Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
52/23.5SFPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ATIVIDADE CRIMINOSA
ARGUIDO
CONSUMIDOR
ANTECEDENTES CRIMINAIS
ORDEM PÚBLICA
PRISÃO PREVENTIVA
Nº do Documento: RP2024011752/23.5SFPRT-A.P1
Data do Acordão: 01/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A prisão preventiva é, irrecusavelmente, a medida coactiva mais eficaz, aquela que, em princípio, satisfaz plenamente as exigências cautelares de qualquer processo, mas, simultaneamente, a mais gravosa e, por isso, só deve ser aplicada e mantida desde que outras, menos penosas, se mostrem inadequadas ou insuficientes.
II – O perigo de continuação da atividade criminosa é patente se o arguido é consumidor de substâncias psicotrópicas e possui escassos meios de subsistência, além de, principalmente, ter já sido condenado por três vezes pelo cometimento do mesmo tipo de crime, encontrando-se, inclusivamente, a decorrer o prazo de suspensão da execução de uma pena de prisão que lhe havia sido aplicada, não o tendo impedido tal circunstância de voltar a esta senda criminosa, circunstancialismo que provoca, naturalmente, um sentimento de intranquilidade na comunidade.
III – Neste específico contexto, proibir o arguido de contactar com pessoas e de frequentar lugares conotados com o tráfico de estupefacientes é idóneo a dificultar a prática do crime de tráfico de estupefacientes, mas não é suficiente para o impedir de continuar a deslocar-se a vários locais de venda de estupefacientes e a estabelecer contactos com toxicodependentes que pretendam adquirir-lhe tais substâncias.
IV – Na verdade, o cumprimento de tal medida de coacção é de difícil controlo e, em grande medida, insindicável, não só porque as autoridades policiais naturalmente não podem observar as movimentações do arguido permanentemente, mas também porque é conhecida a facilidade de acesso a meios de comunicação que possibilitam e favorecem o prosseguimento desta atividade criminosa.
V – A medida de coação da obrigação de permanência na habitação, em confronto com a prisão preventiva, não tem a capacidade, perante um crime grave, de dar resposta adequada em sede de prevenção geral à necessidade de tranquilizar a sociedade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 52/23.5SFPRT-A.P1
Recurso Penal
Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos – Juiz 4

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I - Relatório

Por despacho proferido em 10/8/2023 pelo Juízo de Instrução Criminal de Aveiro, no processo de inquérito nº 52/23.5SFPRT, foi decidido que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à obrigação de apresentação diária no posto policial da sua área de residência, para além das obrigações decorrentes do TIR que prestou e, ainda, à proibição de contactar com pessoas e de frequentar locais conotados com a venda e/ou consumo de produtos estupefacientes, em particular no Porto, medidas estas que foram aplicadas ao abrigo do disposto nos artigos 191.º a 193.º, 196.º, 198.º, 202.º, n.º 1, d) e 204.º, c), todos do Código de Processo Penal.
Não se conformando com a decisão, dela veio o Ministério Público interpor recurso, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1. Foi aplicada ao arguido a medida de coação de obrigação de apresentação diária no posto policial da sua área de residência, cumulada com a proibição de contactos com pessoas (designadamente consumidores) e de frequentar lugares habitualmente conotados com a venda e/ou consumo de estupefacientes, em particular nos bairros sociais conotados com tráfico de estupefaciente, em particular no Porto, para além do termo de identidade e residência já prestado, nos termos dos artigos 191.° a 193.°, 194.°, 198.°, 200.°, n.° 1, alínea d) e 204.°, alínea c), todos do Código de Processo Penal
2. O crime pelo qual o arguido se encontra indiciado é punível com pena de prisão de quatro a doze anos, o que é revelador da sua elevada gravidade;
3. Entendemos que o despacho sindicado não se encontra devidamente fundamentado, relativamente à não aplicação da medida de coação proposta pelo Ministério Público;
4. Com efeito, apenas a medida de coação de prisão preventiva é suficiente para assegurar as necessidades a acautelar nos presentes autos;
5. É manifesto que o arguido, permanecendo em liberdade, poderá prosseguir a atividade criminosa e, ainda, destruir a prova ainda não recolhida;
6. Por outro lado, a ausência de atividade profissional incentivará, de igual modo, a continuação da atividade criminosa, que é facilitada pelos meios de comunicação ao dispor de quem não se encontra em prisão preventiva;
7. É relevantíssimo atentar que, na data da prática dos factos, o arguido já possuía três condenações anteriores por tráfico de estupefacientes - no âmbito dos processos sumaríssimo n.° 14/13.0GAAMT, comum singular n.° 3/18.9PEVLR e comum singular 301/22.7PDPRT, e encontrava-se a cumprir, à ordem deste último, pena de prisão de 5 meses, suspensa na sua execução por 12 meses, com regime de prova, aplicada por decisão datada de 27 de março de 2023, transitada em julgado em 12 de junho de 2023.
8. Entendemos que a aplicação da medida de coação prisão preventiva é, pois, indispensável para impedir o arguido de prosseguir na atividade de tráfico de estupefacientes e que respeita o princípio da proporcionalidade.
9. É respeitado, nas vertentes da necessidade e adequação, já que é o único meio de acautelar o risco de perturbação do inquérito, a tranquilidade pública e a não continuação da atividade criminosa;
10. Por outro lado, entendemos que a medida de coação cuja aplicação se pretende, não é afastada pelo princípio da proporcionalidade “stricto sensu”, tendo presente um juízo de prognose relativamente à sanção que se vislumbra ser aplicada ao arguido, atendendo aos seus antecedentes criminais;
11. Assim, entendemos que a moldura penal abstrata é suscetível de possibilitar uma futura aplicação, em caso de condenação, de uma pena de prisão efetiva;
12. Face ao exposto, entendemos que o despacho recorrido, por ter violado os artigos 193.° e 204.°, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, em consequência de deficiente interpretação, e 202.°, por não aplicação, deverá ser revogado e substituído por outro que aplique a medida de coação prisão preventiva.
Pelo exposto, deverá ser dado provimento ao presente recurso, devendo, em conformidade, substituir-se as medidas de coação de apresentações diárias em posto policial e de proibição de contactos e de frequência de lugares conotados com o tráfico de estupefacientes, aplicadas ao arguido AA, pela medida de coação de prisão preventiva, nos termos dos artigos 193.°, 202.°, n.° 1, alíneas a) e b), 204.°, alíneas a), b) e c), todos do Código de Processo Penal, assim se fazendo JUSTIÇA.»
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O recurso foi admitido para subir imediatamente, em separado e com efeito não suspensivo.
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O arguido apresentou resposta, concluindo pela manutenção na íntegra do despacho recorrido, negando-se provimento ao recurso, posição condensada no seguinte conjunto de conclusões:
«I- Foram aplicadas ao Arguido aqui Recorrente para além do TIR, as medidas de coação de obrigação de apresentação diária no posto policial da sua área de residência, a proibição de contactos com pessoas /designadamente consumidores) e de frequentar lugares habitualmente conotados com a venda e/ou consumo de estupefacientes, em particular nos bairros sociais conotados com tráfico de estupefacientes, em particular do Porto.
II- Inexiste perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo bem como perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova.
III- O facto do arguido, ter antecedentes criminais, não é tão gravoso, que tenha que aguardar o julgamento em prisão preventiva, estando por isso, devidamente acautelados os interesses processais, ao lhe serem aplicadas as medidas de coação que a Meritíssima Juiz de Instrução entendeu, por bem, lhe aplicar.
IV-Uma medida de coação privativa de liberdade, seria injusta, desadequada e desproporcional, tendo em conta entre outras, as circunstâncias do seu comportamento e nesta fase, os factos de que vem acusado.
V- A prisão preventiva não tem em vista uma punição antecipada, pois só excecionalmente pode ser aplicada desde que não posa ser substituída por outra(s) medida (s) de coação mais favoráveis.
VI - O Meritíssimo Juiz do JIC, só pode impor ao arguido a prisão preventiva quando se revelarem inadequadas ou insuficientes todas as outras medidas de coação.
VII- Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado de sentença condenatória e à luz do sistema penal atual e vigente, é de carácter excecional, a medida de prisão preventiva, o art.° 32.° n. °2 da CRP.
VIII- O arguido tem cumprido com as apresentações diárias na polícia, faz o seu tratamento de desintoxicação, e continua a trabalhar na agricultura, contribuindo para o seu sustento, pelo que inexiste qualquer perigo de fuga ou de que o arguido continue a delinquir ou que de qualquer modo se venha a furtar à ação da justiça, evitando-se assim o contágio com o sistema prisional, que implica a prisão preventiva.
IX - Não violou o douto despacho, da Meritíssima Juiz de Instrução Criminal, os artigos 193.° e 204.° al. a) e c) e fez como devia, uma interpretação correta do art.° 202.° do CPP.
Termos em que se deverá manter as medidas de coação aplicadas pela Meritíssima Juiz de Instrução, […] impondo-se que o arguido continue a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito às medidas de coação judicialmente determinadas, por se afigurar a prisão preventiva a única adequada a prevenir os acentuados perigos de fuga, de perturbação do decurso do inquérito e de continuação da atividade criminosa verificados no caso concreto (nos termos constantes de fls. 10/25, cujo teor se dá por reproduzido).»
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos do recurso apresentado, concluiu pela sua procedência, acentuando o seguinte (segue transcrição):
«3. Somos de parecer que este recurso interposto pela Senhora Procuradora junto do Tribunal recorrido merece total provimento, e por se mostrar bem elaborado e fundamentado, sufragamo-lo na íntegra.
Diga-se que não está em causa a forte indiciação dos factos imputados ao arguido nem a existência dos perigos de continuação da atividade criminosa nem de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, pois que a própria Mmª Juíza a quo o reconhece no despacho recorrido.
Está em causa, isso sim, a adequação das medidas de coação impostas ao arguido que, conforme se defende no recurso interposto, são manifestamente insuficientes para acautelar tais perigos.
Na verdade, tais medidas são de diminuta adequação para prevenir as exigências cautelares que o caso requer, face ao comportamento anterior do arguido, às suas condições de vida e à idade com que já conta - 52 anos.
Em boa verdade, de pouco ou nada servem para acautelar tais perigos.
Relembramos que sofreu já 3 anteriores condenações pela prática deste tipo de crime e que cometeu os factos pelos quais está agora indiciado durante o período de suspensão de execução da pena de 5 meses de prisão em que havia sido condenado no âmbito do processo nº 301/22.7PDPRT por decisão de 27/03/2023, transitada em julgado a 12/06/2023.
Esta circunstância certamente irá levar a que aquela suspensão venha a ser revogada e demonstra que o efeito pedagógico da pena não detentiva aplicada foi nulo, frustrando completamente o juízo de prognose favorável ali efetuado sobre o comportamento futuro do arguido.
A adição de que padece e os parcos proventos económicos de que beneficia - recebe € 205,00 de RSI - seguramente irão compelir o arguido a continuar nesta sua senda criminosa, a qual não será travada, seguramente, pelas apresentações periódicas determinadas nem pela proibição de contactos e de frequência de certos lugares imposta.
Relevante será também a previsibilidade da sua condenação em pena de prisão efetiva pela prática destes factos, pois que não é expectável que seja agora, aos 52 anos de idade, que decida inverter o seu percurso ligado ao consumo e venda de estupefacientes nem que venha a beneficiar de uma segunda oportunidade de suspensão de execução da pena.
Assim, considera-se, como no recurso interposto, que a única medida de coação capaz de prevenir os perigos assinalados é a de prisão preventiva, que surge igualmente como proporcional ao caso em apreço.
4. Deve, assim, ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que determine que o arguido AA passe a aguardar os ulteriores trâmites processuais sujeito à medida de coação de prisão preventiva.»
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao parecer.
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417º, nº 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Assim, aquilo que importa apreciar e decidir é se as medidas de coação concretamente aplicadas devem ser substituídas pela medida de prisão preventiva, por se afigurar, esta, para além de proporcional, a única adequada a prevenir os perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, assinalados pelo tribunal de primeira instância.
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Apreciando os fundamentos do recurso.
Na sequência de interrogatório judicial a que foi sujeito, ao arguido AA foram aplicadas as medidas de coação de obrigação de apresentação periódica na autoridade policial e de proibição de contactos e frequência de lugares conotados com o tráfico e consumo de produtos estupefacientes, cumuladas com o termo de identidade e residência previamente prestado, por estar fortemente indiciada a prática, em autoria material, um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/1, por referência à tabela I-A e I-B, anexa ao referido diploma legal, a que corresponde pena de prisão de 4 a 12 anos.
No despacho recorrido foram considerados indiciariamente demonstrados os seguintes factos, que se transcrevem:
«1. O arguido encontrava-se a circular na ..., no sentido ...-..., tendo parado na área de serviço de ....
2. Ao se aperceber da presença da P.S.P., lançou para o solo 2 (dois) invólucros de papel que continham no seu interior:
22 (vinte) e duas embalagens que continham, no seu interior, heroína, com o peso total bruto de 5,57 gramas; e
Vários pedaços, em número ainda não concretamente apurado, de cocaína, com o peso total bruto de 1,93g.
3. O arguido conhecia as características do produto estupefaciente que detinha e que destinava à sua comercialização.
4. Agiu, portanto, de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que detinha e transportava a aludida substância e que a sua detenção e transporte não lhe era permitido, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punível por lei penal.»

Como fundamento das medidas de coação aplicadas ao arguido, consta do despacho recorrido:
«[…] Com base na prova até ao momento recolhida nos autos mostra-se fortemente indiciada a prática, pelo arguido AA, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º do DL n.º 15/93, de 22/1.
O arguido pretendeu falar sobre os factos que lhe vinham imputados indiciariamente, confirmando que se havia deslocado com um amigo, de nome BB, à cidade do Porto, com vista a adquirirem estupefaciente, porquanto são ambos consumidores de heroína e cocaína. Sendo que o amigo havia recebido a sua reforma e vieram, então, comprar estupefaciente no Porto, porquanto é mais barato do que em ..., onde reside. Assim, compraram €100 de cocaína, 22 pedras e € 50 de heroína, 22 pacotes.
Mais referiu o arguido que vive numa pensão cujo quarto é pago pela Segurança Social e recebe cerca de € 205 a título de RSI, trabalhando na agricultura, auferindo por dia cerca de €35/40. Mais referiu que vai iniciar tratamento de desintoxicação.
Confrontado com o teor do seu Certificado de Registo Criminal, justificou a sua conduta pela adição de que padece.
Da prova carreada para os autos resulta evidente que o arguido não tem meios de subsistência, pelo que, indiciariamente, a compra do produto estupefaciente em causa seria para venda, uma vez que não se considera razoável que o arguido faça a viagem para o Porto apenas para satisfazer o seu consumo. Mais se refira que o arguido sofreu três condenações pela prática de factos da mesma natureza e, inclusivamente, ocorridos na cidade do Porto.
Face ao exposto e aos elementos de prova juntos aos autos, o tribunal formou a sua convicção à luz das regras da experiência, da prova constante dos autos, revelando ainda o CRC junto e as declarações do arguido.
Assim tendo em conta os factos dados como fortemente indiciados, entendemos poder concluir-se pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21. do DL n° 15/93 de 22/01, ou, eventualmente, no art.º 25.° daquele diploma legal.
De acordo com o artigo 193.° do CPP: "As medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a se aplicadas".
Assim, no presente artigo estão consagrados quatro princípios no que tange à aplicação das medidas de coação:
O princípio da proporcionalidade;
O princípio da necessidade;
O princípio da adequação;
E o princípio da proibição do excesso.
As medidas de coação têm de ser aplicadas de acordo com o caso concreto, devendo obedecer a princípios de proporcionalidade, necessidade e adequação.
Com vista a acautelar os perigos que, em concreto, se verifiquem, sendo que nenhuma medida de coação pode ser aplicada se não se verificar um dos perigos do artigo 204.º do CPP (à exceção do TIR).
Dos autos resulta evidente o perigo de continuação da atividade criminosa, atenta a adição do arguido e a instabilidade familiar e profissional em causa. Por outro lado, consideramos que, atendendo à natureza dos autos, estará, ainda, em causa o perigo de perturbação da ordem e tranquilidades públicas.
Assim é por demais evidente que necessitamos de acautelar os perigos de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidades públicas, artigo 204.°, al. c) do CPP.
Como tal, sem necessidade de mais considerandos, tudo conjugado, entendemos que será suficiente, adequada e proporcional a sujeição do arguido, para além do TIR, às seguintes medidas de coação:
- obrigação de apresentação diária no posto policial da sua área de residência, começando no dia de amanhã;
- proibição de contactos com pessoas (designadamente consumidores) e de frequentar lugares habitualmente conotados com a venda e/ou consumo de estupefacientes, em particular nos bairros sociais conotados com tráfico de estupefaciente, em particular, do Porto, medidas aplicadas ao abrigo do disposto pelos arts. 191.°, 193°, 194198°, 200.º, n°1, al. d), e 204.°, al. c), todos do C.P.P.
Notifique.
Restitua o arguido à liberdade.
Comunique ao OPC competente. […]».
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Antes de se entrar na apreciação do recurso apresentado pelo arguido, importa recordar o seguinte conjunto de princípios gerais a que a lei processual penal sujeita a aplicação das medidas de coação:
-- princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade: as medidas de coação devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer (a medida deve ser idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso concreto) e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (art.º 193.º, n.º 1 do Código de Processo Penal), desdobrando-se o último num critério quantitativo: a medida de coação deve ser proporcionada à gravidade do crime, tomando-se em consideração a medida abstrata da pena e fazendo-se uma prognose da pena que em concreto virá a ser aplicada ao arguido; e num critério qualitativo: tem-se em conta o comportamento e personalidade do arguido;
-- princípio da subsidiariedade das medidas de coação privativas da liberdade (prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação) – artigos 193.º, n.º 2, 201.º, n.º 1 e 202.º, nº 1, todos do Código de Processo Penal.
O respeito pelo princípio da subsidiariedade impõe considerar sempre a prisão preventiva como uma medida de natureza excecional que só pode ser aplicada como extrema ratio, quando nenhum outro meio se perfile ou anteveja como adequado e suficiente [1].
Por outro lado, impõe-se que se verifiquem os denominados pericula libertatis (art.º 204º do Código de Processo Penal) – que devem configurar-se como um perigo real e não meramente hipotético ou virtual e resultar de todos os elementos factuais disponíveis no processo, analisados e ponderados de acordo com as regras da experiência comum:
a) fuga ou perigo de fuga (perigo concreto e não mera probabilidade, sendo certo que se tem que ter presente que estamos perante um perigo, não se confundindo com existência de atos preparatórios da fuga); ou
b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova (perigo concreto a que não seja possível obstar com outros meios); ou
c) perigo, em razão da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas (função cautelar com validade no próprio processo e não medida de segurança alheia ao processo em que é aplicada).[2]
Feitas estas considerações, apreciemos, então, os fundamentos do recurso interposto pelo Ministério Publico – que, como vimos, reputa as medidas de coação judicialmente determinadas de inadequadas e insuficientes para responder às exigências cautelares verificadas no caso concreto, considerando ser necessária a aplicação da medida de prisão preventiva.
*
Sob o título “prisão preventiva”, estabelece o n.º 1, do art.º 202.º, do Código do Processo Penal:
“1 - Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando:
a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos;
b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta;
c) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
d) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, recetação, falsificação ou contrafação de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
e) Houver fortes indícios da prática de crime doloso de detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
f) Se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão.”.

Considera o Ministério Público/recorrente que apenas a medida de coação de prisão preventiva é adequada para dar resposta às elevadas exigências cautelares verificadas no caso concreto, afigurando-se, por outro lado, tal medida cautelar proporcional à gravidade do crime e à sanção que, previsivelmente, será aplicada ao arguido.
Como se reconhece no acórdão deste TRP, de 14/1/2015 [3], a prisão preventiva é, irrecusavelmente, a medida coativa mais eficaz, aquela que, em princípio, satisfaz plenamente as exigências cautelares de qualquer processo.
No entanto, é, simultaneamente, a mais gravosa e por isso só deve ser aplicada e mantida desde que outras, menos penosas, se mostrem inadequadas ou insuficientes.
O que o recorrente se propõe demonstrar é que, no quadro indiciado, as preocupações salientadas no despacho recorrido apenas serão devidamente acauteladas através da sujeição do arguido à medida de prisão preventiva.
Salienta-se no acórdão do TRL de 4/5/2022 (in www.dgsi.pt) que o princípio da necessidade «consiste em que o fim visado pela concreta medida de coação (…) decretada não pode ser obtido por outro meio menos oneroso para os direitos do arguido, estando essas medidas previstas, em consonância, numa escala de crescente gravidade a partir do TIR, passando por outras não privativas da liberdade até às duas mais graves - a obrigação de permanência na residência e a prisão preventiva -, que “só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação” (cf. nº 2 daquele preceito), devendo, ainda assim, ser dada preferência à primeira sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares” (cf. nº 3 do mesmo preceito).». [4].
Não temos dúvidas de que, no caso concreto, o perigo de continuação da atividade criminosa é patente, não só pelo facto de o arguido ser consumidor de substâncias psicotrópicas e de possuir escassos meios de subsistência, como também - e principalmente - pela circunstância, decorrente da análise do CRC constante dos autos, de ter já sido condenado por três vezes pelo cometimento do mesmo tipo de crime, encontrando-se, inclusivamente, a decorrer o prazo de suspensão da execução de uma pena de prisão que lhe havia sido aplicada, não o tendo impedido tal circunstância de voltar a esta senda criminosa, como justamente salienta a magistrada do Ministério Público no recurso e o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer.
Por outro lado, este circunstancialismo provoca, naturalmente, um sentimento de intranquilidade na comunidade. Na verdade, é consabido que “O perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas decorre diretamente dos termos em que são perpetrados certos crimes, pela revolta e insegurança que geram nas pessoas, sobretudo quando não se lhes segue uma imediata reação reasseguradora por parte do aparelho repressivo em que repousa a crença da ordem e segurança comunitárias” [5].
Como é salientado pelo Ministério Público no recurso, proibir o arguido de contactar com pessoas e de frequentar lugares conotados com o tráfico de estupefacientes é idóneo a dificultar a prática do crime de tráfico de estupefacientes, mas não é suficiente, porém, para o impedir de continuar a deslocar-se a vários locais de venda de estupefacientes e a estabelecer contactos com toxicodependentes que pretendam adquirir-lhe tais substâncias. O cumprimento de tal medida de coação é de difícil controlo e, em grande medida, insindicável, não só porque as autoridades policiais naturalmente não podem observar as movimentações do arguido permanentemente, mas também porque é conhecida a facilidade de acesso a meios de comunicação que possibilitam e favorecem o prosseguimento desta atividade criminosa.
Num juízo de prognose, concordamos com o Exmo. Procurador-Geral Adjunto quando observa que, a adição de que padece e os parcos proventos económicos de que beneficia, irão compelir o arguido a continuar nesta sua senda criminosa, a qual não será travada, seguramente, pelas apresentações periódicas determinadas, nem pela proibição de contactos e de frequência de certos lugares imposta pelo tribunal a quo – comportamento que, de resto, não foi igualmente capaz de conter a prévia condenação do arguido, cerca de dois meses antes, numa pena de prisão suspensa na respetiva execução.
Concordamos, assim, com o recorrente quando assinala que só uma medida de coação privativa da liberdade impedirá o arguido de continuar a delinquir, revelando-se, portanto, a aplicação de uma medida com esta natureza adequada e necessária, sobretudo para neutralizar o acentuado perigo de continuação da atividade criminosa.
É certo que a medida de coação de prisão preventiva, por ser mais gravosa, deve ceder quando se mostre adequada e suficiente a aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação, à qual deverá ser dada preferência, sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares (cf. o nº 1 do artigo 202.º do CPP).
Contudo, se é verdade que a obrigação de permanência na habitação [6] limita, consideravelmente, a liberdade ambulatória do arguido, está longe de impedir em absoluto a fuga e, para o que aqui particularmente interessa, a possibilidade de continuação da atividade criminosa. É que, naturalmente, a eficácia desta medida de coação pressupõe que o arguido a ela se sujeite, sem prevaricar.
Por outro lado, e como justamente se salienta no acórdão deste TRP, de 21/12/2016 [7], “A medida de coação da obrigação de permanência na habitação (OPH) em confronto com a prisão preventiva, não tem a capacidade, perante um crime grave, de dar resposta adequada em sede de prevenção geral à necessidade de tranquilizar a sociedade”.
Na verdade, é consabido que “O perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas decorre diretamente dos termos em que são perpetrados certos crimes, pela revolta e insegurança que geram nas pessoas, sobretudo quando não se lhes segue uma imediata reação reasseguradora por parte do aparelho repressivo em que repousa a crença da ordem e segurança comunitárias” [8].
Consideramos, assim, que nenhuma das restantes medidas de coação (designadamente a obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica), para além da prisão preventiva, acautelam suficientemente as finalidades cautelares e os perigos evidenciados, tanto mais que o recorrente facilmente poderia prosseguir a atividade de tráfico de estupefacientes a partir do quarto da pensão onde reside, risco este que não fica devidamente salvaguardado com o recurso à vigilância eletrónica [9].
Resta acrescentar que, não podendo ser a prisão preventiva ou a OPH entendidas como medidas antecipatórias do cumprimento de uma pena - pois que, além do mais, tal contrariaria de forma frontal o princípio da presunção de inocência, o que seria inaceitável -, o certo é que, no quadro ora fortemente indiciado, considerando a moldura abstrata, desde logo, do crime de tráfico de estupefacientes (punível com prisão de 4 a 12 anos), a circunstância de o recorrente apresentar antecedentes criminais e a atitude de total indiferença por ele denotada (evidenciada, nomeadamente, pela circunstância de ter prosseguido a atividade de tráfico apesar de ter sido previamente condenado por outros crimes de igual natureza, encontrando-se inclusivamente a decorrer o prazo de suspensão da execução de uma pena de prisão aplicada escassos meses antes), dificilmente será de prever a aplicação de uma pena diversa de uma pena de prisão efetiva.
Em síntese, verificados que estão os necessários pressupostos, e sem perder de vista que a prisão preventiva é uma medida excecional, temos como seguro que é de aplicar tal medida de coação ao arguido, em detrimento de qualquer outra, pois que, no indiciado circunstancialismo global, revela-se, nesta altura, a única adequada e suficiente para cumprir as exigências cautelares que a situação reclama, tanto mais que, a manter-se o indiciado quadro fáctico, é expectável a ulterior aplicação ao recorrente de uma pena de prisão efetiva [10].
Procede, desta forma, o presente recurso, devendo o arguido aguardar os ulteriores termos do processo em situação de prisão preventiva, sem prejuízo de o tribunal de primeira instância dever reavaliar a possibilidade de aplicação da medida de coação de obrigação da permanência na habitação, caso ocorra uma alteração superveniente do circunstancialismo fáctico, designadamente relacionado com as condições de habitação do arguido.
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III - Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, decidem revogar a decisão recorrida, determinando-se a aplicação da medida de coação de prisão preventiva ao arguido/recorrido.
Sem custas.
Notifique.
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(Texto processado e revisto pela relatora – art.º 94.º, n.º 2, do CPP – e assinado digitalmente).
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Porto, 17 de janeiro de 2024
Liliana Páris de Dias
Maria Deolinda Dionísio
Carla Oliveira
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[1] Cf. o acórdão do TRL, de 19/6/2019, relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira e disponível em www.dgsi.pt.
[2] Como é assinalado no acórdão deste TRP, de 6/5/2015 (Elsa Paixão, in www.dgsi.pt), o perigo de continuação da atividade criminosa, previsto no art.º 204º al. c) CPP, deve ser interpretado como meio de impedir o arguido de praticar crimes da mesma espécie daqueles pelos quais está indiciado.
[3] Relatado pelo Desembargador Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt.
[4] Salienta-se no acórdão deste TRP, de 4/7/2012, relatado pela Desembargadora Maria Dolores Silva e Sousa e disponível em www.dgsi.pt, o seguinte:
“O princípio da necessidade vem a traduzir-se na impossibilidade de o fim visado pela concreta medida de coação decretada não poder ser obtido por outro meio menos oneroso para os direitos do arguido.
Deste princípio decorrem as seguintes consequências:
a). Estabelecimento de uma escala de gravidade relativa das medidas de coação, ordenadas da mais para a menos grave, em consequência das restrições dos direitos, impostas ao arguido. i. prisão preventiva; ii. obrigação de permanência na habitação; iii. proibição de permanência, de ausência e de contactos; iv. suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos; v. obrigação de apresentação periódica; vi. caução; vii. termo de identidade e residência.
b). subsidiariedade da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação em relação às outras medidas de coação.
c). subsidiariedade da prisão preventiva em relação à obrigação de permanência na habitação.
d). preferência pela cumulação de duas ou mais medidas de coação menos gravosas em detrimento da aplicação de uma medida mais gravosa. (Cf. Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código do Processo Penal, pág. 525 e Frederico Isasca, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, pág. 99 a 118, sob o tema A Prisão Preventiva e Restantes Medidas de Coação).”
[5] Cf. o acórdão do TRP, de 8/2/2012, relatado pelo Desembargador Ricardo Costa e Silva, citado no acórdão de 21/12/2016, também do TRP, relatado pelo Desembargador Moreira Ramos e igualmente disponível em www.dgsi.pt.
[6] Nem sequer equacionamos outra medida de coação, não privativa da liberdade, por se nos afigurar totalmente inidónea, em face das elevadas exigências cautelares verificadas no caso concreto, decorrentes quer da acentuada danosidade social do ilícito indiciariamente praticado pelo recorrente, quer da personalidade por ele evidenciada.
[7] Relatado pelo Desembargador Moreira Ramos e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[8] Cf. o acórdão do TRP, de 8/2/2012, relatado pelo Desembargador Ricardo Costa e Silva, citado no mencionado acórdão de 21/12/2016, também do TRP, e igualmente disponível em www.dgsi.pt.
[9] Como é reconhecido no acórdão do TRP, de 27/9/2006, relatado pelo Desembargador Dias Cabral e disponível em www.dgsi.pt, “No caso de crime de tráfico de estupefacientes a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, mesmo com controlo eletrónico, não atenua seriamente o perigo de continuação da atividade criminosa.”.
[10] E, por isso, não existe desproporcionalidade na medida coativa agora aplicada.