Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
728/24.0T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUELA MACHADO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESUNÇÃO JUDICIAL DE CULPA
Nº do Documento: RP20250123728/24.0T8MTS.P1
Data do Acordão: 01/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em matéria de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, deve atribuir-se a culpa na sua produção, por presunção judicial (art. 351.º do CC) ao condutor que violou regras de direito estradal, desde que ele não logre demonstrar a existência de quaisquer circunstâncias anormais que determinaram tal facto.
II - Se da matéria de facto provada, não resulta a prática de qualquer infração por parte da condutora, não se verifica qualquer presunção judicial de culpa que aquela tenha que ilidir.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 728/24.0T8MTS.P1

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
A..., Lda., intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra B..., SA, e C... – Companhia de Seguros, SA, todos melhor identificados nos autos, pedindo a condenação das rés no pagamento da quantia de 20.545,00€ (vinte mil quinhentos e quarenta e cinco euros), acrescida de juros vincendos à taxa legal contados desde a citação até total e efetivo pagamento.
Para o efeito alegou, em síntese, que no dia 15 de agosto de 2022, pelas 06 horas, na auto estrada ..., ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes três veículos que circulavam nessa via, no sentido ...-..., tendo esse embate ocorrido por responsabilidade dos condutores dos veículos seguros nas rés, de matrículas ..-VX-.. e AH-..-.., uma vez que estes embateram no seu veículo, de matrícula ..-TC-.., sendo que em consequência desse acidente, a autora sofreu danos de natureza patrimonial, que quantifica.

Citadas as rés, ambas contestaram, defendendo-se apenas por impugnação.
Admitiram a celebração dos contratos de seguro em relação aos veículos intervenientes, bem como a ocorrência do acidente, mas alegaram que o mesmo não sucedeu da forma descrita pela autora na petição inicial, antes atribuindo a culpa na sua produção aos outros veículos, que não o próprio segurado, mais impugnando os danos, quer por desconhecimento, quer por não serem responsáveis pelos mesmos.

Foi proferido despacho saneador, com a identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Prosseguindo o processo para julgamento, ao qual se procedeu, foi proferida sentença que decidiu:
“Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência:
a) condeno a 2ª ré C... – Companhia de Seguros, SA a pagar à autora a quantia de 20.545,00€ (vinte mil quinhentos e quarenta e cinco euros), acrescida de juros de mora vincendos à taxa de juros civis contados desde a citação até total e efetivo pagamento;
b) absolvo a 1º ré B..., SA do pedido contra si formulado.
Custas:
Custas a cargo de autora e 2ª ré C... – Companhia de Seguros, SA, nos termos do art. 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil, na proporção de 5% para a autora e 95% para a ré.
Registe.
Notifique.”.
*
Não se conformando com o assim decidido, veio a Ré C... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
A apelante formulou as seguintes conclusões:
“1. A douta decisão recorrida não poderá manter-se uma vez que a decisão nela inserta consubstancia uma solução que viola os preceitos legais e os princípios jurídicos aplicáveis, afigurando-se, pois, como injusta.
2. A Recorrente não pode concordar com a solução encontrada pelo Tribunal a quo que, no fundo se limita a dizer que a responsabilidade do condutor do veículo segurado na ora recorrente se deve ao facto de circular ao volante do AV a uma velocidade superior à legalmente permitida e, também, a circular com uma TAS superior à legalmente permitida.
3. Na verdade, contrariamente àquilo que o Tribunal a quo defende, a condutora do VX violou, pelo menos, três regras de circulação estradal que, se tivessem sido cumpridas, teriam evitado a eclosão do sinistro dos autos.
4. No local do sinistro (auto-estrada ...), atento o sentido de marcha dos veículos intervenientes no sinistro comporta três vias de trânsito sendo que a condutora do VX circulava na faixa do meio sem que para isso houvesse algum motivo (factos provados 4 e 8).
5. Com este comportamento a condutora do VX encontrava-se a violar o disposto no art.º 13.º, n.º 1 do Código da Estrada: “A posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes”.
6. A condutora do VX deveria estar a usar a faixa de rodagem mais à direita, assim como o devia estar a fazer o condutor do veículo propriedade da Autora.
7. Não resultou provado qualquer facto que justificasse esta conduta de ambos os condutores pelo que os mesmos incorreram numa violação do código da estrada.
8. Se ambos os veículos estivessem a circular na faixa de rodagem mais à direita nunca o embate entre o veículo segurado na Recorrente (que circulava na faixa de rodagem mais à esquerda pois estava a efectuar a manobra de ultrapassagem de ambos os veículos que o precediam).
9. Acresce referir que não resultou provado que a condutora do VX tivesse iniciado a manobra de ultrapassagem tendo previamente accionado o sinal de ultrapassagem (sinal luminoso).
10. Dispõe o art.º 21.º, n.º 1 do Código da Estrada que “Quando o condutor pretender reduzir a velocidade, parar, estacionar, mudar de direção ou de via de trânsito, iniciar uma ultrapassagem ou inverter o sentido de marcha, deve assinalar com a necessária antecedência a sua intenção.”
11. Por seu turno, dispõe o art.º 11., n.º 2 do mesmo diploma legal que “Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança”.
12. Ora, a condutora do VX não tinha o sinal luminoso sinalizador da ultrapassagem do veículo propriedade da Autora ligado bem como a sua condutora não se certificou que podia realizar a manobra de ultrapassagem se prejudicar o demais tráfego automóvel que se processava a ....
13. Circulasse o veículo segurado na Recorrente a que velocidade circulasse, atentas as características da via descritas no ponto 4. dos factos provados, a condutora do VX tinha possibilidade de o ver pelo retrovisor e, por conseguinte, esperar que o mesmo ultrapassasse o VX, evitando o sinistro dos autos.
14. Desta forma, a condutora do VX violou as citadas disposições do Código da Estrada.
15. As Recorridas e não lograram afastar a presunção de culpa que impendia sobre a sua conduta, nomeadamente, qual o motivo pelo qual o veículo propriedade da Autora e o VX se encontrava, a circular na faixa central da ... e porque é que a condutora do VX para além de não sinalizar a manobra de ultrapassagem do veículo propriedade da Autora não se certificou que podia fazer a manobra de ultrapassagem sem causar embaraço ao demais tráfego uma vez que o local do sinistro se trata de uma recta.
16. Assim, relativamente ao condutor do veículo segurado na Recorrente, o facto de o mesmo circular com uma velocidade ligeiramente superior á legalmente permitida no local do sinistro (que é uma via de velocidade rápida) e o facto de o mesmo circular com uma TAS superior á legalmente permitida não poderá concluir-se como fez o Tribunal a quo que isso, por si só, foi o motivo causador do sinistro.
17. Se a condutora do VX não tivesse iniciado a manobra de ultrapassagem nos termos em que o faz o veículo segurado na Recorrente teria passado pelos demais veículos em que qualquer acidente se tivesse processado.
18. O que levou à eclosão do sinistro foi, apenas e só, a manobra de ultrapassagem temerária efectuada pela condutora do VX que tinha todas as condições para não o ter feito.
19. A responsabilidade pela produção do acidente mostra-se imputável em exclusivo, a título de culpa, à condutora do VX, ao abrigo do disposto no art.º 483.º do Código Civil.
20. Termos em que a douta sentença violou por erro de interpretação, o disposto nos art.ºs 11.º, n.º 2, 13.º, n.º 1 e 21.º, n.º 1 todos do Código da Estrada e art.º 483.º do Código Civil.
Nestes termos e nos mais de direito, sempre sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., deve a sentença do Tribunal da Comarca de Matosinhos ser revogada, absolvendo-se a Recorrente do pedido.”.

Foram apresentadas contra-alegações pela Ré B..., S.A., pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
*
Após os vistos legais, cumpre decidir.
*
*
II - DO MÉRITO DO RECURSO
1. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, a única questão a apreciar consiste em decidir se deve ser alterada a análise jurídica que foi feita na sentença recorrida, por errada aplicação das regras de direito aplicáveis ao caso, concluindo-se pela absolvição da recorrente, do pedido.
*
2. Apreciando:
2.1. A decisão recorrida
A apelante não impugnou a matéria de facto dada como provada e não provada, pelo que se consideram assentes os seguintes factos:
1. No dia 15 de agosto de 2022, a hora não concretamente apurada, mas que se situou entre as 04h45m e as 06h, na auto estrada ..., ao km 9,450, em Matosinhos, ocorreu um sinistro.
2. No qual foram intervenientes:
a) veículo ligeiro de mercadorias da marca Renault modelo ..., de matrícula ..-TC-.., pertença da autora e conduzido por AA,
b) o veículo ligeiro de passageiros, marca Mini, modelo ..., matrícula ..-VX-.., pertença de BB e por esta conduzido, segurado na 1ª ré pela apólice n.º ...,
c) o veículo ligeiro de passageiros, marca Volvo, marca ... de matrícula AH-..-.., pertença de CC e por este conduzido, segurado na 2ª ré pela apólice ....
3. A via tem dois sentidos de trânsito, separada por um separador/corredor central.
4. O local, no sentido sul-norte, desenha-se em reta, estando a faixa de rodagem daquele sentido dividida em três vias de trânsito, com uma largura total de 11,5 metros, ladeadas, à direita, por uma berma de 2,0 metros de largura.
5. As referidas vias de transito encontravam-se separadas por linha longitudinal de traço descontínuo M2, impresso no pavimento, conforme auto policial junto com a petição inicial.
6. A velocidade máxima do local onde ocorreu o sinistro encontra-se, como se encontrava na altura, limitada a 100 kms horários, conforme consta nas placas de sinalização localizadas naquela parte do troço.
7. Não chovia e a via, com piso betuminoso, estava seca.
8. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas, o veículo da autora circulava na faixa do meio/central da faixa rodagem, quando foi embatido na traseira esquerda da sua viatura pelo veículo VX segurado pela 1ª ré, que estava a iniciar a sua ultrapassagem.
9. O veículo VX embateu no veículo da autora com o seu canto frontal esquerdo.
10. Esse embate foi provocado pelo embate do veículo AH-..-.. no veículo VX, que impulsionou este contra o veículo da autora.
11. O veículo AH-..-.. embateu no veículo VX com a sua lateral esquerda dianteira, no canto traseiro esquerdo deste.
12. O veículo AH-..-.. circulava na faixa mais à esquerda, a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 100 km/h.
13. O veículo da autora circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas a rondar os 80 km/h.
14. O veículo VX circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas situada entre os 90 km e a velocidade a que seguia o veículo AH.
15. Na sequência do embate referido em 8, o veículo da autora rodopiou e veio a imobilizar-se sensivelmente na zona da faixa central, virado para o sentido sul/norte em que seguia.
16. O veículo AH veio a imobilizar-se a cerca de 80 metros à frente, na berma.
17. O veículo VX veio a imobilizar-se na berma, de frente para o rail, perpendicular à via.
18. O veículo da autora, em consequência deste sinistro, sofreu danos no canto traseiro esquerdo, apanhando assim a zona traseira e a lateral esquerda.
19. A 1ª ré apresentou à autora uma proposta inicial e condicional de perda total, conforme documento 4 junto com a petição inicial, mas posteriormente veio a declinar a sua responsabilidade.
20. Em consequência do sinistro, o veículo da autora sofreu estragos que levaram à sua perda total.
21. Um veículo de características idênticas ao da autora em momento anterior ao sinistro tinha um valor de mercado de € 15.342,58, ao qual deve ser deduzido o valor do salvado (€ 5.395,00), conforme documento 3 junto com a petição inicial.
22. A autora utilizava o veículo TC diariamente para a sua atividade profissional, designadamente para transporte de mercadorias, deslocações a fornecedores e transporte de pessoal.
23. O condutor do veículo AH, submetido ao teste de controle do álcool, acusou uma taxa de alcoolémia de 1,380 g/l, deduzido o valor erro máximo admissível e, após realizar a contraprova, acusou a taxa de 0,979 g/l.
24. Em consequência de ter estado a ingerir bebidas alcoólicas, o condutor do veículo AH seguia de forma desatenta, em velocidade superior aos 100 km/h, sem atentar ao sinal vertical de limite de velocidade e ao tráfego que circulava na via.
25. A 1ª ré B... declinou a sua responsabilidade mediante comunicação enviada à autora em 11 de julho de 2023.
26. A 2ª ré C... declinou a sua responsabilidade mediante comunicação enviada à autora em 07 de setembro de 2023.

E consideram-se não provados, os factos seguintes:
a) No momento do sinistro era de dia;
b) O veículo da autora estava a terminar uma manobra de ultrapassagem de um pesado que seguia na faixa mais à direita;
c) O veículo da autora despistou-se em direção ao separador central, onde raspa com a lateral direita para, logo de seguida, sofrer novo embate na lateral esquerda, pelo veículo AH-..-.. (segurado pela 2ª ré);
d) O veículo da autora também sofreu danos na lateral direita.
e) A condutora do veículo VX iniciou a manobra sem se certificar que não vinham outros veículos;
f) O veículo VX seguia pela via da direita;
g) A sua condutora olhou pelo espelho retrovisor e certificou-se que nenhum veículo, na sua retaguarda, estava próximo;
h) Sinalizou a intenção de ultrapassagem com o sinal luminoso de mudança de direção à esquerda;
i) O condutor do veículo AH circulava a uma velocidade não inferior a 180 km/h;
j) O veículo AH encontrava-se a circular a uma velocidade de cerca de 90 km/h, com o respetivo sinal de mudança de direção à esquerda (vulgo pisca) acionado e as luzes de presença (“médios”) acionados que ia alternando com a posição de “máximos”;
k) Quando se preparava para ultrapassar o veículo VX bem como o TC, o condutor do AH é surpreendido pela mudança de faixa, da direita para a esquerda, da condutora do VX;
l) A condutora do VX efetuou a referida manobra de mudança de faixa sem dar qualquer sinal de que o iria fazer e sem se acautelar com a manobra de ultrapassagem que o condutor do AH se encontrava a fazer.
*
2.2. Posto isto, e como referido, o recurso versa apenas sobre a decisão de direito, entendendo a Apelante que o Tribunal a quo se limita a dizer que a responsabilidade do condutor do veículo segurado na recorrente se deve ao facto de circular ao volante do AH a uma velocidade superior à legalmente permitida e, também, a circular com uma TAS superior à legalmente permitida; quando, na verdade, contrariamente àquilo que o Tribunal a quo defende, a condutora do VX violou, pelo menos, três regras de circulação estradal que, se tivessem sido cumpridas, teriam evitado a eclosão do sinistro dos autos.
Vejamos:
Depois de discorrer, de forma que não nos merece censura, sobre a responsabilidade civil extracontratual e os seus requisitos, a decisão recorrida refere, no que à culpa pela ocorrência do acidente diz respeito, que:
“(…) Cumprirá, então, antes de mais, verificar se concorrem in casu todos os pressupostos da responsabilidade civil, incluindo a culpa, caso em que será de afastar a aplicação do regime da responsabilidade civil pelo risco, e recorrer antes às regras da responsabilidade aquiliana.
i) Facto: consiste num ato voluntário ou numa ação, no sentido amplo de ato objetivamente controlável pela vontade humana (v. Ana Prata, ob. cit., p. 627), que na versão da autora se traduz no embate do veículo AH no veículo VX que, por sua vez, embateu no veículo TC, sua propriedade.
ii) Ilicitude: a ilicitude consiste no desrespeito por uma (ou mais) norma estradal, nomeadamente naquelas que regem os limites de velocidade e a manobra de ultrapassagem. Com efeito, as normas constantes do Código da Estrada são um exemplo perfeito de normas de proteção, cuja violação pode implicar responsabilidade civil. Existem para regular uma atividade potenciadora de elevados riscos, impondo regras firmes que visam evitar as consequências muitas vezes gravosas de uma atividade intrinsecamente perigosa.
Analisemos a apurada conduta de cada um dos três condutores intervenientes no sinistro.
Em primeiro lugar, a conduta do condutor do veículo da autora, de matrícula TC.
Tanto quanto se apurou, este seguia na faixa do meio, não tendo provado que fosse a ultrapassar algum outro veículo.
Contudo, também não se apurou que não fosse a ultrapassar um outro veículo, pelo que se ignora se, ao circular na hemifaixa do meio, em vez da faixa da direita, circulava em violação da norma que obriga a circular mais à direita.
Cabia às rés provar a culpa do condutor do veículo da autora, prova essa que não fizeram.
Apurou-se que circulava a uma velocidade na casa dos 80 km/h, pelo que claramente não transitava em excesso de velocidade.
Pelo que o Tribunal não encontra na condução do veículo TC nenhuma violação às regras do Código da Estrada, não se conseguindo imputar ao mesmo nenhuma ilicitude, culpa ou contribuição para o sinistro.
O que equivale a dizer que o Tribunal não vê fundamento para o responsabilizar, no todo ou em parte, pela eclosão do acidente.
Em segundo lugar, a condutora do veículo VX, o veículo da marca Mini.
À condutora do veículo VX incumbia, em primeiro lugar, verificar se a manobra de ultrapassagem que iniciou não causaria perigo ou embaraço para o trânsito (art. 35º nº 1 do Código da Estrada) e acionar as competentes luzes sinalizadoras (art. 21º nº 1 e 60º nº 2 al. b) do Código da Estrada).
Ora, da factualidade provada, não resultou demonstrado que a condutora BB tenha procedido a todas as cautelas necessárias e previstas no Código da Estrada para a ultrapassagem.
Mas também não se apurou que não o tenha feito, pelo que, o Tribunal ignora se esta condutora violou as normas estradais referidas.
Quanto à velocidade, apurou-se que seguia a, pelo menos, 90km/h, não se apurando com segurança que seguisse a velocidade superior.
Pelo que o Tribunal também não encontra na condução do veículo VX nenhuma violação às regras do Código da Estrada, não se conseguindo imputar à respetiva condutora nenhuma ilicitude, culpa ou contribuição para o sinistro.
O que equivale a dizer que o Tribunal não vê fundamento para a responsabilizar, no todo ou em parte, pela eclosão do acidente.
Em terceiro e último lugar, a conduta do condutor do veículo de matrícula AH (Volvo).
Relativamente à velocidade, apurou-se que seguia a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 100 km/h.
Aqui temos a primeira contra-ordenação, tendo o condutor CC violado as normas dos art. 24º nº 1, 27º nº 1, 35º nº 1 e 38º nº 1 do Código da Estrada.
Relativamente à sua restante condução, apurou-se conduzia com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 0,979g/l.
Aqui temos a segunda contra-ordenação, tendo o condutor CC violado a norma do art. 81º do Código da Estrada.
Na verdade, na ótica do Tribunal esta contraordenação afigura-se de extrema gravidade e continua a assolar as estradas portuguesas e, também na ótica do Tribunal, a ser causa de um número muito elevado de sinistros.
Por esse motivo, se cita de forma expressa o normativo.
Art. 81º
“1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.
2 - Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico”.
Temos, pois, de forma inequívoca preenchido o pressuposto da ilicitude da conduta do condutor do veículo AH, ao violar as normas referidas.
iii) Culpa: A culpa do agente distingue-se da ilicitude na medida em que aquela é “virada para a conduta objetivamente considerada, enquanto negação de valores tutelados pelo direito; esta, olhando sobretudo para o lado subjetivo do facto jurídico” – Acórdão do STJ de 23-02-2012, proc.1674/07.7TVLSB.P1.S1, in www.dgsi.pt. Ou seja, trata-se da averiguação da falta de diligência, imputável ao agente, diligência essa que é aferida através do critério do homem médio, colocado na situação do agente em concreto, e as suas possibilidades perante o facto danoso (art. 487º nº 2 do Código Civil).
A culpa divide-se nas modalidades de mera culpa ou dolo; a primeira existe quando o agente não previu o resultado ilícito, ou, mesmo tendo previsto o mesmo, confia na sua não ocorrência. A segunda existe quando o agente prevê o resultado, aceita-o como possível, ou deseja alcançar o mesmo, e atua em conformidade.
Para aferir da existência de culpa, cumpre apreciar se o agente em concreto agiu da melhor forma, atendendo às circunstâncias do caso.
Face aos dados dos autos, acabados de analisar, temos que o Tribunal não encontra uma conduta culposa nos condutores dos veículos da autora nem do veículo VX.
Já o condutor do veículo AH não tomou as cautelas necessárias a uma condução segura e cuidadosa, não cuidando de verificar se poderia operar a manobra em segurança.
Conduzia sob o efeito do álcool, claramente não atentando à via, ao tráfego e às demais regras de conduta.
Pelo que não agiu com a diligência exigível ao bom pai de família, aqui colocado na situação do condutor concreto, situando-se a sua atuação pelo menos ao nível da negligência ou mera culpa.
Desta forma, encontra-se demonstrada a prática de um facto ilícito e culposo da sua parte.
Pelo que as normas aplicáveis são as da responsabilidade extracontratual pura e não a responsabilidade pelo risco.”.
Não podemos deixar de concordar com esta decisão, a qual se afigura correta perante a matéria de facto dada como provada.
Alega a recorrente que a condutora do veículo VX incorreu na prática de várias infrações, não tendo logrado afastar a presunção de culpa que impendia sobre a sua conduta, sendo a causa do acidente a ultrapassagem temerária dessa condutora.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 487.º, nº 1, do Código Civil, é sobre o lesado que recai a prova da culpa, a qual, nos termos do nº 2, é apreciada de acordo com a diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias do caso.
É esta a regra geral, à falta de presunção legal de culpa (cfr. art. 350.º do CC).
Mas existem presunções para alem das presunções legais.
Nos termos do artigo 349.º do CC, presunções são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, prevendo o artigo 351.º do mesmo Código que as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.
O art. 487.º, n.º 2, do Código Civil consagra o critério da culpa em abstrato, conforme à diligência de um homem normal, medianamente sagaz, prudente e cuidadoso, em face do condicionalismo próprio do caso concreto. O critério legal de apreciação da culpa é um critério abstrato, tendo em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do acidente de viação em causa, por referência a um condutor normal.
Parece-nos estar consolidado pela jurisprudência maioritária que, em matéria de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, deve atribuir-se a culpa na sua produção, por presunção judicial (art. 351.º, do CC) ao condutor que violou regras de direito estradal, desde que ele não logre demonstrar a existência de quaisquer circunstâncias anormais que determinaram tal facto.
Como se decidiu no acórdão do STJ de 20.11.2003, Proc. 03A3450, disponível em www.dgsi.pt., podemos dizer que “embora em matéria de responsabilidade civil extracontratual a culpa do autor da lesão, em princípio, não se presuma, tendo de ser provada pelo lesado (art. 487.º, nº 1, do Cód. Civil), a posição deste é frequentemente aliviada por intervir aqui, facilitando-lhe a tarefa, a chamada prova de primeira aparência (presunção simples): se esta prova aponta no sentido da culpa do lesante, passa a caber a este o ónus da contraprova. Para provar a culpa, basta assim que o prejudicado possa estabelecer factos que, segundo os princípios da experiência geral, a tornem muito verosímil, cabendo ao lesante fazer a contraprova, no sentido de demonstrar que a atuação foi estranha à sua vontade ou que não foi determinante para o desencadeamento do facto danoso. Isto não está sequer em contradição com o disposto no art. 342.º do Cód. Civil, que consagra um critério de normalidade no que respeita à repartição do ónus da prova, no sentido de que aquele que invoca determinado direito tem de provar os factos que normalmente o integram, tendo a parte contrária de provar, por seu turno, os factos anormais que excluem ou impedem a eficácia dos elementos constitutivos do direito.”.
Voltando ao caso em apreciação, e à alegação da recorrente no sentido de que a condutora do veículo VX incorreu na prática de várias infrações, não tendo logrado afastar a presunção de culpa que impendia sobre a sua conduta, o certo é que da matéria de facto provada (e que não foi impugnada) não resulta a prática de qualquer infração por parte da dita condutora.
Em concreto, no que para esta questão interessa, resultou provado que:
8. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas, o veículo da autora circulava na faixa do meio/central da faixa rodagem, quando foi embatido na traseira esquerda da sua viatura pelo veículo VX segurado pela 1ª ré, que estava a iniciar a sua ultrapassagem.
9. O veículo VX embateu no veículo da autora com o seu canto frontal esquerdo.
10. Esse embate foi provocado pelo embate do veículo AH-..-.. no veículo VX, que impulsionou este contra o veículo da autora.
11. O veículo AH-..-.. embateu no veículo VX com a sua lateral esquerda dianteira, no canto traseiro esquerdo deste.
12. O veículo AH-..-.. circulava na faixa mais à esquerda, a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior a 100 km/h.
13. O veículo da autora circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas a rondar os 80 km/h.
14. O veículo VX circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas situada entre os 90 km e a velocidade a que seguia o veículo AH.
15. Na sequência do embate referido em 8, o veículo da autora rodopiou e veio a imobilizar-se sensivelmente na zona da faixa central, virado para o sentido sul/norte em que seguia.
16. O veículo AH veio a imobilizar-se a cerca de 80 metros à frente, na berma.
17. O veículo VX veio a imobilizar-se na berma, de frente para o rail, perpendicular à via.
24. Em consequência de ter estado a ingerir bebidas alcoólicas, o condutor do veículo AH seguia de forma desatenta, em velocidade superior aos 100 km/h, sem atentar ao sinal vertical de limite de velocidade e ao tráfego que circulava na via.
Como referido, da matéria de facto provada (e que não foi impugnada) não resulta a prática de qualquer infração por parte da dita condutora.
Quando muito, constituiria infração às regras estradais o facto de a condutora do VX circular pela faixa central, em vez de o fazer pela faixa mais à direita. No entanto, o certo é que ficou provado que o veículo da autora também circulava pela faixa do meio e o VX estava a iniciar uma manobra de ultrapassagem a esse veículo, desconhecendo-se o motivo pelo qual circulavam pela faixa central.
Ainda assim, podendo presumir-se a culpa numa situação em que o condutor viola alguma regra estradal, a presunção de culpa pode ser ilidida, entendendo-se no caso que, constando do facto provado número 24, a verdadeira causa da ocorrência do acidente, se tem que ter por ilidida a culpa da condutora do VX.
Do circunstancialismo que ficou provado, relativamente à dinâmica do acidente, podemos concluir que foi o excesso de velocidade a que circulava o condutor do AH, e a sua falta de atenção ao trânsito que levou a eu embatesse no VX e este, por sua vez, fosse embater no veículo da autora.
Na falta de prova concreta sobre alguma violação relevante em termos de culpa pela ocorrência do acidente, que não por parte do condutor segurado da recorrente, nada há a apontar à sentença recorrida, a qual, assim, se deve manter, improcedendo a apelação.
*
*
III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo, consequentemente, a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo da recorrente (art. 527.º do CPC).

Porto, 2025-01-23
Manuela Machado
Álvaro Monteiro
José Manuel Correia