Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0011363
Nº Convencional: JTRP00030854
Relator: MARQUES PEREIRA
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
CIRCUNSTÂNCIAS QUALIFICATIVAS
CRIME PÚBLICO
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
Nº do Documento: RP200102280011363
Data do Acordão: 02/28/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J PENAFIEL 2J
Processo no Tribunal Recorrido: 214/96
Data Dec. Recorrida: 10/27/1999
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO. REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CP95 ART116 N2 ART143 ART146.
Jurisprudência Nacional: AC RP DE 2000/10/18 IN CJ T4 ANOXXV PAG234.
AC STJ DE 2000/03/01 IN CJSTJ T1 ANOVIII PAG219.
Sumário: O crime do artigo 146 do Código Penal de 1995, referido ao artigo 143 do mesmo Código, reveste a natureza de crime público, sendo por isso irrelevante a desistência da queixa por parte do ofendido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca de ....., o MP deduziu acusação, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, contra a arguida M....., pela prática, em 11 de Dezembro de 1995, de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos arts. 143 e 146 do C. Penal.
No início da audiência de julgamento, a ofendida C..... desistiu da queixa contra a arguida em relação ao mencionado crime.
A arguida nada opôs.
Opôs-se o MP, invocando a natureza pública do crime imputado à arguida.
Pelo Ex. Juiz foi, então, ditado para a acta o despacho que se transcreve ( na parte respeitante ao mesmo crime):
“Relativamente ao crime de ofensas à integridade física simples previsto e punido pelo art. 143 do C. Penal e qualificado pelo art. 146 do mesmo diploma legal por que vem acusada a arguida M....., por entender que este último normativo mais não constitui do que uma qualificativa do tipo legal principal contido no supra citado art. 143 e atenta a não oposição por parte da arguida, homologo a desistência de queixa apresentada pela ofendida quanto a tal crime, atenta a sua natureza, que é, face ao entendimento supra expendido, semi-público n.º 2 da norma legal em apreço e de harmonia com o disposto no n.º 2 do art. 116 do C. Penal e 51 do CPP.
Sem custas”.
Inconformado, o MP recorreu para esta Relação, terminando deste modo a sua motivação de recurso:
1. A arguida M..... está acusada pela prática de um crime p. e p. pelos arts. 143 e 146, ambos do C. Penal;
2. A Mm.ª Juíza, por despacho proferido nos autos, considerando que o crime p. e p. pelo art. 146 tem natureza semi-pública, admitiu a desistência da queixa formulada;
3. Ora, tal crime tem natureza pública, não relevando a desistência de queixa apresentada pelo ofendido e aceite pelo arguido para efeitos da extinção do procedimento criminal, porquanto:
A - Em regra, sendo os crimes de natureza pública, o crime p. no art. 146 é omisso quanto à sua natureza jurídica;
B - Numa interpretação intrasistemática, quando a norma é omissa relativamente à sua natureza jurídica, tal referência é feita em disposição comum. Não existe no Capitulo III, do Titulo I do C. Penal, disposição comum sobre a natureza dos crimes ali previstos;
C - Numa interpretação histórica, este tipo legal de crime, embora se possa considerar inovador, contempla hipóteses que no C. Penal, na redacção dada pelo DL n.º 400/82 eram crimes de natureza pública, sendo certo que a evolução legislativa foi no sentido de ver agravadas as molduras penais previstas para os crimes contra as pessoas e mais concretamente os crimes contra a integridade física;
D - Por último, considerando a referência prevista no art. 146 exclusivamente reportada às ofensas, tem ele mesmo uma natureza jurídica própria e não dependente de qualquer outro tipo legal;
4. Assim visto, o douto despacho é ilegal por violação do disposto nos arts. 113, 116 e 146 do C. Penal e 51 do CPP;
5. Pelo que, deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos, designando-se nova data para a audiência de julgamento.
Não houve resposta.
Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, no sentido do provimento do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
A questão a resolver, no presente recurso, é, unicamente, a de saber qual a natureza do crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. no art. 146 do C. Penal, com referência ao art. 143 do mesmo Código, no texto resultante da revisão levada a efeito pelo DL n.º 48/95, de 15 de Março: semi-pública, como se considerou na decisão recorrida ou pública, como defende o Digno Recorrente.
Sendo que, nos termos do disposto no art. 116, n.º 2 do C. Penal, “O queixoso pode desistir queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1.ª instância. A desistência impede que a queixa seja renovada”.
Dispõe o art. 143 do C. Penal:
“1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. O procedimento criminal depende de queixa.
3....”
Estatui, por sua vez, o art. 146 do mesmo Código:
“1. Se as ofensas previstas nos artigos 143, 144 ou 145 forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com a pena aplicável ao crime respectivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
2. São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstância previstas no n.º 2 do artigo 132”.
Refira-se, desde já, que não havia na versão primitiva do Código, disposição autónoma, na Parte Especial, correspondente à deste último artigo.
Quanto ao n.º 2, trata-se de normativo paralelo ao do art. 132 para a punição do crime de homicídio qualificado.
Como se anota no preâmbulo do citado DL n.º 48/95, “Também no domínio dos crimes contra a integridade física optou-se por uma sistemática mais coerente, operando-se uma considerável simplificação: fazer incidir critérios de agravação e de privilégio sobre a base de existência de um crime de ofensa à integridade física simples. De referir ainda a consagração de um tipo de ofensa à integridade física qualificado por circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente, a exemplo do que sucede no homicídio”.
Insere-se este artigo, na preocupação revelada pelo legislador do “reforço da tutela dos bens jurídicos pessoais em confronto com os patrimoniais”.
Isto dito.
Como é sabido, a regra no que toca à promoção do processo penal é a que se contém no art. 48 do CPP:
“O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49 a 52”.
Prevendo-se no art. 49 a legitimidade em procedimento dependente de queixa e no art. 50 a legitimidade em procedimento dependente de acusação particular.
A questão da natureza do crime em causa só se põe porque nada diz o art. 146 do C. Penal a esse respeito.
Julgamos, no entanto, que o crime do citado art. 146 é um crime público, sendo, por isso, irrelevante a desistência de queixa por parte do ofendido.
Neste sentido, decidiu o Ac. da RP de 18 de Outubro de 2000, publicado na CJ Ano XXV, Tomo IV, p. 234, de que foi Relator o Exm.º Desembargador F..... e no qual interviemos como 2.º Adjunto.
Como se considerou, a dado passo, nesse Acórdão:
“....no caso das ofensas corporais, o tipo legal fundamental é o de ofensas à integridade física simples p. e p. pelo art. 143 do C. Penal.
Todavia, (...), não se trata, apenas, de acrescentamento de elementos que agravam a pena; a qualificação do art. 146 do C. Penal “não é determinada por razões de ilicitude ligadas à gravidade do resultado das ofensas, mas antes por razões de agravamento de culpa, derivado da especial censurabilidade e perversidade do agente” - Ac. do STJ de 1/3/2000, in Col. Jur., Acs do STJ, ano VIII, tomo I, p. 219.
Significa isto que ao tipo legal fundamental crime de ofensa à integridade física simples vão-se buscar os seus elementos típicos ofensa no corpo ou na saúde, com todas as suas envolventes; mas, criou-se um tipo novo, resultante do acrescentamento de novos elementos que incide sobre a culpa, e que exigem uma valoração própria e independente a este respeito.
Pelo que se conclui que estamos em face de um tipo autónomo relativamente ao de ofensa à integridade física simples”.
É o que, nos parece, também, intuir-se da citada passagem do preâmbulo do DL n.º 48/95, que reviu o C. Penal.
Assim, nada se dizendo no artigo 146 do C. Penal sobre a natureza do crime, julgamos dever entender-se que o mesmo reveste natureza pública.
A não se entender, deste forma, estar-se-ia, como se ponderou no mesmo Acórdão desta Relação, perante uma contradição do legislador que, na revisão do C. Penal, de 1995, visou, precisamente, o reforço da tutela dos bens jurídicos pessoais.
Tendo-se criado um tipo novo, com a pena agravada, abarcando situações que no anterior Código, eram crimes de natureza pública: v.g. as dos arts. 144, n.º 2 (utilização de meios particularmente perigosos ou insidiosos com três ou mais pessoas, ou quando o meio empregado se traduzisse num crime de perigo comum) e n.º 3 (ofensa contra alguma das pessoas indicadas na então alínea h) do n.º 2 do art. 132); 146 (envenenamento); e 385 (ofensa a funcionário do C. Penal, na redacção dada pelo DL 400/82, de 29 de Setembro, compreender-se-ia mal que o mencionado crime dependesse, agora, de queixa.
Decisão:
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que, não considerando válida a desistência de queixa relativamente ao mencionado crime previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143 e 146, ambos do Código Penal, determine o prosseguimento dos ulteriores termos do processo.
Sem custas.
Porto, 28 de Fevereiro de 2001
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Francisco Marcolino de Jesus
Nazaré de Jesus Lopes Miguel Saraiva