, o acompanhado, atualmente, ainda que em comum, tem um direito de propriedade sobre o prédio urbano, onde reside com a mãe e a recorrente pretende que seja celebrada escritura de permuta mediante a qual o acompanhado cede a sua metade do imóvel e, em troca, recebe o direito de usufruto vitalício no imóvel e a quantia de 19.200,00€ por meio de cheque bancário à sua ordem.
5 – Nos termos do disposto no artigo 1476 do Código Civil, o usufruto extingue-se pelo seu não exercício durante vinte anos, qualquer que seja o motivo.
6 - No caso dos autos, autorizada a permuta, caso o acompanhado passasse a residir, por motivo justificável, numa Estrutura Residencial para Autonomia de Vida ou numa Estrutura Residencial para Idosos deixava de exercer o direito de usufruto sobre o imóvel e ficava apenas com a quantia de 19.200,00€ para pagar as despesas com essa integração e, segundo a recorrente, apenas daria para pagar na melhor das hipóteses 19 (dezanove) mensalidades.
7 – Além do que, não se apura uma qualquer necessidade atual do acompanhado em alienar a sua parte no bem imóvel para suportar as suas despesas com tratamentos médicos, ou outras.
8 - A autorização da venda/permuta do imóvel em causa não garante nem assegura o interesse e o património do acompanhado, antes contribui para o enfraquecimento do património do mesmo e põe em causa a possibilidade de poder custear eventuais despesas no futuro e pode até colocar em causa a sua permanência naquela que é até agora a sua residência por direito.
9 – A sentença fez correta apreciação da prova e aplicação do direito, e não violou qualquer preceito legal, designadamente dos artigos 1305, 1889 e 1938, n.º 1. al. a) do Código Civil.
O recurso foi recebido no termos legais e os autos correram Vistos, nada se observando que obste ao conhecimento do mérito da causa. O objeto do recurso, atentas as conclusões da apelante, consiste em saber se a) A sentença deve ser revogada e substituída por acórdão que defira o pedido da apelante ou, pelo menos e subsidiariamente, b) Deve ser anulada, prosseguindo os autos para produção de prova.
III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
Foi considerada a seguinte factualidade na decisão recorrida[1]:
1 - Por sentença proferida nos autos principais, em 10.05.2019, transitada em julgado, foi decretado o acompanhamento do maior BB, solteiro, nascido a ../../1964, fixando-se em 5.11.1965 a data a partir da qual o acompanhamento se tornou conveniente.
2 - Naquela sentença foi nomeado para o exercício do cargo de acompanhante a requerente, sua mãe.
3 - O prédio urbano, sito na rua ..., freguesia ..., concelho de Ovar, constituído por uma casa térrea com dependência e logradouro, destinado a habitação, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ..., descrito na CRP de Ovar sob o n.º ... da freguesia ..., com o valor patrimonial de 49.156,45€, encontra-se registado em nome do beneficiário e de CC, em regime de compropriedade.
4 - CC é irmã do beneficiário e casada com DD no regime da comunhão de adquiridos.
5 - O beneficiário reside com a mãe, a requerente, no dito imóvel.
6 - O valor de mercado do imóvel descrito no ponto 3., sem a realização das obras de beneficiação e de ampliação, é de 80.802,00€[2].
7 - O valor de mercado do imóvel, com a realização das obras de beneficiação e de ampliação, é de 192.000,00€[3].
Acrescentamos à factualidade dada como provada o que, além do mais, consta quer dos autos principais, em sede de matéria de facto, da própria decisão neles proferida e, ainda, de documento autêntico:
8 – “6. O requerido [acompanhado] é autónomo nas atividades básicas da vida diária (alimentação, higiene pessoal e vestuário), mas necessita do apoio de terceira pessoa na realização das atividades quotidianas instrumentais simples (como preparar refeições, cuidar da roupa, tratar da vida doméstica, deslocar-se ao médico ou a outros serviços de que necessite) e das atividades quotidianas instrumentais complexas (como tomar decisões acerca da sua saúde e gerir os seus bens e dinheiro)”.
9 – No dispositivo da sentença proferida nos autos principais a 10.05.2019 foi determinado “que as medidas de acompanhamento acima referidas sejam revistas daqui a cinco anos”.
10 – A acompanhante, mãe do acompanhado, nasceu a ../../1939 – doc. de fls. 317 do processo eletrónico.
III.II – Fundamentação de Direito
A fundamentação da sentença pode sintetizar-se e sublinhar-se, conforme transcrição que segue:
“(...) o tribunal “não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna” – cfr., artigo 987.º do Código de Processo Civil). Isto é, tem o Tribunal a liberdade de investigar os factos e coligir provas, bem como adotar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (...) impera, neste tipo de ações, que na dúvida seja sempre para benefício do requerido e nunca para o prejudicar, seja a que título for, mormente do foro patrimonial. Desta forma, a autorização para alienação ou oneração de bens de beneficiário pressupõe o interesse dele no respetivo ato. (...) Não se olvida que o direito de usufruto é um direito que permite ao seu titular que, desde que respeite o fim económico a que o bem em causa se destina, se possa comportar exatamente como se fosse proprietário do bem. Porém, considerando o valor de mercado do imóvel sem a realização das obras de beneficiação e de ampliação e com a realização das obras de beneficiação e de ampliação, verificamos que a permuta requerida e inerente recebimento da quantia de €19.200,00 não acautela os interesses do acompanhado, na medida em que alienação do direito de propriedade do acompanhado sobre o prédio comum, caso venha a julgar-se necessária para satisfazer as suas necessidades ou caso a irmã do beneficiário, outra comproprietária, queira fazer cessar a compropriedade, poderá sempre ser mais vantajosa, considerando-se os valores supra mencionados. Como muito bem ensina o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.05.2023 (...)
O beneficiário enquanto comproprietário do referido imóvel tem, necessariamente, acautelado o direito ao uso e usufruto do mesmo, pelo menos, na sua quota-parte, em face do referido direito de compropriedade, pelo que não basta acautelar a residência do beneficiário, como alegado na petição, sendo ainda crucial pensar que o mesmo pode necessitar de ser integrado em ERPI[4] e, em consequência, necessitar de ter rendimentos líquidos para fazer face a pagamento de despesas com a saúde, rendimentos esses provenientes da sua quota-parte e garantidos enquanto comproprietário do imóvel ajuizado. Cremos, pois, que em face do supra exposto, o negócio pretendido pela requerente, em que veio requerer alteração do pedido e da causa de pedir (em traços gerais substituir direito de uso e habitação, por direito de usufruto vitalício) e formulou o seguinte pedido (...) não pode ser deferido, por não acautelar cabalmente os interesses do beneficiário (...)”.
Através da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, aboliram-se os institutos da interdição e da inabilitação[5] e criou-se o regime jurídico do maior acompanhado[6]. E, tal como esclarece o artigo 138 do Código Civil (CC) “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.
O acompanhamento limita-se ao necessário (artigo 145, n.º 1 do CC)[7]. No entanto, como resulta do n.º 3 do mesmo artigo 145 do CC, “Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica” (n.º 3 do mesmo artigo). Autorização a ser apreciada nos termos do artigo 1014 do Código de Processo Civil (CPC)[8], ou seja, através de um processo de jurisdição voluntária – que, como se escreve na decisão recorrida, “não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna”, pois, “tem o Tribunal a liberdade de investigar os factos e coligir provas, bem como adotar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna” – no qual, e de acordo com o n.º 3 do citado artigo 1014 do CPC, “Haja ou não contestação, o juiz só decide depois de produzidas as provas que admitir e concluídas outras diligências necessária (...)”.
Efetivamente, na jurisdição voluntária, como é o caso aqui em apreço, há de ter-se em conta, além do mais, e como refere Miguel Teixeira de Sousa, o “Predomínio da conveniência sobre a legalidade” e o “Predomínio, quanto ao objeto do processo, do princípio do inquisitório sobre o dispositivo”[9], tanto mais que, de modo expresso, o artigo 986, n.º 3 do CPC esclarece, sem embargo de só serem de admitir as provas consideradas necessárias, poder o tribunal “investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes”.
Ainda assim, sem que tal signifique uma total dispensa do ónus de alegação e fundamentação dos pedidos, uma vez que “A liberdade e iniciativa probatória do juiz tem como limite o objetivo prosseguido pelo processo especial em causa, bem como a adequação da medida a adotar à finalidade pretendida”[10].
No caso presente, a autora/acompanhante, mãe do acompanhado, veio pedir, inicialmente, autorização para a outorga de escritura de permuta[11], através da qual o acompanhado cedia a (sua) metade do (identificado) imóvel, recebendo em troca 12.500,00€ e, ainda, o direito de uso e habitação desse mesmo imóvel[12]. Na fundamentação dessa pretensão, sustentou que o imóvel teria o valor de 125.000,00€ e o uso e habitação (atenta a idade do acompanhado) 50.000,00€. A razão avançada para o negócio foi, essencialmente, assegurar a habitação vitalícia do acompanhado e evitar que a comproprietária, ou quem lhe venha a suceder, ponha fim à compropriedade.
Depois da contestação do Ministério Público (dando nota, essencialmente, da precária garantia do direito ao uso e habitação em confronto com o usufruto, e salientando que do requerimento inicial não se podia aferir a real vantagem da permuta) a acompanhante veio alterar o fundamento da pretensão, substituindo o direito de uso e habitação pelo direito de usufruto vitalício.
Avaliado o imóvel, com o resultado pericial que foi levado à matéria de facto assente, o tribunal considerou que o processo reunia todos os elementos de facto necessários à decisão e a requerente e o Ministério Público foram convidados a alegar. Tendo o Ministério Público reafirmado a sua anterior oposição, já a requente, nessas alegações, veio salientar a alteração, em benefício do acompanhado, do uso e habitação para usufruto vitalício e, ponderando o valor resultante da avaliação do imóvel – que aceita – e a idade do acompanhado, propor o recebimento, por este e em razão da permuta, da quantia de 19.200,00€.
Como se disse, o tribunal considerou não ser necessária a produção de prova, salvo a (documental) já constituída e julgou improcedente a pretensão da acompanhante, essencialmente por duas razões, mesmo reconhecendo que, enquanto usufrutuário, o acompanhado “se possa comportar exatamente como se fosse proprietário do bem”:
- O acompanhado não beneficia com a permuta, porquanto já tem, enquanto comproprietário, acautelado o direito ao uso e usufruto e a “alienação do direito de propriedade do acompanhado sobre o prédio comum, caso venha a julgar-se necessária para satisfazer as suas necessidades ou caso a irmã do beneficiário, outra comproprietária, queira fazer cessar a compropriedade, poderá sempre ser mais vantajosa, considerando-se os valores supra mencionados;
- O acompanhado “pode necessitar de ser integrado em ERPI e, em consequência, necessitar de ter rendimentos líquidos para fazer face a pagamento de despesas com a saúde, rendimentos esses provenientes da sua quota-parte e garantidos enquanto comproprietário do imóvel ajuizado”.
Como se vê, o tribunal não questiona o valor do negócio, ou seja, não põe em causa que a contrapartida a receber pelo acompanhado (19.200,00€ e usufruto vitalício) seja desadequada à contrapartida a prestar (metade da nua propriedade do imóvel). O que salienta, isso sim, é que não pode concluir-se dessa permuta haver benefício para o acompanhado, pois habitação já ele tem e continuará a ter, enquanto comproprietário, e, além disso, se, futuramente, precisar de liquidez, pode beneficiar, então, da cessação da compropriedade. Tanto mais – segunda razão – que os rendimentos da compropriedade serão garantia de liquidez para o pagamento de despesas eventualmente devidas, nomeadamente com a integração em ERPI.
Ora, salvo o devido respeito, a fundamentação do tribunal não tem suporte fáctico e/ou avança um juízo de prognose pouco verosímil. Com efeito, não é crível que o acompanhado transacione o que ora permuta (1/2 da nua propriedade) por valor superior ao oferecido, tanto mais se pretender manter o usufruto. Efetivamente, seria de questionar se alguém terá interesse e vontade de adquirir, necessariamente por valor superior ao ora oferecido, metade da nua propriedade de um imóvel onerado com um usufruto vitalício. Também não se descortina, por outro lado, que rendimentos ou liquidez resultariam para o acompanhado na manutenção da sua compropriedade, quando deles carecesse. É que a única coisa que temos por certa, à míngua de outra factualidade, é o dever do comproprietário (também) pagar IMI.
Mas, por outro lado, a eventual necessidade de integração em ERPI é uma hipótese que os factos não revelam. Nem a sua previsibilidade temporal, nem o seu custo previsível.
Mas, acima de tudo, o que está por concretamente demonstrar é a necessidade do negócio pretendido, condição primeira para deferir, ou não, a pretensão formulada pela acompanhante. Cumpre questionar se o acompanhado tem outros, e suficientes, rendimentos ou se o valor líquido da permuta proposta é previsivelmente necessário ou mesmo urgente. Mais que o valor do imóvel, ou, ao menos, tão importante como, será de indagar da necessidade – atentas as condições pessoais e médicas do acompanhado, mas igualmente da acompanhante (pessoa quase a completar 85 anos) – de o acompanhado ter de ser apoiado de outro modo e com custos diferentes, o que pode justificar a necessidade de liquidez e a eventual bondade da permuta proposta.
Sucede que os factos apurados – repete-se, sem produção de prova além da documental –, mesmo com o acrescento factual feito nesta sede, não permitem a ponderação pressuposta no antecedente parágrafo ou, dito de outro modo, ficaram por apurar factos relevantes para a adequada apreciação do mérito da causa. E se a recorrente, ainda que subsidiariamente, sustenta a anulação da decisão com vista, justamente, à produção de prova, este Tribunal da Relação sempre o devia determinar, mesmo oficiosamente[13].
A insuficiência da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido é uma questão de conhecimento oficioso e adquire particular importância quando está em causa uma decisão que prescindiu da prova arrolada pela requerente[14], bem como de qualquer outra indagação (necessidade de liquidez; estado médico/incapacitante do beneficiário; necessidade e previsibilidade de internamento; custo...). E se assim é no processo comum contencioso, não pode deixar de o ser, até por maioria de razão, em sede de jurisdição voluntária.
O artigo 662, n.º 2, alínea c) do CPC [2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (...) c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta] determina, precisamente, a anulação da decisão, sempre que se mostre necessário o apuramento de outros factos relevantes e os autos não disponham de elementos probatórios a tanto bastantes.
É o caso e, por isso, não há que apreciar, sem novos factos, a pretensão recursória e o mérito da decisão recorrida.
Tenha-se em conta, por outro lado e na medida em que tal se revele pertinente, que a decisão de acompanhado terá de ser revista nos próximos dias.
Em suma, anula-se a sentença com vista a ser produzida prova em primeira instância – a arrolada e, eventualmente, outra que o tribunal tenha por necessária – destinada ao apuramento de factos pertinentes à decisão sobre o pedido formulado, nomeadamente, sobre a necessidade da permuta por haver necessidade de liquidez, sobre a urgência desta e as condições médicas e pessoais de acolhimento/acompanhamento do acompanhado que justifiquem previsivelmente as despesas que aquela liquidez pretende salvaguardar.
Atento o pedido (ainda que subsidiário) também formulado em sede de recurso pela recorrente e a resposta/oposição do Ministério Público, não são devidas custas, atenta a isenção do recorrido.
IV - Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em anular a sentença com vista a ser produzida prova (a arrolada e outra que o tribunal tenha por necessária) destinada ao apuramento de factos, nomeadamente, sobre a necessidade da permuta, em razão da necessidade de liquidez, sobre a urgência desta e sobre as condições médicas e pessoais do acompanhado que previsivelmente justifiquem as despesas que aquela liquidez pretende acautelar.
Sem custas.
Porto, 22.04.2024
José Eusébio Almeida
Jorge Martins Ribeiro
Fátima Andrade
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[1] Com a seguinte Motivação: “A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto provada resultou da análise da prova documental constante destes autos, designadamente certidões de nascimento, quanto às relações de parentesco. Mais se considerou o teor da sentença de acompanhamento de maior de que estes são apenso sendo tal prova devidamente conjugada com as regras da experiência comum e, ainda, a realização do exame pericial de fls. 28 a 33, não impugnados pelas partes processuais”.
[2] Como resulta da perícia, o valor corresponde a 46.152,00€ (benfeitorias) acrescido de 34.650,00€ (valor do terreno).
[3] Como resulta da perícia, o valor corresponde ao custo de construção, em função das obras de ampliação e beneficiação realizadas, somado ao valor do terreno.
[4] Refere-se a sentença a Estrutura Residencial para Pessoas Idosas, igualmente conhecida como lar de idosos.
[5] Sobre o novo regime jurídico do maios acompanhado, Mafalda Miranda Barbosa, Maiores Acompanhados – A disciplina da Lei n.º 49/2018 de 14 de agosto, 3.ª Edição, Gestlegal, 2023, págs. 51 e ss.
[6] “O diploma surge na sequência da Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das pessoas com Deficiência, adotada pelas nações Unidas em 30 de março de 2007, aprovada pelas Resoluções da Assembleia da República n.º 56/2009 e n.º 57/2009 (relativas ao Protocolo Opcional da Convenção), e marca a transição do modelo instituído pelo CC para um modelo conceptual e materialmente distinto, tanto na abordagem do problema como ao nível das consequências jurídicas” – António Agostinho Guedes/Marta Monterroso Rosas, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª edição revista e atualizada, UCP Editora, 2023, pág. 341.
[7] Sendo relevante a prevalência do interesse do beneficiário (acompanhado). Como referem Henrich Ewald Horster/Eva Sónia Moreira da Silva (A Parte Geral do Código Civil Português, 2.ª Edição totalmente revista e atualizada, Almedina, 2019, págs. 373/374), “Por isso é que o n.º 2 da norma consagra um princípio de supletividade (...). É preciso saudar a ratio legis: garantir que, em primeiro lugar, está o interesse do beneficiário destas medidas e a sua autonomia e não o interesse dos familiares ou dos seus herdeiros, da sociedade ou do Estado. Numa fórmula muito semelhante à utilizada para as crianças (onde a lei recorre ao princípio do “superior interesse da criança”), o legislador consagrou neste âmbito o “interesse imperioso do beneficiário” das medidas de acompanhamento (artigo 143.º, n.º 2)”.
[8] Como referem António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, em comentário ao artigo 1014 do CPC, não obstante o disposto no atual artigo 2.º, n.º 1, al. b) do Decreto-Lei n.º 272/01, “a competência para a autorização judicial regulada neste art. 1014.º é atribuída aos tribunal nas seguintes situações: a) quendo o pedido de autorização seja dependente de processo de inventário ou de interdição/acompanhamento de maiores, mesmo que tal processo já esteja findo (...)” - Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, Almedina, 2022, pág. 487.
[9] João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, pág. 71.
[10] António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado... cit., pág. 459, anotação 5.
[11] Salvo melhor saber, a estipulação de um preço afasta a caraterização do contrato como contrato de permuta [“(...) no contrato de permuta, não existe uma contraprestação, que é pagamento do preço, pois, como sabemos, uma caraterística essencial do contrato de permuta é a ausência de dinheiro” – Sérgio Manuel da Costa Machado, Do Contrato de Permuta, Almedina, 2021, págs. 123/124], ou pelo menos como contrato de permuta simples [(...) na permuta estimativa existe um cálculo (...) podendo aqui existir a intervenção do dinheiro para igualar a posição das partes (...) Relativamente à modalidade da permuta mista, pode dizer-se que esta é aquela em que há uma componente adicional em dinheiro” – ob. cit., pág. 194]. Sem embargo, atendendo o que referimos na nota seguinte e à aceitação do nomen em sede de primeira instância, continuaremos a referimo-nos ao contrato aqui em causa como contrato de permuta.
[12] Como decorre da ponderação feita pela requerente ao valor do imóvel e ao do direito ao uso e habitação (posteriormente, conforme infra se refere no texto, usufruto vitalício) o que está em causa – e se diz, aliás -, é a reserva do usufruto de todo o imóvel e não do correspondente à quota do acompanhado. Sendo assim, parece tratar-se de um contrato misto de permuta e compra e venda, mas ao qual se aplicam as regras próprias do segundo, nos termos do disposto no artigo 939 do CC. Aliás, como refere Carlos Ferreira de Almeida (Contratos II, 5.ª Edição, Almedina, 2021, pág. 125) “Se a contrapartida for mista (dinheiro e bens diferentes de dinheiro), misto é o contrato (de compra e venda e de permuta). Se a componente monetária for menor em valor, o contrato toma o nome de permuta com tornas”.
[13] Como refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição Atualizada, Almedina, 2022, pág. 357) a ampliação da matéria de facto é “uma faculdade que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objetiva de factos relevantes”.
[14] Uma das testemunhas arroladas, a primeira delas, se bem vemos, é mesmo a eventual “permutante”/ compradora, irmã do acompanhado. |