Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1524/17.6T8AVR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: INSTÂNCIA
INÍCIO
LITISPENDÊNCIA
Nº do Documento: RP202001271524/17.6T8AVR.P2
Data do Acordão: 01/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Do confronto da norma do artigo 16.º Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27/11, com o disposto no artigo 259.º, n.º 1, do Código de Processo Civil decorre que não há qualquer diferença quanto ao que se considera o início da instância: a acção considera-se proposta, intentada ou instaurada quando a petição ou requerimento inicial (“acto introdutório da instância”) é apresentada e recebida no tribunal.
II - A litispendência não é uma figura jurídica estranha ao Direito Comunitário e, especificamente, ao referido Regulamento, que no seu artigo 19.º prevê a repetição de acções de divórcio e estabelece uma solução para essa situação.
III - Para a verificação da litispendência não se requer a tripla identidade que é exigida pelo artigo 581.º, n.º 1, do CPC, bastando a identidade subjectiva e que o processo tenha por objecto a dissolução do casamento.
IV - A impugnação da decisão sobre matéria de facto não pode revelar-se uma «mera manifestação de inconsequente inconformismo», sob pena de rejeição por não satisfazer as exigências da motivação do recurso quanto a essa impugnação.
V - A reapreciação da decisão em matéria de facto tem carácter instrumental, é dizer, só faz sentido se visar reverter a favor do recorrente uma certa decisão jurídica alicerçada em determinada realidade factual que lhe é desfavorável, pois que, de contrário, essa reapreciação torna-se num acto inútil, num mero exercício cognitivo inconsequente.
VI - A ruptura da comunhão de vida conjugal não tem que perdurar por um período temporal mínimo para fundamentar o divórcio, embora, como facilmente se compreenderá, quanto mais duradoura for, mais forte e fundada será a convicção de irreversibilidade do rompimento do laço conjugal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1524/17.6 T8AVR.P2
Comarca de Aveiro
Juízo de Família e Menores de Aveiro (J1)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I - Relatório
1. Configuração da acção

B… intentou, em 23.04.2017, acção especial de divórcio contra C…, pedindo que, na procedência da acção, seja decretado o divórcio e, consequentemente, dissolvido o casamento que entre si contraíram.
Em síntese, alega a ruptura do casamento que, entre si, celebraram no dia 16.07.1994.
Ruptura que, nos últimos sete anos (com referência à data da propositura da acção) se vem manifestando nos constantes conflitos e discussões entre autor e ré, com esta a apelidar o autor de “estúpido”, “porco” e “imbecil”.
Situação que se agravou no início de 2016, pois autor e ré deixaram de se falar, passaram a fazer vidas independentes, quer no plano pessoal, já que deixaram de fazer as refeições juntos e há mais de um ano que não mantêm entre si relações sexuais, quer a nível financeiro.
Autor e ré não vão juntos a eventos sociais e/ou reuniões familiares.
Para cúmulo, no dia 28.03.2017, a ré expulsou o autor da casa que vinha sendo a casa de morada do casal, retirou de lá todos os seus objectos pessoais e impediu-o de lá voltar.
Desde então, vivem em casas diferentes.
Nem o autor, nem a ré têm qualquer intenção de continuar casados entre si, até porque não existem já laços de afectividade.
2. Oposição da ré
Após três tentativas de conciliação, todas frustradas, a ré foi notificada para contestar, o que fez, apresentando extensa contestação defendendo-se por excepção e por impugnação.
Na defesa por excepção, invocou a incompetência territorial do tribunal porque a morada indicada pelo autor como sua residência é a da “casa de praia”, onde ambos passam, apenas, alguns dias por ano.
Ainda em sede de defesa por excepção, alegou litispendência porquanto já correria termos no Tribunal de …, França, uma acção de divórcio por ela intentada.
Na defesa por impugnação, afirmou serem falsos, ou desconhecer se são verdadeiros, os factos em que o autor alicerça o seu pedido e, sem negar que, a partir de 2010, as discussões entre o casal foram uma constante e que a relação conjugal se deteriorou progressiva e constantemente, imputou ao autor marido a responsabilidade por essa situação, que, na sua versão, se ficou a dever à relação extramatrimonial que este estabeleceu com D….
Além disso, sem a identificar expressamente e sem que o tenha feito discriminadamente, como é, legalmente, exigido (artigo 583.º, n.º 1, do CPC), deduziu reconvenção, pois que, ainda que subsidiariamente, termina a sua peça processual concluindo «pela verificação da rutura definitiva do casamento e pelo decretamento do divórcio entre A. e R., com fundamento na violação dos deveres conjugais por parte do A., os deveres de coabitação, fidelidade, cooperação, assistência e respeito».
3. Réplica e resposta
Em articulado de réplica (sem o designar como tal), o autor sustenta a competência (territorial) do tribunal, reafirmando o seu local de residência (quando em Portugal), na Avenida …, n.º .., …, …, …, ….
Improcedente seria, também, a excepção de litispendência, porquanto, a existir a acção de divórcio a que se refere a ré, sempre deverá considerar-se proposta em segundo lugar, pois ainda não foi para ela citado, pelo que a litispendência pode ser invocada mas nessa acção.
Apesar de defender a inadmissibilidade da réplica, a ré aproveitou para apresentar articulado de resposta, no qual renova a invocação das excepções de incompetência territorial do tribunal e de litispendência.
Entretanto, reconhecendo a deficiência formal da que foi apresentada, por despacho de 03.04.2018 (ref.ª 101585502) a Sra. Juiz convidou a ré a apresentar nova contestação em que identificasse o pedido reconvencional e indicasse o respectivo valor, convite que esta aceitou, apresentando contestação/reconvenção corrigida.
O réu respondeu à matéria da reconvenção, concluindo como no articulado inicial.
4. Saneamento e condensação
Realizou-se audiência prévia a 09.05.2018 em que se fixou o valor da acção (€30.000,01), foi proferido despacho saneador, no qual foi reconhecida a competência, em razão da nacionalidade, do tribunal português (que a ré equacionou como incompetência territorial), foi julgada improcedente a excepção de litispendência e verificados os demais pressupostos processuais, fixou-se o objecto do processo e foram enunciados os temas de prova, sem reclamações, admitiu-se a produção dos meios de prova indicados pelas partes e designou-se a data para a audiência final.
Inconformada com o despacho que julgou improcedente a excepção de litispendência, a ré apresentou recurso de apelação (ref.ª 29187119), admitido por despacho de 11.06.2018, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (ref.ª 102595970).
Remetidos os autos ao tribunal de recurso, por decisão do Sr. Desembargador-Relator de 23.10.2018, foi o despacho que admitiu o recurso revogado, por se ter entendido que o despacho em causa só poderia ser impugnado com o recurso da sentença final, decisão que foi confirmada por acórdão de 07.01.2019 que apreciou reclamação para a conferência (embora dirigida ao Ex.mo Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça) apresentada pela ré.
5. Audiência final e sentença
Depois de todas as vicissitudes processuais que ficaram relatadas, realizou-se, por fim, a audiência final, com duas sessões, após o que, com data de 14.05.2019, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto, julgo procedente a ação intentada pelo Autor e o pedido reconvencional deduzido pela Ré e em consequência, decreto o divórcio entre o Autor B… e a Ré C… e declaro dissolvido o casamento que entre si contraíram em 16 de Julho de 1994.
Custas pelo autor e pela ré em partes iguais- cfr. artigo 527º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil».
6. Impugnação da sentença
Inconformada com a decisão, a ré dela interpôs recurso de apelação (requerimento com a referência 32675494, apresentado em 07.06.2019), com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões:
………………………………………………………………
………………………………………………………………
………………………………………………………………
O autor contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso e a consequente confirmação do decidido.
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundmentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
As primeiras cinquenta (!) “conclusões” do recurso são dedicadas à questão da existência, ou não, de litispendência. A recorrente, tendo deixado cair a tese da incompetência territorial do tribunal, insiste que ocorre aquela excepção porque, quando esta acção foi instaurada, já ela tinha proposto contra o aqui autor acção de divórcio no Tribunal de …, França.
Essa é a primeira questão a apreciar e decidir.
Mas a recorrente, também, se insurge contra a decisão em matéria de facto, alegando que o tribunal fez errada apreciação da prova.
Apurar se foi mal julgada a matéria de facto por incorrecta apreciação e valoração da prova produzida é a tarefa seguinte a empreender.
Por último, haverá que determinar a repercussão que uma eventual alteração factual poderá ter na solução jurídica do caso (concretamente, se, ainda assim, os factos são reveladores da ruptura do casamento que o autor invoca).
*
IIFundamentação
1. A excepção de litispendência
É afirmação corrente na doutrina que, na base da litispendência (tal como do caso julgado), está a repetição de uma causa.
É, de resto, isso mesmo que está expresso no segmento inicial do n.º 1 do artigo 580.º do Código de Processo Civil:
«As excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa».
Se alguém instaura uma acção quando já está pendente uma outra com os mesmos elementos definidores [as mesmas partes, consideradas na qualidade jurídica em que agem, sendo indiferente a posição – como autor ou como réu - em que surgem; a mesma causa de pedir, ou seja, o(s) mesmo(s) facto(s)s constitutivo(s)[1] do direito ou situação jurídica que o autor pretende fazer valer ou negar[2] e o mesmo pedido, é dizer, a mesma providência jurisdicional pretendida pelo autor, a providência processual adequada à tutela do seu interesse[3], ocorre litispendência.
Para este efeito, não releva a pendência, em jurisdição estrangeira, de outra causa, salvo se de convenções internacionais resultar coisa diferente.
É a pendência de outra acção em tribunal francês que a ré invoca para fazer valer a excepção de litispendência e há, efectivamente, convenções em contrário: o Regulamento (UE) n.º 1215/2012, de 12/12 (competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial) e, especificamente, em matéria matrimonial e de responsabilidades parentais, o Regulamento[4] (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27/11.
É incontornável o princípio do primado do Direito Comunitário, ou seja, as normas do referido Regulamento prevalecem sobre as normas de direito interno (cfr. artigo 8.º da CRP).
O artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 estabelece três critérios fundamentais para a definição da competência internacional dos tribunais de um Estado-Membro para conhecer das acções de divórcio:
- a residência habitual dos cônjuges, ou de um deles;
- a nacionalidade dos cônjuges;
- o domicílio comum.
Basta a verificação de um deles para que o tribunal português seja internacionalmente competente.
Em sintonia com a citada norma de direito comunitário, o artigo 59.º do CPC dispõe que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º do mesmo compêndio normativo.
Verifica-se um desses factores atributivos de competência internacional quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (artigo 62.º, al. a)).
Territorialmente competente para a acção de divórcio é o tribunal do domicílio ou da residência do autor (artigo 72.º do CPC) e é entendimento corrente que não tem que ser a residência habitual[5].
Ora, autor e ré são de nacionalidade portuguesa e decorre do teor dos articulados apresentados que, quando em Portugal, têm residência[6] na ….
Está, pois, adquirido que o tribunal português é internacionalmente competente.
Vejamos, então, se ocorre a excepção de litispendência invocada pela ré.
O citado Regulamento (CE) n.º 2201/2003 contém uma norma sobre litispendência. É o artigo 19.º que, no seu n.º 1, dispõe:
«Quando os processos de divórcio, separação ou anulação do casamento entre as mesmas partes são instaurados em tribunais de Estados-Membros diferentes, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar».
Por seu turno, o artigo 16.º do mesmo Regulamento dispõe sobre o momento em que se considera intentada ou instaurada a acção:
«1.Considera-se que o processo foi instaurado:
a) Na data de apresentação ao tribunal do acto introdutório da instância, ou acto equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido;
ou
b) Se o acto tiver de ser citado ou notificado antes de ser apresentado ao tribunal, na data em que é recebido pela autoridade responsável pela citação ou notificação, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que o acto seja apresentado a tribunal.»
Como se pode constatar pelo confronto desta norma comunitária com o disposto no artigo 259.º, n.º 1, do nosso CPC, não existe qualquer diferença quanto ao início da instância: a acção considera-se proposta, intentada ou instaurada quando a petição ou requerimento inicial (“acto introdutório da instância”) é apresentada e recebida (dá entrada) no tribunal.
Na primeira instância, a decisão de julgar improcedente a excepção de litispendência está assim fundamentada:
(…)
«Apesar de para o nosso ordenamento jurídico o que é relevante para a exceção da litispendência não é a data da entrada da ação, mas sim a ação para a qual o réu foi citado posteriormente, como resulta do artigo 582º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Ora nesta ação a ré já foi citada em 31 de Maio de 2017 (vide folhas 35), enquanto que relativamente ao ora autor e réu nessa ação que corre no Tribunal Francês, este foi citado, depois de 12 de dezembro de 2017 (vide folhas 121 e 122), uma vez que o despacho a marcar a tentativa de conciliação, tem essa data.
Mas mesmo que se entendesse que a ação de divórcio entrou primeiro no Tribunal Francês, teria que se verificar os requisitos que a nossa lei prevê para a excepção de litispendência, pois o regulamento nº 2201/2003, não define o conceito de litispendência.
Assim, tem de se recorrer as normas do Código de Processo Civil, para se aferir se verifica a excepção de litispendência.
Para existir litispendência têm de existir identidade de sujeitos, de causas de pedir e de pedidos – cfr. artigo 581º, do C.P.C.
Neste caso, existe identidade de sujeitos, pois em ambas as ações, as partes são cônjuges.
No entanto, não existe identidade da causa de pedir, pois os fundamentos invocados para o divórcio na ação intentada pelo autor é a ruptura do casamento, enquanto a ré na ação que intentou no Tribunal Francês, não invocou essa causa, por isso não existe identidade das causas de pedir.
Quanto aos pedidos, também não existe identidade, pois apesar de em ambos os processos se pedir que seja decretado o divórcio entre os cônjuges, na ação que corre termos no Tribunal Francês a cônjuge mulher pediu que lhe fosse fixada uma pensão de alimentos no valor de €1000,00 e nestes autos não formula esse pedido.
Assim, não se verificando esta tríplice identidade, à luz do nosso ordenamento jurídico não se pode considerar que se verifica uma situação de litispendência.
Neste sentido menciona o Ac. do STJ de 13/04/2010, processo nº 07/09.7TBVR.P1.S1, que: “Não existe litispendência entre duas acções de divórcio instauradas com fundamentos diversos – diferentes causas de pedir – sendo os mesmos os sujeitos processuais, ainda que quem é Autor na primeira seja Réu na segunda acção, não tendo havido em ambas reconvenção”.
Pelo exposto, julga-se improcedente a exceção de litispendência invocada pela ré.».
Com o devido respeito, divergimos do entendimento expresso neste despacho na medida em que se nos afigura que a excepção da litispendência não é estranha ao Regulamento (CE) n.º 2201/2003. E não é pela circunstância de o seu artigo 19.º ter por epígrafe “Litispendência e acções dependentes”, mas sim porque nele se prevê a repetição de acções de divórcio e se estabelece uma solução para essas situações, por forma a evitar que não haja duplicação de decisões, eventualmente contraditórias entre si.
O que sucede é que para a verificação da litispendência não se requer a tripla identidade que é exigida pelo artigo 581.º, n.º 1, do CPC, bastando, como bem refere a recorrente, a identidade subjectiva e que o processo tenha por objecto a dissolução do casamento (seja por divórcio, seja por anulação do casamento, seja ainda por separação judicial).
A identidade de causas de pedir nas acções intentadas não é requerida porque, como se explica no considerando (8) «o presente regulamento apenas deve ser aplicável à dissolução do vínculo matrimonial e não deve abranger questões como as causas do divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento ou outras eventuais medidas acessórias.».
A informação de que dispomos é a que nos é dada pelo teor da peça processual que a ré juntou, como documento n.º 2, com a contestação e que dirigiu ao(à) Sr.(ª) Juiz dos Assuntos Familiares do Tribunal de Grande Instância de ….
Embora intitulada “Requête a fin de divorce”, em tal peça não formula a autora (aqui ré) qualquer pedido de divórcio (ou de separação ou de anulação do casamento).
Pelo seu teor, é mais uma petição para regulação das responsabilidades parentais em relação à filha menor do casal (E…), para fixação de alimentos (ao cônjuge mulher e à filha menor) e para partilha do património comum do casal.
A identidade de pedidos não tem de ser total, mas, para que se possa considerar verificada a litispendência, em ambas as acções tem de ser formulado pedido de divórcio (ou de separação ou de anulação do casamento).
Não é o que se verifica neste caso e por isso não pode falar-se em litispendência.
Mas, que assim não seja, nada nos permite ter por certo que a petição inicial da acção intentada em França deu entrada em tribunal em data anterior à da propositura desta acção.
Não é demais frisar que, nos termos do citado artigo 16.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, o processo considera-se instaurado «na data de apresentação ao tribunal do acto introdutório da instância.
A ré começou por fazer chegar ao processo o papel que constitui fls. 34 dos autos, que é um recibo (aparentemente, da quantia de € 1 600,00), que contém a menção “Requête em divorce (Article 251 du CC)” e em que foi aposto um carimbo da “Ordre des Avocats – F…” com a data de 21 de Abril de 2017, mas no qual não se vislumbra qualquer assinatura.
Parece, assim, poder dizer-se que o “Requête en divorce” foi entregue, em 21.04.2017, num serviço da Ordem dos Advogados francesa, mas não foi apresentado ao tribunal nessa data. Não sendo possível saber em que data tal aconteceu, também não é possível afirmar que a presente acção foi instaurada em segundo lugar e por isso aqui devia ter-se determinado a suspensão da instância, como sustenta a recorrente.
Forçoso é, pois, concluir que, quer em face do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, quer à luz da lei processual portuguesa, não ocorre litispendência e, a haver repetição de acções de divórcio, não é nesta que devia determinar-se a suspensão da instância, pelo que, nesta parte, tem de improceder o recurso.
2. Fundamentos de facto
Delimitado o thema decidendum, atentemos na factualidade que a primeira instância deu por assente, bem como a que considerou não provada, e que o recorrente não põe em causa.
A) Factos provados
1-O Autor e a Ré celebraram casamento civil, sem convenção antenupcial, em 16 de Julho de 1994.
2- O A. é proprietário de uma empresa de … sediada em França – a G… com escritórios no nº .., Rue … ….. ….
3- Deste casamento nasceram dois filhos maiores.
4- Nos últimos sete anos são constantes as discussões entre o Autor e a Ré.
5- Em que a ré apelida o autor de estúpido, porco e imbecil.
6- Esta situação agravou-se a partir do início de 2016, deixando de ser possível o diálogo entre o casal.
7- Desde então, e embora continuassem a viver na mesma casa, o autor e a ré deixaram de dialogar.
8- Deixaram de confecionar e de tomar juntos com regularidade as suas refeições.
9- Apesar de dormirem na mesma cama deixaram de ter relações sexuais um com o outro.
10- O Autor abriu uma conta bancária da qual é o único titular e para a qual é transferido, mensalmente, o seu salário.
11- Sendo que desta conta procede aos pagamentos das suas responsabilidades nos créditos contraídos, na pendência do matrimónio.
12- Há mais de um ano que o Autor e a Ré não vão juntos a eventos sociais e/ou reuniões familiares.
13- No final do mês de Março de 2017, o Autor saiu da casa de morada de família do casal, depois de a ré lhe ter posto parte da sua roupa na garagem, em sacos do lixo.
14- Desde aquela data, passaram o Autor e a Ré, a viver em casas diferentes.
15- O Autor, não pretende continuar casado com a ré, por se terem perdido os laços afetivos.
16- O A. saiu de casa pela primeira vez a 5 de Dezembro de 2014.
17- Passados cerca de 4 meses Abril/Maio de 2015, o A. voltou para casa.
18- Tendo dito que tinha precisado de sair para “pensar na sua vida”.
19- A R. insistiu sobre a possibilidade da existência de uma terceira pessoa, o qual o A. negou.
20- A R. não se opôs ao regresso do Autor.
21- O Autor poucas vezes jantava em casa com a família, regressando sempre depois da meia-noite para descansar umas horas, tomar banho, trocar de roupa e voltava a sair.
22- Quando vinha jantar a casa, voltava a sair e informava a ré que ia trabalhar.
23- Em Agosto de 2015, o A. e a R. e seus filhos vieram de férias a Portugal e foram para a casa sita em Uva.
24- Aí chegados, o A. informou a R. que iria passar uma semana em Aveiro mas que ia sozinho.
25- E durante uma semana, não efetuou qualquer contacto telefónico, com a ré, nem respondeu as mensagens desta.
26- A partir de Janeiro de 2016 e em França, o A. raramente passava os fins-de-semana, em casa com a família.
27- Passou muitas vezes a sair à sexta de manhã para o trabalho e apenas regressava ao Domingo.
28- Entre Segunda e Quinta feira o réu vinha jantar a casa com a família, mas não era regular e voltava a sair apenas regressando por volta da uma da manhã para descansar umas horas, tomar banho, trocar de roupa e voltar a sair.
29- Em Novembro de 2016 a R. recebe, na sua residência pessoal e deixada na caixa de correio, uma carta proveniente de um advogado francês para tratar do divórcio.
30- Em Dezembro de 2016, o A. entra em casa, juntamente com o seu filho mais velho, antes da hora do jantar e todo sorridente, para jantar.
31- Em Dezembro de 2016 o Autor já não queria o divórcio e veio passar o Natal com a família a Portugal.
32- O A. passou a vir jantar todas as noites a casa de morada de família com a Ré mas a seguir voltava ao escritório até às 23h/24h, alegando ir trabalhar.
33- No dia 24 de Dezembro de 2016, na troca das prendas a R. ofereceu uma camisola de prenda ao A.
34- O A. não abriu a prenda oferecida pela Ré e não deu nenhuma prenda a Ré.
35- A seguir, a família foi até ao café da aldeia mas a Ré ficou a arrumar a cozinha e a sala de estar, tendo ficado de no final da faxina de comparecer ao café para se juntar à família.
36- Quando a Ré chegou ao café, o Autor levantou-se e foi embora para casa.37-A 30 de Dezembro de 2016, regressaram a França como estava planeado.
38- A 31 de Dezembro de 2016, a R. ficou doente, com uma constipação, tendo passado o dia em casa e a maior parte do tempo na cama.
39- O A. saiu da parte da manhã e quando regressou trazia consigo um saco com roupas – camisas e camisolas.
40- A R. disse ao autor que lhe tinha oferecido uma camisola no Natal mas que ele nem sequer tinha aberto a prenda e agora, vinha com um saco de roupa para casa e perguntou-lhe se tinham sido compradas ou oferecidas.
41- O Autor não respondeu.
42- Na noite da passagem de ano, o A. saiu de casa a seguir ao almoço, deixando a R. no estado de doente e apenas voltou no dia 1 de Janeiro de 2017.
43- Foi quando a Ré tomou a decisão de terminar definitivamente com o seu casamento e falou com a sua advogada para prosseguir com o divórcio,
44- A partir dessa altura, Janeiro de 2017 o A. começou a passar muito pouco tempo em casa, não mais veio almoçar ou jantar, e pernoitar apenas o fez algumas vezes.
45- Em Março de 2017, o A. foi fazer uma viagem com a secretaria a D…, para Guadalupe, numa viagem oferecida por um fornecedor, mas não avisou a Ré.
46- A Ré dirigiu-se a polícia para comunicar o desaparecimento do seu marido e informou que, havia 15 dias que o mesmo não vinha a casa.
47- O A. regressou da referida viagem em finais de Março de 2017 e nunca mais veio dormir a casa de morada de família.
48- O autor após ter saído de casa em Março de 2017, informou os filhos que iria viver com a D….
B) Factos não provados
1-A Ré expulsou o autor da casa de morada de família.
2- A Ré Retirou da casa todos os objetos pessoais do réu.
3- A Ré impediu o autor de voltar a entrar na casa de morada de família.
4- A Ré recebe a carta do advogado por volta do dia 8/11/2016.
5- O A. mentiu cerca de 6 anos a R. sobre a existência da relação extraconjugal com a D….
6- A Ré procede de igual forma, tendo aberto uma conta em seu nome.
7- No dia 28 de Março de 2017 o autor saiu de casa.
8- Quando regressou dessa semana manteve constantes chamadas telefónicas e troca de mensagens de conteúdo amoroso e carinhoso com a D….
9- O réu voltava ao Domingo à noite e após o jantar, para descansar umas horas, tomar banho, trocar de roupa e voltar a sair.
10- A ré aceitou o autor e este confessou que tinha mantido uma relação amorosa como marido e mulher com a D…, que tinha terminado em Junho desse ano (2016), quando o filho do casal tinha ingressado a trabalhar na empresa.
11- O A. prometeu a R. que ia mudar a sua postura.
12- O autor pousou o embrulho em cima da mesa da sala de estar.
13- A ré teve 40º de febre.
14- O autor perguntou à R. o que ela achava das camisas e camisolas.
15- O autor virou as costas e foi arrumar as mesmas no armário.
16- O autor regressou à noite.
17- O autor quando pernoitava em casa, chegava sempre perto da meia-noite.
18- No dia 30 de Maio de 2017 a ré dirigiu-se a polícia.
19- Informou a polícia que, o mesmo ocorrera em 2015, no entanto, nessa altura avisara a família que iria para fora.
20- O autor regressou num Domingo da referida viagem.
21- No dia 7 de Dezembro.
22- O autor foi de férias.
*
O n.º 1 do artigo 662.º do CPC põe a cargo da Relação o dever de alterar a decisão sobre a matéria de facto sempre que «os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa» e este preceito (em conjugação com o artigo 640.º, n.º 1) tem sido interpretado no sentido de que, por um lado, à segunda instância não cabe proceder à reapreciação da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, pois duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso, e por outro que, se não basta que as provas, simplesmente, permitam, ou até sugiram, conclusão diversa daquela que foi a conclusão probatória a que se chegou na primeira instância, também não se exige um erro notório, ostensivo na apreciação da prova para que a Relação deva proceder à alteração desse segmento da decisão.
O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Se o recurso que incide sobre matéria de facto implica a reponderação, pelo Tribunal da Relação, de factos pontuais incorrectamente julgados, essa reponderação não é realizada se este tribunal se limitar a ratificar ou “homologar” o julgado (por exemplo, com a simples constatação, a partir do acolhimento da fundamentação, da correcção do factualmente decidido), em vez de fazer um verdadeiro exercício de julgamento, embora de amplitude menor.
Como faz notar o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 30.11.2006 (www.dgsi.pt/jstj), “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efectivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento”[7].
Esse «exercício crítico substitutivo» não constitui nenhum atropelo à livre apreciação da prova do julgador da primeira instância, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade, pois que, como salienta o Sr. Conselheiro A.S. Abrantes Geraldes[8], «quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos à livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não por regras da experiência»[9].
A função do tribunal de recurso é aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório disponibilizado e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.
Fixemo-nos, então, no caso concreto para empreendermos esse exercício crítico.
A impugnação da decisão de facto abrange factos provados e factos não provados.
Na óptica da recorrente, o tribunal devia ter dado como não provados os factos descritos sob os n.os 5, 6, 7 e 12 do elenco dos provados (conclusão 51.ª) que, recorde-se, são os seguintes:
5 - Em que a ré apelida o autor de estúpido, porco e imbecil.
6 - Esta situação agravou-se a partir do início de 2016, deixando de ser possível o diálogo entre o casal.
7 - Desde então, e embora continuassem a viver na mesma casa, o autor e a ré deixaram de dialogar.
12 - Há mais de um ano que o Autor e a Ré não vão juntos a eventos sociais e/ou reuniões familiares.
Por outro lado, ainda na perspectiva da recorrente, o tribunal devia ter considerado provados os factos enunciados nos n.os 4, 18, 19 e 22 do elenco dos não provados (conclusão 65.ª) que, relembrando, são os seguintes:
4 - A Ré recebe a carta do advogado por volta do dia 8/11/2016.
18 - No dia 30 de Maio de 2017 a ré dirigiu-se a polícia.
19 - Informou a polícia que, o mesmo ocorrera em 2015, no entanto, nessa altura avisara a família que iria para fora.
22. O autor foi de férias.
Apreciando.
A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso e a recorrente cumpriu esse ónus.
O conjunto dos factos provados que a recorrente impugna constitui o núcleo essencial dos fundamentos alegados pelo autor que seriam reveladores da ruptura irreversível do casamento.
A decisão de os considerar provados está assim justificada:
«Os factos foram dados como provados com base no assento de casamento junto aos autos a folhas 10 a 12 e as declarações de parte do autor e da ré, que foram confirmadas pelas várias testemunhas ouvidas em audiência de julgamento. Nomeadamente H… e I… (irmã e tio do autor), referiram que a Ré no últimos anos já não vinha aos eventos de família, que era o autor que ia sozinho com os filhos, e que já há vários anos quer era visível o distanciamento que existia no casal, tendo inclusivamente a testemunha H… referido que desde Março de 2017 que o autor e a ré vivem em casas separadas e fazem vidas independentes, o que coincidiu com as declarações de parte do autor e da ré, quanto à data da separação.
J…, k…, testemunhas da ré, que conviviam com o casal, quando vinham a Portugal, relataram situações que presenciaram, que mostravam o distanciamento que havia no casal nos últimos anos que viveram juntos».
A recorrente transcreve uma curta passagem do depoimento de cada uma das referidas testemunhas (em que elas afirmam nunca terem ouvido a ré/mulher “chamar nomes” ao autor/marido) para concluir que o facto do n.º 5 devia ter sido dado como não provado.
Porém, como decorre do excerto da fundamentação transcrito, foi nas declarações de parte do autor e da ré (corroboradas pelos depoimentos das aludidas testemunhas no que tange ao notório distanciamento que, há anos, existia no relacionamento do casal, ao ponto de a ré já não acompanhar o marido a reuniões familiares e, a partir de Março de 2017, terem passado a viver em casas distintas e a fazerem vidas independentes) que o tribunal se alicerçou para dar como provado o referido conglomerado factual e a recorrente não põe em causa essa (legítima) opção do tribunal.
Quanto aos factos descritos nos pontos 6 e 7, é surpreendente e incompreensível a sua impugnação. Tanto mais que a própria ré confirma que, há vários anos (desde 2010), deixou de haver diálogo entre o casal, que são frequentes as discussões e os conflitos e que a situação se agravou a partir do ano de 2016.
A recorrente argumenta que é “contraproducente” considerar esses factos provados em face dos descritos sob os n.os 30, 31 e 32, dizendo mesmo que “é de todo contraditório” considerar-se provado que, a partir de 2016, deixou de ser possível o diálogo entre o casal e, simultaneamente, dar como provado que, em Dezembro desse ano, o autor apareceu, sorridente, na casa da morada de família com o filho mais velho para jantar, dizendo que já não queria o divórcio e que veio passar o Natal com a família a Portugal.
A Relação altera a decisão sobre matéria de facto se, no juízo autónomo que lhe compete formular sobre os elementos de prova disponíveis, chegar à conclusão que é inteiramente justificada essa alteração e não porque é contraproducente determinado facto.
De resto, não se alcança onde esteja a contradição que a recorrente vislumbra, já que os factos descritos sob os n.ºs 30 a 32 referem um episódio isolado e a própria ré alega que a situação não se alterou substancialmente, pois o autor ignorou uma prenda que ela lhe quis oferecer pelo Natal e, já no final do ano, ela ficou doente e ele manteve uma atitude de indiferença face ao seu estado de saúde.
Também a impugnação do facto provado sob o n.º 12 não tem qualquer fundamento válido. O facto foi confirmado pelas testemunhas H… e I… (respectivamente, irmã e tio do autor) e a passagem do depoimento de parte do autor que a ré transcreve para sustentar a impugnação, na realidade, não tem essa virtualidade, pois que aquele é taxativo ao afirmar que, embora passando (parte das) férias juntos em Portugal, cada um fazia a sua vida (“ela fazia a vida dela e eu a minha”).
Relativamente aos factos, considerados não provados, que a recorrente pretende que passem para o elenco dos provados, é patente a sua irrelevância para a decisão da causa qualquer que seja a solução da questão de direito que se equacione.
Note-se que são factos alegados pela ré/reconvinte em reconvenção para fundamentar o pedido de divórcio e esta foi julgada procedente e decretada a dissolução, por divórcio, do casamento.
Quer isto dizer que, pelo menos neste segmento, para a recorrente não adviria qualquer utilidade da procedência do recurso.
Que interesse tem para a decisão saber se foi “por volta do dia 8/11/2016” que a ré recebeu uma carta do advogado ou que no dia 30.05.2017 se dirigiu à polícia? Nenhum, absolutamente nenhum!
O facto descrito sob o n.º 19 do elenco dos não provados está relacionado com o descrito no n.º 46 dos provados, ou seja, que a ré se dirigiu à polícia para comunicar o desaparecimento do seu marido.
Que interessa saber se a ré, também, informou a polícia que o mesmo já acontecera em 2015, mas que nessa altura o autor avisou que ia para fora? Nada, não interessa, rigorosamente, nada.
Está provado que o autor foi fazer uma viagem a Guadalupe, oferecida por um fornecedor. É, ainda, ponto assente que foi na companhia da secretária D….
É óbvio que não tem qualquer interesse saber se foi de férias.
O que, verdadeiramente, interessa - porque, claramente, revelador da ruptura do casamento - é que, desde então, não mais voltou para a casa que era a morada de família e informou os filhos que iria viver com a D….
Bem pode dizer-se que a impugnação da decisão sobre matéria de facto, neste conspecto, é «mera manifestação de inconsequente inconformismo»[10], pelo que não satisfaz as exigências da motivação do recurso quanto a essa impugnação e por isso, nessa parte, deve ser rejeitado[11].
A reapreciação da decisão em matéria de facto tem carácter instrumental, é dizer, só faz sentido se visar reverter a favor do recorrente uma certa decisão jurídica alicerçada em determinada realidade factual que lhe é desfavorável.
Se assim não for, essa reapreciação torna-se num acto inútil, num mero exercício cognitivo inconsequente.
2. Fundamentos de direito
A recorrente remata a sua alegação de recurso propugnando a revogação da sentença «na parte em que decreta o divórcio entre Autor e Ré com fundamento na rutura definitiva do casamento por, estes, não viverem em comunhão de vida atendendo ao decurso daquele lapso temporal».
Em bom rigor, na primeira instância, o divórcio foi decretado por estar verificado o fundamento previsto na alínea d) do artigo 1781.º do Código Civil, ou seja, por se terem apurado factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, revelam a ruptura irreversível do casamento.
Efectivamente, aquela alínea contém uma cláusula em que se prescinde da culpa como fundamento do divórcio (já não é a violação culposa dos deveres conjugais a fundamentar o divórcio), mas a ruptura do casamento, avaliada segundo um critério objectivo.
Fazendo a subsunção dos factos provados ao direito, a Sra. Juiz do tribunal a quo discorreu assim:
«Nos últimos sete anos foram constantes as discussões entre o Autor e a Ré, em que a ré apelidava o autor de estúpido, porco e imbecil (vide fatos 4 e 5).
Esta situação agravou-se a partir do início de 2016, deixando de ser possível o diálogo entre o casal, embora continuassem a viver na mesma casa (vide fato 6).
Deixaram de confecionar e de tomar juntos com regularidade as suas refeições (vide fato 8).
Apesar de dormirem na mesma cama deixaram de ter relações sexuais um com o outro(vide fato 9).
O Autor abriu uma conta bancária da qual é o único titular e para a qual é transferido, mensalmente, o seu salário, sendo que desta conta procede aos pagamentos das suas responsabilidades nos créditos contraídos na pendência do matrimónio (vide fatos 10 e 11).
Há mais de um ano que o Autor e a Ré não vão juntos a eventos sociais e/ou reuniões familiares (vide fato 12).
No final do mês de Março de 2017, o Autor saiu da casa de morada de família do casal, depois de a ré lhe ter posto parte da sua roupa na garagem em sacos do lixo (vide fato 13).
Desde aquela data, passaram o Autor e a Ré, a viver em casas diferentes e o Autor, não pretende continuar casado com a ré, por se terem perdido os laços afetivos (vide factos 14 e 15).
Perante a conjugação de factos provados, verifica-se que este casal pelo menos desde o início de 2016, que deixou de ter uma relação de afeto e respeito, não conseguindo dialogar, nem trocar carinhos, nem fazer uma vida partilhada como a que deve existir num casal.
Aliás, a ré ao chamar nomes ao autor violou o dever de respeito que deveria ter com o seu marido.
Esta rutura foi-se agravando, ao ponto de desde final de Março de 2017, há mais de dois anos que o autor e a ré vivem em casas separadas e fazem vidas completamente autónomas e independentes um dos outro.
O decurso deste prazo é tão longo que demonstra, sem margem de dúvida, que a comunhão de vida entre o autor e a ré está posta em crise de forma definitiva, com quebra dos laços afetivos.
Pelo que, por estar verificado o fundamento referido na alínea d) do art. 1781º do Código Civil (rutura definitiva do casamento), deve ser decretado o divórcio entre as partes.».
A ruptura da comunhão de vida entre autor e ré é de evidente constatação face à matéria factual apurada (que, pelas razões já expostas, não é de alterar) e essa situação, ao contrário do que sucede com os demais fundamentos especificados no citado artigo 1781.º, não tem que perdurar por um período temporal mínimo para fundamentar o divórcio, embora, como facilmente se compreenderá, quanto mais duradoura for, mais forte e fundada será a convicção de irreversibilidade do rompimento do laço conjugal.
Nenhuma censura merece a decisão recorrida, pelo que se impõe a total improcedência do recurso.
III - Dispositivo
Por tudo o exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por C… e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo da recorrente (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).
Porto, 27.01.2020
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
____________________
[1] Casos há em que a causa de pedir é simples, bastando a alegação de um só facto jurídico concreto; mas outros há em que é complexa (como nas acções em que se exige responsabilidade civil por acidente de viação), requerendo a alegação de um conjunto alargado de factos.
[2] Nas acções de simples apreciação negativa.
[3] Cfr. José Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, Coimbra Editora, 2001, pág. 223.
Nas palavras de Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 111), o pedido é o direito para o qual o autor solicita ou requer a tutela judicial e o modo por que intenta obter essa tutela.
[4] Que revogou o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, de 29 de Maio, inicialmente invocado pela ré.
[5] Assim, o acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2015, acessível em www.dgsi.pt
[6] Mais exactamente, uma das residências.
[7] No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 15.10.2008 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons.Henriques Gaspar), proferido no âmbito de processo penal, mas válido para o processo civil, em que se escreveu que “a reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global e muito menos um novo julgamento da causa, também se não poderá bastar com declarações e afirmações gerais quanto à razoabilidade do julgamento da decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada (ou, melhor, uma nova ponderação), em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção em relação aos factos impugnados, para, por esse modo, confirmar ou divergir da decisão recorrida.
[8] Ob. cit., pág. 286
[9] Neste mesmo sentido, cfr. o acórdão do STJ de 07.09.2017 (processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1), relatado pelo Sr. Conselheiro Tomé Gomes, acessível em www.dgsi.pt.
[10] A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”; Almedina, 5.ª edição, 169.
[11] Importa lembrar que no preâmbulo do Dec. Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro (pelo qual foi introduzido o segundo grau de jurisdição em matéria de facto) o legislador fez constar que um dos objectivos propostos era “facultar às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais (…) erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito (…)» (sublinhado nosso).