Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8085/17.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
ACIDENTE DE TRABALHO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RP202303138085/17.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 03/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Perante impugnação da matéria de facto, deve a Relação reapreciar os meios de prova indicados relativamente aos pontos da matéria de facto que o recorrente questiona, almejando uma autónoma convicção probatória, razão por que se alude a um segundo grau de julgamento da matéria de facto.
II - No juízo sobre a confirmação ou a revogação da decisão da 1.ª instância, a Relação pode utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação. Correspondentemente, a decisão deve ser revogada se a mesma se situar fora desta margem.
III - O tribunal pode julgar provado um facto com base no depoimento de uma testemunha ainda que toda a demais prova aponte em sentido contrário (com ressalva do que dispõem os artigos 393.º a 395.º).
IV - Resulta do art. 51.º, n.º 1 do DL 291/2007, de 21.8, que, quando o sinistro seja simultaneamente de viação e de trabalho, relativamente ao dano corporal ou, mais propriamente ao dano na saúde ou dano-evento, o FGA responde pelos danos não patrimoniais e pelos danos patrimoniais não abrangidos pela lei dos acidentes de trabalho.
V - A indemnização pelo dano biológico permite reparar, para além da perda ou redução da capacidade de trabalho do lesado, o desempenho de outras atividades e tarefas, inclusive domésticas, que têm um valor económico e que, ficando o lesado incapaz de as realizar, acarretarão um dano patrimonial.
VI - Assim, mesmo no caso de o autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, esta não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado este na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, pois estamos perante dois danos de natureza diferente.
VII - O FGA responde pelos danos materiais (nomeadamente quando se trate de danos corporais significativos, isto é, que determinem incapacidade permanente superior a 15%) não cobertos pela responsável do trabalho e, ainda, pelos danos não patrimoniais, quando ocorra dano corporal.
VIII - O dano biológico tem um rebate patrimonial, enquanto diminuição ou perda do rendimento salarial e, nesse tocante, a indemnização atribuída no foro laboral já o cobre, mas o dano biológico tem outras repercussões que podem considerar-se patrimoniais e não patrimoniais, sendo duas as suas dimensões patrimoniais: uma, a relativa à perda do rendimento salarial, em consequência da incapacidade para o trabalho, indemnização que foi atribuída ao A. em sede de direito laboral, que o não esgotou porquanto não incluiu os danos futuros resultantes da perda da capacidade aquisitiva tout court (e, no caso, demonstrou-se mesmo que o A. tinha uma outra atividade, além de assalariado por conta de outrem), outra, a que resulta da afetação da integridade físico-psíquica, a incapacidade funcional que deve ser indemnizada, ainda que não impeça o lesado de trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento, abrangendo situações em que o lesado esteja inativo.
IX - O apuramento deste dano material (independente da perda salarial correspondente à incapacidade) é norteado pela equidade.
X - Considera-se justa e adequada a indemnização pelo dano biológico, na parte não indemnizada pela jurisdição laboral, na quantia de €140.000, 00, ao lesado que, durante mais de um ano, não conseguia realizar tarefas básicas, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal; sofreu 81 pontos de afetação da sua integridade físico-psíquica que se repercutem nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais; as lesões decorrentes do sinistro apenas se consolidaram quase dois anos após o sinistro; carece permanentemente do auxílio de terceira pessoa; não poderá mais exercer qualquer atividade profissional, sendo que o A., além do trabalho por conta de outrem, era titular de uma empresa, sendo reconhecido como um engenheiro informático genial e de elevada capacidade intelectual.
XI - A título de compensação pelos danos não patrimoniais, tem-se por equilibrada a indemnização de €250.000,00, ao lesado que, sendo um engenheiro informático brilhante e capaz, aos 36 anos de idade ficou padecendo de uma diminuição da sua capacidade física e psíquica, com repercussão nas atividades da sua vida diária, de 81 pontos, e incapacitado permanentemente para o exercício de qualquer atividade profissional; durante 327 dias esteve totalmente dependente de terceiro para a realização das tarefas básicas da vida quotidiana, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal; e parcialmente condicionado nessas tarefas por 343 dias; sofreu um quantum doloris de 6 em 7; sofreu um dano na sua aparência (imagem estética) de 4 em 7 e apresenta inúmeras e extensas cicatrizes; carece permanentemente de acompanhamento médico e auxílio de terceira pessoa; apresenta permanentemente marcha com alguma lentificação; era uma pessoa alegre, calma, saudável e dinâmica e perdeu a alegria de viver, sentindo desgosto e vendo anulado o seu dinamismo social, abstendo-se da companhia dos amigos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 8085/17.4T8PRT.P1


Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
AUTOR: AA, casado, contribuinte n.º ..., residente na rua..., …, ... ..., Braga, entretanto representado pela mulher, BB, por aplicação àquele de medida de acompanhamento geral, decretada por sentença de 11.6.2019 (junta aos autos a 24.09.2019), em razão da incapacidade de que ficou a padecer mercê do acidente destes autos.
RÉU: FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, com sede na Av. ..., ..., ... Lisboa.

Por via desta ação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, instaurada a 13.4.2017 (autuada a 14.4.2017), pretende o A. a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de 557.920€, pelos danos sofridos em resultado de um acidente, acrescida de atualização, de acordo com o índice de variação de preços ao consumidor (I.N.E.) e juros à taxa legal desde a citação.
Invocou sinistro ocorrido em 2012, na A20, Porto, o qual ficou a dever-se a terceiro veículo, não identificado, que se atravessou à frente do carro do autor, desaparecendo de imediato e determinando o despiste daquele, bem como as graves lesões de que padeceu e padecerá.
Os danos cuja compensação pretende são, por um lado, de natureza não patrimonial:
- lesões físicas, internamento hospitalar, perda de autonomia, cirurgias, terapias várias, inúmeras consultas, perda de capacidade física para fazer o que quer que seja (desporto, cópula…) e o desgosto que isso lhe causa, dores, prejuízo de afirmação pessoal, dano estético e défice permanente da integridade física e psíquica, superior a 90% - €460.000,00.
De natureza patrimonial, e tendo já sido indemnizado pela seguradora do trabalho, enquanto trabalhador por conta de outrem, solicita a reparação total de €97.920, 00, pelo seguinte:
- o que deixou de auferir desde 2012, em dividendos da sociedade de que era um dos sócios, a qual entrou em insolvência, em 2015, mercê da ausência do A., como responsável pela idealização e prática da área de engenharia informática, sua especialidade, lucros cessantes estes no montante de €97.920,00, valor que corresponde à quantia de €2.880,00 (lucros que auferiu em 2011), multiplicada por 34 anos (diferença entre a idade do autor à data do acidente e a esperança média de vida para o género masculino).

Contestou o FGA, arguindo desde logo, a prescrição do art. 498.º, n.º 1 CC – três anos – tendo o acidente ocorrido em 2012 e o R. sido citado em 2017. Também invocou a sua ilegitimidade, já decidida em saneador.
Relembrou os limites estabelecidos nos arts. 48.º, 49.º e 51.º do DL 291/07, de 21.8, uma vez que o autor já recebeu indemnização da seguradora de acidentes de trabalho e do Fundo de Acidentes de Trabalho. De modo que não pode o A. reclamar indemnização pelos danos a que respeita o pedido de €460.000,00, nem pelos lucros cessantes provenientes da sociedade de que era sócio, por a tanto não ter direito legal.
Quanto ao sinistro, afirmou ter-se o A. despistado sozinho, sem intervenção de qualquer veículo e, ainda que assim não fosse, teria o demandante de demonstrar qual o tipo de veículo interveniente, qual a nacionalidade da matrícula e quais as circunstâncias do sinistro.

Respondeu o A. à exceção de prescrição, arguindo o prazo de 5 anos previsto no art. 498.º, n.º 3 CC, por referência ao prazo prescricional do crime de que foi vítima – ofensa à integridade física por negligência, mas grave (art. 148.º, n.ºs 1 e 3 CP).

Em despacho saneador, foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade e relegado para sentença o conhecimento de todas as demais questões, incluindo a da prescrição e o argumento legal do FGA quanto à não inclusão destes danos no âmbito da previsão do DL 291/07, de 21.8.

Realizado julgamento, foi proferida sentença, de 30.7.2022, a qual julgou a ação improcedente, absolvendo o R. do pedido, por não considerar provada a versão do A., não conhecendo da prescrição nem da impugnação de direito invocada pelo FGA, achando prejudicados estes temas (implicitamente quanto ao segundo), mercê daquela decisão de facto.

Foram danos como provados na sentença recorrida os seguintes factos:
1. O sinistro
1 – No dia 20 de abril de 2012, cerca das 11 horas e 55 minutos, o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-RF, conduzido pelo autor, circulava na autoestrada A20 (Via de Cintura Interna), ao Km .., no sentido Freixo/Arrábida, junto à saída Mercado Abastecedor.
2 – No local, a A20 é constituída por duas faixas de rodagem, separadas por um separador central, permitindo uma das faixas o trânsito no sentido Freixo/Arrábida, permitindo a outra o trânsito no sentido Arrábida/Freixo, cada uma delas com três vias de trânsito.
3 – No sentido Freixo/Arrábida, a A20 desenvolve-se no local numa curva para a esquerda, com pendor marcadamente ascendente, existindo uma quarta via de trânsito, à direita das três vias de trânsito acima referidas, sendo ela uma “via de trânsito de abrandamento”, estando separada daquelas vias de trânsito de circulação na A20, durante algumas dezenas de metros antes da separação física de pavimentos, por uma linha longitudinal contínua.
4 – Na ocasião, havia chovido e o piso encontrava-se molhado.
5 – Quando o veículo de matrícula ..-..-RF circulava nas circunstâncias referidas no ponto 1 – factos provados –, o seu condutor perdeu o controlo do mesmo, desviando-se bruscamente da sua trajetória e capotando.
2. O dano biológico
6 – Em resultado do sinistro referido:
a) Durante 327 dias, o(a) autor(a) viu totalmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;
b) Durante 343 dias, o(a) autor(a) viu parcialmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;
c) O(A) autor(a) sofreu dor quantificável num grau 6, numa escala até 7 (quantum doloris);
d) O(A) autor(a) ficou definitivamente afetada na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 81, numa escala até 100;
e) O(A) autor(a) sofreu uma afetação da sua aparência (imagem estética) num grau 4, numa escala até 7;
f) A consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo(a) autor(a) ocorreu em 18 de fevereiro de 2014.
7 – Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o(a) autor(a):
a) encontra-se permanentemente incapaz de exercer qualquer atividade profissional;
b) carece permanentemente de ajudas medicamentosas, de acompanhamento médico e o auxílio de terceira pessoa;
c) apresenta permanentemente:
i) marcha com alguma lentificação;
ii) cicatriz nacarada na transição parietoccipital, medindo 8,5 cm de comprimento em relação com ferimentos que foi suturado;
iii) cicatriz nacarada na região frontal do crânio, à direita da linha média com um discreto afundamento na extremidade mais posterior medindo 3,5 cm de comprimento, em relação com aplicação de cateter;
iv) cicatriz nacarada com vestígios de pontos estendendo-se da região pré-auricular direita até à região pré-auricular esquerda, contornando a região frontal pelo bordo anterior do couro cabeludo, com cerca de 45 cm de comprimento, depois de retificada;
v) cicatriz nacarada na face anterior do pescoço, transversal, medindo 9 cm de comprimento em provável relação com traqueostomia;
vi) várias cicatrizes nacaradas infracentimétricas na região clavicular direita em relação com aplicação de cateter;
vii) cicatriz nacarada no flanco esquerdo do abdómen, medindo 12 cm de comprimento;
viii) cicatriz nacarada na linha média abdominal medindo 12 cm de comprimento;
ix) complexo cicatricial nacarado com uma zona discretamente acastanhada na face anteromedial do antebraço esquerdo, estendendo-se do cotovelo ao 1/3 distal do antebraço medindo 18x9 cm;
x) cicatriz nacarada puntiforme na face anterolateral do 1/3 proximal do antebraço;
xi) complexo cicatricial nacarado, pouco aparente estendendo-se da face posterior do 1/3 distal do antebraço esquerdo até ao dorso da mão medindo 8x4 cm.
8 – O autor nasceu em .../.../1976.
9 – Sendo uma pessoa fisicamente bem constituída, alegre, calma, saudável e dinâmica
10 – O autor ficou física e psiquicamente diminuído aos olhos de quanto o conheciam, situação que lhe acarretou desgosto e reflexos negativos de origem psicológica, abstendo-se da companhia dos amigos.
11 – As lesões sofridas pelo autor provocaram-lhe profundo desgosto, anulando-lhe o seu dinamismo e vida de relação social, tirando-lhe grande alegria de viver.
3. Danos patrimoniais
12 – Por total incapacidade para o trabalho, o autor deixou de exercer qualquer atividade laboral.
13 – Auferia à data do acidente um salário mensal no valor de €2.745,00.
14 – O autor tinha à data do acidente a profissão de engenheiro informático, sendo àquela data sócio da empresa A..., L.da.
15 – Foi esta sociedade constituída em 22 de fevereiro de 2011, obtendo no primeiro ano de serviço um lucro de €8.641,97[1].
16 – No ano de 2012, esta sociedade apresentou um prejuízo no montante de €126.000,00, tendo encerrado no ano de 2015.
17 – Era reconhecida ao autor uma elevada capacidade intelectual, desenvolvendo, com genialidade, a atividade de engenheiro de informática.
4. Limites do alegado direito do autor
18 – Em virtude deste sinistro ter sido também considerado como acidente de trabalho, a B... – Companhia de Seguros, S.A., assumiu o tratamento clínico do demandante, assim como a responsabilidade pelos danos causados no que concerne a essa vertente, liquidando ao autor:
a) a pensão anual, atualizável anualmente, de €31.976,00, com início em 06.06.2014, calculada com base na retribuição anual de €39.970,00 e na I.P.A.T.Q.P, acrescida de €3.997,00 por cada filho menor a seu cargo (2 filhos);
b) subsidio de elevada incapacidade no valor de €5.533,70;
c) prestação para auxílio de terceira pessoa no valor 461,14 mensais;
d) a quantia de €25,00 por conta de transporte;
e) a quantia de €62.540,58 a título de indemnização pela ITS.
19 – A B... – Companhia de Seguros, S.A., presta ainda assistência e acompanhamento médico permanente ao autor.
20 – O autor foi notificado, por ofício datado de 6 de julho de 2012, do despacho de arquivamento do inquérito n.º 6605/12.0TDPRT.
21 – A presente ação deu entrada em 14 de abril de 2017, tendo a ré sido citada em 19 de abril de 2017.
Foram considerados como não provados os seguintes factos:
22 – O veículo de matrícula ..-..-RF circulava a uma velocidade não superior a 80 Km/h, atendendo ao facto do piso se encontrar molhado.
23 – Quando o veículo de matrícula ..-..-RF circulava nos termos descritos no ponto 1 – factos provados –, uma viatura de marca Range Rover, de cor verde escura, que circulava pela via de trânsito do meio, no mesmo sentido de marcha Freixo/Arrábida, efetuou uma manobra de mudança de direção, invadindo, de forma abrupta, a totalidade da via de trânsito por onde circulava o veículo de matrícula ..-..-RF.
24 – Para não embater na viatura de marca Range Rover, o autor ensaiou uma manobra evasiva, sendo esta a causa de perda do controlo da viatura e do seu subsequente capotamento.
25 – Antes do sinistro, o autor era habitual praticante de todos os tipos de desportos, designadamente os mais radicais e que envolviam grande disponibilidade de esforço físico.
26 – O autor tornou-se incapacitado sexualmente, facto que causou um profundo abalo na sua vida marital.

Desta sentença recorre o A., visando a procedência do seu pedido, alinhando as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso de apelação interposto da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 3, recorrido de 30-07-2022, a qual julgou a ação não provada e improcedente, absolvendo-se o réu, Fundo de Garantia Automóvel, do pedido formulado pelo Autor, AA, nos termos decisórios melhor descritos na referida sentença que se dão aqui expressa e integralmente por reproduzidos para os devidos efeitos legais.
2. Versa o presente recurso tal decisão/sentença, da qual se recorre quer da matéria de facto quer de direito.
3. Com efeito, entende o Recorrente que se mostram incorretamente julgados os factos seguintes, cuja indicação e transcrição produz nos termos e para os efeitos consignados na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil:
i) Facto «não provado» constante do ponto 22, da douta sentença, a saber: O veículo de matrícula ..-..-RF circulava a uma velocidade não superior a 80 Km/h, atendendo ao facto do piso se encontrar molhado.
ii) Facto “não provado” constante do ponto 23, da douta sentença, a saber: Quando o veículo de matrícula ..-..-RF circulava nos termos descritos no ponto 1 – factos provados –, uma viatura de marca Range Rover, de cor verde escura, que circulava pela via de trânsito do meio, no mesmo sentido de marcha Freixo/Arrábida, efetuou uma manobra de mudança de direção, invadindo, de forma abrupta, a totalidade da via de trânsito por onde circulava o veículo de matrícula ..-..-RF.
iii) Facto “não provado” constante do ponto 24, da douta sentença, a saber: Para não embater na viatura de marca Range Rover, o autor ensaiou uma manobra evasiva, sendo esta a causa de perda do controlo da viatura e do seu subsequente capotamento.
4. Crê o Recorrente ter o Tribunal a quo errado ao julgar como factos não provados, os supra indicados, que deveria ter considerado provados, afirmando na sentença sobre recurso que (…) a decisão resultou de ausência de prova quanto aos mesmos.
5. Analisemos quanto ao facto “não provado” constante do ponto 22 da sentença:
6. Explanando a motivação subjacente a essa decisão que versou sobre este facto, o Tribunal de 1.ª instância referiu:
(…) A velocidade a que o autor alega estar a circular não joga com os notáveis estragos causados nas guardas de proteção nem com o capotamento da viatura (numa subida) nem com o facto de a sua viatura ter ultrapassado a viatura IVECO (pois só assim poderia ocorrer o atingimento da mesma pelas guardas de proteção arrancadas pelo embate), já em despiste, em ziguezague.
7. Com o devido respeito, o Tribunal recorrido realizou um incorreto julgamento deste facto.
8. Recorda-se que o Autor invoca que o veículo RF, por si conduzido. circulava na sua faixa de rodagem, a uma velocidade moderada, não superior a 80Km/h.
9. Não se mostra ainda acertada a conclusão vertida na fundamentação, supramencionada, quanto a esta matéria de facto.
10. De facto, os alegados notáveis estragos (soltaram-se e invadiram a faixa de rodagem) causados nas guardas de proteção não foram causados por alegado excesso de velocidade. O facto das guardas de proteção se terem soltado e invadido a via de circulação, não se deve a excesso de velocidade ou ao facto do impacto ter sido forte. Efetivamente, o apoio de fixação destes equipamentos é desenhado para se soltar com qualquer embate, para prevenir que o veículo “voe” por cima dos mesmos.
11. Quanto ao capotamento da viatura do A. (numa subida) e ao alegado facto da mesma ter ultrapassado a Iveco, indicativos, na ótica do Tribunal a quo, de velocidade superior a 80Km/h sempre se dirá que estas conclusões não têm suporte testemunhal, nem obedecem às regras da física.
12. Mais se refere que o depoimento do condutor da Iveco, CC, é comprovativo que o Autor, no seu despiste, não efetuou uma manobra de ultrapassagem à Iveco. De facto, quando se apercebeu que estava em curso um despiste, CC, parou a Iveco.
13. Quanto ao facto “não provado” constante do ponto 23
14. Naturalmente que com o devido respeito, mas em discordância, crê o Recorrente ter o Tribunal a quo errado também ao julgar como facto “não provado” este ponto, explanando assim a motivação subjacente a essa decisão:
15. (…) No que concerne à dinâmica do acidente, a prova produzida foi claramente insuficiente para convencer o tribunal da versão apresentada pelo autor quanto à existência de um veículo terceiro – todo-o-terreno – como elemento causador do despiste.
16. (…) A testemunha CC, condutor do veículo de matrícula ..-BL-.. (carrinha IVECO) que na ocasião circulava no mesmo sentido de circulação do veículo RF conduzido pelo autor, referiu ter visto pelo espelho retrovisor um jipe a atravessar da via do meio para a via da direita, colocando-se atrás do veículo conduzido pela testemunha e ocorrendo logo em seguida o despiste do veículo RF.
17.(…) Tal depoimento mostrou-se pouco credível, considerando:
− que a testemunha não apresentou qualquer explicação plausível para só agora, em sede de julgamento, falar da existência do referido veículo jipe;
− não explicou como, tendo visto o despiste a ocorrer atrás de si, vem a sua viatura (que seguia à frente) a embater numa guarda de segurança, após esta ter sido arrancada depois da passagem e do embate da viatura despistada.
18. (…) A testemunha DD referiu que assistiu ao acidente, por circular na A20 naquela ocasião. (…) Mesmo em cima da saída do mercado abastecedor um jipe enorme que circulava na via do lado esquerdo faz mudança de direção para sair na saída do Mercado Abastecedor e atravessa-se à frente do veículo que ia à frente da viatura da testemunha, o qual se despistou e capotou. (…) Afigura-se ao tribunal ser insólito e implausível que a testemunha, após ter presenciado um acidente como o descrito, em que – na versão por si apresentada em tribunal – o despiste ocorreu por causa de uma manobra perigosa do jipe, não tenha, em tempo útil, procurado dar a informação que tinha, como testemunha presencial (…).
19. A mulher do autor não logrou explicar a razão pela qual, na tentativa de conciliação em sede do processo de acidente de trabalho, (…), na descrição aí feita do acidente não é feita qualquer referência à intervenção de um veículo terceiro, quando – de acordo com as suas declarações – a mesma já sabia desde setembro/outubro de 2012 da descrição do acidente, pela referida D. EE, da existência de um jipe a fazer uma manobra a atrapalhar o marido com o consequente despiste.
20. Também não apresentou qualquer explicação para a falta de passagem dessa informação e do nome da referida testemunha D. EE à polícia, nomeadamente considerando que o autor tinha sido notificado, por ofício datado de 6 de julho de 2012, do despacho de arquivamento do inquérito n.º 6605/12.0TDPRT (ver factos provados).
21. Ora, o Tribunal recorrido realizou um incorreto julgamento deste facto e, com o devido respeito, a fundamentação empregue na sentença recorrida fica muito aquém de sustentar a conclusão a que chegou.
22. É perfeitamente credível e plausível, segundo as regras da experiência, que, conforme a testemunha CC refere no seu depoimento, a ocorrência de tão grave acidente lhe causou um estado de confusão e nervosismo (também bem patente na identificação do lado do dano no pisca da carrinha Iveco), estado que lhe condicionou as suas declarações.
23. O depoimento escrito junto com a participação do acidente foi prestado no local e imediatamente após o embate, daí que seja compreensível a falta de referência à presença/existência do jipe. A testemunha estava seguramente ainda “influenciada” pelo pânico.
24. Não esquecer ainda que entre a data do acidente e o julgamento decorreram mais de dez anos, sendo por isso tal confusão perfeitamente normal. A memória humana é falível, sendo que os lapsos no seu depoimento decorrem naturalmente das fragilidades da memória.
25. Após a clareza do depoimento prestado pela testemunha DD - conforme transcrições supra mencionadas – que referiu que assistiu ao acidente e que atestou que o despiste ocorreu por causa de uma manobra perigosa do jipe que, ao efetuar uma mudança de direção, invadiu, de forma abrupta, a totalidade da via de trânsito por onde circulava o veículo de matrícula RF, o Tribunal a quo, erradamente, considera que este depoimento é insólito e implausível.
26. Quando a esposa do lesado tomou conhecimento que existia essa testemunha, o processo de inquérito já estava arquivado, tendo o A. sido notificado do arquivamento em 06-07-2012, não tendo assim qualquer utilidade passar essa informação à polícia.
27. Crê ainda o Recorrente ter o Tribunal a quo errado ao considerar que a mulher do autor não logrou explicar a razão pela qual, na tentativa de conciliação em sede do processo de acidente de trabalho, na descrição aí feita do acidente não é feita qualquer referência à intervenção de um veículo terceiro.
28. Em sede do processo de acidente de trabalho, não existe discussão quanto à intervenção ou culpa de terceiros, dado que à seguradora relativa à entidade patronal, cabe automaticamente pagar as indemnizações estabelecidas na lei.
29. Além disso, a descrição do acidente constante do auto da tentativa de conciliação, elaborado pelos serviços do Tribunal de Trabalho, foi no caso em apreço redigido segundo o “auto da polícia”.
30. Quanto ao facto “não provado” constante do ponto 24
31. Defende também o Recorrente ter o Tribunal a quo errado, ao julgar como facto “não provado” este ponto, explanando assim a motivação subjacente a essa decisão.
(…). O mesmo é dizer que a viatura do autor circulava atrás do IVECO (a aceitar-se a sua alegação neste sentido), à velocidade do trânsito que circulava nesta via (que não é de ultrapassagem), entrou em despiste para a direita (é o que o demandante alega), ganhou velocidade (em despiste e numa subida, note-se), passou depois para as vias de trânsito da esquerda, em escassos metros ultrapassou o IVECO, regressou à via de trânsito da direita (sem afetar o restante trânsito) e embateu nas guardas de proteção direitas. Ou seja, em ziguezague, o autor conseguiu ultrapassar o IVECO (que não consta que ziguezagueasse). Mais: de acordo com a narrativa do autor (arts. 4.º e 8.º da petição), a sua viatura tem de ter passado para a “via de trânsito de abrandamento”, mais à direita … depois deste “zigue” para a direita, faz um “zague” para esquerda e regressa à via de trânsito (direita de três) por onde circulava (regresso que tem de ocorrer antes da “via de trânsito de abrandamento” se tornar num viaduto separado).
32. Perante toda esta motivação, temos de concluir que erradamente, o Tribunal a quo invoca alguns factos não alegados pelo A., assim como realizou uma valoração incorreta dos depoimentos e prova documental apresentada nos autos e já explanada, pormenorizadamente, nos pontos anteriores.
33. Transcrevendo os artigos da petição relativos à descrição do acidente e também invocados nesta motivação, teremos:
Art.º 4º - Passando repentinamente, para alcançar o seu objetivo de saída da autoestrada A20, à frente do veículo RF, determinando que o mesmo, para não embater nesse carro, fizesse uma manobra invasiva, perdendo o controlo da viatura, embatendo com a parte lateral direita nas guardas/rails de proteção metálica direitos, entrando em capotamento, atravessando em capotamento toda a faixa de rodagem até ao separador central, aí se imobilizando.
Art.º 8º - Levando o veículo RF a sofrer um despiste e embater violentamente nos guardas de proteção metálica que ladeavam a via de circulação a direita, entrando em capotamento, atravessando em capotamento toda a faixa de rodagem até ao separador central, aí se imobilizando.
34.Analisando os pontos discordantes - também já fundamentados neste recurso – e devidamente assinalados na motivação supra, afigura-se cristalino que na audiência de julgamento, mormente através dos depoimentos das testemunhas já aqui explanados, o ora recorrente logrou provar que:
35. A viatura do autor circulava atrás do IVECO, à velocidade do trânsito que circulava nesta via (que não é de ultrapassagem), não entrou em despiste para a direita (não sendo o que o demandante alega);
36. Não ganhou velocidade (em despiste e numa subida), tudo conforme já devidamente exposto, pelo Recorrente no ponto I – Facto “não provado” constante do ponto 22, deste recurso;
37. Em despiste e para se desviar do Jipe, guinou para a via de trânsito da esquerda e não ultrapassou a IVECO. A Iveco é que abrandou a marcha e parou;
38. Na narrativa do autor (arts. 4.º e 8.º da petição), a sua viatura nunca passou para a “via de trânsito de abrandamento”, mais à direita;
39. O Range Rover atravessa-se à sua frente, dirige-se para essa saída do Mercado Abastecedor, e o autor, desviou a sua viatura para a esquerda;
40. O veículo RF em despiste e para não embater no separador central, efetua nova guinada, agora sim para a direita e,
41. Depois da Iveco ter parado e por isso ter sido ultrapassada, o veículo RF embate nos guardas de proteção metálica que ladeavam a via de circulação a direita, entrando em capotamento.
42. Em sede de tudo o aqui exposto, deverá a sentença sob recurso ser revogada, na parte em que considera por não provados os factos constantes dos pontos 22, 23 e 24 da douta sentença ora recorrida, e alterada em conformidade com o supra exposto.

Contra-alegou o FGA, pugnando pela improcedência do recurso.

Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, nºs 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos).
- da decisão sobre a alteração da matéria de facto;
- da (não) prescrição do direito do A.;
- da responsabilidade do FGA;
- da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.


FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
Tendo o A. anunciado recorrer da sentença absolutória quanto à matéria de facto e de direito, acabou por se referir, nas conclusões, apenas à impugnação da matéria de facto.
Tencionávamos evitar aqui a já maçante e repetida explicitação de temas como a psicologia do testemunho, a livre apreciação da prova e os poderes da Relação em matéria de facto.
Porém, em contra-alegações, o FGA convocou sobre este assunto opiniões que nos merecem pronúncia expressa.
Diz o demandado ter o legislador imposto um meio qualificado de prova, como o auto de notícia, quando o visado é o FGA, uma vez que este, fragilizado, não conta com o apoio da versão do putativo terceiro interveniente no sinistro e, por isso, corre o risco de ser vítima de fraude. Estaria, por isso e aqui, afastado o princípio da liberdade de prova.
Que dizer?
Bom, para já, a esta luz, teríamos que concluir que, quando o R. é o FGA, não é necessário efetuar julgamento, bastando às partes atentarem na participação policial (ou no depoimento do autuante que, por via de regra, não assiste ao sinistro) e decidir sobre o acidente segundo o que ali foi exarado ou dito pela autoridade policial.
Seria simples. Mas não é assim.
Os requisitos de que a lei (DL 291/2007, de 21.8) faz depender a atribuição de indemnização à vítima de acidente automóvel quando o lesante é desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz aplicam-se quando já se verificou o sinistro e se sabe ter o FGA de intervir, mas não se refletem de forma alguma na subversão do ónus da prova ou na imposição ao lesado de ónus probatório mais exigente.
Também aqui se aplica o disposto no n.º 5 do art. 607.º CPC (o juiz aprecia livremente as provas), com o qual se pretende significar não existir um sistema de prova legal, como anteriormente à Revolução Francesa, em que os testemunhos eram valorados por fatores quantitativos: a verdade seria o que a maioria afirmasse que era.
A liberdade de apreciação da prova pelo julgador constitui hoje a regra, com algumas exceções (documentos autênticos ou particulares - arts. 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1 CC - a confissão - arts. 358, n.º 1CC e 463.º CPC – as presunções legais - art. 350.º CC), mas a participação policial não é um documento especial cujo conteúdo constitua presunção do que quer que seja.
É mais um elemento indiciário, ao lado de tantos outros, que auxiliam na formação da intime conviction do julgador.
No caso da prova testemunhal, o art. 396.º CC prevê que a mesma se aprecie livremente, querendo com isto significar que “as razões de ciência, a credibilidade e a coerência de cada testemunha e a interligação dos depoimentos com todos os meios de prova constantes do processo exigem uma prudente ponderação que faz intenso apelo à acuidade, à experiência e ao bom senso do julgador” (anotação ao art. 396.º, Código Civil Comentado, Parte Geral, coord. de Menezes Cordeiro).
Por essa razão, “o tribunal poderá julgar provado um facto com base no depoimento de uma testemunha ainda que toda a demais prova aponte em sentido contrário (com ressalva do que dispõem os artigos 393.º a 395.º) e ainda que essa parte tenha uma relação de parentesco com a parte a quem aproveite o facto” (Rita Gouveia, anotação ao art. 396.º, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora).
Também não constitui argumento válido para apertar a malha probatória a cargo do lesado o risco de que este possa pretender burlar o FGA. Esse risco – abstrato – existe quotidianamente, como a experiência nos ensina, mesmo para as seguradoras que podem contar com a versão do seu segurado.
Diz, depois, o R., citando acórdão desta Relação, que a alteração da matéria de facto em segunda instância só pode ocorrer em caso de “erro grosseiro ou clamoroso” cometido em primeira instância.
Não concordamos com este modo de pensar e já tivemos ensejo de o expressar noutros lugares.
Por exemplo, no acórdão de 14.12.2022, Proc. 1720/20.9T8GDM.P1:
(…) «por via desta fluidez o art. 662.º, n.1º CPC prevê o dever funcional a cargo da Relação de alterar a decisão sobre a matéria de facto apenas quando os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Assim, cumprido o ónus a cargo do recorrente que impugna matéria de facto no recurso de apelação, que consiste em especificar, sob pena de rejeição do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (art. 640.º CPC) e os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo da gravação nele realizada que imponham decisão diversa da recorrida, a Relação deve reapreciar os meios de prova indicados relativamente a esses pontos da matéria de facto que o recorrente questiona, almejando uma autónoma convicção probatória – por isso se fala de segundo grau de julgamento da matéria de facto.
Resulta daqui que a Relação só pode alterar as respostas dadas à matéria de facto quando a reapreciação da prova conduza com segurança a um resultado diverso, não se exigindo apenas erro notório.
Sobre a forma como há-de processar-se a reapreciação da decisão da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, foi proferido ac. pelo STJ, em 7.9.2017, no processo nº 959/09.2TVLSB.L1.S1:
“1. É hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.
2. No âmbito dessa apreciação, dispõe o Tribunal da Relação de margem suficiente para, com base na prova produzida, em função do que for alegado pelo impugnante e pela parte contrária, bem como da fundamentação do tribunal da 1.ª instância, ajustar o nível de argumentação probatória de modo a revelar os fatores decisivos da reapreciação empreendida.
3. Todavia, a análise crítica da prova a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, mormente por parte do Tribunal da Relação, não significa que tenham de ser versados ou rebatidos, ponto por ponto, todos os argumentos do impugnante nem que tenha de ser efetuada uma argumentação exaustiva ou de pormenor de todo o material probatório. Afigura-se bastar que dessa análise se destaquem ou especifiquem os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do tribunal.
(…)
Escreve Teixeira de Sousa, a 18.5.2017, no blogue do IPPC,:
É verdade que os elementos de que a Relação dispõe não coincidem -- nomeadamente, em termos de imediação -- com aqueles que a 1.ª instância tinha ao dispor para formar a convicção sobre a prova do facto. No entanto, isso não significa que, como, aliás, o STJ tem unanimemente entendido, nem que a Relação esteja dispensada de formar uma convicção própria sobre a prova do facto, nem que funcione uma presunção de correcção da decisão recorrida.
Importa, pois, verificar quais os elementos que devem ser considerados pela Relação para a formação da sua convicção sobre a prova produzida. Quanto a estes elementos, há uma diferença entre a 1.ª instância e a Relação: a 1.ª instância apenas dispõe dos meios de prova; a Relação dispõe daqueles meios e ainda da decisão da 1.ª instância. Como é claro, esta decisão, cuja correcção incumbe à Relação controlar, não pode ser ignorada por esta 2.ª instância.
É neste sentido que se pode afirmar que, no juízo sobre a confirmação ou a revogação da decisão da 1.ª instância, a Relação pode utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação. Correspondentemente, a decisão deve ser revogada se a mesma se situar fora desta margem.»
*
Posto isto, são de reter as seguintes premissas:
- o tribunal pode basear a sua convicção numa única testemunha;
- a razão de ciência e de credibilidade da testemunha deve ser ponderada com finura, subtileza, capacidade de perceção, tendo em conta o conhecimento adquirido pela prática, estudos, observação, etc…, atuando ainda o julgador com sabedoria e razoabilidade;
- a Relação não revoga a sentença apenas quando a mesma é notoriamente errónea, mas também quando escapa à medida do que é moderado, sensato, apropriado e digno de aceitação.
Da sentença recorrida ressalta imediatamente a inegável qualidade formal da motivação da decisão de facto. Nem sempre assim sucede, mas aqui descreveu-se a razão da aceitação ou não aceitação de cada testemunho ou elemento de prova e, mais do que isso, analisou-se, ponto por ponto, a relação dos elementos de prova com a convicção final.
É, porém, no segmento da acuidade, do bom senso da e experiência na avaliação da prova que nos merece crítica o derradeiro desenlace.
Vejamos.
Insurge-se o recorrente contra a não prova dos factos 22, 23 e 24, os quais se referem essencialmente à não demonstração da intervenção no sinistro de um terceiro veículo, não identificado, levando à conclusão de ter-se o A. despistado sozinho.
No tocante ao ponto 22 – velocidade a que circulava o veículo do A. - que a sentença não deu como provado ser inferior a 80 kms/hora, a primeira observação que se impõe é a da irrelevância deste facto para o sinistro. Tal como este foi descrito pelo A. na pi (e o R. não escamoteou), o ponto central não é a velocidade, mas a presença, ou não, de terceiro veículo que se tivesse atravessado abruptamente em frente ao RF, provocando-lhe o despiste.
Depois, tratando-se de uma auto-estrada, em princípio, a velocidade máxima seria de 120 kms (art. 27.º CE), nada se dizendo na sentença em contrário.
Vemos, todavia, que o limite máximo naquele local (VCI) era de 90 kms/hora (sendo de 50 kms apenas já na saída para a Rotunda do Mercado Abastecedor), como se diz no relatório de inspeção judiciária, elaborado para o processo crime, pelo agente da PSP que redigiu a participação policial, FF (fls. 59 v.º do apenso “Anexo Documental) e, bem assim, a fls. 84 v.º, no relatório de peritagem levado a efeito pela seguradora B... (do seguro de trabalho).
Além destes elementos, nenhum outro se perfila que permita dar como provada a velocidade a que seguia o A., realçando-se também não passar por aí a defesa essencial esgrimida pelo R.
Mantém-se, por isso, o facto não demonstrado em 22.
Já os pontos seguintes – 23 e 24 – impõem a maior das precauções, tendo em conta quer a gravidade das consequências do acidente, quer a não credibilização pelo tribunal a quo do único testemunho que aludiu a um terceiro veículo que se atravessou abruptamente à frente do veículo do A., originando o despiste imediato.
Em retas contas, é neste testemunho e sua credibilidade que se joga toda a sorte da ação, sendo certo que, como vimos, nada impede que o tribunal sustente a decisão de facto num depoimento único.
Vejamos, em primeiro lugar, o que disseram as duas testemunhas que estavam no local quando a PSP ali acorreu, uma vez que a carrinha onde seguiam (a da C..., visível a fls. 102 do apenso “Anexo Documental”) foi atingida por destroços libertados da estrada (guardas de proteção metálica) quando o RF do autor ali embateu.
CC, condutor da IVECO da C... (a BL), estava no local, e foi identificado pela PSP. Com ele seguia, também, o passageiro GG, identificado a fls. 85 do relatório de averiguação da B....
O primeiro, em fase de inquérito policial (fls. 90 v.º do mesmo apenso), ainda em 2012, declarou que “circulava na A 20 Freixo/Arrábida o veículo (…) RF. Despistou-se, embateu nos rails [e estes] embateram a carrinha, partindo o pisca esquerdo matrícula ..-BL-..”. Posteriormente, em relatório da B..., datado de 7.8.2012, recusou prestar esclarecimentos, mas lá declarou confirmar o que dissera anteriormente à autoridade policial (fls. 85 do apenso).
O segundo, a fls. 94 do apenso documental, ouvido no âmbito daquele relatório de averiguação, disse, em maio de 2012: “à data do acidente era ocupante da IVECO e circulávamos na fila mais à direita da A20, no sentido Freixo - Arrábida, quando vi o FORD em despiste à nossa frente, embatendo nos rails do lado direito e capotando, tendo os rails atingido a nossa viatura”.
Ainda neste cotejo sobre quem disse o quê noutra sede, que não na audiência dos autos, temos o auto de tentativa de conciliação, de 2015, levado a cabo no Tribunal do Trabalho, onde esteve presente a mulher do A. (que não assistiu ao sinistro), que aí terá dito não ter o marido memória do sinistro, mas, segundo relato da Polícia, o veículo conduzido por aquele perdeu o controlo, numa curva, e embateu no separador central, seguindo-se o capotamento do veículo (fls. 118 do mencionado apenso).
Cumpre averiguar o que disseram em audiência estas três pessoas e uma quarta, DD, que afirmou ter presenciado o acidente e o descreveu de forma transparente e límpida, fazendo menção ao terceiro veículo que a pi referencia.
Principiemos por CC e GG que, consabidamente, estavam no local do sinistro e foram ouvidos pela PSP, ainda no ano em que tudo aconteceu, tendo agora deposto em julgamento, em maio e junho de 2022.
GG confirmou seguir, com o colega CC, na carrinha da C..., tendo visto passar, vindo de trás, o carro do autor, já em despiste (atravessou-se à frente da carrinha onde seguia a testemunha), e ir embater, de imediato, nos rails, capotando logo após. Não se apercebeu de qualquer outro veículo que tivesse provocado este despiste e o colega CC, depois disso, nunca lhe falou da existência desse terceiro veículo ou de manobra que tivesse levado ao despiste. A faixa mais à esquerda (das três existentes, no sentido sul-norte), após o sinistro, ficou livre e por aí podia o trânsito continuar a processar-se.
Admitiu, contudo, que, seguindo como pendura da carrinha, não conseguia visualizar o que o motorista conseguia ver através dos espelhos (observa-se a fls. 102 que a tal IVECO, da C..., tem a carroçaria completamente fechada).
Não há razão para desconfiar, à partida, deste depoimento, não ignorando, porém, que o acidente se deu à esquerda da IVECO e a testemunha seguia na direita e que, a ter intervindo um outro veículo que provocou o despiste do autor, isso terá sucedido atrás desta carrinha.
Há, porém, algo a reter deste depoimento: o veículo do A. proveio detrás desta carrinha e atravessou-se-lhe à frente; a via da esquerda, das três existentes, ficou transitável.
O tribunal recorrido não adotou posição direta de aceitação deste depoimento, mas serviu-se dele para considerar não normal que o motorista CC não tivesse comentado com o colega, posteriormente, o que viu do sinistro.
CC começou por desabafar que “já foi há tanto tempo!”(o que é verdade), mas lá foi dizendo que seguia do Freixo para a Arrábida (sul para norte), ao lado do Mercador Abastecedor, e calhou olhar pelo espelho [lateral esquerdo] e viu “o Jeep atrás de mim e meteu-se para o mercador abastecedor” e “no mesmo espaço de tempo, entrou esse Sr. em despiste e passou à minha frente (porque eu parei por causa do despiste) e foi bater no rail e capotou”. O rail soltou-se e veio bater na carrinha da C...”. Não se recordava já de qualquer caraterística do veículo do demandante, mas disse que “houve um jeep [escuro] que vinha na faixa do meio e se meteu para trás de mim e no mesmo espaço de tempo entra esse Sr. em despiste”. A carrinha da testemunha seguia pela faixa mais à direita e o Ford seguia atrás, vindo daí em despiste.
Tentando expor o motivo pelo qual não aludira anteriormente a este Jeep, mormente quando foi ouvido, em 2012, disse agora “que nem se lembrou” de o fazer e que estava “super nervoso”.
Não soube explicar por que é que o RF entrou em despiste (embora já o tivesse visto a vir em despiste provindo detrás de si) nem conseguiu explicar qual a ligação do suposto Jeep com o despiste, porque “não pode jurar o que é que aconteceu”, enfatizando depois não poder afirmar qualquer relação entre o Jeep e o despiste do RF.
O tribunal a quo não conferiu credibilidade alguma a este depoimento, pelas razões que expôs na motivação, e por nós também não podemos deixar de o considerar inconsistente e inconclusivo quanto à participação de um terceiro veículo.
Todavia, também neste depoimento (excluindo a singular referência ao jeep escuro de que nunca antes falara) duas circunstâncias importam:
- a carrinha da C... seguia na via mais à direita (sentido sul-norte) das três existentes.
- o carro do A. surgiu detrás da carrinha, passou à frente desta e foi embater nos rails.
Não aludimos, sequer, ao testemunho do agente participante porque mais não fez do que confirmar a participação e afirmar ninguém lhe ter referenciado a existência de um terceiro veículo causador do despiste.
E, até aqui, continuamos sem ver demonstrada a presença de um terceiro veículo.
Todavia, eis que surge, em contra-mão, na mesma sessão de audiência, a testemunha DD, que se identificou como teólogo, mais vocacionado para a psicoterapia, não tendo nunca contatado diretamente com o A. ou a com a sua atual representante legal, BB.
Não tendo nunca sido referenciado como testemunha ocular, nos processos policiais e no do trabalho, foi com surpresa que o ouvimos dizer que, com a sua mulher [recentemente falecida, e também indicada como testemunha pelo autor, logo após o despacho saneador, não se estranhando, como refere o FGA, que o não tenham sido logo na pi (?)], assistiram ao acidente, lamentando até hoje não ter contatado as autoridades policiais de imediato.
Com efeito, provinham do sul, de Fátima, e, já na VCI, do lado contrário ao Estádio ..., seguiam atrás do Ford escuro (do autor), ambos na faixa mais à direita, das três que existem no sentido sul-norte, quando, em cima da saída para o Mercado Abastecedor, um Jeep grande e escuro (um Range Rover verde), provindo da segunda fila, do lado esquerdo, se atravessou abruptamente à frente do carro do autor, colocando em perigo todos os veículos que por ali seguiam. Para se desviar, o Ford saiu para o lado esquerdo, entrou em despiste aos “ss” (já depois da saída do Mercado Abastecedor), passando a carrinha da C... e indo embater nos rails do lado direito (sentido sul-norte).
Assim, a passagem abrupta do terceiro veículo foi a causa do despiste do carro do A.
A testemunha explicou não ter parado logo ali para não criar mais risco para os restantes utentes da via e por ter verificado que a carrinha da C... o fez, estando assegurado o auxílio ao sinistrado, e não vendo necessidade de, numa via rápida daquelas, em dia de chuva, todos os veículos ficarem por ali imobilizados.
Perante a estranheza de um testemunho imprevisto e novo, haveria que indagar exaustivamente da sua razão de ciência e credibilidade.
Foi o que sucedeu.
Explicou, então, que, com a mulher, era habitual irem a Fátima em momentos que considerassem mais significativos, como por ocasião da Páscoa. Não se recordando de imediato do mês em que ocorreram os factos, foi então que se lembrou de ser Páscoa, para referir o mês de abril.
Questionado pela razão de apenas agora surgir como testemunha e de como chegou à fala com o autor ou com a sua atual representante legal, a mulher deste, esclareceu que foi a sua falecida mulher quem tratou de tudo: procurou logo nesse dia, junto do INEM e dos Hospitais da cidade, saber onde se encontrava a vítima daquele acidente e, detetando-a no Hospital de S. João, entrou em contacto com as funcionárias administrativas, informando-as de que assistira ao acidente e disponibilizando o seu número de telefone para o caso de ser necessário alguém entrar em contacto consigo (era aquilo que poderíamos fazer como pessoas de bem).
Mais tarde, meses à frente (em agosto, segundo julga), BB ligou à mulher da testemunha, tendo-lhe a D. EE (falecida mulher da testemunha) contado o que vira, como está em crer, mas não pôde precisar porque elas falaram entre si, não tendo a testemunha intervindo diretamente. Depois disso, nenhum dos dois (DD ou EE) foi contactado para nada oficial, senão agora para o julgamento.
Antes de atentarmos no valor e fiabilidade deste testemunho, cumpre saber o que disse BB a respeito destes contactos com a falecida mulher da testemunha DD.
Foi inquirida na segunda sessão de julgamento, depondo de modo simples e plangente. Confirmou que, no Hospital de São João, quando o seu marido aí se encontrava, uma funcionária lhe ia trazendo, quase todos os dias, papéis com n.ºs de telefone de pessoas que nem conhecia, a maioria indagando sobre o estado de saúde daquele, pois foi conhecido o aparato do acidente. Não respondeu nem telefonou a alguns deles, porque lidava com uma situação desesperadora, mas, mais tarde (talvez em setembro de 2012), telefonou à D. EE, que não conhecia, e obteve desta a informação de que presenciara o sinistro, descrevendo-lhe o modo como este se deu e a intervenção de um terceiro veículo. De posse desta informação, a depoente transmitiu-a à sua advogada, esperando que esta pudesse utilizá-la, se e quando possível.
Perguntada sobre a razão por que, em 2015, atuando como representante do marido, em auto de tentativa de conciliação, perante o MP do Tribunal do Trabalho de Braga, disse “No dia 20.04.2012, pelas 11.00 horas, em serviço, no Porto, e segundo relato da Polícia, uma vez que o sinistrado não tem memória do acidente, sofreu o acidente dos autos – acidente de viação – ao dirigir-se a um cliente, quando conduzia um veículo automóvel ligeiro, tendo perdido o controlo do veículo, numa curva, e embatido no separador central seguindo-se o capotamento (…)”, não se referindo à presença do terceiro veículo, respondendo que o seu discurso no TT foi “com base nos relatórios que tinha” e que, porventura, “falhou ali qualquer coisa”.
Quid iuris?
Interveio ou não um terceiro veículo, provocando o despiste do A. e qual a dinâmica do despiste e capotamento?
Volvendo aos testemunhos, já observámos apresentarem os dois primeiros fragilidades que não permitem coonestar a prova dos factos 23 e 24.
Ressalvámos, então, pequenos pormenores que podem ajudar a compreender os movimentos e forças em que se traduz a dinâmica do acidente: o veículo do A. proveio detrás da carrinha da C... e atravessou-se-lhe à frente; a via da esquerda, das três existentes, ficou transitável.
A carrinha da C... seguia na via mais à direita (sentido sul-norte). O carro do A. surgiu detrás da carrinha, passou à frente desta e foi embater nos rails.
Estas circunstâncias são coincidentes entre os três testemunhos ditos presenciais e não há razão para deles duvidar, nestes segmentos.
E o terceiro, DD? Por que foi afastado pela primeira instância?
Consignou-se na sentença, nesta parte, o seguinte:
«Afigura-se ao tribunal ser insólito e implausível que a testemunha, após ter presenciado um acidente como o descrito, em que – na versão por si apresentada em tribunal – o despiste ocorreu por causa de uma manobra perigosa do jipe, não tenha, em tempo útil, procurado dar a informação que tinha, como testemunha presencial, à polícia ou aos familiares do mesmo (para mais tendo sabido o Hospital para onde o condutor tinha sido levado).
Também a dinâmica do acidente descrita pouco tem a ver com relatada na petição inicial. Note-se que a testemunha afirma que se desviou da viatura capotada. Trata-se de uma narrativa que pode ser engendrada por quem não assistiu ao embate. No entanto, somente quem assistiu sabe que, antes da viatura capotada sobre o pavimento, existia outro obstáculo (este anómalo). Referimo-nos à guarda de proteção retorcida que veio a causar estragos à IVECO (bem visível no croquis e nas fotografias). A testemunha não refere que se desviou da guarda retorcida (que ocupava a via de trânsito da direita, impedindo a sua passagem), não explicando como passou por ela sem se desviar. E se se tivesse desviado, para a via de trânsito central, não se percebe porque teve de se desviar da viatura capotada, já que esta não estava sobre tal via central».
Salvo o devido respeito, discordamos desta perceção da prova em causa.
Não pode afirmar-se que o normal para quem assiste a um acidente seja procurar fornecer à polícia ou aos familiares do sinistrado as informações de que disponha, sobretudo se não parar no local, engrossando as aglomerações de curiosos que dificultam o trânsito e a ação das autoridades policiais e médicas.
Assegurando-se de que estão presentes outros cidadãos que podem solicitar a comparência de quem preste auxílio – como, no caso, os ocupantes da carrinha C... – e circulando numa auto-estrada, o normal - parece-nos - é prosseguir o caminho e, logo que possível, prestar as informações que se detêm.
Quem percorre e percorreu, quase diariamente, as estradas do país, por ex., nas idas e vindas para e das comarcas, tem a experiência de - assistindo a acidentes rodoviários, e assegurando-se da presença de pessoas que podem demandar o necessário socorro - prosseguir o caminho, só mais tarde procurando transmitir a informação de que dispõe.
E porquê fazê-lo à Polícia ou à família da vítima (que nem se sabe quem seja), quando a primeira ideia é a de procurar saber do estado de saúde da pessoa sinistrada?
Estamos em crer ser esse o imediato sentimento que se manifesta, pois não são todos os que mantêm a frieza de, ato contínuo, contatar as autoridades policiais.
Então, estabelecer comunicação preferencial com o Hospital, surge para muitos (onde se inclui a relatora) como a solução não irracional de se inteirar do estado de saúde da vítima e explicar aí, então, estar-se disponível para o que for necessário, haja em vista o que se experienciou.
Não podemos, por isso, assentir com a primeira observação consignada na sentença a este respeito.
Quanto ao segundo argumento, é idêntica a conclusão. A testemunha explicou o que viu, mas não lhe foi perguntado como conseguiu passar, apesar da existência das guardas de proteção retorcidas, como ainda, e ao invés, vê-se do croqui de fls. 21 e da Ilustração de fls. 61 v.º do “Anexo Documental”, não ocuparem essas guardas senão a faixa da direita, tendo ainda as duas testemunhas inquiridas em primeiro lugar afirmado que a faixa da esquerda ficou transitável.
Também se não vê que seja penhor de credibilidade de um testemunho de acidente a coincidência exata entre o respetivo conteúdo e o que se encontra descrito na pi (?), sendo que, no que aqui é essencial e lhe foi inequivocamente questionado – a causa do despiste do RF -, DD exibiu um depoimento sereno, verosímil e firme.
Julgamos, com honestidade, estarem assim afastadas as razões pelas quais o tribunal a quo desprezou o testemunho de DD.
Além disso, como começámos por explicitar, o valor da prova testemunhal não se mede pela quantidade, podendo o tribunal julgar provados os factos com base no depoimento de uma única testemunha ainda que toda a demais prova aponte em sentido contrário (o que aqui não sucede), desde que se atente no leitmotiv do bom senso e das regras da experiência.
Finalmente, a razão pela qual a mulher do A., agora sua representante legal, não mencionou anteriormente - maxime em TT, único local onde verificamos ter dito algo sobre o sinistro - a versão que lhe transmitira a falecida mulher de DD, ainda que esta circunstância, contando com o testemunho deste último, assume uma importância menor.
Consideramos compreensível a atitude da mulher do sinistrado, diante da calamidade que, de uma vez, desmoronou sobre a vida do seu marido, da sua própria e da dos dois filhos menores (a estes alude o relatório do INML e o auto de tentativa de conciliação do Tribunal do Trabalho), primeiro, porque tendo passado à sua advogada a mensagem prestada pela D. EE, BB esperou, naturalmente, que aquela a utilizasse nos termos legalmente cabíveis. Depois, em auto de conciliação no TT, e para efeitos de receber as indemnizações e pensões da seguradora do trabalho, a B..., não tendo a aí depoente, em representação do A., assistido ao sinistro, era suficiente dizer o que disse, porque, de facto, foi essa versão que ficou constando dos documentos oficiais, não tendo a informação passada pela D. EE sido tratada oficialmente (sendo certo que o lesado esperava, haviam mais de três anos, pela indemnização que imediatamente lhe seria atribuível, a do Trabalho).
Finalmente, não vemos também o que pretendeu o julgador a quo quando afirmou ter o lesado sido notificado do arquivamento do inquérito relativo ao crime de ofensas à identidade física, a 6.7.2012, não tendo então reagido e prestado a informação fornecida pela D. EE. É que, em julho de 2012, a crer nas palavras de BB (e da testemunha DD), aquela não havia ainda falado com a D. EE; depois, porque, ignorando-se que terceiro veículo interveio e quem o conduzia, que sentido teria reiniciar um inquérito contra desconhecidos?
Por estas razões, estamos convictos que não é razoável nem aceitável a desconsideração do testemunho de DD, do qual resulta a prova dos factos 23 e 24.
Por último, as incongruências que detetamos nas conclusões enunciadas em a) a c) da motivação da decisão de facto:
Quanto a a):
O demandante não alega ter entrado em despiste para a direita, mas sim que “sofreu um despiste provocado por uma manobra indevida e perigosa, de mudança de direção para a saída da autoestrada, efetuada por uma viatura de marca Range Rover” (art. 2.º da pi), acrescentando que “fez [o autor] uma manobra evasiva, perdendo o controlo da viatura, embatendo com a parte lateral direita nas guardas/rails de proteção metálica direitos, entrando em capotamento” (art. 4.º). Não vemos, onde alega o A. ter ganho velocidade depois do despiste, embora também se não antolhe como impossível um veículo despistar-se numa subida (cuja inclinação nem está apurada nos autos), com chuva e piso molhado e adquirir maior velocidade”.
Esta forma de explicitar o acidente pelo autor, aludindo a uma manobra evasiva que não explica, para depois dizer que, perdeu o controlo da viatura e veio a embater nos rails da direita, não significa de modo algum que a manobra evasiva (que o tribunal, a seu tempo, não convidou a explicitar) tenha ocorrido para a direita e tenha sido logo aí que embateu nas guardas de proteção da via. Sendo ainda verdade, que as testemunhas que seguiam na C... o viram surgir de trás e pela esquerda, o mesmo tendo repetido a terceira testemunha presencial.
Salvo o devido respeito, não é uma questão de obediência às “leis da Física” (disciplina que, lastimavelmente, não dominamos) o que observamos em (i) a (vi) desta al. a), mas uma simples incompreensão da prova no seu total.
b) Esta alínea enferma do mesmo vício: nem o A. alega ter-se desviado para a direita, ou seja, para a via de abrandamento destinada ao Mercado Abastecedor, nem sobretudo isso resulta da prova – pelo contrário – sendo gratuitas as ilações que daqui se retiram, como o próprio tribunal a quo percebeu (como expressamente disse) que o embate nos rails de proteção à direita ocorreu dezenas de metros após o ponto no qual o Range Rover ou o Jeep apareceu.
No tocante à al. c)[2]:
É bem verdade que o A. não explicita em 4.º da pi qual a manobra evasiva que foi obrigado a efetuar, mas também é falso que afirme ter começado por embater nos rails de proteção à direita.
Na verdade, o apurado em audiência – não aludindo aqui à intervenção do terceiro veículo – foi um despiste do RF para a esquerda (para a faixa do meio das três que circulam para norte), a ultrapassagem posterior da carrinha da C..., seguida de um primeiro embate num muro à direita, de que fala o agente participante, FF, e de um segundo embate na zona de gradeamento que se vê a fls. 89 v.º do apenso dos documentos (Terminal de Sistema de Retenção Lateral), este o que provocou os danos naquela carrinha IVECO (fls. 96 v.º, e 97), seguindo-se o capotamento do RF (na faixa da direita), como é visível a fls. 95 v.º e 96.
Finalmente, a al. c):
Quanto à velocidade do veículo do A. nada se apurou e, por nós, também não vimos razão para alterar este facto não provado.
Também se estanha que, perante a prova acima exposta, se possa afirmar que, conduzisse o autor a “uma velocidade adequada”, mesmo intervindo um terceiro, é inverosímil um despiste, um ziguezague, aumento de velocidade, não embater na carrinha que ultrapassou, mas vá embater nos rails da direita.
Não se vê a lógica deste raciocínio e, menos ainda, o afastamento de toda a prova, concordando-se apenas –mas sem qualquer influência na decisão de facto – não ter o autor demonstrado que, após o capotamento, atravessou toda a faixa de rodagem até ao separador central (parte final do art. 4.º da pi).
A decisão de facto está, assim, fora da margem de aceitabilidade e de razoabilidade a que acima nos referimos.
Por esta razão, quanto aos factos não provados 23 e 24, dá-se como provado o seguinte:
23 – Quando o veículo de matrícula ..-..-RF circulava nos termos descritos no ponto 1 – factos provados –, uma viatura que não foi possível identificar, estilo Jeep, talvez um Range Rover, que circulava pela via de trânsito do meio, no mesmo sentido de marcha Freixo/Arrábida, efetuou uma manobra de mudança de direção para a sua direita, invadindo, de forma abrupta, a totalidade da via de trânsito por onde circulava o veículo de matrícula ..-..-RF (a da direita).
24 – Para não embater na viatura de marca Range Rover, o autor ensaiou uma manobra evasiva, desviando-se para a esquerda, perdendo o controlo da viatura e vindo a capotar uns metros mais à frente.
Os restantes factos provados e não provados mantêm-se[3].

Fundamentos de Direito
Da prescrição do direito do autor
Entende o FGA estar ultrapassado o prazo de prescrição de três anos previsto na lei, sem possibilidade de alargamento para cinco anos, porque “para tal não é suficiente que o autor/recorrente alegue, em abstrato, que os factos são suscetíveis de integrar um ilícito criminal”.
Isto porque o sinistro ocorreu a 20.4.2012, tendo o FGA sido citado por carta remetida a 17.4.2017 e assinado o aviso de receção a 19.4.2017. A ação foi instaurada a 13.4.2017[4], pedindo o autor a citação urgente do R.
A regra geral em matéria de prazo de prescrição e no que toca à responsabilidade civil extracontratual é a de que o direito de indemnização prescreve em três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, segundo dispõe o art. 498.º, n.º1 Código Civil.
O n.º 3 deste normativo abre uma exceção a este regime considerando aplicáveis os prazos previstos na lei penal, quando mais longos, se o facto ilícito que dá origem ao direito de indemnizar tiver raiz ou natureza criminal.
O prazo interrompe-se com a citação ou notificação do ato que exprima a intenção de exercer o direito na pessoa do responsável pelo cumprimento da obrigação correlativa (art. 323.º, n.º 1 CC), sendo que se a citação se não fizer dentro de cinco dias após ser requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se por interrompida decorridos esses cinco dias.
Assim, neste caso, a prescrição interrompeu-se a 18.4.20217.
O prazo prescricional para o facto ilícito que constitua crime de ofensa à integridade física negligente donde resultem as consequências previstas no art. 144.º Código Penal (mormente afetação grave da capacidade de trabalho ou doença dolorosa), será de cinco anos (arts. 148.º, n.º 3 e 118.º, n.º 1, al. c) Código Penal). Será de dois anos se as consequências não forem graves (arts. 148.º, n.º1 e 118.º, n.º1 al. d) Código Penal).
A possibilidade de alargamento do prazo de prescrição é aplicável, segundo a interpretação que nos parece mais defensável, logo que o facto, em abstrato, constitua crime, embora o lesado deva demonstrar, em concreto, estarem preenchidos os elementos essenciais do tipo legal de crime em referência. Isto é, o alargamento do prazo é independente de ter existido ou não processo-crime, de este ter sido arquivado, amnistiado, ou não ter existido e mesmo que o direito de queixa não tenha sido exercido[5].
Nestas situações, é no processo cível que deverá apurar-se se os factos de que resulta o invocado direito a indemnização preenchem ou não os pressupostos do ilícito criminal.
Na situação dos autos, vemos que o A. se despistou por força de uma imprudente condução de terceiro veículo que se atravessou à frente do automóvel do demandante, pretendendo sair da autoestrada por onde circulava através de uma rampa de saída da qual se terá apercebido tardiamente, e sem ter ocupado atempadamente a via da direita e a via de abrandamento.
Não é apenas uma presunção de facto de culpa que aqui emerge, por violação do disposto nos arts. 15.º (trânsito em vias paralelas), 43.º (mudança de direção à direita) e 71.º (entrada e saída das autoestradas) do Código de Estrada, mas uma negligência elementar, grosseira, que consiste em atravessar-se à frente do veículo que circula mais à direita a fim de não perder a oportunidade, não anteriormente ponderada, de saída da autoestrada naquele local.
As consequências do sinistro assim causado foram graves, como vemos da matéria de facto provada, desde logo a afetação de 81% na integridade física e psíquica do lesado - de tal modo que teve de ser-lhe nomeado acompanhante - a permanente incapacidade para o exercício qualquer atividade profissional.
Vemos, assim, ser de cinco anos o prazo prescricional e, por via disso, ter o mesmo sido interrompido em tempo.
Esta exceção é, pois, improcedente.
Da responsabilidade do FGA
Invocando o disposto no art. 51.º do DL 291/2007, de 21.8 (Limites especiais à responsabilidade do FGA), alega o R. que, quando o lesado sofre um acidente que é coberto pelo seguro de acidentes de trabalho, deve ser a seguradora do acidente de trabalho a responder pela reparação dos danos do acidente.
No caso vertente, o acidente que vitimou o autor foi considerado acidente de trabalho, in itinere, de modo que no ponto 18 se indicam os pagamentos efetuados pela seguradora do trabalho.

Esta responsabilidade objetiva do dano reparável no caso de responsabilidade sem culpa do empregador por um acidente de trabalho não segue o princípio da reparação integral do dano sofrido pelo lesado, como prevê o art. 562.ºCC.
Com efeito, os danos a indemnizar pelo acidente de trabalho encontram-se limitados, só existindo reparação nos termos previstos pela Lei dos Acidentes de Trabalho (artigos 1.º e 2.º da LAT).

Pelo que, no âmbito laboral, a reparação em dinheiro (art. 47.º da LAT) apenas visa reparar os danos patrimoniais corporais resultantes da extinção ou redução - ainda que temporária - da capacidade de trabalho ou de ganho e com os seguintes limites: nas prestações por indemnizações temporárias e/ou indemnização em capital e pensão por incapacidade permanente para o trabalho: a) pelo coeficiente de incapacidade sofrido pelo sinistrado; b) com reporte a uma percentagem da retribuição (art. 48.º n.ºs 1, 2, 3, als. a) a e), da LAT).

Quer isto dizer que não são indemnizáveis em direito laboral os danos não patrimoniais, como sejam o dano de sofrimento, o dano estético (exceto se tiver repercussões na perda da capacidade de trabalho ou de ganho) e outros danos patrimoniais diretos como sejam a perda de vestuário, telemóvel, automóvel, motociclo, capacete (danos materiais sofridos pelo trabalhador em coisas que são propriedade sua), embora inclua próteses, óculos, cadeira de rodas, perna artificial e, mesmo, o dano biológico na sua vertente patrimonial (arts. 25.º n.º 1, al. g), 41.º e 43.º todos da LAT).
Por essa razão, o art. 17.º da LAT dispõe:
1 - Quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos gerais.
2 - Se o sinistrado em acidente receber de outro trabalhador ou de terceiro indemnização superior à devida pelo empregador, este considera-se desonerado da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsado pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido.
3 - Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente, a exclusão da responsabilidade é limitada àquele montante.
4 - O empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis referidos no n.º 1 se o sinistrado não lhes tiver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano a contar da data do acidente.
5 - O empregador e a sua seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo.
Resulta daqui, como já referia Vaz Serra, que a solução de que as indemnizações por acidentes simultaneamente de viação e de trabalho se não cumulam e apenas se completam até ao ressarcimento total do dano causado ao lesado é manifestamente exata, pois a finalidade da indemnização é reparar o prejuízo causado ao lesado e não atribuir a este um lucro (Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-05-1978, RLJ 111, p. 327-331).
Ora, o art. 564.º, n.º 2 CC determina que na fixação da indemnização se atenda aos danos futuros que sejam previsíveis.
Uma das situações de dano futuro é o chamado dano biológico, isto é, qualquer alteração do estado corporal do lesado, mesmo que não gere diminuição de rendimentos (como sucede, por ex., no caso dos estudantes ou dos reformados), alteração essa que tem reflexos patrimoniais e não patrimoniais.
Segundo Armando Braga (citado no ac. RP, de 23.3.2015, Proc. 972/11.0TBLSD.P1) deve fazer-se «…a distinção entre dano-evento e dano-consequência. (…) o dano biológico constitui a lesão do bem da saúde como dano evento, enquanto o dano moral e o dano patrimonial pertencem à categoria de dano consequência em sentido estrito. A afetação da integridade físico-psíquica da vítima, transformada em patologia constitui-se com o evento lesivo. O dano que afeta a integridade físico-psíquica não deve ser confundido com o dano momentâneo, tendencialmente passageiro, ou seja, a perturbação psicológica, que se traduz no dano moral (dano-consequência). A distinção entre dano-evento e dano-consequência tem a virtualidade de deslocar a discussão do dano corporal do mero âmbito das suas consequências para a decisiva esfera ontológica. Esta distinção, entre outras virtualidades, permite clarificar que o dano corporal (dano-evento) existe independentemente das consequências de ordem patrimonial (dano-consequência). Assim, o dano corporal existe sempre que haja lesão da integridade físico-psíquica. E reconhecida a sua existência como dano-evento, sempre terá de ser reparado. Já as consequências patrimoniais do dano corporal revelam-se, no plano ontológico, sucessivas, ulteriores a este e meramente eventuais. A eventual existência e contornos das consequências patrimoniais não pode nem deve confundir-se com o dano corporal (dano evento) não depende da existência e prova de efeitos patrimoniais, este é que se apresentam como consequência (ulterior) do primeiro. Assim, o dano corporal existe sempre que haja lesão da integridade físico-psíquica».
Para Graça Trigo, numa abordagem minoritária, o «dano biológico, sendo um dano real ou dano-evento, não deve, em princípio, ser qualificado como dano patrimonial ou não patrimonial, mas antes como tendo consequências de um e/ou outro tipo; e também por isso, em nosso entender, o dano biológico não deve ser tido como um dano autónomo em relação à dicotomia danos patrimoniais/ danos não patrimoniais» (in «Adoção do Conceito de “Dano Biológico” pelo Direito Português», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Volume VI, Coimbra Editora, 2012, p. 653).
Por nós, entendemos que o «dano biológico, tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral, devendo a situação ser apreciada, casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período ativo do lesado ou da sua vida, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade» (Ac. do STJ, de 12.01.2017, Proc. 1292/15.6T8GMR.S1).
Por essa razão, em caso de dano biológico, tem-se questionado se, além da reparação pelas perdas salariais decorrentes do grau de incapacidade para o trabalho fixado no foro laboral, é devida pelo responsável cível a diferença correspondente à indemnização pelo dano biológico associado às sequelas das lesões sofridas.
Para Júlio Gomes, a descoberta do chamado "dano biológico" permite reparar, para além da perda ou redução da capacidade de trabalho do lesado, o desempenho de outras atividades e tarefas, inclusive domesticas, que têm um valor económico[6] e que, ficando o lesado incapaz de as realizar, acarretarão um dano patrimonial, sob a forma de despesas necessárias (in “Algumas reflexões críticas sobre a responsabilidade civil por acidente de trabalho”, Julgar, n.º 43, 2021, p. 138).
O autor cita, neste sentido, o ac. STJ, de 10.10.2012, Proc. 632/2001 (Ao arbitrar-se indemnização pelo dano patrimonial futuro deve ter-se em consideração, não apenas a parcela dos rendimentos salariais auferidos à data do acidente directa e imediatamente perdidos em função do nível de incapacidade laboral do lesado, calculados através das tabelas financeiras correntemente utilizadas, mas também o dano biológico sofrido por lesado jovem, (consubstanciado em IGP de 17,06 %, sujeita a evolução desfavorável, convergindo para o valor de 22%), com relevantes limitações funcionais, redutoras das possibilidades de exercício ou reconversão profissional futura, implicando um esforço acrescido no exercício das actividades profissionais e pessoais) e, ainda, o ac. desta Relação a que já aludimos, de 23.3.2015 (A circunstância de no n.º 3, do artigo 9.º, da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, se referir que «Nos casos em que não haja lugar à indemnização pelos danos previstos na alínea a) do artigo 3.º, é também inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho», não impede que seja atribuída indemnização a título de dano biológico, se este existir).
Esta questão foi igualmente debatida no acórdão do STJ, de 11.12.2012 (Proc. 40/08.1TBMMC.C1.S1), nele se concluindo que o dano biológico não é um dano laboral mas um dano de natureza geral, a que corresponde a denominada incapacidade permanente geral, correspondente à afetação definitiva da capacidade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussões nas atividades da vida diária, incluindo familiares, sociais, de lazer e desportivo, a qual não tem sequer expressão em termos de incapacidade para o trabalho apenas exigindo ao autor esforços acrescidos nesse domínio.
Mais recentemente, o acórdão do STJ, de 05.05.2020 (Proc. 0/11.7TBSTR.E1.S1), destaca o seguinte quanto à indemnização devida ao sinistrado/lesado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso de o autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho: - esta não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado este na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto, se está perante dois danos de natureza diferente.
Deste modo inexiste, nestes casos, uma duplicação de indemnizações a favor do sinistrado/lesado, não ocorrendo um injustificado enriquecimento deste, pelo que a indemnização arbitrada em sede de responsabilidade geral cível a título de dano biológico acresce e complementa aquela outra, porventura, já atribuída no foro laboral.
Aqui chegados, vejamos qual o conteúdo do art. 51.º citado pelo R.:
1 - Caso o acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º [7]seja também de trabalho ou de serviço, o Fundo só responde por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes, incumbindo, conforme os casos, às empresas de seguros, ao empregador ou ao Fundo de Acidentes de Trabalho as demais prestações devidas aos lesados nos termos da lei específica de acidentes de trabalho ou de serviço, salvo inexistência do seguro de acidentes de trabalho, caso em que o FGA apenas não responde pelas prestações devidas a título de invalidez permanente.
(…)
3 - Quando, por virtude de acidente previsto nos artigos 48.º e 49.º, o lesado tenha direito a prestações ao abrigo do sistema de proteção da segurança social, o Fundo só garante a reparação dos danos na parte em que estes ultrapassem aquelas prestações.
Quanto a este n.º 3, não resultou demonstrada nos autos qualquer assistência ao A. prestada pela Segurança Social que, aliás, foi citada por carta remetida a 2.11.2017, não tendo intervindo nos autos.
Por outro lado, como facilmente resulta do n.º 1 agora enunciado, quando o sinistro seja simultaneamente de viação e de trabalho, relativamente ao dano corporal ou, mais propriamente ao dano na saúde ou dano-evento, o FGA responde pelos danos não patrimoniais e pelos danos patrimoniais não abrangidos pela lei dos acidentes de trabalho.
Quer isto dizer que o legislador reconheceu aqui que a indemnização por acidente de trabalho, em caso de lesão corporal, não cobre todos os danos patrimoniais e não abrange os danos não patrimoniais.
Sendo assim, não se vislumbra o que pretende o recorrido ao alegar que quando o lesado sofre um acidente que é coberto pelo seguro de acidentes de trabalho deve ser a seguradora do acidente de trabalho a responder pela reparação dos danos do acidente, uma vez que deste art. 51.º resulta o oposto: o FGA responde pelos danos materiais (nomeadamente quando se trate de danos corporais significativos, isto é, que determinem incapacidade permanente superior a 15%) não cobertos pela responsável do trabalho e, ainda, pelos danos não patrimoniais, quando ocorra dano corporal.
Ora, verifica-se do ponto 18 dos factos provados o seguinte: Em virtude deste sinistro ter sido também considerado como acidente de trabalho, a B... – Companhia de Seguros, S.A., assumiu o tratamento clínico do demandante, assim como a responsabilidade pelos danos causados no que concerne a essa vertente, liquidando ao autor:
a) a pensão anual, atualizável anualmente, de €31.976,00, com início em 06.06.2014, calculada com base na retribuição anual de €39.970,00 e na I.P.A.T.Q.P, acrescida de €3.997,00 por cada filho menor a seu cargo (2 filhos);
b) subsidio de elevada incapacidade no valor de €5.533,70;
c) prestação para auxílio de terceira pessoa no valor 461,14 mensais;
d) a quantia de €25,00 por conta de transporte;
e) a quantia de €62.540,58 a título de indemnização pela ITS.
19 – A B... – Companhia de Seguros, S.A., presta ainda assistência e acompanhamento médico permanente ao autor.
Quer isto dizer que, todos os danos decorrentes da lesão da saúde do A. (dano biológico) que não estão ali contemplados são da responsabilidade do FGA.
Improcede, assim, este seu argumento.
Valores a indemnizar
Já fomos adiantando a verificação de um dos elementos fundamentais da responsabilidade civil – a culpa do terceiro veículo interveniente -, verificando-se os demais previstos no art. 483.º e ss. do CC (facto lesivo, voluntário, causalmente adequado a produzir o dano).
Também já vimos que a intervenção do FGA ocorre por força dos já citados arts. 48.º e 49.º do DL 291/07.
Resultaram deste sinistro danos corporais diversos:
a) Durante 327 dias, o(a) autor(a) viu totalmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;
b) Durante 343 dias, o(a) autor(a) viu parcialmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;
c) O(A) autor(a) sofreu dor quantificável num grau 6, numa escala até 7 (quantum doloris);
d) O(A) autor(a) ficou definitivamente afetada na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 81, numa escala até 100;
e) O(A) autor(a) sofreu uma afetação da sua aparência (imagem estética) num grau 4, numa escala até 7;
f) A consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo(a) autor(a) ocorreu em 18 de fevereiro de 2014.
7 – Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o(a) autor(a):
a) encontra-se permanentemente incapaz de exercer qualquer atividade profissional;
b) carece permanentemente de ajudas medicamentosas, de acompanhamento médico e o auxílio de terceira pessoa;
c) apresenta permanentemente:
i) marcha com alguma lentificação;
ii) cicatriz nacarada na transição parietoccipital, medindo 8,5 cm de comprimento em relação com ferimentos que foi suturado;
iii) cicatriz nacarada na região frontal do crânio, à direita da linha média com um discreto afundamento na extremidade mais posterior medindo 3,5 cm de comprimento, em relação com aplicação de cateter;
iv) cicatriz nacarada com vestígios de pontos estendendo-se da região pré-auricular direita até à região pré-auricular esquerda, contornando a região frontal pelo bordo anterior do couro cabeludo, com cerca de 45 cm de comprimento, depois de retificada;
v) cicatriz nacarada na face anterior do pescoço, transversal, medindo 9 cm de comprimento em provável relação com traqueostomia;
vi) várias cicatrizes nacaradas infracentimétricas na região clavicular direita em relação com aplicação de cateter;
vii) cicatriz nacarada no flanco esquerdo do abdómen, medindo 12 cm de comprimento;
viii) cicatriz nacarada na linha média abdominal medindo 12 cm de comprimento;
ix) complexo cicatricial nacarado com uma zona discretamente acastanhada na face anteromedial do antebraço esquerdo, estendendo-se do cotovelo ao 1/3 distal do antebraço medindo 18x9 cm;
x) cicatriz nacarada puntiforme na face anterolateral do 1/3 proximal do antebraço;
xi) complexo cicatricial nacarado, pouco aparente estendendo-se da face posterior do 1/3 distal do antebraço esquerdo até ao dorso da mão medindo 8x4 cm.
8 – O autor nasceu em .../.../1976.
9 – Sendo uma pessoa fisicamente bem constituída, alegre, calma, saudável e dinâmica
10 – O autor ficou física e psiquicamente diminuído aos olhos de quanto o conheciam, situação que lhe acarretou desgosto e reflexos negativos de origem psicológica, abstendo-se da companhia dos amigos.
11 – As lesões sofridas pelo autor provocaram-lhe profundo desgosto, anulando-lhe o seu dinamismo e vida de relação social, tirando-lhe grande alegria de viver.
12 – Por total incapacidade para o trabalho, o autor deixou de exercer qualquer atividade laboral.
O A. formulou pedido de compensação pelos danos não patrimoniais e pelos danos patrimoniais não cobertos pela seguradora do trabalho, i.é, os relativos às perdas de lucro na sociedade de que era sócio, sendo-lhe reconhecida uma elevada capacidade intelectual, desenvolvendo, com genialidade, a atividade de engenheiro de informática.
Vertente patrimonial do dano biológico
No tocante ao dano biológico, como vimos, este tem um rebate patrimonial, enquanto diminuição ou perda do rendimento salarial e, nesse tocante, a indemnização atribuída no foro laboral já o cobre, sendo que, aqui, sequer o A. a peticiona
Porém, e já o dissemos, o dano biológico tem outras repercussões que podem considerar-se patrimoniais e não patrimoniais.
Para além dos acórdãos a que fizemos referência, podem ver-se, ainda, por exemplo, o ac. STJ, de 31.1.2023, Proc. 795/20.5T8LRA.C1.S1: Do facto de o lesado em acidente simultaneamente de viação e de trabalho ter recebido a indemnização por acidente de trabalho acordada com a seguradora responsável pela reparação do sinistro no respectivo processo laboral não resulta que não possa haver lugar a indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes do dano biológico sofrido, se as sequelas definitivas do acidente forem de molde a fazer prever a sua ocorrência; A tal não obsta o facto de tais sequelas serem compatíveis com o exercício da actividade profissional habitual que o lesado mantem sem redução de categoria profissional ou remuneração, mas que dele exigem significativos esforços suplementares.
Ac. do STJ, de 17.1.2013 (Proc. 5986/18.6T8LRS.L1.S1): I – O dano biológico, ainda que lhe possa ser conferida autonomia, cabe no dualismo dano patrimonial/dano não patrimonial (não é um “tertium genus”), podendo ter e traduzir-se numa vertente patrimonial e numa vertente não patrimonial, sendo que, quando apenas está em causa e se pretende indemnizar o dano causado por uma incapacidade permanente geral (que impõe ao lesado esforços acrescidos no desempenho da sua profissão, mas que não se repercute numa perda da capacidade de ganho), se está perante a vertente patrimonial do “dano biológico”, cuja indemnização também cobre a perda de potencialidades e de oportunidades profissionais (não havendo lugar à fixação dum montante indemnizatório por uma IPP que, em tal hipótese, nem sequer existe). II – O único critério legal para a fixação da indemnização do dano biológico (dano futuro) é a equidade (cfr. art. 566.º/3 do C. Civil), o que não significa, que não se usem, como auxiliar, como instrumento de trabalho, fórmulas matemáticas, que têm o mérito de impedir “ligeirezas decisórias” ou involuntárias leviandades e subjetivismos, na medida em que obrigando o julgador à externalização, passo a passo, do seu juízo decisório e a uma maior “densificação” da fundamentação da decisão, contribuem para impedir raciocínios mais ligeiros e/ou maquinais na fixação de indemnização. III – Tendo a lesada 23 anos na data do acidente e tendo ficado com uma IPG de 14,8 pontos, sem rebate profissional mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional, é equitativo fixar (por reporte/atualizada à data da sentença, proferida 6 anos após o acidente) a indemnização por tal dano biológico em €50.000,00; montante este a que – estando-se “apenas” perante uma IPG, que exige esforços suplementares no exercício da atividade profissional, mas sem qualquer repercussão/rebate, direto e proporcional, sobre a capacidade de ganho do lesado – não pode acrescer outro e autónomo montante indemnizatório com base no dano futuro da perda de ganho.
Ac. STJ, de 6.12.2022, Proc. 2517/16.6T8AVR.P1.S1: I - O conceito de dano biológico tem natureza instrumental na determinação do valor da indemnização traduzindo o reconhecimento que a afectação e diminuição das capacidades pessoais, psíquicas e/ou somáticas do lesado tem repercussão na vida que o lesado passará a ter e é susceptível de gerar a obrigação de reparação pelo autor do facto ilícito. II – O dano biológico constituiu fundamento para a reparação dos danos tradicionalmente enquadráveis na categoria de danos patrimoniais bem como a daqueles que, não tendo uma expressão patrimonial directa, mereçam a tutela do direito e importe quantificar, com base em critérios de equidade. III - O uso de fórmulas de cálculo da vertente patrimonial do dano biológico é adequado, enquanto método de aproximação à determinação do valor da indemnização a arbitrar pelos danos patrimoniais futuros, desde que nelas se introduzam como factores determinantes a esperança média de vida do lesado, o grau de deficiência funcional de que ele ficou a padecer e o valor dos rendimentos auferidos anteriormente, sendo o respectivo resultado equitativamente corrigido em função das circunstâncias do caso. IV - Não estando as decisões das instâncias que fixaram equitativamente o montante da indemnização vinculadas a um estrito critério normativo, a sua alteração só se justificará quando o julgador se não tiver contido, numa perspectiva actualista, dentro da margem de discricionariedade consentida pelo recurso à equidade. V - Afigura-se ajustada e equitativa a atribuição de uma indemnização de €30.000,00 para reparação de danos de natureza não patrimonial sofridos por uma mulher de trinta e sete anos de idade que passou a registar após o facto ilícito, e por causa dele, um défice de 11 pontos de eficiência funcional de integridade físico-psíquica por sintomatologia ansiosa e depressiva reactiva ao acontecimento, sem sequelas físicas definitivas, por agravamento de impacto moderado de anterior quadro psiquiátrico.
Ac. STJ, de 14.12.2016, Proc. 25/13.6PTFAR.E1.S1: I - Considerando o comportamento negligente do condutor segurado pela demandante que ocasionou um despiste da viatura automóvel que conduzia, derrubando uma árvore que veio a cair sobre o demandante civil, julga-se adequada a quantia de €45.000,00, arbitrada a título de danos não patrimoniais ao lesado, com 17 anos à data do acidente.
II - O dano corporal/dano biológico não se circunscreve às consequências sobre a capacidade de trabalho ou sobre a capacidade de obtenção de rendimentos, tendo de ser entendido numa perspetiva global de ofensa à saúde e à integridade física e psíquica, enquanto direito inviolável do homem à plenitude da vida física, em todos os aspetos da sua vida. III - O dano corporal (ou dano biológico ou dano à saúde) tem autonomia por si só, não se esgotando num qualquer dano patrimonial em sentido estrito - quando a incapacidade permanente tem repercussões sobre a atividade laboral, afetando a capacidade de ganho - e distinguindo-se do dano moral - neste se incluindo as dores, o sofrimento, o dano estético, etc. IV - A incapacidade parcial permanente, ainda que não acarrete uma diminuição dos concretos rendimentos do lesado, constitui um dano futuro indemnizável autonomamente, correspondendo ao denominado “dano biológico”.
V - Considerando que o lesado ficou afetado de uma IPP de 12% causada pelas lesões do acidente, forçoso é considerar que se verifica uma perda relevante de capacidades funcionais do recorrente/ demandante civil, que mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado, constitui uma verdadeira «capitis deminutio», que carece de ser ressarcida autonomamente como dano biológico, na medida em que condiciona, de forma relevante e substancial, as possibilidades exercício profissional e de escolha de profissão, e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição. VI - Na jurisprudência do STJ a atribuição ou confirmação de uma indemnização por tal incapacidade, seguindo o critério da equidade, conforme o disposto no art. 566.º, n.º 3, do CC, varia essencialmente em função dos seguintes fatores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho em profissão ou atividade económica alternativa, aferidas, em regra, pelas suas qualificações.
VII - Atendendo à idade do lesado, ao défice funcional permanente de que ficou portador após a cura clínica que lhe determinam uma IPP de 12%, que embora seja compatível com o exercício da generalidade das profissões que o examinado venha a exercer, implicará, contudo, esforços suplementares, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades exercício profissional e de escolha de profissão, ficando o lesado com limitações que são de molde a influir negativamente e de sobremaneira na sua produtividade, sendo ainda tais limitações suscetíveis de reduzir o leque de possibilidades de profissões a exercer, e de se traduzir em maior onerosidade no desempenho das tarefas pessoais, mormente das lides domésticas, recorrendo a critérios que são fundamentalmente de equidade, entendemos como justa uma indemnização a título de dano biológico fixada em €45.000,00.

Do exposto resulta que o dano biológico apresenta duas dimensões patrimoniais: uma, a relativa à perda do rendimento salarial, em consequência da incapacidade para o trabalho, indemnização que foi atribuída ao A. em sede de direito laboral, que o não esgotou porquanto não incluiu os danos futuros resultantes da perda da capacidade aquisitiva tout court (e, no caso, demonstrou-se mesmo que o A. tinha uma outra atividade, além de assalariado por conta de outrem), outra, a que resulta da afetação da integridade físico-psíquica, a incapacidade funcional que deve ser indemnizada, ainda que não impeça o lesado de trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento, abrangendo situações em que o lesado esteja inativo. Assim, são consequências patrimoniais do dano biológico a afetação de rendimentos ou a perturbação de oportunidades profissionais, porquanto «a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediatamente refletida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira ”capitis diminutio” num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha de profissão, eliminando ou restringindo seriamente qualquer mudança ou reconversão de emprego e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, erigindo-se, deste modo, em fonte atual de possíveis e futuros lucros cessantes, a compensar, desde logo, com verdadeiros danos patrimoniais» (Ac, STJ, de 10.10.2012, Proc. nº 632/2001.G1.S1).
E como valorizar este dano que se repercute patrimonialmente?
No ac. do STJ, de 2.2.2023, Proc. 2501/10.3TVLSB.L1.S1, seguiu-se a posição defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça, no ac. de 28.01.2016, proferida no proc. nº 7793/09.8T2SNT.L1.S1, segundo a qual: “O princípio geral da obrigação de indemnizar consiste na reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º, do Código Civil). A reconstituição natural é substituída pela indemnização em dinheiro quando se verificar alguma das situações do nº 1, do art. 566º, do CC: “sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”. A indemnização deve abranger os danos emergentes e os lucros cessantes (art. 564º, nº 1, do CC) e o seu cálculo deve ser feito segundo a fórmula da diferença, prevista no nº 2, do art. 566º, do CC (“a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”). Contudo, se o montante dos danos for indeterminado e, por isso mesmo, a fórmula da diferença não puder ser aplicada, “o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados” (nº 3, do art. 566º, do CC)”.
Assim, naquela decisão de fevereiro último, fixou-se em €75.000,00, a indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial – independentemente dos seus reflexos no exercício de atividade profissional – a lesada de 26 anos, com 17% de défice funcional, com múltiplas lesões e sequelas[8], e igual montante para os danos não patrimoniais[9].
De igual modo, no ac. STJ, de 30.11.2021, Proc. 1544/16.8T8ALM.L1.S1, onde se escreveu: o homem, na sua integridade psico-somática, desenvolve a sua existência terrena na sua vida e realização profissionais e na sua vida relacional – relacionando-se e interagindo com os demais seres humanos – pelo que pode haver dano corporal, nesta faceta da sua vida relacional, tenha ou não havido qualquer rebate anátomo-funcional.
(…)
E é justamente por isto – estando “apenas” provado (pontos 62 e 64) que a A. “está afetada de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 14,8 pontos” e que “tais lesões e as sequelas que a A. apresenta são compatíveis com o exercício da atividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares”, e não estando provada qualquer concreta perda da capacidade de ganho – que aquilo que a A./recorrente pretende ver indemnizado a título de perda futura de capacidade de ganho (agora, com a quantia de €71.723,45€) só possa ser indemnizado, como foi, como dano biológico.
Foi, ainda, aí efetuada uma avaliação de jurisprudência nesta matéria, citando-se os seguintes acórdãos:
Acórdão de 19/02/2015:
Tendo resultado provado que a IPP de 12 pontos que o autor ficou a padecer é compatível com o exercício da sua atividade profissional habitual, e não estando provado que esse défice tenha reduzido a sua capacidade de ganho em 12%, nenhuma relevância tem, para a fixação da indemnização, o montante da sua retribuição profissional, posto que o que está em causa não é essa específica atividade, mas antes a sua atividade em geral. Resultando dos autos apenas que em virtude das sequelas das lesões provocadas no acidente o autor passou a ter que empregar “esforços suplementares”, resta recorrer à equidade para determinar o quantum indemnizatório – art. 566.º, n.º 3, do CC, afigurando-se adequado o montante fixado pela Relação de €25.000.
Acórdão de 06/12/2011:
A indemnização a arbitrar pelo dano biológico sofrido pelo lesado – consubstanciado em relevantes limitações funcionais, inelutavelmente decorrentes das lesões físicas causadas e manifestamente impeditivas ou limitativas do direito de trabalhar e prover à sua própria subsistência – deverá compensá-lo, apesar de não imediatamente refletido numa perda atual de rendimentos profissionais, da relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão ou de mudança ou reconversão de emprego – e, portanto, do leque de oportunidades profissionais à sua disposição - bem como da acrescida penosidade e esforço no futuro e eventual exercício de qualquer atividade corrente. Deverá tal compensação do dano biológico, a fixar com apelo a juízos de equidade, ter em consideração, quer a perda inelutável de potencialidades laborais decorrentes do grau de incapacidade permanente parcial apurado, quer o longo período de incapacidade temporária absoluta imediatamente posterior ao acidente, apesar de, à data deste, o lesado não exercer atividade profissional remunerada - tendo, porém, ( ponderada a sua idade -32 anos - e os projetos e intenções de vida, documentados na factualidade apurada) uma efetiva potencialidade laboral, drasticamente afetada pelas sequelas do sinistro.
Acórdão de 29-10-2019:
Ao dano biológico não pode ser conferida autonomia enquanto tertium genus e, por essa razão, todas as variantes do dano-consequência terão de traduzir-se sempre num dano patrimonial e/ou num dano não patrimonial. Assim, o défice funcional, ou dano biológico, representado pela incapacidade permanente resultante das lesões sofridas em acidente de viação, é suscetível de desencadear danos no lesado de natureza patrimonial e/ou de natureza não patrimonial. Numa situação em que ao lesado, com 34 anos, foi atribuído um défice funcional de 16 pontos por força das lesões sofridas, sem rebate profissional mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional (vendedor e empresário de materiais de construção civil e produtos agrícolas), afigura-se ajustado o montante de €36.000,00 para indemnizar tal dano futuro.
Acórdão de 05/12/2017:
O dano biológico não constitui uma nova categoria de dano à pessoa, mas constitui sua própria essência; a inovação está na sua reparabilidade em qualquer caso e independentemente das consequências morais e patrimoniais que, da redução da capacidade laborativa, dele possam derivar. O dano biológico derivado de incapacidade geral permanente, de cariz patrimonial, é susceptível de justificar a indemnização por danos patrimoniais futuros, independentemente de o mesmo se repercutir na vertente do respectivo rendimento salarial, já que constitui um dano de esforço, porquanto o sujeito para conseguir desempenhar as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento, necessitará de um maior empenho, de um estímulo acrescido.
Acórdão de 19/04/2018:
A lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afecta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”, dano primário, do qual podem derivar, além de incidências negativas não susceptíveis de avaliação pecuniária, a perda ou a diminuição da capacidade do lesado para o exercício de actividades económicas, como tal susceptíveis de avaliação pecuniária. A vertente patrimonial do dano biológico tem como base e fundamento a substancial e relevante restrição às possibilidades de exercício de uma profissão ou de uma futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pela lesada, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente a vai afectar. Em conformidade com a jurisprudência consolidada na matéria, os valores obtidos através da aplicação de auxiliares matemáticos fornecem apenas uma orientação com o objectivo de uniformização de soluções para casos idênticos ou de contornos semelhantes, sem prejuízo da indemnização dever ser sempre ajustada ao caso concreto, recorrendo o julgador, para alcançar esse desiderato, à equidade. No cálculo do dano patrimonial futuro, deverá ser ponderada a incapacidade da lesada para exercer a profissão habitual bem como a impossibilidade de, na prática, obter um novo emprego, apesar de as limitações funcionais sofridas, em consequência do acidente, não serem impeditivas de exercer uma outra actividade. Essa impossibilidade, no caso concerto, advém do previsível agravamento do seu estado de saúde e necessários tratamentos, mas também da ausência de formação profissional, de competências laborais, da idade, das exigências e dificuldades do mercado de trabalho, que inviabilizam, na prática, a empregabilidade da lesada.
Acórdão de 06-12-2017 (relator Manuel Tomé Gomes):
O dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, incluindo a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer atividades ou tarefas de cariz económico, mesmo fora da atividade profissional habitual, bem como os custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expetáveis. Um défice funcional genérico permanente de 25,6%, apesar de não representar incapacidade para o exercício da atividade profissional habitual do lesado mas apenas um esforço acrescido nesse exercício, não pode deixar de traduzir, ainda assim, redução na sua capacidade económica geral na medida em que constitua limitação relevante para o desempenho de outras atividades económicas, concomitantes ou alternativas, que lhe pudessem entretanto surgir, na área da sua formação profissional, ou mesmo na realização de tarefas pessoais quotidianas. Neste tipo de situações, a indemnização reparatória não deve ser calculada com base no rendimento anual do lesado auferido no âmbito da sua atividade profissional habitual, já que o sobredito défice funcional genérico não implica incapacidade parcial permanente para o exercício dessa atividade, envolvendo apenas esforços suplementares nesse exercício. Em tais casos, a solução seguida pela jurisprudência do STJ é a de fixar um montante indemnizatório por via da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do CC, em função das circunstâncias concretas de cada caso, segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando a expetativa de vida ativa não confinada à idade-limite para a reforma.
A comparação com os diversos casos já tratados na jurisprudência nem sempre se mostra fácil, dada a multiplicidade de fatores variáveis e as singularidades de cada caso, relevando, em especial, o impacto concreto que determinado grau de défice funcional genérico é suscetível de provocar no contexto da atividade económica que estava ao alcance da iniciativa do sinistrado com a inerente perda de oportunidade de ganho.
No caso vertente em que as limitações de mobilidade de que o lesado ficou afetado, correspondentes a um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 25,6%, a partir da alta médica em 14-03-2012 (data em que o A. contava quase 60 anos de idade), além do acréscimo de esforço físico no exercício do tipo de atividade profissional habitual que vinha então desenvolvendo, implicam inegável redução da sua capacidade económica geral para se dispor ao desempenho de atividades económicas, concomitantes ou alternativas, que, presumivelmente, ainda lhe pudessem surgir na área da sua formação profissional e até para a execução de tarefas quotidianas, ao longo da sua expetativa de vida, mesmo para além da idade-limite da reforma.
Nessas circunstâncias, sem esquecer o tempo decorrido entre a data da alta médica (14-03-2012) e a data da sentença da 1.ª instância (09/06/2016), no quadro dos padrões da jurisprudência mais recente, tem-se como razoável valorar o dito dano biológico, na respetiva vertente patrimonial, na quantia de €100.000,00, tida por atualizada à data da sentença.
Este mesmo entendimento foi partilhado pela ora relatora, na qualidade de adjunta, nos acs. desta Relação, de 6.2.2023, Proc. 8402/12.3TBMTS.P1, assim sumariado: I - O dano biológico, enquanto lesão da integridade físico-psíquica encontra a sua compensação tutelada no artigo 25º nº 1 da CRP e no artigo 70º do CC. II - É pela jurisprudência acolhido o entendimento de que a um reconhecido dano corporal corresponde de acordo com a sua gravidade um crédito indemnizatório, independentemente de este ter tradução direta ou não na perda de rendimentos laborais, porquanto sempre implicará e na medida da sua gravidade uma diminuição das competências sociais e em família e mesmo funcionais de cada indivíduo, com reflexos maiores ou menores dependendo de cada caso, não só na sua inserção social e familiar como na sua capacidade produtiva e de como nestes vários contextos terá o lesado de superar ou suportar as suas limitações com maior esforço e/ou penosidade. III - A fixação do valor indemnizatório nestes casos é feita com recurso a critérios de equidade, de acordo com o disposto no artigo 566º nº 3 do CC, para tanto ponderando as circunstâncias do caso concreto. IV - É entendimento jurisprudencial reiterado que a fixação de um quantum indemnizatório em que se recorre a juízos de equidade, porque assente na ponderação das circunstâncias apuradas e relevantes de cada caso concreto e não em razões estritamente normativas, apenas deverá ser alterado quando se evidencie desrespeito pelas normas que justificam o recurso à equidade ou se mostre em flagrante divergência com os padrões jurisprudenciais sedimentados e aplicados em casos similares. V - O valor de €30.000,00 fixado pelo tribunal a quo a título de dano biológico na vertente patrimonial, num quadro de incapacidade apurada de 10 pontos com reflexo no exercício tanto das tarefas da vida diária como a nível profissional que da autora exigem esforço acrescido, não excede de forma substancial e injustificada os padrões jurisprudenciais que têm vindo a ser adotados. VI - Nos danos não patrimoniais – aqueles que afetam bens da personalidade, insuscetíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária – mais do que uma verdadeira indemnização é antes a reparação do dano que se visa alcançar. VII - Na fixação do quantum indemnizatório, e tal como decorre do disposto no artigo 496º nº 4 do CC, há que recorrer a critérios de equidade, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º.
E no ac. de 14.11.2022, Proc. 1522/19.5T8VNG.P1, assim sumariado: I - À fixação de indemnização do dano biológico (vertente patrimonial), consubstanciado em limitação da condição físico-psíquica ou défice funcional sofrido pelo lesado, que traduz uma capitis diminutio, relevam as implicações de alcance económico (sendo as demais vertentes do dano biológico, que traduzem sequelas e perda de qualidade de vida do lesado sem natureza económica, ponderadas em sede de danos não patrimoniais) por que deverá ser compensado (mesmo que não, imediatamente, refletida em perdas salariais ou na privação de uma específica capacidade profissional) quer da restrição às oportunidades profissionais à sua disposição quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua atividade profissional, de modo a compensar (em adição à indemnização por perdas salariais, decorrentes do grau de incapacidade fixado) as deficiências funcionais que constituem sequela das lesões sofridas; II - Sendo inviável estabelecer o seu quantum indemnizatório com base em cálculo aritmético de rendimentos específicos, deve recorrer-se à equidade (art. 564º, nº2 e 566º nº3, ambos do Código Civil) dentro dos padrões delineados pela jurisprudência em função da gravidade das sequelas sofridas; III - É adequada, necessária e proporcional a importância de 82.000,00€ para indemnizar o dano biológico sofrido por lesado que à data do acidente contava 61 anos de idade, que nenhuma contribuição teve para a produção ou agravamento dos danos e que ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 65 pontos; IV - A indemnização por danos não patrimoniais, a fixar por equidade, visa, além compensar o dano sofrido, reprovar a conduta culposa do autor da lesão. Tal compensação deve traduzir a ponderação da extensão e gravidade dos danos causados, do grau de culpa do lesante, da situação económica deste e a do lesado e das demais circunstâncias relevantes do caso, nomeadamente, a idade do lesado, as desvantagens que este tenha sofrido e os critérios e valores usuais na jurisprudência em casos similares, nos termos do nº4, do art. 496º e art. 494º, ambos do Código Civil; V - Os preceitos anteriormente referidos devem ser aplicados com prudência e bom senso, pois têm como efeito deixar sem indemnização parte dos danos reais, o que é suscetível de gerar injustiças absolutas e relativas para os lesados, devendo, para as evitar, seguir-se critérios que permitam obter um modelo indemnizatório que conduza a uma maior igualdade, certeza e segurança jurídica, sem se perder de vista as circunstâncias do caso; VI - É adequada, necessária e proporcional a importância de 55.000,00€ para compensar os danos não patrimoniais sofridos pelo referido lesado, de 61 anos de idade, que, em consequência do acidente, além do mais, sofreu fratura da clavícula direita, hematoma e ferida lacero-contusa no olecrâneo do cotovelo esquerdo e TCE com volumoso hematoma extradural fronto-parietal esquerdo (fratura temporo-parietal), tendo sido submetido a cirurgia e ficado a padecer de dores, dificuldade de memorização e de concentração, ansiedade, depressão e de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 65 pontos, e que teve um quantum doloris no grau 5/7, um dano estético permanente no grau 4/7, com um período de 366 dias de défice funcional temporário total e das inúmeras sequelas referidas no f.p. nº 53.
Temos, assim, que cabe ao FGD, como se seguradora do terceiro veículo se tratasse, indemnizar o A. pelos danos patrimoniais não ressarcidos pelo Tribunal do Trabalho, pois o Fundo só responde por danos materiais e, relativamente ao dano corporal, pelos danos não patrimoniais e os danos patrimoniais não abrangidos pela lei da reparação daqueles acidentes (de trabalho).
A este respeito o A. peticiona €97.920,00, correspondentes à perda de lucros da sociedade de que fazia parte.
Este facto a se (o valor peticionado) não resultou demonstrado, uma vez que, não obstante a empresa de que era sócio ter visto diminuídos os lucros, logo em 2012, ano do acidente, e ter sido considerada encerrada em 2015, a verdade é que, além do autor, contava com mais dois sócios.
Assim, o valor específico - €97.920,00 – de perda de lucros não foi apurado, mas o facto de o autor ser um engenheiro informático, com elevada capacidade intelectual, desenvolvendo, com genialidade, essa atividade, e, em consequência das lesões físicas, ter ficado incapaz de exercer qualquer atividade profissional – mesmo fora da empresa por cujos salários foi indemnizado em Tribunal do Trabalho – deverá ser atendido na avaliação do dano biológico, enquanto elemento da já referida capitis diminutio.
Relevam, ainda, outras circunstâncias donde resulta a restrição no acesso a outras oportunidades profissionais à sua disposição e a acrescida penosidade e esforço na realização das tarefas quotidianas:
À data do sinistro, o autor contava 36 anos de idade.
6 – Em resultado do sinistro referido:
a) Durante 327 dias, o autor viu totalmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;
b) Durante 343 dias, o autor viu parcialmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;
d) O autor ficou definitivamente afetada na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 81, numa escala até 100;
7 - Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o autor:
a) encontra-se permanentemente incapaz de exercer qualquer atividade profissional;
b) carece permanentemente de ajudas medicamentosas, de acompanhamento médico e o auxílio de terceira pessoa;
c) apresenta permanentemente:
i) marcha com alguma lentificação;
ii) cicatriz nacarada na transição parietoccipital, medindo 8,5 cm de comprimento em relação com ferimentos que foi suturado;
iii) cicatriz nacarada na região frontal do crânio, à direita da linha média com um discreto afundamento na extremidade mais posterior medindo 3,5 cm de comprimento, em relação com aplicação de cateter;
iv) cicatriz nacarada com vestígios de pontos estendendo-se da região pré-auricular direita até à região pré-auricular esquerda, contornando a região frontal pelo bordo anterior do couro cabeludo, com cerca de 45 cm de comprimento, depois de retificada;
v) cicatriz nacarada na face anterior do pescoço, transversal, medindo 9 cm de comprimento em provável relação com traqueostomia;
vi) várias cicatrizes nacaradas infracentimétricas na região clavicular direita em relação com aplicação de cateter;
vii) cicatriz nacarada no flanco esquerdo do abdómen, medindo 12 cm de comprimento;
viii) cicatriz nacarada na linha média abdominal medindo 12 cm de comprimento;
ix) complexo cicatricial nacarado com uma zona discretamente acastanhada na face anteromedial do antebraço esquerdo, estendendo-se do cotovelo ao 1/3 distal do antebraço medindo 18x9 cm;
x) cicatriz nacarada puntiforme na face anterolateral do 1/3 proximal do antebraço;
xi) complexo cicatricial nacarado, pouco aparente estendendo-se da face posterior do 1/3 distal do antebraço esquerdo até ao dorso da mão medindo 8x4 cm.
9 – Sendo uma pessoa fisicamente bem constituída, alegre, calma, saudável e dinâmica
10 – O autor ficou física e psiquicamente diminuído aos olhos de quanto o conheciam, situação que lhe acarretou desgosto e reflexos negativos de origem psicológica, abstendo-se da companhia dos amigos.
11 – As lesões sofridas pelo autor provocaram-lhe profundo desgosto, anulando-lhe o seu dinamismo e vida de relação social, tirando-lhe grande alegria de viver.
Acresce o facto demonstrado pela sentença junta aos autos, a 24.9.2019, que, nos termos do artigo 138.º, n.º 1, do Código Civil (na redação da Lei nº 49/2018, de 14/8) e artigo 900.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, foi-lhe nomeada acompanhante a quem se atribuiu o poder de representação geral, nos termos previstos no artigo 145.º, n.ºs 1, 2, alínea b) e 4, todos do Cód. Civil.
Estes danos são patrimoniais e não foram indemnizados no Tribunal do Trabalho, uma vez que este não considerou a redução na sua capacidade económica geral na medida em que constitua limitação relevante para o desempenho de outras atividades económicas, concomitantes ou alternativas, que lhe pudessem entretanto surgir, na área da sua formação profissional, ou mesmo na realização de tarefas pessoais quotidianas. Neste tipo de situações, a indemnização reparatória não deve ser calculada com base no rendimento anual do lesado auferido no âmbito da sua atividade profissional habitual.
Já referimos ser o apuramento deste dano material (independente da perda salarial correspondente à incapacidade) norteado pela equidade que, partindo daqueles factos, alcance a justa medida que reponha a situação ideal em que estaria o lesado não fora o sinistro, desenvolvendo um juízo de justiça casuística e não normativa, tendo em conta as decisões judiciais que já abordaram situações parecidas.
Todavia, como vimos (cfr. ac. STJ, de 17.1.2023, proferido em recurso do ac. RL, de 15.9.2022, Proc. 5986/18.6T8LRS.L1-2), não está afastada a possibilidade de recurso prévio, conquanto meramente indicativo, aos critérios objetivos considerados na Tabela do anexo IV da n.º 377/2008, alterada pela Portaria n.º 679/2009 (tendo em conta a idade do lesado e n.º de pontos), a qual prevê para uma desvalorização de 81 a 85 pontos e lesado de 36 a 40 anos, os valores de €1.718,55 a €1.826,28, por ponto; aplicando estes valores aos 81 de afetação da integridade físico-psíquica do aqui A., obtemos uma indemnização deste dano situada entre 139.202,55, e €147.928,68.
São, ainda, de ponderar as indemnizações que têm sido fixadas pela jurisprudência, como acima vimos, a que acrescem os seguintes;
Acórdão do STJ de 01.03.2018, Proc. 773/07.0TBALR.E1.S1:
A afectação da integridade físico-psíquica (que tem vindo a ser denominada “dano biológico”) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial, compreendendo-se na primeira categoria a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais. Os índices de incapacidade geral permanente não se confundem com os índices de incapacidade profissional, correspondendo a duas tabelas distintas, aprovadas pelo DL n.º 352/2007, de 23-10: na incapacidade geral avalia-se a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-a-dia, a qual pode ter reflexos ao nível da incapacidade profissional, mas que com esta não se confunde. A fixação da indemnização por danos patrimoniais resultantes do “dano biológico” não pode seguir a teoria da diferença (art. 566.º, n.º 2, do CC) como se tais danos fossem determináveis, devendo antes fazer-se segundo juízos de equidade (art. 566.º, n.º 3, do CC). Para tanto, relevam: (i)- a idade do lesado à data do sinistro (39 anos); (ii)- a sua esperança média de vida que, para homens nascidos em 1964, se situará, no ano de 2004 – ano do acidente – entre 64 e 75 anos (e não a sua previsível idade da reforma, já que a perda da capacidade geral de ganho tem repercussões negativas ao longo de toda a vida do lesado); (iii)- a percentagem de incapacidade geral permanente (53%); e (iv)- a conexão entre as lesões físicas sofridas e as exigências próprias de actividades profissionais ou económicas alternativas, compatíveis com a formação/preparação técnica do lesado (sendo que, no caso, este deixou de poder caminhar, levantar-se ou baixar-se normalmente, só o podendo fazer com canadianas e a sua formação/preparação técnico-profissional corresponde à de um electricista de redes de distribuição, assentando as suas competências na destreza, mobilidade e força). É, por isso, de concluir que a afectação dos referidos parâmetros terá consequências extremamente negativas na possibilidade efectiva de o lesado vir a exercer actividade profissional alternativa, aproximando-se a sua situação de uma incapacidade total permanente para o trabalho, pelo que, ponderando os enunciados factores e comparando o caso com outras decisões do STJ, afigura-se justa e adequada a fixação da indemnização, a título de dano patrimonial futuro por perda da capacidade de ganho desde a data do sinistro, em €400.000 (ao qual se deduzirá o valor já pago) e não em €280.000 como fez a Relação.»
Merece também destaque o acórdão do STJ de 11.02.2014, Proc. 855/10.0TBGDM.P1.S1:
É justificada a indemnização de €100.000, atribuída pela Relação (e não de €50.000 fixada pela 1.ª instância), por danos não patrimoniais, a pessoa – o autor – que, por virtude de acidente de viação, aos 47 anos de idade, perde a perna esquerda, tem de usar uma prótese para o resto da vida, não pode correr e caminha com esforço, com défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, fixável em 50 pontos percentuais, sente-se diminuído, triste e angustiado, foi submetido a várias intervenções cirúrgicas, sofreu dores em grau 5, numa escala de 7, um dano estético fixável no grau 4, numa escala de 7 e no que respeita à repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer, um défice fixável em grau 5, numa escala de 7. Considerando que (i)- o autor tinha 47 anos de idade à data do acidente; (ii)- em virtude do mesmo, sofreu um grau de incapacidade funcional fixado em 50%, não estando impedido – apesar da perda da perna esquerda – de continuar a exercer a sua habitual profissão em estabelecimento de drogaria, nem qualquer outra que não implique especial esforço físico, (iii)- a esperança de vida é superior aos 70 anos; (iv)- o salário mensal de €500, com os previsíveis aumentos ao longo dos anos; (v)- a erosão decorrente da inflação; (vi)- a vantagem de receber de uma só vez o total da indemnização; (vii)- ponderando, ainda, uma taxa de juro da ordem dos 3% a 4%, afigura-se equitativo fixar a indemnização pelo dano patrimonial, decorrente da perda de ganho futuro em €80.000 (e não em €70.000, como fixou a 1.ª instância, nem em €180.000, como decidiu a Relação).”
De referir também o acórdão do STJ de 23.11.2017, Proc. 3930/06.2TBLRA.C1.S1: A lei prescreve o critério da equidade e não outro, nomeadamente o baseado no mero cálculo matemático, como meio de alcançar a justa reparação do dano cujo valor exato não é possível averiguar, como sucede, paradigmaticamente, com o dano futuro. Numa situação em que a autora, nascida em 1964, em consequência do acidente de viação de que foi vítima, ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado em 13,55 pontos e em que as sequelas a nível dos membros inferiores afetados são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional impeditivas do exercício da atividade habitual (motorista de serviços públicos), mas compatíveis com outras profissões da área da sua preparação técnico-profissional, mostra-se adequada e equitativa a fixação da indemnização por danos patrimoniais futuros no valor de €65.000, conforme foi fixado pela Relação.”
Finalmente, para situações de 80 pontos de défice funcional, o STJ, em ac. de 25.11.2019, Proc. 397/03, fixou em €350.000,00, a indemnização pelo dano biológico, incluindo aí a perda da capacidade de ganho, e em €250.000,00, os danos não patrimoniais; em ac. de 16.3.2011, foi o dano biológico, incluindo perda da capacidade de ganho, também fixado em €350.000,00, e o dano não patrimonial em €120.000,00.
Assim, na situação dos autos, vemos que, durante mais de um ano, o A. sequer conseguia realizar tarefas básicas, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal; os 81 pontos de afetação da sua integridade físico-psíquica repercutem-se nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais; as lesões decorrentes do sinistro apenas se consolidaram quase dois anos após o sinistro; o autor carece permanentemente do auxílio de terceira pessoa (a remuneração desta foi já fixada em Tribunal do Trabalho, mas sobeja, carecendo de indemnização por dano biológico, a incapacidade do A. para usar o seu corpo, a sua força, a sua saúde, para a realização das tarefas que têm de ser efetuadas por outrem); não poderá mais exercer qualquer atividade profissional, sendo que o A., além do trabalho por conta de outrem, era titular de uma empresa, sendo reconhecido como um engenheiro informático genial e de elevada capacidade intelectual, pelo que, não obstante não estar demonstrada a relação do encerramento da empresa, em 2015, com a ausência do A., é evidente que no Tribunal do Trabalho lhe não foi atribuída indemnização pela impossibilidade de exercer outro tipo de atividade paralela, como resultou provado que fazia.
Assim, no que respeita ao dano biológico, para além da perda de rendimentos salariais já fixados em Tribunal do Trabalho, consideramos adequada a atribuição de indemnização de €140.000,00.
O A. centrou o pedido por danos patrimoniais na perda dos lucros da empresa de que era sócio. Porém, os factos apurados importam uma subsunção jurídica mais abrangente, não sendo sequer os €97.920,00, peticionados um teto máximo limitador posto que a restrição prevista no art. 609.º, n.º 1 se aplica ao pedido global e não aos segmentos dos danos[10].

Compensação por dano não patrimoniais
O art. 496.º, n.º 1 CC reconhece expressamente a indemnização em dinheiro para o dano não patrimonial, estabelecendo uma cláusula geral, determinando que a indemnização se reporte a danos que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito.
A jurisprudência tem considerado compreendidos neste segmento indemnizatório o dano corporal, traduzido na diminuição psicossomática da pessoa por lesão à integridade física; o dano que resulta do sofrimento físico ou psíquico, onde se incluem o quantum doloris; o prejuízo estético; o prejuízo sexual; o prejuízo da vida concreta e relacional da pessoa (dano existencial ou prejuízo de afirmação pessoal); o prejuízo da auto-suficiência.
Este dano é avaliado segundo critérios de equidade, tendo em conta a culpabilidade do lesante e as demais circunstâncias do caso (arts. 496.º, n.º 3, e 494.º, ambos do CC). Há ainda que ter em consideração os critérios usualmente seguidos nas decisões dos nossos tribunais (cf. art. 8.º, n.º 3, do CC), sem olvidar que a jurisprudência tem vindo a reconhecer progressivamente a necessidade de atribuir indemnizações significativas por danos não patrimoniais, aludindo-se a justo grau de compensação.
Também aqui é útil a ponderação dos valores que, a este respeito, veem sendo fixados pelos tribunais, nomeadamente pelo STJ, como aqueles a que já fizemos alusão supra e como pode ver-se no caderno de jurisprudência temática do STJ, “Os danos não patrimoniais na jurisprudência das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça” (de 2016 a 2021, disponível em danosnaopatrimoniais.pdf (stj.pt), dos quais se destacam:
Ac. de 20.6.2016, Proc. 2185/04.8TBOER.L1.S1
Resultando dos factos provados que o lesado: (i) tinha 26 anos de idade à data do acidente (13-05-2010); (ii) prestava serviço militar na Força Aérea Portuguesa; (iii) em consequência do acidente sofreu um traumatismo crânio-encefálico, com múltiplos focos hemorrágicos, tendo ficado em coma e sido sujeito a internamento hospitalar, com medicação, ventilação, alimentação nasogástrica e traqueostomização, tendo ficando retido no leito, sempre na mesma posição, sem falar, nem comunicar com ninguém; iv) após o internamento, foi encaminhado para consulta externa de neurologia, tendo regressado à casa dos pais, onde ficou acamado por dois meses, com assistência permanente de terceira pessoa, tendo passado a receber tratamentos de fisioterapia (funcional e cognitiva); (v) ficou absoluta e definitivamente impossibilitado de prosseguir a sua carreira militar na Força Aérea ou em qualquer outro ramo das Forças Armadas, o que lhe causou profundo desgosto; (vi) sofreu dores ao longo de um período de dois anos, fixáveis no grau 5 numa escala de 7; (vii) obteve a consolidação médico-legal em 13-05-2012; (viii) ficou a padecer de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 32 pontos; (ix) sofreu um dano estético permanente, uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer e uma repercussão permanente na actividade sexual, tudo fixado em 3 numa escala de 7; e (x) passou a sentir complexo de inferioridade, isolando-se e evitando o convívio com outras pessoas, quando antes era esbelto, saudável, forte, ágil, dinâmico, robusto e não apresentava qualquer deformidade física, tem-se como equitativa a fixação da indemnização devida, a título de danos não patrimoniais, em €100.000.
Ac. 08-03-2016, Revista n.º 103/13.1TBARC.P1.S1: I - A indemnização por danos morais deve ser fixada equitativamente conforme resulta do disposto no art. 496.º, n.º 4, do CC; equidade, no entanto, não significa discricionariedade. A indemnização deve ter em atenção os casos similares de que a jurisprudência do STJ dá notícia, procurando-se, assim, uma harmonização tanto quanto possível efetiva sem se perder de vista as singularidades dos casos concretos. II - No caso vertente, estando em causa indemnização por danos morais, tem-se por ajustado o montante de €60.000, considerando que o lesado, com 22 anos de idade, apresenta como sequelas permanentes do acidente, pé pendente, com os dedos do pé em garra, por paralisia do ciático poplíteo externo; marcha claudicante e alteração da sensibilidade, com dores permanentes na perna e no pé; uma cicatriz que se estende da anca esquerda até à cintura; concavidade acentuada junto ao joelho esquerdo e várias cicatrizes na testa e cabeça, o que traduz um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 20 pontos, padecendo de dano estético permanente de 5 pontos (num total de 7) e impossibilidade de práticas desportivas físicas (futebol e motocrosse) e de profissões que exijam esforço de permanência em pé.
Ac. de 16-11-2017, Revista n.º 9142/13.1TBVNG.P1.S1: Resultando da factualidade provada que a autora: (i) tinha 55 anos à data do acidente de que foi vítima quando, como passageira, seguia num dos veículos intervenientes; (ii) em consequência do acidente sofreu um traumatismo da coluna dorsal, com paraplegia imediata, o que lhe provocou incontinência dos esfíncteres urinários; (iii) tem total incapacidade para manter relações sexuais, indisposição e mal-estar geral decorrente do mau funcionamento a nível do aparelho gastrointestinal, insensibilidade e baixa temperatura nos membros inferiores, mal-estar permanente, necessidade permanente de cadeira de rodas para se deslocar/movimentar, necessidade permanente de medicação, uso de fraldas e de dietas alimentares, incapacidade de se baixar ou apanhar qualquer objecto do solo, incapacidade de realizar qualquer tarefa doméstica ou qualquer trabalho agrícola, incapacidade de se calçar ou vestir sozinha e de tomar banho, de se movimentar sozinha da cadeira de rodas para uma cadeira normal ou andarilho; (iv) tem sentimentos de tristeza, vergonha, angústia, depressão, desgostos e revolta e deixou de ter alegria de viver, andando permanentemente acabrunhada e abatida; (v) esteve internada e foi sujeita a programa de reabilitação, mas continua a apresentar paraplegia, sendo que, apesar das sessões de fisioterapia, não há evolução significativa, nem segundo as mais recentes avaliações, haverá melhoria da sua situação clínica actual; (vi) ficou com um Défice Funcional Permanente da integridade físico-psíquica de 75 pontos; (vii) dores quantificáveis num grau de 7 numa escala de 7; (viii) dano estético fixável no grau 6 numa escala de 7; prejuízo de afirmação pessoal fixável no grau 4 numa escala de 7; e (ix) uma incapacidade permanente global de 71%, mostra-se adequada, atenta a irreversibilidade das lesões, a indemnização de €150.000, fixada pela 1.ª instância e mantida pela Relação, a título de danos não patrimoniais.
No caso vertente, não consideramos a culpa do lesante, uma vez que o FGA se substitui por imperiosa necessidade de salvaguarda dos lesados quando o lesante não seja conhecido, mas atentaremos nas lesões concretas do A. e seus reflexos:
Sendo um engenheiro informático brilhante e capaz, aos 36 anos de idade ficou padecendo de uma diminuição da sua capacidade física e psíquica, com repercussão nas atividades da sua vida diária, de 81 pontos, e incapacitado permanentemente para o exercício de qualquer atividade profissional; durante 327 dias esteve totalmente dependente de terceiro para a realização das tarefas básicas da vida quotidiana, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal; e parcialmente condicionado nessas tarefas por 343 dias; sofreu um quantum doloris de 6 em 7; sofreu um dano na sua aparência (imagem estética) de 4 em 7 e apresenta inúmeras e extensas cicatrizes; carece permanentemente de acompanhamento médico e auxílio de terceira pessoa; apresenta permanente marcha com alguma lentificação; era uma pessoa alegre, calma, saudável e dinâmica e perdeu grande alegria de viver, sentindo desgosto e vendo anulado o seu dinamismo social, abstendo-se da companhia dos amigos.
Trata-se de uma longa lista de efeitos nefastos que, basicamente, transformaram alguém que, em idade jovem, tinha uma vida normal, com êxito profissional e intelectualmente capaz, numa pessoa absolutamente limitada, sem autonomia e sem capacidade de manter relações familiares e sociais como anteriormente tinha.
Este dano é extenso e merece a adequada compensação, parecendo-nos ajustada, face aos parâmetros jurisprudenciais que vimos, a indemnização de €250.000,00.
Quanto à atualização da indemnização de acordo com os índices de inflação e do pedido de juros de mora:
O n.º 3 do art. 805.º CC estipula que, em caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, existe mora desde a citação a menos que haja mora nos termos da 1.ª parte do normativo.
Deste modo, os juros moratórios em casos de indemnização emergente de acidente de viação são devidos desde a citação (cfr. AC. RC., de 14.11.95, CJ, XX, V, 34).
Todavia, a jurisprudência tem entendido que não pode existir cumulação, para o mesmo período temporal, entre os benefícios da ampliação do capital da indemnização pedida, decorrente da desvalorização monetária, com o vencimento de juros moratórios desde a citação[11].
Mas, “a fixação da indemnização atualizada, de harmonia com o n.º 2, do artigo 566.º, do Código Civil, é compatível com a atribuição de juros de mora desde a citação, nos termos da 2.ª parte, do nº. 3, do artigo 805.º, do mesmo Código, desde que os juros incidam sobre o montante da indemnização não atualizado[12].
Em regra, tais juros serão contabilizados desde a citação por terem sido pedidos juros legais.
Mas esta solução vale, igualmente, para o montante indemnizatório relativo aos danos não patrimoniais e para os danos patrimoniais decorrentes do dano biológico?
Já se escreveu que ainda que estes sejam valores reportados à data da sentença, nada obsta a que sobre eles incidam ainda juros de mora desde a citação, nos termos do art. 805.º, n.º 3, do CC[13] e os juros respeitantes ao montante da indemnização por danos não patrimoniais vencem-se a partir do momento da notificação para contestar a respetiva ação, e não desde a data da sentença da 1.ª instancia.[14]
Solução diversa é, porém, a que veio a vencer no STJ:
“Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora, e não a partir da citação”[15].
A solução é justificável por se entender que a ratio indemnizatória atribuída aos juros moratórios já se encontra presente no mecanismo previsto no n.º 2 do art. 566.º Código Civil.
Na verdade, na altura da prolação da decisão que fixa a indemnização, já se pondera, em obediência ao critério previsto no art. 566.º, n.º 2 Código Civil, entre o mais, a desvalorização patrimonial real que se verifica nessa data, não se impondo assim, qualquer compensação pela demora na atribuição da indemnização.
Sendo assim, são devidos juros legais, desde a presente decisão.


Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revogando a sentença recorrida, condenam o R. a indemnizar o A. na quantia global de €390.000,00, com juros legais desde a presente data e até integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado.

Custas por ambas as partes, na proporção do decaimento.


Porto, 13.3.2023.
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
Augusto de Carvalho
___________________
[1] Da certidão permanente extraída da Conservatória do Registo Comercial do Porto resulta que a sociedade A... tinha um capital social de €5.100, 00, e três sócios (sendo um deles o aqui A.), cada um com uma quota de €1.700,00 (fls. 25 e 26 do apenso “Anexo Documental).
[2] Embora indicada como segundo b) na sentença.
[3] Sendo que o ponto 21 refere ter a ação sido proposta em 14.4.2017, quando, na realidade o foi em 13.4.2017, tratando-se de um lapso material notório que agora se corrige.
[4] E não 14.4.2017, como se deu como provado em 21, como pode ver-se por consulta do processo. A autuação do processo é que ocorreu a 14.4.2017.
[5] Cfr., v.g., Ac. RL, de 16.6.2020, Proc. 1662/19.0T8PDL.L1-7 I – A aplicação do alargamento do prazo prescricional previsto no nº 3 do art. 498º do Cód. Civil não está dependente de, previamente, ter sido ou não exercido o direito de queixa, ter havido ou não processo crime ou de o lesante ter sido ou não condenado pela prática do respectivo crime, assim como não impede a aplicação daquele preceito o facto de o processo crime ter sido arquivado (por qualquer motivo) ou amnistiado. II - A razão de ser daquele alargamento do prazo prescricional assenta apenas na especial qualidade e gravidade do facto ilícito. Por isto, para a verificação de tal alargamento, é mister que se alegue e prove na acção cível que os factos que são imputados ao lesante integram determinado tipo criminal.
[6] Citando aqui o ac. STJ, de 11.4.2019, Proc. 5686/15.9T8VIS.C1.S1 : O denominado dano biológico, na sua vertente patrimonial, abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua actividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras actividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos limitações ou de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas actividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis. Num caso, como o dos autos, em que a sinistrada, tendo ficado total e permanentemente incapacitada para o exercício de qualquer actividade. Estando porém já aposentada e não exercendo nem se provando que pretendia exercer outra actividade económica, não haverá em princípio lugar a indemnização por lucos cessantes. Provando-se contudo que a mesma executava sozinha todas as lides domésticas e que por força do estado vegetativo em que se encontra nunca mais as pode exercer; Que tais actividades têm um valor económico e que a sua cessação representa um custo para a economia do casal, esse custo deve ser ressarcido pelo lesante, sendo que o valor da indemnização correspondente deve fixado com recurso à equidade. (…) Peca por defeito a indemnização de €130,000,00, por danos não patrimoniais, arbitrada à vítima de acidente de viação, com culpa exclusiva do lesante e que ficou em estado vegetativo persistente. Tal montante não pode ser alterado pelo STJ, porquanto a A. o aceitou expressamente e sendo tal valor apenas questionado pela R., a tanto obsta o princípio da proibição da “reformatio in pejus”.
[7]
Artigo 48.º
Âmbito geográfico e veículos relevantes
1 - Sem prejuízo do previsto no n.º 3 do artigo 5.º, o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz, nos termos da presente secção, as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados: a) Por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório e, seja com estacionamento habitual em Portugal, seja matriculados em países que não tenham serviço nacional de seguros, ou cujo serviço não tenha aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros; b) Por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório sem chapa de matrícula ou com uma chapa de matrícula que não corresponde ou deixou de corresponder ao veículo, independentemente desta ser a portuguesa; c) Por veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ainda que com estacionamento habitual no estrangeiro.
2 - No caso previsto na alínea c) do número anterior, é aplicável o previsto no artigo 54.º relativamente ao responsável civil.

Artigo 49.º
Âmbito material
1 - O Fundo de Garantia Automóvel garante, nos termos do n.º 1 do artigo anterior, e até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por: a) Danos corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz, ou for declarada a insolvência da empresa de seguros; b) Danos materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz; c) Danos materiais, quando, sendo o responsável desconhecido, deva o Fundo satisfazer uma indemnização por danos corporais significativos, ou tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no local do acidente, não beneficiando de seguro válido e eficaz, e a autoridade policial haja efectuado o respectivo auto de notícia, confirmando a presença do veículo no local do acidente. 2 - Para os efeitos previstos na primeira parte da alínea c) do número anterior, consideram-se danos corporais significativos a lesão corporal que determine morte ou internamento hospitalar igual ou superior a sete dias, ou incapacidade temporária absoluta por período igual ou superior a 60 dias, ou incapacidade parcial permanente igual ou superior a 15 %. 3 - Para os efeitos previstos na segunda parte da alínea c) do n.º 1, considera-se aplicável ao veículo abandonado a exclusão prevista na alínea a) do n.º 4 do artigo 14.º
[8] a. Hemorragia cerebral; b. Perfuração do pulmão direito; c. Drenagem pleural direita removida em 14.05.2007; d. Hematomas e. Bacia fracturada em 5 sítios; f. Três Vértebras fracturadas; g. Intervenção cirúrgica hemopneumotórax; h. Ferida incisa contusa da região frontal à direita; i. Hemopneumotórax traumático à direita; j. Fractura das apófises transversas direitas de L2 a L 4]; k. Fractura dos ramos isquiopúbicos; l. Fractura da púbis direito; m. Fractura da asa esquerda do sacro; n. Fractura ilíaca esquerda; o. Escoriação no hemitórax direito, com dor à palpação dos quadrantes direitos; p. Traumatismo torácico e do membro superior direito, com hematoma; q. Ferida extensa na zona do joelho direito; r. Ferida no ombro direito e anca direita; s. Compressão do trigémeo, com repercussões na vista, maxilar, língua e lábio direitos; t. Traumatismo da coluna cervical; u. Traumatismo na zona do cotovelo direito; v. Lesões por todo o corpo; w. Entorse dupla, nos tornozelos esquerdo e direito; 2. Destas lesões resultaram: i. Sequelas pós fractura da bacia; ii. Depressão a nível da articulação coxofemural esquerda, deformante; - a A. poderá exercer a actividade profissional compatível com a licenciatura em direito que estava prestes a terminar quando ocorreu o acidente; - A A. ainda hoje continua a suportar dores, agravadas ainda com as mudanças de tempo, e continua a ter de se sujeitar a medicamentação oral e injectável; - Tem vertigens e perdas de equilíbrio; - A A. sofre de falta de sensibilidade da língua, lábio e maxilar direitos, parte exterior do braço direito, dedos da mão direita, e com inflamações do membro inferior esquerdo direito e dos tornozelos; cfr. fls.1512 v. - A A. sofrerá, de cefaleias, vertigens, dores provocadas por inflamações na coluna, na bacia, e na perna esquerda, tornozelo, e pé do mesmo lado, períodos de imobilização prolongados, deficiência de visão, de perda de equilíbrio, e claudicará sempre a andar; - A A. tem Diplopia post-traumática para a esquerda e para baixo, provocada por esmagamento do trigémeo, com a consequência daí decorrente de desfocagem da visão e a necessidade de utilização de óculos prismáticos de correcção - Teve uma trombose venosa profunda que acarreta um maior risco de o doente vir a contrair uma embolia pulmonar. - Foi-lhe diagnosticado uma síndrome do pânico. - A A. estava a tirar a carta de condução no ..., e, por causa do acidente, a A. não pode realizar o exame de condução; - Face às sequelas do acidente, a A. terá de fazer durante toda a sua vida sessões de fisioterapia duas vezes por ano, uma consulta anual para as especialidades de ortopedia, oftalmologia, otorrinolaringologia, neurologia, e esporadicamente, em crise, terá que tomar medicamentos anti-inflamatórios e analgésicos; - A A. devido ao acidente ficou afectada de uma incapacidade fixada pela perícia do IML em 17 pontos.
[9] Considerando o seguinte: “A A. ficou em estado de coma profundo na Unidade de Cuidados Intensivos, inconsciente durante 7 dias e ventilada durante 10 dias. Conseguiu dizer algumas palavras 11 dias após o acidente para indicar que só via sombras. Esteve imobilizada durante 111 dias e com déficit funcional temporário parcial durante 618 dias. Durante o período de imobilização dependia totalmente de terceiros para a higiene, alimentação, satisfação das necessidades fisiológicas e para a realização de qualquer movimento e vui-se privada da sua intimidade pessoal. Ficou com feridas dolorosas nas costas e nas nádegas, esfoliações por todo o corpo, e, mais tarde, com uma trombose venosa profunda num dos membros inferiores pelo que é acrescido o seu risco de embolia pulmonar. Tem cicatrizes em várias partes do corpo, nomeadamente na face. Houve esmagamento do nervo trigémeo que afectou gravemente a sua visão com Diplopia pós-traumática para a esquerda e para baixo. Para recuperar a visão teve de usar uns óculos especiais prismáticos de correcção e reeducação da visão cuja utilização impunha que a A. estivesse sentada numa cadeira especial, introduzir um aparelho na boca para suporte dos maxilares, apoiar os pés numa banquinha, e colocar à sua frente um leitoril. O aparelho bucal, exigiu uma adaptação, até pela necessidade de regulação da respiração, e postura corporal. A A. voltou a andar, com apoio de canadianas, apenas em Agosto de 2007. A A. tem uma síndrome de pânico, vertigens e perda de equilíbrio. Sofre de falta de sensibilidade da língua, lábio e maxilar direitos, parte exterior do braço direito, dedos da mão direita, e inflamações do membro inferior esquerdo direito e dos tornozelos. A A. sofrerá, de cefaleias, vertigens, dores provocadas por inflamações na coluna, na bacia, e na perna esquerda, tornozelo, e pé do mesmo lado, períodos de imobilização prolongados, deficiência de visão, de perda de equilíbrio, e claudicará sempre a andar. Deitada não consegue levantar as duas pernas ao mesmo tempo. A A. sofreu dores durante os períodos de intervenções cirúrgicas e consequentes tratamentos médicos, e durante os períodos de recuperação, que foram consequência do acidente, do grau 5 numa escala de 0 a 7 graus. Não pode concluir a sua licenciatura em direito durante o período de doença e de recuperação, atrasando assim o seu ingresso na vida laboral. Não pode realizar o exame para obter a carta de condução de veículos. Deixou de conviver com os seus amigos e familiares. Durante toda a vida terá que fazer sessões de fisioterapia duas vezes por ano, e ter consultas de ortopedia, oftalmologia, otorrinolaringologia, neurologia e, em momentos de crise tomar medicamentos anti-inflamatórios e analgésicos”.
[10] “Os limites da condenação contidos no artigo 661.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, têm de ser entendidos como referidos ao valor do pedido global e não às parcelas em que aquele valor se desdobra, sendo esta a orientação assumida como válida na solução de casos em que o efeito jurídico pretendido se apresenta como indemnização decorrente de um único facto ilícito, traduzindo-se o total do pedido na soma dos valores de várias parcelas, que correspondem, cada uma delas, a certa espécie ou classe de danos, componentes ou integrantes do direito cuja tutela é jurisdicionalmente solicitada” (Ac. do STJ de 25.03.2010, Proc. 1052/05.2TTMTS.S1).
[11] I - Tendo-se atendido à inflação verificada até ao encerramento da audiência de discussão e julgamento, não é admissível, referente ao mesmo lapso de tempo, cumular-se a taxa da inflação verificada e a atribuição de Juros de mora, o que seria um duplo benefício, não admissível. II - Os juros de mora serão devidos, apenas a partir da data da audiência de discussão e julgamento, desde que até esta, se faça uma actualização em função da inflação da indemnização. Ac. STJ, de 22.6.95. Não é possível cumular juros de mora com correcção monetária por inflação. Ac. STJ, de 9.10.97.
[12] Ac. STJ, de 1.7.99, pesquisado em www.dgsi.pt, Ac STJ, de 23.9.99, CJ Ac. Dout., Tomo III, 25.
[13] Ac. Rc, de 11.7.2000, Apelação nº 1814/2000, 1ª S.
[14] SJ199101230412933, de 23/01/91.
[15] Jurisprudência n.º 4/2002, de 09-05-2002, DR, Iª S., de 27.6.2002.