Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
497/22.8PRPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOÃO LOPES
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
ADMISSIBILIDADE
PRESSUPOSTOS
CRIME DE BURLA
OFENDIDO
Nº do Documento: RP20241218497/22.8PRPRT.P1
Data do Acordão: 12/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO NÃO PROVIDO O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Para se aferir da admissibilidade de constituição de assistente com referência a determinado crime, cumpre averiguar qual o interesse, ou quais os interesses, especialmente tutelados pela norma que o tipifica e, bem assim, quem, pela infracção viu, directa e imediatamente, o seu direito violado e sofreu, por isso, um dano.
II - No crime de burla, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação é o prejudicado, que não coincide necessariamente com o enganado.
III – O prejudicado, no crime de burla é quem se situa numa relação/conexão directa entre o engano provocado e o dano sofrido, embora passa não ser o enganado.

(da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc n.º 497/22.8PRPRT.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Criminal de ... - Juiz 4






I. Relatório

1. Nos autos com o n.º 497/22.8PRPRT, a correr termos no Juízo Local Criminal de ..., Juiz 4, no dia 19-04-2024 foi proferido despacho que não recebeu a acusação deduzida pelo MP contra as arguidas AA e BB, onde lhes é imputada a prática, em co-autoria material, de um crime de burla, p.p. no artigo 217.º/1 do C.P.

2. Inconformado o Ministério Publico recorreu deste despacho, pedindo a revogação dessa decisão e respectiva substituição por outra que receba a acusação deduzida, seguindo-se os demais trâmites legais.
Apresentou as conclusões que se passam a transcrever:
“1. Constitui objeto do presente recurso o despacho proferido 19/04/2024 (referência n.º 458197475), que, nos termos do disposto no art. 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, rejeitou a acusação pública deduzida contra as arguidas AA e BB, pela prática, em coautoria material, de um crime de burla, p. e p. pelos artigos 26.º, n.º 1 e 217.º, n.º 1, do Código Penal, por entender que CC, único denunciante nos autos, não tinha legitimidade para apresentar queixa, pois apenas tem a qualidade de lesado.
2. Como decorre do artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal, o legislador, ao definir a qualidade de “ofendido” teve em vista a tutela do portador do bem jurídico protegido com a incriminação que, no caso do crime de burla, é o património.
3. Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, “Para efeitos penais, o património inclui, numa concepção jurídico-económica, todos os direitos, as posições jurídicas e as expetativas com valor económico compatíveis com a ordem jurídica (…) Assim, integram o património os direitos subjetivos reais ou obrigacionais” - cf. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, pp. 598-599, nota 2.
4. Concretizando acerca do que se deve entender por dano patrimonial para efeitos da consumação do crime de burla – o que é essencial para se determinar o ofendido de tal ilícito – o Prof. Almeida Costa defende a adoção de um conceito objetivo-individual de dano patrimonial de acordo com o qual “o prejuízo deverá determinar-se através da aplicação de critérios objetivos de natureza económica à concreta situação patrimonial da vítima, concluindo-se pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta”, onde se incluem “Os direitos subjetivos patrimoniais de natureza real ou obrigacional” – cf. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pp. 283-285.
5. In casu, o dano patrimonial do ofendido CC concretizou-se, inicialmente pelo surgimento de um direito de crédito de natureza obrigacional a favor da A..., Unipessoal, Lda. contra a sua pessoa e, num segundo momento, com o prejuízo efetivo pela concretização da penhora do seu ordenado para cobrança da dívida contraída em seu nome por força do engano causado.
6. É unânime na doutrina e na jurisprudência que, no crime de burla, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação será o prejudicado, que não coincidirá necessariamente (muitas vezes não coincidirá) com o enganado.
7. Dos factos narrados na acusação pública, é inequívoco que o património do ofendido CC ficou empobrecido, quer pela circunstancia de ter sido contraída uma dívida em seu nome que gerou um direito de crédito sobre si, quer pela circunstancia de tal direito de crédito ter sido executado com a penhora do seu ordenado que à data da acusação ainda se mantinha – cf. factos narrados nos pontos 6, 7, 8 e 10 da acusação pública.
8. Sendo certo que existe uma relação/ conexão direta entre o engano causado e o prejuízo sofrido pelo ofendido CC, pois foi por força da utilização fraudulenta da sua identidade por parte das arguidas – engano – que o prejuízo na sua esfera jurídica se concretizou com o direito de crédito gerado e posterior penhora.
9. Em conclusão, o denunciante CC assume a qualidade de ofendido e, nesse sentido, é titular do direito de queixa.
10. Ao não decidir dessa forma, entendemos que o Tribunal a quo violou o disposto os artigos 113.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, do Código Penal e 49.º e 311.º, do Código de Processo Penal.
(…)”

3. Admitido que foi o recurso, não houve resposta ao mesmo em 1.ª Instância.
4. Subidos os autos a este Tribunal, pronunciou-se o Sr. Procurador Geral Adjunto no sentido da procedência do recurso, lavrando parecer que ora se transcreve parcialmente, na parte relevante e sem as notas de rodapé:
“(…)
Sem pretender quebrar o devido respeito por opinião contrária, e que é muito ou superlativo, e igualmente, sem prejuízo de eventual erro de intelecção, deficit de avaliação ou de mera observação, a ser colmatado por mais avisado, atento e ponderado entendimento, e admitindo ainda que as únicas certezas que tenho são as minhas dúvidas (e na tentativa de evitamento de qualquer faux pas) tendo em conta as especificidades do caso em apreciação, afigura-se-me que o despacho recorrido não está a par com as mais actuais e modernas concepções da dimensão conceitual de ofendido.
Com efeito, afigura-se-me que o entendimento do despacho recorrido foi traído pela circunstancia de o queixoso não ter sido diretamente objecto da acção enganosa e de não ter intervido em imediatismo nos factos que constituem todo o processo causal do crime de burla.
Porém, sem pretender quebrar o elevadíssimo respeito por opinião divergente, e até, porventura, mais avisado e sedimentado entendimento (com a especial e inarredável ressalva que ao contrário dos “factos”, as opiniões não são “falsas” nem “verdadeiras”, e muito menos, a minha, constituirá o critério barométrico da solução jurídica ideal e infalível) o queixoso, sobre o ponto de vista normativo mais actual e moderno, é ofendido para efeitos de crime de burla previsto, sancionado e punido pela norma do artigo 217.º do Código Penal – C.P. pelo qual as arguidas foram acusadas.
Aliás, o caso concreto em apreciação é digamos uma excentricidade atípica pois estamos perante uma pluralidade ou mais precisamente uma dualidade de ofendidos e qualquer deles poderia ter apresentado legitimamente a queixa.
O que é importante, creio, é não fazermos generalizações e epigrafar fenómenos, pois a aferição da legitimidade do queixoso para apresentar queixa dependerá sempre das circunstancias e especificidades do caso concreto. É este que nos fornecerá as referencias vitais e os requisitos factuais essenciais para aferirmos se um determinado queixoso possui (ou não) legitimidade para apresentar queixa e encabeçar a titularidade dos interesses que a lei penal quis proteger com a incriminação.
Na cor das minhas lentes, no caso em apreciação, o queixoso também é assim o «O titular dos interesses que a lei penal quis proteger com a incriminação» nos termos do programa norma previsto na disciplina contida no disposto do artigo 113º do Código Penal.
É quase um lugar comum dizer que este normativo consagra o chamado critério estrito, imediato ou típico de «ofendido», tradicional no nosso ordenamento jurídico processual penal, devendo essa titularidade do interesse jurídico-penal ou posto em perigo ser determinado com base no critério que se extrai do tipo legal preenchido pelo facto.
A doutrina clássica (digamos assim) defendia o conceito estrito de «ofendido» que não se confundia com o que resultava da disciplina do artigo 130º do Código Penal, esse sim considerado lato e extensivo, que abarcaria todas as pessoas civilmente lesadas pela infracção penal e quem chamamos de «lesado». Processualmente falando, então, todos os «ofendidos» seriam «lesados», mas nem todos os «lesados» poderiam encabeçar o estatuto jurídico processual de «ofendidos».
Aliás este conceito restrito de ofendido tinha larga tradição jurídica no sistema processual penal português mas actualmente assiste-se a um alargamento do conceito a situações em que este tem um interesse directo ainda que reflexamente protegido digno de tutela que se equipara valorativamente ao do “ofendido” propriamente dito.
Na verdade como se vê do cotejo do texto dos preceitos dos artigo 113º n.º 1 do Código Penal de 1982 actualmente vigente aprovado pelo D.L. n.º 400/82 de 23.Setembro, modificado pelo D.L. n.º 48/95 de 15.Março e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 65/98 de 2.Setembro e Lei n.º 48/2007 de 29.Agosto, o artigo 68º n.º 1 alínea a) do Código de Processo Penal, estes dispositivos são a reprodução fiel do artigo 4º n.º 2 do Decreto n.º 35007 (que vigorou até à entrada em vigor da lei adjectiva actualmente vigente) e do artigo 11º do Código de Processo Penal de 1929 na redacção original, (que foi, nesta parte, substituído por aquele Decreto n.º 35.007). Aliás, já os artigos 865º e 968º da Novíssima Reforma Judiciária se reportavam a partes «particularmente ofendidas» e a Lei n.º 266 de 27/07/1914 aludia a cidadãos «directa e pessoalmente ofendidos», bem como, a Lei n.º 300 de 03/02/1915 referia-se a «pessoas directamente ofendidas».
O conceito de «ofendido» inscrito nestas disposições legais, é assim, na sua estrutura, substancialmente idêntico.
Actualmente, com a evolução natural do pensamento critico, assiste-se à defesa de uma relação directa entre a dimensão conceitual de ofendido e de assistente sem prejuízo de se entender que que lei prevê expressamente duas situações em que adopta o conceito lato de ofendido. Assim, confere-se legitimidade para se constituírem assistentes e implicitamente reconhece-se a qualidade de ofendido, às pessoas e entidades a quem normas especiais atribuam essa faculdade (corpo do n.º 1 do art. 68.º do Código de Processo Penal – C.P.P.) e finalmente, atribui legitimidade para se constituir assistente a qualquer pessoa quando o procedimento criminal tenha por objecto crimes contra a paz e a humanidade, tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção (artigo 68.º, n.º 1, e) do Código de Processo Penal – C.P.P.11).
Ora, como é sabido, o processo penal enquanto direito penal aplicado ou instrumento de execução do direito material, tem por função a averiguação da existência de ilícitos, na perspectiva da protecção de bens jurídico-penais, visando também punir instrumentalmente os comportamentos violadores desses mesmos bens. Embora na generalidade das diversas legislações a promoção processual dos crimes seja tarefa exclusivamente estatual, os legisladores reconhecem que certas infracções contendem com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo não tão intenso como outros e que quanto àqueles deve ser deixada alguma margem ao ofendido para fazer valer ou não a aplicação de sanções ao infractor. A coordenação do interesse do Estado e do indivíduo, na promoção processual, levou à criação e aparecimento dos crimes públicos, dos crimes semi-públicos e crimes particulares, consoante a iniciativa processual caiba ao Ministério Público, dependa de queixa do interessado para que o Ministério Público promova a abertura do processo, ou que o titular do direito violado se queixe e ainda se constitua assistente e deduza acusação particular.
No caso concreto em apreciação como dissemos estamos perante uma pluralidade ou mais precisamente, uma dualidade de ofendidos (a sociedade comercial e o queixoso). Como se disse – tão bem - no Acórdão do T.R.P. - Tribunal da Relação do Porto de 07/07/2021 in www.dgsi.pt: no crime de burla, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação será o prejudicado, que não coincidirá necessariamente (muitas vezes não coincidirá) com o enganado, não sendo de excluir a existência de uma pluralidade de lesados, a determinar (nos casos em que a lei os não identifica expressamente) em função da conformação do tipo legal de crime e das circunstâncias concretas do caso - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – T.R.C., de 09/11/2011, disponível em www.dgsi.pt.
O ofendido no crime de burla é a pessoa ou pessoas cujos patrimónios ficaram empobrecidos, que pode não ser a mesma pessoa (física ou jurídica) que foi diretamente enganada.
Ora, parece uma evidência indiciária que no caso concreto, as arguidas com a utilização manifestamente abusiva dos elementos de identificação que possuíam, desviaram a sua destinação, contraíram uma divida comercial em nome do queixoso, fazendo-se passar por ele, ou que actuavam em sua representação, e endossaram a responsabilidade do pagamento da divida que artificialmente contraíram ao CC, que viu uma acção executiva intentada contra si e o seu salário mensal penhorado.
Consideramos assim que o seu património ficou empobrecido, com um passivo inscrito na sua esfera jurídica, traduzido numa divida contraída e assumida em virtude de um esquema enganoso realizado e concretizado pelas arguidas sobre uma pessoa jurídica, que tal como o queixoso também ficou empobrecida.
(…)
De todo o modo, o pensamento critico e a retórica argumentativa arregimentada no douto despacho recorrido, apesar de briosa e eloquente, esbarra, desintegra-se e é juridicamente desbaratada pelas proficientes considerações alinhadas nas doutíssimas alegações apresentadas pelo(a) Digníssimo(a) magistrado(a) do Ministério Publico na 1.ª instância, que, por economia e profundo respeito por esforço e trabalho alheio (principalmente quando se encontra muito bem feito), se respigam na parte relevante e que ora interessa:
«…Salvo devido respeito por opinião contrária, discordamos com tal entendimento pois entendemos que CC é ofendido do ilícito em causa nos autos e, nessa medida, tem legitimidade para apresentar queixa-crime pelos mesmos.
Dispõe o artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal, sob a epígrafe “Titulares do direito de queixa” que “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
Resulta, assim, da letra da lei, que o legislador, ao definir a qualidade de “ofendido” teve em vista a tutela do portador do bem jurídico protegido com a incriminação.
Assim, para se averiguar quem pode ser considerado “titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação” e, por conseguinte, quem tem legitimidade ativa para apresentar queixa-crime, terá que se interpretar o tipo de ilícito em causa e o bem jurídico protegido pelo mesmo.
Nos termos do artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, comete um crime de burla “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”.
O bem jurídico por este ilícito é o património.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, “Para efeitos penais, o património inclui, numa conceção jurídico-económica, todos os direitos, as posições jurídicas e as expetativas com valor económico compatíveis com a ordem jurídica (…) Assim, integram o património os direitos subjetivos reais ou obrigacionais” - cf. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica, pp. 598-599, nota 2.
Concretizando acerca do que se deve entender por dano patrimonial para efeitos da consumação do crime de burla – o que é essencial para se determinar o ofendido de tal ilícito – o Prof. Almeida Costa defende a adoção de um conceito objetivo-individual de dano patrimonial de acordo com o qual “o prejuízo deverá determinar-se através da aplicação de critérios objetivos de natureza económica à concreta situação patrimonial da vítima, concluindo-se pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta”, onde se incluem “Os direitos subjetivos patrimoniais de natureza real ou obrigacional” – cf. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pp. 283-285.
No caso dos autos, o dano patrimonial do ofendido CC concretizou-se, inicialmente pelo surgimento de um direito de crédito de natureza obrigacional a favor da A..., Unipessoal, Lda. contra a sua pessoa e, num segundo momento, com o prejuízo efetivo pela concretização da penhora do seu ordenado para cobrança da dívida contraída em seu nome por força do engano causado com a utilização abusiva da sua identidade por parte das arguidas.
O crime de burla é um crime de dano quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido e um crime de resultado quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação.
Do exposto supra, é evidente que o ofendido CC sofreu um dano patrimonial na sequência do engano causado e, nesta medida, é ofendido do ilícito em análise.
Prosseguindo, cumpre também referir que o tipo objetivo consiste na determinação de uma pessoa, por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou, à prática de atos que causem prejuízo patrimonial a essa pessoa ou a terceiro. O engano ou erro consiste na provocação de uma falsa representação da realidade.
Do exposto resulta que tal ilícito só se encontra preenchido com a verificação dos seguintes elementos:
Num primeiro momento, a verificação de uma conduta astuciosa, comissiva ou omissiva, que induza diretamente ou mantenha em erro ou engano o ofendido ou terceiro (demonstrando-lhe uma falsa representação da realidade, que funciona como vício do seu consentimento) – no caso dos autos, o engano consistiu na identificação fraudulenta do comprador com utilização abusiva dos dados de identificação do ofendido CC; e
Num segundo momento, deverá verificar-se um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro, como resultado, portanto, da intenção do agente obter benefício ilegítimo, ou seja, benefício a que não corresponde a qualquer direito – tal prejuízo final concretizou-se na esfera do ofendido cujo nome foi utilizado abusivamente no engano causado.
É unânime na doutrina e na jurisprudência que, no crime de burla, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação será o prejudicado, que não coincidirá necessariamente (muitas vezes não coincidirá) com o enganado.
Assim, “o ofendido no crime de burla é a pessoa cujo património ficou empobrecido, que pode não ser a mesma pessoa que é enganada” – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no âmbito do processo n.º 60/18.8GALNH.P1, em 07/07/2021 e do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no âmbito do processo n.º 798/15.1T9GRD, em 07/04/2016, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, o Tribunal da Relação de Évora densifica tal conceito, referindo que “O prejuízo patrimonial relevante para efeitos do tipo objectivo do crime de burla corresponde a um empobrecimento do lesado - do burlado ou de qualquer terceiro -, que vê a sua situação económica diminuída, e efectivamente diminuída quando comparada com a situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido a situação determinante da lesão. A medida do empobrecimento efectivo será, deste modo, avaliada pela diferença patrimonial entre o «antes» e o «depois», tendo como contraponto económico-material (e não típico nem jurídico) o enriquecimento, próprio ou de terceiro, procurado pelo agente do crime.” – cf. acórdão proferido no âmbito do processo n.º 28/05.4GHSTC.E1, em 25/05/20210, disponível em www.dgsi.pt.
No caso dos autos, cremos que existe mais do que um titular do interesse especialmente protegido pela incriminação, com o sentido acima especificado – CC e a sociedade A..., Unipessoal, Lda.. Nesta senda, como bem refere o Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo n.º2644/08-2, em 02/03/2009, disponível em www.dgsi.pt “No crime de burla previsto e punido nos termos do artigo 217° CP, o legislador procurou acautelar o património, não só do burlado, como também de algum terceiro que, como consequência directa do engano provocado pelo agente sofra um prejuízo patrimonial.”.
Dos factos narrados na acusação pública, é inequívoco que o património do ofendido CC ficou empobrecido, quer pela circunstancia de ter sido contraída uma dívida em seu nome que gerou um direito de crédito sobre si, quer pela circunstancia de tal direito de crédito ter sido executado com a penhora do seu ordenado que à data da acusação ainda se mantinha – cf. factos narrados nos pontos 6, 7, 8 e 10 da acusação pública.
Neste caso, se é certo que a A... ficou prejudicada inicialmente no seu património com a entrega dos produtos que não lhe foram pagos, a verdade é que a mesma se satisfez com o exercício do seu direito de crédito sobre o ofendido CC contraído por força do engano causado que, a final, foi quem ficou com o património efetivamente empobrecido, pois a sociedade ofendida satisfez o seu crédito à custa de CC, ofendido nos autos.
E veja-se que existe uma relação/ conexão direta entre o engano causada e o prejuízo sofrido pelo ofendido CC, pois foi por força da utilização fraudulenta da sua identidade – engano – que o prejuízo na sua esfera jurídica se concretizou com o direito de crédito gerado e posterior penhora.
Assim, existe uma relação direta entre o património do ofendido CC atingido e a conduta delituosa das arguidas – engano através da utilização da identificação fraudulenta de CC.
Aliás, a jurisprudência, em casos semelhantes, designadamente na utilização de dados de identificação falsos na celebração de contratos com as operadoras de serviços de telecomunicação móveis, entende que a pessoa cuja identidade foi fraudulentamente utilizada só não assume a qualidade de ofendido quando não sofreu um prejuízo patrimonial efetivo. Tais situações diferem do caso dos autos, pois o ofendido CC sofreu efetivamente um prejuízo patrimonial na sua esfera jurídica com a penhora do ordenado que à data da acusação ainda se mantinha.
Em suma, o Ministério Público entende que CC assume a qualidade de ofendido e, nesse sentido, é titular do direito de queixa.
Ao não decidir dessa forma, entendemos que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 113.º, n.º 1, 217.º, n.º 1, do Código Penal e 49.º e 311.º, do Código de Processo Penal» (sic).
(…)”
5. Cumprido que foi o disposto no artigo 417.º/2 do CPP, nada mais se acrescentou.
6. No exame preliminar a relatora deixou exarado que nada obstava ao conhecimento do recurso, que, por sua vez, havia sido admitido com o regime de subida adequado.
7. Seguiram-se os vistos legais.
8. Foram os autos submetidos à conferência e dos correspondentes trabalhos resultou o presente acórdão.
*


II. Fundamentação

1. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º/2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), quanto a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º/2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro).
Assim e tendo presente ainda que nos recursos se apreciam questões e não razões, bem como não visam criar decisões sobre matéria nova, então a questão suscitada no presente recurso prende-se única e exclusivamente em saber se deve a acusação contra as arguidas ser recebida por em virtude de o denunciante CC assumir a qualidade de ofendido e, nesse sentido, ser titular do direito de queixa.

2. Comecemos por transcrever a decisão recorrida:
“Tendo os autos sido remetidos à distribuição para julgamento, importa atender ao disposto no artigo 311º do Código de Processo Penal, que estabelece o seguinte:
“1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2. Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3. Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime”.
Uma das questões prévias que obstam à apreciação do mérito da causa é, desde logo, a falta de verificação das condições de procedibilidade do procedimento criminal, como o exercício do direito de queixa, por parte do ofendido, quando esteja em causa um crime de natureza semi-pública.
No caso sub judice, é imputada às arguidas, em sede de acusação, a prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217º nº 1 do Código Penal.
Trata-se de um crime que reveste natureza semi-pública, dado que o procedimento criminal depende da apresentação de queixa (cfr. o artigo 49º do Código de Processo Penal e o artigo 217º nº 3 do Código Penal).
De acordo com o disposto no artigo 113º nº 1 do Código Penal, a legitimidade para apresentar queixa recai sobre o ofendido, ou seja, sobre o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
A mesma definição de ofendido pode ser encontrada no artigo 68º nº 1 al. a) do Código de Processo Penal, em que se explicita que “Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos”.
O conceito de ofendido é diferente do conceito de lesado, sendo este último mais abrangente, como se retira do preceituado no artigo 74º nº 1 do mesmo diploma legal, em que se esclarece que “O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente”.
Assim, quem seja titular de interesses só mediata ou indirectamente protegidos pela incriminação não pode ser considerado ofendido, uma vez que a lei parte do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas que têm legitimidade para se constituírem assistentes no processo penal (sem prejuízo das situações previstas na al. e) do artigo 68º, referentes aos crimes contra a paz e a humanidade e aos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção).
Tal como se referiu no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de Abril de 2016, no processo nº 798/15.1T9GRD-A.C1, disponível em www.dgsi.pt, “Importa, assim, reter que deriva da própria expressão da lei que não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois que não se integram no âmbito do conceito de ofendido, os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os seus próprios e específicos.
Efectivamente, «o ofendido […] não é qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infracção, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato da infracção – […] – os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os próprios e específicos daquele que requer a sua constituição como assistente.» (v. g., acórdão do Tribunal Constitucional nº 145/06, de 22-02-2006).
Há, assim, na integração conceptual uma marcada diferenciação qualitativa entre interesses directa e indirectamente (ou reflexamente) afectados pela incriminação como conditio da legitimidade do ofendido para exercer o direito de queixa” (sombreado nosso).
No mesmo aresto se refere que o ofendido no crime de burla é a pessoa cujo património ficou empobrecido, que pode não ser a mesma pessoa que é enganada (é a chamada burla triangular).
Efectivamente, existem situações em que o enganado não coincide com o empobrecido.
Mas como se deixou claro no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Novembro de 2022, no processo nº 1519/15.4JAPRT.P1 (igualmente acessível em www.dgsi.pt), “Nas hipóteses de dita «burla triangular», para que possa verificar-se uma disposição, e correspondente prejuízo, patrimoniais, é necessário que o «enganado» esteja numa posição que lhe permita dispor eficazmente sobre o património do eventual sujeito passivo do crime” (sombreado nosso).
Não é isso que sucede no caso sub judice.
Com efeito, retira-se da factualidade descrita na acusação que a enganada foi a sociedade “A..., Unipessoal, Lda.”.
Simultaneamente, esta sociedade também foi empobrecida por força da actuação alegadamente levada a cabo pelas arguidas.
Efectivamente, de acordo com a acusação, em consequência do engano provocado pelas mesmas, tal sociedade abriu mão dos produtos de estética e cabeleireiro a que se reportam as facturas aludidas na acusação e não recebeu o respectivo pagamento, sofrendo o prejuízo patrimonial, tanto assim que teve de instaurar um processo executivo com vista a obter ressarcimento.
No entanto, a ofendida “A..., Unipessoal, Lda.” até poderia nem ter intentado o processo executivo, ou, tendo-o feito, o queixoso CC até poderia ter vindo a defender-se eficazmente em tal âmbito (sendo que, neste caso, também se retira dos autos que na A.E.C.O.P. nº …/20.0YIPRT, foi desentranhada a sua contestação e conferida força executiva à petição, por falta de pagamento da taxa de justiça – fls. 49).
Assim, foi apenas em virtude de a ofendida “A..., Unipessoal, Lda.” ter instaurado um processo executivo e de o queixoso não ter apresentado uma defesa eficaz que o mesmo se viu patrimonialmente lesado, numa altura em que o crime de burla já se tinha consumado há muito.
Diga-se ainda que, neste caso, além de a sobredita sociedade ser simultaneamente enganada e empobrecida, a mesma não podia dispor directamente do património do queixoso, tendo tido necessidade de recorrer aos tribunais para obter um pagamento (o que, repise-se, já ocorreu após a consumação do crime).
Há que salientar que a consumação do crime de burla exige desde logo um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo enganado, de actos tendentes a uma diminuição do património, próprio ou alheio; e entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo. O acto astucioso de enganar deve anteceder a entrega e a acção enganosa do agente deve ser causa da entrega/disposição patrimonial.
Neste caso, o queixoso só veio a sofrer danos ocasionados pelo crime após a consumação do mesmo, cumprindo sublinhar, como o faz abundante doutrina e jurisprudência, que o crime de burla é um crime de dano e de resultado, só se consumando com a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial na esfera jurídica do agente passivo ou de terceiro, traduzido na saída das coisas ou valores da esfera de disponibilidade fáctica daquele – neste sendo, vide os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Maio de 2022, no processo nº 613/15.6T9SJM.P1, e de 17 de Setembro de 2014, no processo nº 844/09.8TAMAI.P1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Com interesse para o caso em análise, esclareceu-se neste último acórdão o seguinte:
“Mas, além de enganado com o artifício fraudulento dos arguidos, o F… é, também, lesado.
(…)
No caso, a deslocação patrimonial (da quantia de € 199.950,00) dá-se da esfera jurídica patrimonial do F… para o património dos arguidos e, portanto, prejudicada é a sociedade comercial (“F…, S.A.”) proprietária do banco.
Argumentar-se-á que o F…, enquanto mutuante, ficou titular de um crédito sobre o mutuário, para mais, um crédito garantido por hipoteca sobre um imóvel e por fiança, e assim pode obter a satisfação desse crédito através de execução, que efectivamente veio a instaurar, e por isso não foi prejudicado.
Porém, o argumento não colhe.
Dado que os arguidos não tinham poderes para representar, no contrato de mútuo celebrado, o suposto mutuante D… nem o suposto fiador E…, o contrato é, em relação a estes, ineficaz. Por isso, se deduzirem (ou tiverem deduzido) oposição à execução com esse fundamento, ela terá de ser julgada procedente, com a óbvia consequência de o F… não obter, por essa via, a satisfação do seu crédito.
Mas, mesmo que não tenha sido deduzida oposição à execução, não é difícil perceber que o F… pode, ainda assim, ver frustrado o seu crédito, ou não obter satisfação integral. Basta pensar na hipótese, perfeitamente plausível, de o imóvel hipotecado não ter valor suficiente para pagar a quantia exequenda e os executados não terem bens livres e desembaraçados que possam ser penhorados.
Não custa aceitar que os referidos D… e E… sejam, também, lesados, nomeadamente que tenham sofrido danos não patrimoniais em consequência da conduta criminosa dos arguidos, mas ofendido é, inegavelmente, ‘F…, S.A.’”.
In casu, salvo o devido respeito por entendimento diverso, o queixoso CC é lesado, tendo sofrido danos patrimoniais em consequência da conduta criminosa das arguidas (de acordo com a tese da acusação), mas não é ofendido.
Como dito, a ofendida é a sociedade “A..., Unipessoal, Lda.”, a qual não manifestou nos autos que pretendia procedimento criminal contra os agentes do ilícito em apreço.
Assim, e nos termos previstos nos artigos 48º e 49º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tinha legitimidade para prosseguir criminalmente contra as arguidas pelo crime de burla e, consequentemente, para deduzir acusação pública.
Também pelos fundamentos supra exarados, não pode o queixoso CC ser admitido a intervir como assistente, não se enquadrando em qualquer uma das alíneas previstas no nº 1 do artigo 68º do Código de Processo Penal.
Em face de todo o exposto, e ao abrigo das supra citadas disposições legais, não se recebe a acusação deduzida nos presentes autos contra as arguidas AA e BB e não se admite CC ser admitido a intervir como assistente.
(…)”.

3. Para melhor enquadramento do recurso cumpre assinalar que nos presentes autos foi deduzida acusação em processo comum perante Tribunal Singular contra as arguidas AA e BB, pela prática, em coautoria material, de um crime de burla, p. e p. pelos artigos 26.º, n.º 1 e 217.º, n.º 1, do Código Penal, sendo os seguintes os factos que constam da acusação:
“1. As arguidas AA e BB são irmãs e à data dos factos descritos infra exploravam, de forma conjunta, o salão de cabeleireiro e estética ..., sito na Praceta ..., ..., ....
2. No decurso da referida exploração:
- A arguida AA assumia a encomenda de produtos e prestação de serviços de cabeleireiro; e
- A arguida BB assumia a encomenda de produtos e a prestação de serviços de estética.
3. À data dos factos descritos infra, a arguida AA vivia em comunhão de mesa, leito e habitação com o ofendido CC.
4. O ofendido assumia a qualidade de fiador no contrato de arrendamento do referido espaço, onde constavam os seus dados de identificação pessoal e cópia do seu cartão de cidadão.
5. Em data não concretamente apurada anterior a 08/10/2019, as arguidas, aproveitando-se do fácil acesso que tinham aos dados de identificação pessoal do ofendido, delinearam um plano que consistia em utilizar os dados pessoas de identificação do ofendido – nome, n.º de cartão de cidadão e NIF – para realizar encomendas de produtos de estética e cabeleireiro para o referido estabelecimento, com o propósito concretizado de se eximirem da obrigação de pagar as faturas que viessem a ser emitidas pelos fornecedores pela aquisição de tais produtos, contraindo tais dívidas em nome do ofendido, sem o seu conhecimento e autorização.
6. Na execução de tal plano, as arguidas, atuando de forma conjunta, efetuaram as seguintes aquisições com a sociedade A..., Unipessoal, Lda., fornecendo os dados de identificação do ofendido para a faturação de tais compras, que nunca pagaram, num total de 1.892,58€ (mil oitocentos e noventa e dois euros e cinquenta e oito cêntimos):
- Em 08/10/2019, efetuaram a compra de diversos artigos de cabeleireiro e estética no valor global de 1.125,66€, originando a emissão da fatura n.º 5789 (fls. 22-26);
- Em 11/10/2019, efetuaram a compra de diversos artigos de cabeleireiro e estética no valor global de 339,97€, originando a emissão da fatura n.º 5815 (fls. 27-28);
- Em 14/10/2019, efetuaram a compra de diversos artigos de cabeleireiro e estética no valor global de 426,95€, originando a emissão da fatura n.º 5829 (fls. 29-32).
7. Na sequência da atuação das arguidas, a sociedade A..., Unipessoal, Lda. instaurou uma execução contra o ofendido para cumprimento das referidas faturas emitidas e não pagas com os n.ºs 5789, 5815 e 5829, que correu termos nos Juízos de Execução do Porto – J2, no âmbito do processo n.º ...
8. Tal processo executivo culminou na penhora do vencimento do ofendido em 16/05/2022, pelo valor em dívida correspondente, causando-lhe prejuízo patrimonial.
9. As arguidas aproveitaram-se da circunstância de ter os dados pessoais do ofendido na sua disponibilidade para criar perante a A..., Unipessoal, Lda. a falsa convicção de que o subscritor do contrato celebrado era o ofendido, o que conseguiram, bem sabendo que não o era e que não se encontravam autorizadas a celebrar qualquer contrato em nome do ofendido.
10. Para o efeito, as arguidas não se inibiram de fornecer tais dados do ofendido para que o mesmo ficasse a constar como cliente da A..., Unipessoal, Lda., com o objetivo obter para si benefícios, nomeadamente, aquisição de produtos de cabeleireiro e estética sem ter que pagar qualquer contrapartida financeira, causando ao ofendido o correspondente prejuízo patrimonial, o que lograram.
11. As arguidas agiram sempre na execução de um plano conjunto previamente delineado entre ambas, atuando de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei penal”.


4.
O direito substantivo.

Dispõe o artigo 217.º do Código Penal, a abrir o capítulo denominado “dos crimes contra o património em geral”, sob a epígrafe de “burla” que,
“1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
(…)
3 - O procedimento criminal depende de queixa.
(…)”.
A construção legal do crime de burla exige a concorrência dos seguintes elementos típicos:
- a indução em erro ou engano de uma pessoa (o lesado e/ou burlado) sobre factos;
- o erro ou engano provocado com astúcia;
- tendente a determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial;
- com intenção de o agente obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
O bem jurídico protegido no crime de burla é o património, constituindo a burla um crime de dano, que se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro.
Como refere Almeida Costa (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, II,)
- “a burla recobre situações em que o agente, com a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que a última, por esse motivo, pratique actos que causam a si mesma (ou a terceiro) prejuízos de carácter patrimonial” – p. 275;
- “a burla constitui um crime de dano, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro” - p. 276;
- “a consumação do crime não deriva, apenas, do resultado consistente na saída dos bens ou valores da esfera de disponibilidade fáctica do legítimo titular, exigindo-se, ademais, a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro” - p. 277.
E, diz o mesmo autor (op. citada, 293 a 295), que a “burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. (....) Tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio), e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial. (...) O prejuízo patrimonial relevante para efeitos do tipo objectivo do crime de burla corresponde a um empobrecimento do lesado - do burlado ou de qualquer terceiro - que vê a sua situação económica diminuída, e efectivamente diminuída quando comparada com a situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido a situação determinante da lesão. A medida do empobrecimento efectivo será, deste modo, avaliada pela diferença patrimonial entre o “antes” e o “depois”, tendo como contraponto económico-material (e não típico nem jurídico) o enriquecimento, próprio ou de terceiro, procurado pelo agente do crime.
Com efeito, o crime de burla constitui um delito de intenção em que o agente procura obter um “enriquecimento ilegítimo” à custa de uma transferência de natureza e de efeitos patrimoniais. Todavia, não obstante se exija que o agente actue com essa intenção de enriquecimento, a consumação do crime não depende da efectivação desse enriquecimento, verificando-se logo que ocorre o prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro”.
São elementos do tipo objetivo do crime de burla, de acordo com a tipologia apresentada por Figueiredo Dias (CJ, ano VIII, p. 65 e seguintes):
a) o património, entendido como a totalidade dos "bens" (numa acepção ampla) economicamente valiosos, que um indivíduo detém com a aquiescência do ordenamento jurídico, e que consubstancia o bem jurídico protegido com a incriminação da burla;
b) o processo de execução vinculada, por força do qual o atentado ao património do ofendido é realizado através de um artifício fraudulento, tendente a induzir a vítima em erro. Por isso, no crime de burla a ação relevante deverá ser levada a efeito por atuação do sujeito passivo do crime, ou seja, a pessoa burlada;
c) a verificação de um prejuízo patrimonial, consubstanciado numa diminuição de valor no património do lesado, que tenha por causa adequada a atuação do agente.
O crime de burla é:
- um crime material ou de resultado, que apenas se consuma com a saída das coisas ou dos valores da esfera de disponibilidade fáctica do sujeito passivo ou da vítima (cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, II, 276, Almeida Costa]. Como se refere no ac. do STJ de 23-01-1997 (BMJ, 463, pág. 276), a burla é um crime de resultado parcial ou cortado caracterizado por uma descontinuidade entre os tipos objetivo e subjetivo uma vez que, se por um lado se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo do agente, a sua consumação, não depende desse enriquecimento mas do empobrecimento da vítima, constatando-se a falta da respetiva causa justificativa;
- é um crime com participação da vítima, ou seja, um delito em que a saída dos valores da esfera de disponibilidade de facto do titular legítimo decorre, em último termo, de um comportamento do sujeito passivo (cf. Maria Fernanda Palma/Rui Carlos Pereira, O crime de burla no Código Penal de 1982-95, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV, 1994, p. 321 e ss.);
- o bem jurídico protegido pela norma é o património de outra pessoa e não a verdade do comércio. Para efeitos penais, o património inclui, numa conceção jurídico-económica, todos os direitos, as posições jurídicas e as expetativas com valor económico compatíveis com a ordem jurídica (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª Edição atualizada, Universidade Católica, pág. 847).
Através do crime de burla a ordem jurídica protege a vítima contra manifestações de auto-lesão patrimonial – contra atos lesivos de deslocação patrimonial levados a cabo por ela própria de forma inconsciente, porque em resultado do erro que o agente astuciosamente lhe criou.
Neste crime o agente concretiza os seus intentos através da ação da própria vítima que é por si “instrumentalizada” a praticar atos de diminuição do seu património.
Assim, segundo alguma doutrina, em sede de imputação objetiva do evento à conduta do agente o crime de burla comporta um “triplo nexo de causalidade” (Maria Fernanda Palma/Rui Pereira, op. cit]; ou pelo menos, segundo outros, um “duplo nexo de causalidade”:
- entre a astúcia e o aparecimento, na vítima, de um estado de erro ou engano;
- e entre esse estado de erro ou engano e a prática, pela vítima, de atos lesivos do património (cf. Beleza dos Santos, A burla prevista no artigo 451 ° do Código Penal e a fraude punida pelo artigo 456.° do mesmo Código, RLJ, Ano 76, pág. 291 a 325 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-04-2008, proc. n.º 06P3057, www.dgsi.pt).
Como se referiu já, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento, que se traduz na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar atos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
Não obstante, não basta o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efetiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo.
Por outro lado, não é suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos atos de que decorrem os prejuízos patrimoniais.
E neste engano reside o elemento individualizador do crime de burla em face das restantes figuras do enriquecimento ilegítimo sendo que “A adequação de meios idóneos em que radica a astúcia importa uma adequação do comportamento do agente à criação desse erróneo estado de representação deformada da realidade e depende das especificas particularidades do caso concreto - a situação concreta tanto pode exigir a utilização de meios muitos sofisticados, como o menos sofisticado dos procedimentos – sendo que, a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente, se afere tomando em consideração as características do concreto burlado. (cf. ac. RC de 10-09-2008, proc. n.º 901/03.4PAMGR.C1, www.dgsi.pt). Assim, aquilo que pode não revelar idoneidade como meio para enganar a generalidade das pessoas, pode-o assumir, no caso concreto, em face da particular credulidade ou falta de resistência do burlado, nomeadamente mercê da fragilidade intelectual ou inexperiência ou de especiais relações de confiança para com o agente.
No que ao elemento subjectivo diz respeito, o crime de burla caracteriza-se por o agente atuar com dolo, a que acresce um elemento subjetivo especial – o chamado “dolo específico” traduzido na específica intenção desse agente obter para si, ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo.
Note-se que o dolo tem de ser inicial, não relevando qualquer dolo subsequente. Ou seja a intenção de enganar tem de preceder a celebração do contrato ou ocorre no momento da celebração do contrato, determinando a vontade da outra parte.


6. O direito adjectivo.
Dispõe o artigo 113.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe de “queixa e acusação particular” que,
“1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
(…)”.
Dispõe o artigo 49.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe de “legitimidade em procedimento criminal dependente de queixa” que,
“1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
(…)”.
Dispõe o artigo 311.º do Código de Processo Penal, sob a epigrafe de “saneamento do processo” que,
“1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime”.
Dispõe ainda o artigo 74.º do C.P.P., sob a epígrafe “legitimidade e poderes processuais que
“1 - O pedido de indemnização civil é deduzido pelo lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente.
2 - A intervenção processual do lesado restringe-se à sustentação e à prova do pedido de indemnização civil, competindo-lhe, correspondentemente, os direitos que a lei confere aos assistentes.
(…)”.


7. Descendo ao caso concreto.
O crime de burla simples é um crime de natureza semi-pública, em que o procedimento criminal depende de queixa.
Nos termos do artigo 48.º do Código de Processo Penal o MP tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º.
O princípio da oficialidade do processo, segundo o qual, a promoção processual dos crimes é tarefa estadual, a realizar oficiosamente e, portanto, em completa independência da vontade e da atuação dos particulares, concretiza-se, no nosso ordenamento processual penal – logo por imperativo constitucional (artigo 219.º/1da CRP) – na atribuição ao MP da iniciativa e da prossecução processuais.
O processo penal inicia-se com a aquisição da notícia do crime pelo MP (artigo 241.º CPPenal), que pode surgir por várias vias: conhecimento próprio, auto de notícia do órgão de polícia criminal ou outra entidade policial (artigo 243.º), denúncia, quer obrigatória (artigo 242.º), quer facultativa (artigo 244.º).
A notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito, ressalvadas as excepções previstas (artigo 262.º/2).
Contudo, o princípio da oficialidade da promoção processual sofre as limitações e exceções decorrentes da existência dos crimes semipúblicos e dos crimes particulares.
Assim, não obstante a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, ressalvam-se as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º, as quais conformam, justamente, as exceções a que o n.º 2 do artigo 262.º se refere.
Nos crimes semipúblicos o Ministério Público só pode iniciar a investigação após a apresentação de queixa, por parte do ofendido.
E, como ofendido considera-se o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, ou seja, o legislador teve em vista a tutela do portador do bem jurídico.
O artigo 68.º do Código de Processo Penal enumera as pessoas que têm legitimidade para se constituírem assistentes. Aí se consigna, desde logo, na alínea a) do seu n.º 1 que, podem constituir-se assistentes “os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação desde que maiores de dezasseis anos".
A definição de ofendido contida nesta norma é idêntica à constante do artigo 4.º do Decreto 35007, de 13 de Outubro de 1945 (por referência ao artigo 11.º do Código de Processo Penal de 1929) e que o n.º 1 do artigo 111.º Código Penal de 1982, na sua redacção original, também acolhia (cfr. actual artigo 113.º/1).
Pelo que, não se considera ofendido, para este efeito, qualquer pessoa que tenha sido prejudicada com a prática do delito, mas tão só, o titular do interesse que constitui o “objecto jurídico imediato” desse delito (cfr. ac. da RC de 29-01-92, CJ, I, 111).
Os titulares de interesses só mediata ou indirectamente protegidos pelo crime em causa não se incluem no conceito de ofendidos, para efeitos de constituição como assistentes.
Neste conceito de ofendido apenas se inclui os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma penal.
Não é ofendido, para este efeito, qualquer pessoa prejudicada com a prática do crime, mas somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. O objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública; o imediato, que continua a servir de base à classificação dos crimes, pode ter por titu­lar um particular.
E, assim, nem todos os crimes têm ofendido particular; só o têm aqueles cujo objecto imediato de tutela jurídica e um interesse ou direito de que é titular um particular.
A questão é, por vezes, de indagação melindrosa mas indispensável, porque só mediante ela é possível averiguar da viabilidade de constituição de assistente.
O Professor Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal Anotado, 12.ª ed., 223) refere que "só se considera ofendido para o efeitos do art. 68º, nº 1, al. a), o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime e que, por isso, nem todos os crimes têm ofendido particular, só o tendo aqueles em que o objecto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é titular uma pessoa".
Daí que haja que ter uma particular atenção à norma incriminadora sempre que se aprecia um pedido de constituição de assistente já que é através dela que se alcança o interesse que o legislador quis proteger ao tipificar determinada conduta como criminosa.
Por isso, uma vez encontrado o interesse protegido há que verificar quem é o seu titular.
De acordo com a lição do Professor Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1, 512-513) - plenamente válida perante o Código actual -, a nossa lei parte do conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas legitimadas para intervir como assistentes em processo penal.
Não podem, deste modo, intervir no processo como assistentes, v. g., o enganado, se não for simultaneamente o lesado no seu património por um crime de burla.
Como se refere no ac. desta Relação de 07.07.2021 (proc. n.º 60/18.8GALNH.P1, www.dgsi.pt) “(…) para se averiguar quem pode ser considerado titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, e portanto, quem deverá apresentar queixa no respetivo processo, há que proceder a uma interpretação do respetivo tipo incriminador, por forma a comprovar se existe uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos através dessa incriminação.
Nesta medida, no crime de burla, o ofendido titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação será o prejudicado, que não coincidirá necessariamente (muitas vezes não coincidirá) com o enganado, não sendo de excluir a existência de uma pluralidade de lesados, a determinar (nos casos em que a lei os não identifica expressamente) em função da conformação do tipo legal de crime e das circunstâncias concretas do caso (cf. acórdão do TRC, de 09.11.2011, disponível em www.dgsi.pt.).
Assim, considerando o que até ao momento se expôs, forçoso é concluir, o ofendido no crime de burla é a pessoa cujo património ficou empobrecido, que pode não ser a mesma pessoa que é enganada.
Isto mesmo se considerou no ac. RC de 06-03-2013 (proc. n.º 763/09.8T3AVR-A.C2, www.dgsi.pt): “sendo o crime de burla é um crime contra o património em geral, que tem como bem jurídico tutelado, o património, globalmente considerado, entendido este como o conjunto de bens ou utilidades com valor económico detidos por um cidadão e protegidos ou, pelo menos, tolerados, pela ordem jurídica, o ofendido do crime de burla é pois, apenas e sempre, o titular do património afectado com o seu cometimento. Sendo a burla um crime de execução vinculada, resulta da análise do respectivo tipo que, se em regra, coincidem as pessoas do burlado e do ofendido, o seu preenchimento não depende, necessariamente, da reunião destas duas qualidades na mesma pessoa, como claramente resulta de no art. 217º, nº 1, do C. Penal se prever que o errante [o burlado] pratique acto causador de prejuízo a terceiro [o ofendido].”
Da mesma forma se entendeu no ac. STJ de 09-22-2005 (proc. n.º 2238/05 - 3.ª Secção, https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=20723&codarea=2) que “I - No crime de burla, o bem jurídico protegido consiste no património, globalmente considerado. O ofendido será, pois, o titular do património directamente atingido pela conduta fraudulenta do sujeito activo, o burlão.
II - Por outro lado, o burlado ou sujeito passivo do crime e a vítima poderão não ser a mesma pessoa. Por isso que a lei fala em «…por meio de erro ou engano … determinar outrem à pratica de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial …».
III - Daí que não tenha cobertura legal a asserção constante do acórdão recorrido de que «no crime de burla esse titular do direito de queixa é o Banco ou o funcionário bancário induzido em erro ou engano pela conduta da arguida e não outra pessoa igualmente prejudicada por essa conduta, mas que não tenha sido vitimada directamente pelo erro ou engano».
IV - Estando demonstrado que a arguida, por meio de erro sobre a titularidade da conta sacada - no caso de um dos cheques - e sobre a identidade do beneficiário do cheque - no caso de um outro cheque - logrou convencer o funcionário bancário a entregar-lhe as importâncias em dinheiro neles inscritas, no primeiro caso, tirada da conta sacada de que é(ra) titular A, no outro, diminuindo o património do mesmo indivíduo onde estava integrada a importância em causa, por ser o beneficiário do cheque de que ilegitimamente fora desapossado, impõe-se concluir que o património atingido e prejudicado foi, num caso e no outro, o de A e não o do Banco ou o do seu funcionário, muito embora tivesse sido este último o burlado ou enganado, isto é, quem, levado pela fraude, praticou os actos prejudiciais ao ofendido.
V - Se, depois, o Banco indemnizou o A é questão que nada tem a ver com a prática do crime e que eventualmente poderá relevar das relações civilísticas entre eles estabelecidas.
VI - Tendo o A oportunamente apresentado queixa não se pode pôr em causa a legitimidade do MP para acusar quanto a estes crimes de burla.”

E, como se explicita no ac. deste mesmo Tribunal de 23-11-2022 (proc. n.º 1519/15.4JAPRT.P1, www.dgsi.pt) “Se o crime de burla dispensa a identidade entre quem é enganado pela conduta do agente e o titular do património que este pretende dessa forma atingir (o «prejudicado»), já não dispensa, no entanto, a identidade entre o enganado e a pessoa que pratica os atos de disposição patrimonial que produzem (são causalmente adequados a produzir) o resultado típico legalmente exigido (o prejuízo patrimonial). Por isso mesmo, nos casos em que não se verifica aquela identidade (os ditos casos de «burla triangular»), é indispensável que o enganado – para dizê-lo de forma sintética – tenha a possibilidade de dispor do património do sujeito passivo do crime (para um conspecto geral da discussão doutrinal a propósito da relação que há de interceder entre o enganado e o património atacado nos casos de burla «triangular», vd. Thomas Hillenkamp/Kai Kornelius, 40 Probleme aus dem Strafrecht – Besonderer Teil, 13.ª ed., págs. 176 e segs.).”
Tendo por referência os normativos ora transcritos, vejamos então a situação dos autos.
O Ministério Público deduziu acusação contra as arguidas, imputando-lhe factos susceptíveis de integrar a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217.º/1 do Código Penal, com base nos seguintes factos:
- as arguidas são irmãs e à data dos factos exploravam, de forma conjunta um salão de cabeleireiro e estética;
- à data dos factos a arguida AA vivia em comunhão de mesa, leito e habitação com CC;
- este assumiu a qualidade de fiador no contrato de arrendamento do dito espaço, onde constavam os seus dados de identificação pessoal e cópia do seu cartão de cidadão;
- aproveitando-se do fácil acesso que tinham aos dados de identificação pessoal daquele, as arguidas delinearam um plano que consistia em utilizar tais dados - nome, n.º de cartão de cidadão e NIF – para realizar encomendas de produtos de estética e cabeleireiro para o referido estabelecimento, com o propósito concretizado de se eximirem da obrigação de pagar as facturas que viessem a ser emitidas pelos fornecedores pela aquisição de tais produtos, contraindo tais dívidas em nome daquele, sem o seu conhecimento e autorização;
- na execução de tal plano, as arguidas, actuando de forma conjunta, efectuaram 3 aquisições com a sociedade A..., Unipessoal, Lda., fornecendo os dados de identificação daquele, para a facturação de tais compras, que nunca pagaram, num total de € 1.892,58;
- na sequência da actuação das arguidas, aquela sociedade instaurou uma execução contra o pretenso comprador – designação que passaremos a utilizar a propósito, como sinónimo de pessoa cuja identidade foi fraudulentamente utilizada - para pagamento das facturas emitidas e não pagas, no âmbito da qual foi efectuada a penhora do vencimento do executado;
- as arguidas aproveitaram-se da circunstância de terem acesso aos ditos dados pessoais para criar perante aquela sociedade a falsa convicção de que o subscritor do contrato celebrado era aquele, o que conseguiram, bem sabendo que não o era e que não se encontravam autorizadas a celebrar qualquer contrato em nome do ofendido;
- as arguidas não se inibiram de fornecer tais dados pessoais para que ele ficasse a constar como cliente da dita sociedade, com o objetivo obter para si benefícios, nomeadamente, aquisição de produtos de cabeleireiro e estética sem ter que pagar qualquer contrapartida financeira;
- causando àquele o correspondente prejuízo patrimonial, o que lograram;
- as arguidas agiram sempre na execução de um plano conjunto previamente delineado entre ambas, atuando de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei penal.
O busílis da questão está neste penúltimo parágrafo, “causando àquele o correspondente prejuízo patrimonial, o que lograram”.
Destes factos, desde logo, resulta estarem preenchidos todos os elementos constitutivos do tipo legal de crime de burla.
As arguidas com a intenção de obterem para si um enriquecimento ilegítimo, sem qualquer intenção de pagamento, fizeram-se passar pelo companheiro de uma delas, fornecendo os respectivos dados de identificação e fizeram 3 encomendas em nome deste, mercadoria, que elas próprias receberam, sem que a tenham pago.
É totalmente irrelevante, para o preenchimento dos elementos do tipo legal de crime de burla que o prejuízo patrimonial sofrido seja do enganado ou de terceiro.
Como se refere, de resto, no acórdão, invocado pelo Ministério Público, da RG de 02-03-2009 (proc. n.º 2644/08-2 disponível em www.dgsi.pt), “No crime de burla previsto e punido nos termos do artigo 217.° do Código Penal o legislador procurou acautelar o património, não só do burlado, como também de algum terceiro que, como consequência directa do engano provocado pelo agente sofra um prejuízo patrimonial”.
A pessoa do enganado não coincide necessariamente (muitas vezes não coincidirá) com a pessoa do prejudicado. Mas decisivamente, quando assim acontece, o ofendido não pode deixar de ser a pessoa prejudicada – a pessoa cujo património ficou empobrecido e à custa de quem o agente obteve vantagem.
A fornecedora foi a enganada e a prejudicada. Foi sobre quem as arguidas actuaram e foi quem dispõe do seu próprio património em benefício daquelas e, em seu imediato e directo prejuízo.
Nesta situação não está em causa a situação de a sociedade fornecedora ter praticado qualquer acto de disposição patrimonial que afectasse, diminuindo-o, o património do pretenso comprador.
As arguidas não detinham quaisquer poderes, jurídicos ou meramente fácticos, para contratarem em nome do companheiro de uma delas.
Contrato que naturalmente o não vincula a ele, pois que o não celebrou, não o pretendeu celebrar e viu ser usada, para o efeito, ilegitimamente, a sua identificação.
Contrato, que, naturalmente, por isso mesmo, não ter sido celebrado, por falta das declarações de vontade inerentes do lado do pretenso comprador, desde logo, não existe, não gera obrigações para quem quer que seja e, não está o aqui pretenso comprador obrigado a cumprir.
Como expressivamente, se refere no Código de Processo Penal Comentado (António Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes Pereira Madeira e Henriques da Graça, 2014, 239), em anotação ao artigo 68.º - “a primeira - e verdadeiramente típica – categoria das pessoas que podem constituir-se assistentes no processo penal são os ofendidos, que a lei define como os titulares do interesse que a lei especificamente quis proteger com a incriminação, isto é, de um interesse específico, particularmente qualificado, que intercede na relação entre o bem jurídico e o sujeito afectado; para este efeito, só será ofendido quem for titular de um interesse legítimo, tutelado pela lei, concretizado e inserido de modo funcionalmente relevante na relação teleológica-funcional entre o bem jurídico e o sujeito afectado”.
Então, CC não sendo o titular do interesse jurídico tutelado pela norma que prevê o tipo legal de crime de burla, não assume a qualidade de ofendido.
Não tem legitimidade para apresentar queixa, nem para se constituir assistente.
Estamos, de resto perante um caso absolutamente paradigmático da diferenciação entre os conceitos de ofendido e de lesado.
Já vimos que o conceito de assistente e o de lesado consta do artigo 49.º/1 do CPP, “pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente”.
O conceito de assistente não se confunde com o conceito de lesado.
Existe uma clara distinção, sendo a noção de lesado bem mais ampla e extensiva do que a de assistente.
Em face do texto legal, a noção de lesado tem maior amplitude e abrangência. O entendimento do MP, porventura, terá subjacente a perturbação derivada do facto, absolutamente inusitado, de, posteriormente à consumação do crime, a sociedade fornecedora, em vez de apresentar queixa contra as arguidas, ter demandado, civilmente, o pretenso cliente, numa situação em que nenhum direito lhe assistia, em termos de direito substantivo, para o fazer. Mas o certo é que, não só, fez, como está a receber, por via da penhora no vencimento, o valor dos produtos que fraudulentamente entregou às arguidas.
E, perguntamos, que implicação tem este facto no caso dos autos?
Nenhuma, em termos de caracterização do ofendido - naturalmente, reportado ao momento da consumação do crime. Ao momento da verificação dos seus elementos constitutivos.
Apenas e, tão só, no estatuto de lesado. Lesado que coincidiria com a pessoa da ofendida, se não tivesse demandado o pretenso cliente. E assim e, na estrita medida em que este vier a pagar o valor da mercadoria entregue às arguidas também ele se assumirá, então, como lesado, mas nunca como ofendido.
O grande e decisivo equívoco do MP reside em ter ficado impressionado – e, por isso fez constar da acusação – com a inusitada sequência dos factos e, daí, afirmar o entendimento de que o dano patrimonial do pretenso cliente se concretizou,
- inicialmente pelo surgimento de um direito de crédito de natureza obrigacional a favor da sociedade fornecedora da mercadoria e,
- depois, num segundo momento, com a concretização da penhora do seu ordenado para cobrança da dívida contraída em seu nome por força do engano causado com a utilização abusiva da sua identidade por parte das arguidas.
E daqui afirma o Ministério Público ser evidente que sofreu um dano patrimonial na sequência do engano causado e, nesta medida, é ofendido do ilícito em análise.
Como bem refere o Ministério Público a burla pressupõe:
- num primeiro momento, a verificação de uma conduta astuciosa, comissiva ou omissiva, que induza diretamente ou mantenha em erro ou engano o ofendido ou terceiro (demonstrando-lhe uma falsa representação da realidade, que funciona como vício do seu consentimento) – no caso dos autos, o engano consistiu na identificação fraudulenta do comprador com utilização abusiva dos dados de identificação do companheiro de uma das arguidas; e
- num segundo momento, deverá verificar-se um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro, como resultado, portanto, da intenção do agente obter benefício ilegítimo, ou seja, benefício a que não corresponde a qualquer direito.
Mas, ao contrário do que defende o Ministério Público, este prejuízo não se concretizou na esfera do pretenso comprador, cujo nome foi utilizado abusivamente no duplo erro.
Apenas e tão só no património da sociedade fornecedora, que por via daquele duplo erro abriu mão de mercadoria, convencida que estava a dar cumprimento à obrigação derivada de um normal e usual contrato de compra e venda celebrado com o pretenso comprador, quando, afinal, na realidade, estava a ser vítima de um acto típico do crime de burla.
Nem se diga, como faz o Ministério Público, que no caso existe mais do que um titular do interesse especialmente protegido pela incriminação, o pretenso cliente e a entidade fornecedora, porque o impede a aludida concepção restrita a dar ao conceito de ofendido.
Em síntese,
- para se aferir da admissibilidade de constituição de assistente, com referência a determinado crime, haverá que averiguar, qual o interesse, ou quais os interesses, especialmente tutelados pela norma que o tipifica e, bem assim, quem, pela infracção viu, directa e imediatamente, o seu direito violado e sofreu, por isso, um dano;
- o legislador consagrou um conceito restrito de ofendido, ao permitir a constituição de assistente apenas ao titular "dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação";
- para que alguém possa considerar-se ofendido, no apontado sentido restrito, é necessário demonstrar-se que é da sua titularidade o bem ou património, directamente, visado e atingido pela conduta delituosa, não bastando que os prejuízos sofridos, em virtude das mesmas condutas, se apresentem corno um resultado indirecto, mediato e reflexo;
- então, cremos resultar manifesta a conclusão de que o pretenso cliente não se enquadra em qualquer uma das situações, mormente da prevista na referida alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º Código de Processo Penal.
O alegado prejuízo invocado pelo Ministério Público que o pretenso cliente sofreu é, por aquele, reconhecidamente, apresentado como tendo natureza reflexa e não directo.
E não se diga, como faz o Ministério Público, que se é certo que a entidade fornecedora ficou prejudicada inicialmente no seu património com a entrega dos produtos que não lhe foram pagos, a verdade é que a mesma se satisfez com o exercício do seu direito de crédito sobre o ofendido CC contraído por força do engano causado que, a final, foi quem ficou com o património efectivamente empobrecido, pois a sociedade ofendida satisfez o seu crédito à custa de CC, ofendido nos autos.
A circunstância de ter sido, aparentemente, contraída uma dívida em nome do pretenso cliente, não gerou um direito de crédito pela entidade fornecedora sobre a sua pessoa.
Nem pela posterior circunstância de esta ter exercido tal “pretenso” direito e de ter sido ordenada a penhora do vencimento para sua satisfação, se pode ter aquele como ofendido pela conduta das arguidas.
A relação/ conexão directa existe apenas entre o engano causado e o prejuízo sofrido pela fornecedora e o prejuízo do queixoso é apenas mediato, reflexo e indirecto.
Não existe, não se constituiu validamente qualquer direito de crédito da fornecedora sobre o pretenso cliente, que justificasse, à luz do Direito, à luz da ordem jurídica na sua globalidade, que justificasse a sua exercitação judicial. Nem, muito menos, o seu acolhimento – ainda que por inércia do ora queixoso, é certo.
A fornecedora ficou empobrecida no seu património no valor correspondente às mercadorias entregues porque não foi por elas paga.
Da entrega da mercadora às arguidas resultou o inerente prejuízo da sociedade fornecedora, não resultou, para o património do ora queixoso e pretenso cliente, qualquer prejuízo efectivo.
Ainda que não se olvide que a conduta das arguidas, através da aparência de celebração do dito negócio, por parte do pretenso cliente, debilitaria a sua posição patrimonial, até ao esclarecimento completo e cabal da situação e eliminação dos seus possíveis efeitos práticos (o que poderia implicar o recurso à via judicial, com os custos e incertezas inerentes).
O que, contudo, já não resultaria directamente de qualquer disposição patrimonial que ainda pudesse imputar-se à entidade enganada pela conduta das arguidas., mas sim do uso (necessariamente posterior) que a enganada fizesse do contrato fraudulento.
Assim, entendemos que bem andou a decisão recorrida a considerar que o Ministério Público não tinha legitimidade para deduzir acusação púbica contra as arguidas pelo crime de burla, quando a queixa foi apresentada pelo pretenso cliente e, não pela enganada e prejudicada, directa e imediatamente pela prática dos actos delituosos e, por isso, rejeitou a dita acusação.
Daí que apesar do esforço argumentativo do MP, o recurso não pode deixar de improceder.
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III. Dispositivo
Nos termos e com os fundamentos invocados, mencionados, acordam os Juízes que compõem este Tribunal em julgar não provido o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo integralmente a decisão recorrida.
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Sem tributação, atendendo a que o Ministério Público está isento de custas nos termos do disposto no artigo 4.º/1, a) do R.C.P.
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Notifique.



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Porto, 18-12-2024

Elaborado e integralmente revisto pela relatora, nos termos do artigo 94.º/2 do CPP.
Assinado digitalmente pela relatora e pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos

Maria João Lopes
William Themudo Gilman
Isabel Namora