Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2952/12.9TBVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DECLARAÇÕES DE PARTE
DEVERES CONJUGAIS
Nº do Documento: RP201412172952/12.9TBVCD.P1
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Depois da reforma de 2013 do CPC, as partes podem fazer prova de factos favoráveis, com as suas declarações, como decorre do art. 466/1 do CPC, mas essas declarações têm de ser minimamente corroboradas por outros meios de prova. E essa prova não pode ser substituída por depoimentos indirectos, isto é, por aquilo que as testemunhas dizem que as partes lhes contaram, tendo que ser produzida nos termos do art. 466/1 do CPC.
II - O comportamento do marido que bate na mulher e não a deixa entrar dentro de casa sob ameaça de, pelo menos, graves ofensas físicas, demonstra que a comunhão de vida que é pressuposta pelo casamento está radicalmente posta em causa, ou seja, que a ruptura do casamento já se consumou (art. 1781/d do CC), o que basta para a procedência do pedido de divórcio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Divórcio sem consentimento 2952/12.9TBVCD do 1.º Juízo Cível de Vila do Conde

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

B… intentou 07/11/2012, contra o seu marido C…, este divórcio invocando a ruptura definitiva do casamento [artigo 1781/d do Código Civil] provocada pela violação, por parte do réu, dos deveres recíprocos dos cônjuges (art. 1672 do CC).
O réu contestou impugnando os factos alegados.
Depois de realizado o julgamento foi proferida sentença decretando o divórcio e a consequente dissolução do seu casamento.
O réu recorre desta sentença, concluindo que os factos 2 a 8 deviam ter sido dados como não provados porque as 4 testemunhas da autora, como resulta do respectivo depoimento, em passagens que localiza na gravação, apenas contaram o que lhes foi contado por esta, e as do réu apenas contaram a versão do réu, não tendo, por isso, qualquer credibilidade, nem força probatória, pois que se trata de prova indirecta que não merece qualquer valoração; e em consequência, por falta de prova, a acção tem de ser considerada improcedente.
A autora contra-alegou, propugnando pela improcedência do recurso.
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Questões a decidir: se os factos 2 a 8 deviam ter sido dados como não provados e se, em consequência, a acção devia improceder.
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Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. A autora e o réu casaram no dia 31/3/2000, na Conservatória do Registo Civil de Vila do Conde, no regime imperativo da separação de bens.
2. Em data não concretamente apurada, mas situada há 3 anos a esta parte, o réu apertou o pescoço da autora e bateu-lhe num braço e numa perna.
3. Em resultado dessa agressão a autora ficou com equimoses no pescoço e peito e numa perna.
4. No dia 14/07/2012, o réu, sem razão aparente, agrediu a autora na região da anca, do lado direito.
5. Tendo a autora, em resultado de tal agressão, sofrido as lesões constantes do relatório do Instituto de Medicina Legal do Porto junto nos autos do processo n.º 686/12.3GAVCD (equimose de cor amarela com 8 cm por 5 cm no membro inferior direito, região lombar, na transição para a região nadegueira).
6. Em data não concretamente apurada, o réu dirigiu-se à autora, dizendo-lhe “Sai, não entras mais aqui dentro, porque chego-te o fogo a ti e à casa”, referindo-se à casa onde residiam ambos.
7. Desde 14/07/2012, autora e réu não mais dormiram ou comeram na mesma casa, passando a viver em residências distintas.
8. A conduta do réu causou à autora tristeza, vergonha e baixa de auto-estima.
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Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Segundo o tribunal recorrido deixou dito, a sua convicção foi fundada nos depoimentos conjugados das seguintes testemunhas [passa-se a transcrever a fundamentação, à excepção da referência às testemunhas do réu que nada acrescentaram com o que as partes estão de acordo]:
“- numa primeira, a qual foi colega de trabalho da autora durante cerca de 14 anos, residindo perto dessa mesma autora, tendo referido que em há cerca de 3 anos atrás, quando foi tomar café, deparou-se com a autora que estava muito combalida, apresentando uma “nódoa negra” no peito e outra numa perna; mais se referiu que a autora lhe confidenciava que o réu lhe batia e a insultava; confirmou ainda que a autora lhe contou que saiu de casa no dia 14/07/2012, depois de o réu lhe ter batido, tendo a autora ficado muito abatida;
- numa segunda, que disse conhecer a autora desde pequena, com quem costuma fazer caminhadas, e esclarecido que a filha trabalha numa pastelaria à qual costuma ir tomar o pequeno-almoço; numa dessas ocasiões, que não conseguiu concretizar, a autora também se encontrava no estabelecimento, a chorar, apresentando “marcas” no pescoço, tendo a testemunha ouvido dizer a mesma autora que o marido a havia “tratado mal”; no dia 14/07/2012 a autora mandou-lhe uma mensagem para o telemóvel dizendo que não podia ir a casa da testemunha buscar umas t-shirts que estavam encomendadas porque o marido a “tinha pisado” toda e “posto fora de casa”, sendo que mais tarde veio a testemunha a constatar, pessoalmente, que a autora tinha nódoas negras na nádega direita; mais referiu que a autora anda a ser acompanhada por uma psiquiatra, sendo que a própria testemunha a acompanhou a consultas;
- numa terceira, [que] disse conhecer a autora desde criança, não sendo sua amiga íntima, mas ambas participando em caminhadas, referindo a testemunha que tinham uma dessas caminhadas para o dia 15/07, como é habitual fazerem todos os anos, sendo que autora faltou, tendo dito que estava a viver em casa do filho, no Porto, porque o marido a tinha agredido e a autora saiu de casa; já posteriormente, a autora regressou à Árvore, onde arrendou uma casa, não mais tendo voltado a viver com o marido; disse ainda a testemunha que a autora ficou mais triste e “fechada”, tendo-lhe contado que andava a “tomar medicação para a cabeça”;
- e numa quarta, agente da GNR, tendo referido que no exercício da sua actividade, foi chamado a casa da autora e réu por causa de uma situação de “violência doméstica”; que, quando lá chegou, o réu estava dentro de casa e a autora da parte de fora, recordando-se a testemunha que o réu não queria que a autora entrasse em casa e que a autora lhe disse que o réu a tinha agredido; a testemunha disse ainda que, na sua presença, o réu se dirigiu à autora dizendo-lhe “vai e aqui não entras mais, que pego fogo a ti e à casa”, não tendo a testemunha conseguido localizar tais factos no tempo;
Salientando-se que os depoimentos mencionados nos parecerem perfeitamente credíveis, coerentes, consistentes e, por isso mesmo, convincentes, sendo certo que neste tipo de acções é mais raro haver prova directa dos fatos (passando-se os mesmos, normalmente, no recato do lar), razão pela qual terá o Tribunal de valorar convenientemente a prova indirecta, que, no caso concreto, foi abundante e proficuamente produzida.”
A autora diz [transcreve-se na parte que importa]:
- Conforme é do conhecimento do réu, o conteúdo dos factos 2 a 5 constam do processo 686/12.3GAVCD (juízo criminal), bem como do conteúdo dos depoimentos prestados pelas 4 testemunhas da autora.
Quanto ao conteúdo dos factos 6 a 8, resultou dos depoimentos das testemunhas supra enunciadas.
A 1ª a 02:45 disse que «vi o pescoço e o braço da autora com equimoses»; «Quanto ao barulho apenas sei o que a autora me contou porque não sou vizinha dela.» A 04:46 disse que «tenho conhecimento do dia da saída de casa da autora - 14/07/2012 - porque no dia 14/07 estava em Fátima e enviei à autora uma mensagem a perguntar se estava tudo bem ao que ela respondeu que nem por isso, o marido bateu-lhe e meteu-a fora da porta.»; A 04:57 referiu que «a autora após ter saído de casa no dia 14/07 nunca mais regressou a casa, encontrava-se a viver com o filho, no apartamento deste.» Por último, a 06:00, disse que em face da situação psicológica da autora, «acompanhei várias vezes a autora, às consultas no Centro de Saúde.»
A 2ª quanto às marcas no corpo da autora, a 03:13: «vi a autora chorar e baixou o lenço e vi as marcas no pescoço…». A 03:35 refere que a autora por telemóvel disse: «não posso, não estou em casa, o meu marido pisou-me toda e meteu-me fora de casa.» A 03:59 disse: «vi, estava toda pisada na nádega direita...». A 05:43 referiu quanto à alteração da situação pessoal e psicológica da autora: «....andava doente, mais calada, levei-a várias vezes ao centro de saúde... andava muito doente da cabeça...». A 06:56 «…ela agora não vai lá baixo porque tem medo do marido...».
A 3ª refere a 05:00 numa das conversas tidas com a autora: «estou no Porto... o marido tinha-lhe batido e a policia tinha-lhe tirado de casa... a policia a GNR...». A 07:26 referiu: «ela quando veio, veio para uma casa alugada, em Árvore, perto da estação de metro... nunca tive conhecimento de que ela tivesse vivido com o marido após a sua saída de casa...». A 09:28, referiu ainda quanto à autora, esta estava: «mais triste, uma pessoa mais fechada em si... ela estava a ser acompanhada pelo médico e a tomar medicamentos... a ser tratada da cabeça...».
Por último, quanto à 4ª testemunha agente da GNR, refere que foi chamado a casa da autora por causa de uma situação de violência doméstica e a 01:00 refere que: «o réu não deixava a autora entrar dentro de casa, ela estava fora da porta...» A 02:00 disse que: «ele não queria que a autora entrasse em casa...». A 02:18 «o caso insere-se numa situação de violência doméstica». Por último a 03:18, confirmou o seguinte: «ouvi o réu a dizer à autora vai e aqui não entras mais, que pego fogo a ti e à casa... foram apreendidas duas caçadeiras que pertencem ao réu»
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Posto isto:
A autora – não o tribunal - invoca em termos genéricos aquilo que consta de um processo crime, mas nem sequer diz que se esteja a referir a provas que aí existam – que não diz quais sejam – ou a sentença que aí tenha sido proferida. Quanto a eventuais provas, elas teriam que ser invocadas em concreto pela autora para serem consideradas (art. 421/1 do CPC). Quanto à sentença, ela tinha que ser invocada em concreto, para que fosse possível invocar a sua força probatória (como decorre do art. 623 do CPC = 674-A do CPC antes da reforma de 2013, nos termos defendidos por Lebre de Freitas, CPC anotado, vol. 2.º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 726/727). Mas não o foi porque, como decorre dos autos, ela nunca chegou a ser proferida, pois que o processo foi suspenso provisoriamente no decurso da instrução.
Quanto aos depoimentos das três primeiras testemunhas e como resulta das transcrições e sínteses referidas acima, aquilo que as testemunhas viram não serve de prova de que as lesões corporais tenham sido provocadas pelo réu; as lesões podem ter outras fontes.
Quanto ao mais, o que as testemunhas contam quanto à autoria das lesões sofridas pela autora, é – como diz o réu – aquilo que lhes foi contado pela autora. Ora, se hoje, depois da reforma de 2013 do CPC, as partes podem fazer prova dos factos favoráveis através das suas declarações, isso só é válido se elas forem prestadas por elas próprias e depois de ajuramentadas, tudo nos termos do art. 466 do CPC (e, por força deste, no art. 456 do CPC), e não através daquilo que as testemunhas dizem que elas lhes contaram. A abertura excepcional à possibilidade de as declarações de uma parte fazerem prova de factos que são favoráveis às suas pretensões tem que ter a contrapartida de só poderem valer desde que prestadas nos termos pressupostos por aquela norma.
Para além disso, mesmo estas declarações só valeriam se fossem minimamente corroboradas por outro/s meio/s de prova [neste sentido, vejam-se os acs. do TRP de 26/06/2014, 97564/13.8YIPPRT.P1, não publicado, de 15/09/2014, 216/11.4TUBRG.P1, e de 20/11/2014, 1878/11.8TBPFR.P2; em complemento do que se diz nestes acórdãos, diga-se ainda que naquela que parece ter sido a primeira defesa do depoimento de parte livremente valorado, em Portugal, logo se fazia a restrição: “embora apenas, na parte em que é favorável ao depoente, em complemento de outras provas” – Lebre de Freitas, ROA, 1990, II, pág. 750, como relator do parecer da comissão de legislação da AO sob o projecto de CPC; já na tese de doutoramento deste Professor, A confissão no direito probatório, de 1991, Coimbra Editora, págs. 241/242, nota 15, referia-se que a valoração da declaração favorável do interrogado funcionava, fora dos países anglo-saxónicos, nos apertados limites duma prova subsidiária, parecendo que esta subsidiariedade tem a ver com a situação em que os outros meios de prova disponíveis não possibilitaram ao juiz a formação da sua convicção, ou seja, pressupõe a existência de outros meios de prova, assim devendo ser interpretada, por isso, a referência que este Professor faz, na 3ª edição da Acção declarativa, Set2013, ao funcionamento das declarações de parte como prova subsidiária, quando não haja outros elementos de clarificação do resultado das provas produzidas (págs. 278 e nota 11 da pág. 259) e nunca como o único elemento de prova dos factos favoráveis; mais ou menos neste sentido parece ir também Remédio Marques, como se pode ver na conclusão XXI do seu texto, A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte chamada a prestar informações ou esclarecimentos – Julgar – 16, 2012: “É assim admissível a produção e a valoração das declarações da parte, mesmo que respeitem a factos probatórios que lhe sejam favoráveis, contanto que o tribunal não se tenha baseado exclusivamente nessas declarações para formar a sua convicção sobre os factos controvertidos que deu como provados.” (os sublinhados foram aqui introduzidos) - noutro sentido, parece ir Luís Filipe de Sousa numa citação que é feita da obra do mesmo, pág. 198, pelo ac. do TRL de 22/05/2014, 3069/06.0TBALM.L2-2 - “no limite, admitimos que o juiz possa fundar a sua convicção quanto a tal tipo de factualidade apenas nas declarações de parte e/ou nos depoimentos indirectos.”].
Resta o depoimento da quarta testemunha, o soldado da GNR, e o relatório do INML. Ora, do depoimento do soldado da GNR resulta que ele, no dia 14/07/2012 (não importa que ele não consiga precisar a data, desde que se sabe que foi ele o agente da participação daquele caso de 14/07/2012, como se vê do doc. 2 junto com a petição inicial, a fls. 12 do processo em papel e que se tratou da única vez que foi a casa do casal como resulta do seu depoimento), viu e ouviu o réu a impedir a autora de entrar em casa de morada do casal, bem como que viu e ouviu o réu a mandar embora a autora e a ameaçá-la de lhe pegar fogo. E tudo isto feito perante alguém que é um agente de autoridade e que estava no exercício das suas funções. O que revela que o réu se comportou com uma pessoa conflituosa, agressiva e exaltada. Juntando isto ao relatório do INML que prova a existência de lesões no corpo da autora no dia 16/07/2012 (que diz que a data da cura das lesões é fixável em 22/07/2012 e que determinarão 8 dias para a cura, pelo que remete a data dos factos para 14/07/2012), torna-se muitíssimo provável que as lesões tenham sido provocadas naquele dia em que o soldado da GNR foi chamado para um caso de violência doméstica e que o tenham sido pelo réu (no emprego da expressão muitíssimo provável tiveram-se em conta as considerações tecidas pelos acs do TRC de 21/03/2013, 793/07.4TBAND.C1: V - No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis. Está nestas condições, notoriamente, a prova testemunhal. VI - A prova de um facto não visa, pois, obter a certeza absoluta, irremovível, da verificação desse facto. A prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas, para convencer o decisor, conhecer das realidades do mundo e das regras de experiência que nele se colhem, da verificação da realidade do facto; e de 06/03/2012, 1994/09.6TBVIS.C1: I – A consideração de um facto como provado assenta, em processo civil, num juízo de preponderância em que esse facto provado se apresente, fundamentadamente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido.)
Assim, considera-se que os elementos de prova produzidos não permitem dar como provados os factos 2 e 3, mas já permitem dar como provados os factos 4 (retirando o ‘sem razão aparente’ por ser inócuo e não haver prova) 5 e 6 (retirando-se a ressalva introduzida na resposta ao quesito pelo tribunal recorrido, porque se sabe em que data tal aconteceu, mantendo-se em contrapartida, por isso mesmo, o ainda, ou seja, o facto 6 ficará com a seguinte redacção: 6. O réu dirigiu-se ainda à autora, dizendo-lhe “Sai, não entras mais aqui dentro, porque chego-te o fogo a ti e à casa”, referindo-se à casa onde residiam ambos.).
Já em relação ao facto 7, tal resulta dos depoimentos das 1ª, 2ª e 3ª testemunhas, bem transcritos, na parte que importa, pela autora.
Em relação ao facto 8, tal resulta dos depoimentos das 1ª, 2ª e 3ª testemunhas, bem transcritos, na parte que importa, pela autora, conjugados as regras da experiência comum das coisas, tendo em conta os factos provados de 4 a 6.
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Assim, em resultado da parcial procedência da impugnação da decisão da matéria de facto, os factos provados passam a ser os seguintes:
1. A autora e o réu casaram no dia 31/3/2000, na Conservatória do Registo Civil de Vila do Conde, no regime imperativo da separação de bens.
4. No dia 14/07/2012, o réu agrediu a autora na região da anca, do lado direito.
5. Tendo a autora, em resultado de tal agressão, sofrido as lesões constantes do relatório do Instituto de Medicina Legal do Porto junto nos autos do processo n.º 686/12.3GAVCD (equimose de cor amarela com 8 cm por 5 cm no membro inferior direito, região lombar, na transição para a região nadegueira).
6. O réu dirigiu-se ainda à autora dizendo-lhe “Sai, não entras mais aqui dentro, porque chego-te o fogo a ti e à casa”, referindo-se à casa onde residiam ambos.
7. Desde 14/07/2012, autora e réu não mais dormiram ou comeram na mesma casa, passando a viver em residências distintas.
8. A conduta do réu causou à autora tristeza, vergonha e baixa de auto-estima.
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Das consequências a nível do Direito
Face à retirada, por força da parcial procedência da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, de dois dos factos dados antes como provados, a decisão final deve ser revogada?
O art. 1781 do Código Civil, sob a epígrafe ‘ruptura do casamento’ diz, desde a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, que “são fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges: […] d) quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.”
Com o casamento os cônjuges assumem uma série de deveres conjugais, entre eles os deveres de respeito (de tratar o outro cônjuge com urbanidade, honrando-o, tendo-o em consideração e poupando-o; de não ofender a integridade física ou moral do outro; de não se conduzir na vida de forma indigna, desonrosa e que o faça desmerecer no conceito público; de falar com o outro, de mostrar interesse pela família que constituiu, de manter com o outro uma comunhão espiritual) e de coabitação (de viver juntos - mantendo relações de sexo um com o outro -, na residência da família: art. 1673 do CC; isto é: a comunhão de leito, de mesa e de habitação) – neste sentido, Antunes Varela, CC anotado, vol. IV, 2ª edição, Coimbra Editora, 1992, págs. 256/270, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 2ª edição, Coimbra Editora, Junho de 2001, págs. 350/363.
No âmbito da descrição dos fundamentos para o divórcio no regime anterior ao actual, Teixeira de Sousa, no seu O Regime Jurídico do Divórcio, Almedina, Coimbra, 1991, pág. 46, dizia que “há violações que são objectivamente graves - como, por exemplo, a violação do dever de respeito por ofensas corporais ou a violação do dever de fidelidade pela prática de adultério - e relativamente às quais é despiciendo averiguar se a violação impede ou dificulta a convivência conjugal.”
Por sua vez, o acórdão do STJ de 03/10/2013, 2610/10.9TMPRT.P1.S1, tal como o acórdão do TR de Coimbra de 07/06/2011, 394/10.0TMCBR.C1, lembram que “nas palavras da Exposição de Motivos que acompanhou o Projecto de Lei nº 509/X apresentado à Assembleia da República, e do qual veio a resultar a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro (Altera o regime jurídico do divórcio), disponível em www.parlamento.pt,” pretendeu-se, com tal cláusula [ruptura definitiva do casamento], “dar cabal expressão ao «sistema do “divórcio ruptura”», que «pretende reconhecer os casos em que os vínculos matrimoniais se perderam independentemente da causa desse fracasso, não [havendo] razão para não admitir a relevância de outros indicadores fidedignos da falência do casamento», para além dos que exemplificativamente constam do artigo 1781: separação de facto, alteração das faculdades mentais e ausência de um dos cônjuges. «Por isso, acrescent[ou]-se uma cláusula geral que atribui relevo a outros factos que mostram claramente a ruptura manifesta do casamento, independentemente da culpa dos cônjuges e do decurso de qualquer prazo. O exemplo típico é a violência doméstica – que pode demonstrar imediatamente a inexistência da comunhão de vida própria de um casamento». [o sublinhado foi agora acrescentado]).
Ora os factos sob 4 a 6 consubstanciam a violação, pelo réu, dos deveres conjugais de respeito e de coabitação, violação grave e que não precisa de ser reiterada para demonstrar a ruptura definitiva do casamento: o comportamento do marido que bate na mulher e não a deixa entrar dentro de casa sob ameaça de, pelo menos, graves ofensas físicas, demonstra que a comunhão de vida que é pressuposta pelo casamento [artigo 1577 do CC: Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código] está radicalmente posta em causa.
(sobre a ruptura definitiva do casamento como fundamento do divórcio, tiveram-se em conta, principalmente, os acórdãos do STJ de 09/02/2012, 819/09.7TMPRT.P1.S1 - I - A adesão ao conceito-modelo do “divórcio-constatação da ruptura conjugal” representa uma nova realidade destinada a ser o instrumento para a obtenção da felicidade de ambos os cônjuges, conduzindo à concepção do divórcio unilateral e potestativo, em que qualquer um dos cônjuges pode por termo ao casamento, com fundamento mínimo na existência de factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do matrimónio, por simples declaração singular, ainda que a responsabilidade pela falência do casamento lhe possa ser imputada, em exclusivo. -, e do TRL de 30/10/2014, 145/13.7TMLSB.L1-8.
E tanto bastava para a procedência da acção, não importando que não se prove a prática de uma ofensa corporal anterior.
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Pelo exposto, embora com parcial procedência da impugnação da decisão da matéria de facto, julga-se o recurso improcedente quanto à decisão final.
Custas do recurso em 1/10 pela autora e 9/10 para o réu (sem prejuízo do eventual apoio judiciário).

Porto, 17/12/2014
Pedro Martins
Judite Pires
Teresa Santos