Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
20380/22.6T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
IDENTIDADE DE SUJEITOS
Nº do Documento: RP2024030420380/22.6T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 03/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Interposto recurso com fundamento na ofensa do caso julgado, numa ação de valor inferior ao da alçada do tribunal recorrido, é vedado ao recorrente suscitar outras questões que extravasem esse fundamento.
II - O caso julgado material tem duas funções, distintas mas complementares: uma positiva (“autoridade de caso julgado”) e uma negativa (“exceção do caso julgado”). A “autoridade de caso julgado” pressupõe que a decisão de determinada questão – proferida em ação anterior e que se inscreve, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda – não possa voltar a ser discutida, enquanto a “exceção dilatória do caso julgado”, pressupõe na sua verificação o confronto de duas ações – uma delas com decisão transitada – e uma tríplice identidade entre ambas: de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.
III - A identidade de sujeitos, imposta pelo n.º 2 do artigo 581 do CPC, ainda que se não confunda com a identidade física ou nominal – pois abrange a identidade sob o ponto de vista da qualidade jurídica – refere-se à eficácia material (no caso de caso julgado material) do objeto processual. Abrange os titulares do direito ou bem litigioso que sejam partes na causa, seja individualmente ou “em litisconsórcio necessário – como, ainda, os seus transmissários ou sucessores” posteriores e nem sequer os casos de litisconsórcio voluntário, salvo se unitário.
IV - O condómino embargante não tem a mesma identidade, ainda que do ponto de vista material, do outro condómino (uma sociedade) que embargou em execução anterior.
(da responsabilidade do relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 20380/22.6T8PRT-A.P1

Recorrente – Condomínio ...

Recorrido – AA

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Mendes Coelho e Maria Fernanda Almeida.

Acordam na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório

AA deduziu os presentes embargos de executado, opondo-se à execução sumária que contra si move Condomínio ..., a qual tem por base atas da assembleia de condóminos, pedindo, inerentemente, a extinção da execução, mas formulando o seguinte conjunto de pedidos: “a) Ser o documento 3 junto com Requerimento Executivo, declarado não constitutivo de Título Executivo, por não reunir os requisitos legais para ser considerado como tal e, consequentemente, deverá a presente Execução ser extinta, por ausência de Título Executivo bastante, ao abrigo do disposto n.º 5 do artigo 10.º e do artigo 703.º ambos do Código de Processo Civil; b) Caso assim não se entenda, deverá ser declarado improcedente o peticionado pelo Exequente, julgando-se procedente, por provada, a exceção extintiva por reconhecimento do contracrédito que o Executado detém sobre o Exequente que ultrapassa o valor peticionado por este, com as devidas consequências legais; c) Deverá ainda ser declarado improcedente o valor peticionado pelo Exequente a título de contribuições referentes ao período entre Outubro a Dezembro de 2019 e Janeiro a Junho de 2020, julgando-se procedente, por provada, a exceção extintiva por reconhecimento do pagamento do valor de €997,70 (novecentos e setenta e sete euros e setenta cêntimos) pelo Executado ao Exequente, com as devidas consequências legais; d) Ser reconhecido o pagamento efetuado pelo Executado ao Exequente referente às contribuições relativas aos meses de Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro do ano de 2022, extinguindo-se a execução nessa parte, com as devidas consequências legais; e) Deve ser declarado improcedente o pedido referente à quota extra no valor de 500,00€ a título de penalização, por legalmente inadmissível”.

Para tanto alegou, ora em apertada síntese, que os documentos dados à execução não são exequíveis; que pretende compensar um crédito que alega ter contra o exequente; que a peticionada dívida relativa à anterior administração não é devida, não só por não estar concretizada, mas porque foi paga; que já efetuou o pagamento de todas as quotas desde julho de 2021 até março de 2023 e que não é exigível a quota extra no valor de 500,00€ a título de penalização, por legalmente inadmissível.

Recebidos os embargos, o exequente contestou. Pugnou pela total improcedência dos embargos, juntando mais atas que em seu entender complementam os títulos dados à execução e, assim, permitem a exequibilidade da totalidade dos valores pedidos. Impugnou os pagamentos, exceto os que já ocorrerem na pendência da execução, que reconhece; impugnou a factualidade alegada quanto à compensação e defendeu a exigibilidade e legalidade de todos os montantes pedidos.

Em sede de saneador, a 7.06.23, o tribunal fixou o valor da causa (3.200,86€) e “Uma vez que o valor da ação não excede metade da alçada da Relação, que não se levanta nos autos nenhuma questão de facto que esteja dependente da produção de prova, e que as questões a apreciar foram já debatidas nos articulados, contêm estes já todos os elementos que permitem conhecer do seu mérito, mostrando-se desnecessária a realização de audiência prévia – arts. 597, c) e 595, n.º 1 b) do Código de Processo Civil”, apreciou de imediato o mérito dos embargos.

Fixando a matéria de facto que se sintetiza [1. A aquisição da fração autónoma designada pelas letras "BN” correspondente a um quarto andar, no Bloco C, destinado a habitação, com entrada pelo n.º ...50, da Av. ..., em Vila do Conde, tipo T4 , terraço, varanda e uma garagem identificada com a letra “G-DOIS” (...) mostra-se inscrita a favor do embargante, no estado de divorciado, por compra, mediante AP. ...08 de 2018/03/16. 2. No dia 21 de janeiro de 2021 reuniu-se a assembleia de condóminos do prédio constituído em propriedade horizontal em que se integra a fração, tendo deliberado sobre a seguinte ordem de trabalhos: (...) 3. Relativamente ao ponto 1.º da ordem de trabalhos, foi decidido na parte relevante: (...) 4. Relativamente ao ponto 3.º da ordem de trabalhos, foi deliberado, com relevo: (...) 5. No ponto 4.º da ordem de trabalhos, com relevo, foi aprovado o seguinte: (...) 6. No dia 14.06.19 reuniu-se a assembleia de condóminos do aludido prédio descrito, tendo deliberado, para além do mais, aprovar as quotas de condomínio referentes ao período entre abril de 2019 a fevereiro de 2020, tendo por base o orçamento aí aprovado, no valor global de 22.171,95€, nos termos constantes do documento n.º 1 junto à contestação, que aqui se dão por integrados. 7. No dia 3 de julho de 2021, reuniu-se a assembleia de condóminos do aludido prédio descrito em Assembleia Extraordinária e porque a anterior administração de condomínio não prestou contas dos anos transatos, ficou deliberado manter-se o orçamento aprovado a 14 de junho de 2019 e ainda: «Ao valor que for lançado a todos os condóminos, deve ser feito o respetivo acerto, devem ser descontados os valores dos quais for feito prova de já terem sido pagos à anterior administração, cobrando assim a estes, somente os valores que se encontrarem pendentes para pagamento. Para o efeito, devem os condóminos apresentar, recibos dos valores já pagos, comprovativos de pagamento, cópias de cheque dos pagamentos ou comprovativos de transferências de pagamentos efetuados. 4 Entrega por cada um dos condóminos à Mesa da Assembleia dos comprovativos do pagamento ou recibos da Idealcond nos anos de 2019, 2020 e 2021: Foram entregues pelas frações (...) comprovativos dos valores pagos para que lhes sejam feitas as respetivas correções nos valores a pagar, devem os demais condóminos logo que lhes seja possível fazer chegar estes documentos por email à nova administração...» 8. No dia 28.11.2022, o Embargante procedeu ao pagamento do montante de 586,02€] o tribunal veio a decidir julgar procedentes os embargos e, consequentemente, determinou a extinção da execução.

Com síntese, transcrevemos e sublinhamos a fundamentação que, essencialmente, levou à procedência dos embargos. Ficou dito: “(...) Temos agora um novo artigo 6.º, alterado pela lei 8/2022 que que dispõe (...) A primeira e talvez a mais importante observação a fazer decorre do fato de estarmos, salvo melhor opinião, perante uma lei interpretativa - artigo 13.º do Código Civil - devendo entender-se que o legislador, conhecedor da controvérsia jurisprudencial gerada pela redação inicial do artigo 6.º, no 1 do Decreto-lei 268/94 tomou posição quanto às questões que quanto à mesma haviam sido suscitadas. O facto de estarmos perante uma lei interpretativa tem enorme relevância atendendo aos possíveis efeitos retroativos, ficando salvaguardados apenas os efeitos já produzidos pelo cumprimento das obrigações, pelo caso julgado, pela transação ou atos de natureza análoga - artigo 13.º número 1 do Código Civil. Ficou agora claro que só constitui título executivo a ata que tiver deliberado sobre as contribuições a pagar, ou seja, a que tiver aprovado o orçamento anual ou extraordinário e fixado o montante anual a pagar por cada condomínio. Por isso não será permitida a interpretação no sentido de ser de atribuir força executiva àquela ata que, por um condómino não ter pago as contribuições que respeitavam se deliberou sobre o valor da sua dívida e encarregou o administrador do proceder à cobrança judicial, nem sequer àquela em que o montante a pagar possa ser obtido por mera operação aritmética com recurso à permilagem[1]. O valor a pagar por cada condómino terá que constar da respetiva a e também deverá entender-se que o prazo de pagamento deverá constar da ata da reunião em cuja assembleia tenha sido aprovada despesa. Não há dúvidas que, sendo as despesas aprovadas em sede de assembleia de condóminos e notificado o condómino do seu teor, sem impugnar as deliberações deve entender-se que conformou-se com os valores apurados. Nenhuma das atas juntas – nem com o requerimento executivo, nem sequer com a contestação – contém os identificados elementos. Nenhuma das atas diz que montante é que, anual ou mensalmente, o embargante tem que pagar. (...) Repete-se que não consta das atas juntas aos autos qualquer deliberação sobre o montante das comparticipações devidas ao condomínio, pelo executado, nem a data do seu vencimento, muito menos a que vem peticionada. É impossível face aos documentos juntos saber que montantes caberia ao proprietário da dita fração pagar, cujo valor não é assim sequer verificável. (...) Em conclusão, os títulos dados à execução mostram-se manifestamente despidos de força executiva, o que leva, sem necessidade de mais considerações, à procedência dos embargos, tornando desnecessária a apreciação das restantes questões invocadas”.

II – Do recurso

Inconformado, o exequente veio apelar. Pretendendo a improcedência dos embargos e o prosseguimento da execução, formula as seguintes Conclusões:

- A decisão de que se recorre apesar de se pronunciar sobre os requisitos de exequibilidade do título dado à execução, profere uma decisão de mérito que acarreta a extinção da execução de que os embargos correm por apenso.

- Decidida determinada questão e transitada em julgado a decisão, isto é, não admitindo aquela já recurso ordinário, essa decisão torna-se inatacável, promovendo-se, assim, a justiça, a segurança jurídica, a paz social, mas também o prestígio dos tribunais.

- Se se pretende com o instituto do caso julgado a defesa do prestígio dos tribunais e uma razão de certeza ou segurança jurídica, mal se compreende que uma sentença transitada em julgado, de embargos de executado que os julga improcedentes por considerar estarem reunidos todos os requisitos para que o mesmo título executivo complementado como foi com os mesmos restantes títulos, origine duas situações diferentes, havendo apenas divergência quanto às pessoas físicas dos Executados/Embargantes.

- A exceção de autoridade de caso julgado, não requer a tríplice identidade a que alude o n.º 1 do artigo 581 do CPC, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado.

- A 9 de março de 2023, no âmbito da Acção Executiva n.º 18599/22.9T8PRT-A, que correu termos no Juiz 7 dos Juízos de Execução do Porto, transitada já em julgado em 21.04.2023, decidiu-se que o mesmo título executivo (Ata n.º 1 de 21 de janeiro de 2021, complementado que foi com as mesmas Atas n.º 24 de 14 de junho de 2019 e Ata de 3 de julho de 2021), dado à execução na Acção Executiva 20380/22.6T8PRT, de cuja decisão de Embargos se recorre, reunia todos os requisitos de exequibilidade, julgando aqueles embargos improcedentes (doc. 1 e 2).

- Temos assim, que em duas ações executivas diferentes, que têm como base os mesmos títulos executivos, em que se peticionam quotas referentes aos períodos entre 2020 e 2023, em que o exequente é o mesmo condomínio e em que em ambas os executados assumem a mesma relação jurídica relacionada com as partes comuns do edifício (condóminos/comproprietários), têm soluções diferentes consoante o Juiz a quem são distribuídas.

- Decidindo de forma diferente da sentença proferida no âmbito da Acção Executiva n.º 18599/22.9T8PRT-A, que correu termos no Juiz 7 dos Juízos de Execução do Porto, transitada já em julgado em 21.04.2023 mal andou o saneador-sentença recorrido.

- A título subsidiário deve entender-se estarem reunidas as condições para se verificar a exceção de caso julgado.

- O título executivo é condição indispensável para o exercício da ação executiva, mas não constitui a causa de pedir. Esta é a relação substantiva que está na base da sua emissão.

- Da ata decorre que a execução tem como causa de pedir o não pagamento dos montantes das contribuições em dívida ao condomínio pelos ora executados.

- Daí que a identidade de causa de pedir se encontra verificada em ambas as sentenças.

- Em ambos os embargos, é inequívoco que existe identidade de sujeitos, uma vez que assumem a mesma posição jurídica (relação credor-devedor).

- Quanto ao pedido existe identidade do mesmo quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

- No caso presente, e tendo em conta o objeto do presente recurso, o pedido consiste na extinção da instância executiva, comum em ambos os embargos e respetivas sentenças.

O embargante respondeu. Sustentando a improcedência da apelação, veio a concluir, em síntese:

- Não assiste razão ao recorrente, pois não poderia ter sido outra a decisão do tribunal.

- Para que a Ata n.º 1 – dada como título executivo à Execução - pudesse constituir título executivo sobre todos os valores constantes da mesma, sempre seria necessário que da mesma constasse, de forma bem discriminada, o montante da quota-parte das contribuições que, alegadamente, cabe ao recorrido, ali condómino faltoso pagar.

- Pela análise do próprio requerimento Executivo e pelo conteúdo/teor da Ata n.º 1 junta com o mesmo, facilmente se conclui que esta não respeita os requisitos legais necessários para que se possa considerar como título executivo.

- O recorrente vem tentar uma solução de salvação, usando um expediente – inédito, diga-se – de comparar decisões judiciais proferidas em processos executivos diferentes, camuflada de caso julgado, nas suas vertentes de autoridade e de exceção.

- Tem-se entendido, de facto, que a autoridade de caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o artigo 498 do C.P.C., pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida.  

- Todavia, a autoridade do caso julgado não pode impedir que seja proferida uma decisão posterior, diferente de uma outra decisão anterior (proferida num outro processo), num processo em que nem sequer há tríplice identidade, se essa diferença se basear num critério concreto de validade formal (neste caso que nos ocupa de incumprimento dos requisitos legais de uma ata de condomínio dada à execução) e, como tal, mais justa.

- No caso em apreço não se verifica qualquer uma das exceções sobre o caso julgado invocadas, relativamente à dita sentença proferida no âmbito da Ação Executiva n.º 18599/22.9T8PRT-A, a que o recorrente faz alusão – e junta com as mesmas - pois que não se verifica a tríplice identidade exigida pela lei, desde logo quanto aos sujeitos envolvidos, nem mesmo, e o mais importante, quanto ao critério de justiça formal.

- A sentença da ação n.º 18599/22.9T8PRT-A não pode aqui ter qualquer respaldo em termos de exceção de caso julgado, porque não se coaduna com o precisos termos vertidos no artigo 619 do CPC, segundo o qual: “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites (...)”. - O caso julgado que releva para efeito da exceção – e quanto a isso não há dúvidas - é o caso julgado material, ou seja, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, quando se verifique a instauração de nova ação com a tríplice identidade quanto ao pedido, causa de pedir e sujeitos processuais.

O recurso veio a ser recebido “embora com dúvidas”, e os autos subiram a este Tribunal da Relação. Foram dispensados os Vistos e nada se observa que obste ao conhecimento do mérito da apelação, ainda que restringido ao objeto específico que justifica a recorribilidade.

O objeto do recurso, atentas as conclusões para tanto relevantes, apresentadas pelo apelante, traduz-se em saber se a sentença proferida ofendeu o caso julgado.

III – Fundamentação

III.I – Fundamentação de facto

Os factos levados ao antecedente relatório dão-se aqui por reproduzidos e a eles acrescentamos, para cabal esclarecimento:

- Nos embargos 18599/22.9T8PRT-A, apensos à execução 1899/22.9T8PRT, foi embargante a sociedade A..., Lda. e embargada o ora apelante, sendo a embargante proprietária das frações “BG” e “N” do mesmo Condomínio. Nesses embargos, a sociedade executada (embargante) peticionou, em sede de petição de embargos: “A - Deve reconhecer-se e declarar-se a invalidade ou nulidade/inexistência do título executivo bastante para a presente execução, extinguindo-se a execução. Sem prescindir, B - Deve declarar-se que a dívida exequenda reclamada foi extinta por compensação. Sem prescindir, C - Deve reconhecer-se à embargante o direito de compensar o seu crédito no valor de €5.093,00 nos créditos correspondentes às quotas devidas desde julho de 2021, D - Deve sempre extinguir-se a execução, por inexistência de qualquer divida exequenda, certa, líquida e exigível, que não foi sequer devidamente alegada pelo Exequente, que justifique a sua pretensão creditícia”.

- Foi proferido saneador sentença nos embargos vindos de referir, a 9.03.23, tendo os mesmo sido julgados improcedentes. Considerou-se na respetiva decisão, além do mais e ora com síntese que “(...) quanto à questão da exequibilidade da ata quanto às comparticipações condominiais peticionadas do ano de 2021, se é verdade que a ata inicialmente apresentada à execução (com data correta de 2022) não se mostrava suficiente para o efeito, pois limitava-se a liquidar um valor já vencido anteriormente, o certo é que o exequente complementou o título executivo inicial com as atas de onde resulta a aprovação do orçamento e das inerentes comparticipações condominiais para o período de 2021, conforme atas referidas nos factos provados. E, na verdade, ao contrário do referido pela embargante, nada obsta que o exequente complemente o título executivo inicial em sede de embargos de executado, seja por iniciativa própria, seja, caso não o faça, mediante convite do tribunal, tanto mais que, como resulta dos arts. 726.º, n.º 4, e 734.º do NCPC, em caso de mera insuficiência do título executivo, o tribunal deve convidar o exequente a colmatar a omissão – quanto à exigência da prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, mesmo que em sede de embargos de executado, cfr., entre outros, Ac RG de 21.11.2013 (proc. 6017/10.0TBBRG, em dgsi.pt). Quanto à questão de as quotas mencionadas como aprovadas não se acharem vencidas à data da deliberação, também improcede a pretensão da embargante. Na verdade, seguindo a argumentação jurídica acima exposta, a ata apenas configura título executivo quanto às prestações condominiais aprovadas como a pagar para o futuro, o que implica, naturalmente, que as mesmas ainda não estejam vencidas à data da deliberação (...)”.

III.II – Fundamentação de Direito

Ainda sobre a admissão do recurso

Como se referiu em despacho do relator, é de admitir o presente recurso de apelação, não obstante o valor da causa, uma vez que foi invocado, como fundamento do mesmo, a ofensa do caso julgado. Efetivamente, e repetimo-nos, a apreciação relativa à existência ou não de caso julgado constitui o objeto e mérito do recurso, não se confundindo com a sua admissibilidade.

Importa ter presente, no entanto que, por ser assim, “o recurso deve ser apreciado, mas tendo apenas como objeto a questão da alegada ofensa do caso julgado” – Acórdão do STJ de 25.01.24, Relator, Conselheiro João Cura Mariano, Processo n.º 22640/18 (dgsi). No mesmo sentido, na mesma data, e do mesmo Tribunal Superior refere-se no acórdão proferido no Processo n.º 3178/20[2] que o recurso admitido com fundamento da ofensa do caso julgado, no plano do seu objeto, “restringe-se à apreciação da ofensa do caso julgado, não sendo conhecidas outras questões”, e a admissão do recurso “não implica o reconhecimento de que existe ofensa de caso julgado”[3].

Exceção e autoridade de caso julgado

Como decorre de quanto se deixou já dito, o fundamento e o objeto da presente apelação traduz-se em saber se a decisão proferida ofendeu o caso julgado (formado pela decisão proferida em ação anterior, na qual o ora apelante era, como aqui, exequente).

Com a síntese própria do seu sumário, citamos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.12.2017 [Relator, Conselheiro Pedro Lima Gonçalves, Processo n.º 1565/15.8T8 VFR-A.P1.S1, dgsi]: “I - A lei processual civil define o caso julgado a partir da preclusão dos meios de impugnação da decisão: o caso julgado traduz-se na insuscetibilidade de impugnação de uma decisão, decorrente do respetivo trânsito em julgado – arts. 619.º, n.º 1, e 628.º, ambos do CPC. II - Ao caso julgado material são atribuídas duas funções que, embora distintas, se complementam: uma função positiva (“autoridade do caso julgado”) e uma função negativa (“exceção do caso julgado”). III - A função positiva opera por via de “autoridade de caso julgado”, que pressupõe que a decisão de determinada questão – proferida em ação anterior e que se inscreve, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda – não possa voltar a ser discutida. IV - A função negativa opera por via da “exceção dilatória do caso julgado”, pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir”.

A sentença transita em julgado logo que deixa de ser suscetível de recurso ordinário ou de reclamação e, além de produzir o efeito próprio de caso julgado formal dentro do próprio processo, sempre que se traduz numa decisão de mérito, produz efeito fora do próprio processo onde foi proferida, o efeito, precisamente, de caso julgado material, “distinguindo-se, neste, o efeito negativo da inadmissibilidade duma segunda ação (proibição de repetição: exceção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade do caso julgado)”[4].

Pode, pois, dizer-se que o caso julgado, o seu objeto e limites, em qualquer das suas duas vertentes, exceção ou autoridade, pressupõe o conhecimento de mérito, mas deve acrescentar-se que aqueles, na oposição (embargos) à execução, não se mostram lineares ou consensuais. Tenha-se presente, desde logo, que o efeito primeiro, “a eficácia da ação de oposição à execução é a extinção de uma relação jurídica processual”[5] e, por outro lado, a eficácia do caso julgado (material) incide nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, pois, como refere Rui Pinto[6], à questão “de um eventual caso julgado material da oposição à execução” a resposta “deve fundar-se na regra de que o caso julgado tem por objeto a parte dispositiva – i.e., a resposta de procedência ou de improcedência ao pedido do autor – de uma decisão (cf. o artigo 621.º), e não os seus fundamentos, tomados por si mesmos, de modo autónomo”.

Sem embargo, veio o (atual) n.º 6 do artigo732 do CPC[7] a dispor que a decisão de mérito proferida nos embargos à execução, para além dos efeitos sobre a instância executiva, “constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda”.

Interpretando o preceito, refere Rui Pinto, na obra que temos vindo a citar[8]: “(...) no direito em vigor a oposição à execução é uma ação declarativa constitutiva processual e cumulativamente, de modo acessório e eventual, uma ação de simples apreciação positiva da existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda. Não deixamos de notar, por outro lado, que a simples apreciação da dívida com valor de caso julgado material tem lugar nos “termos gerais”, segundo o artigo 732.º n.º 5[9]. Este detalhe comporta duas consequências. Assim, em primeiro lugar, a decisão com valor de caso julgado material sobre a dívida apenas pode ser proferida a pedido, in casu, do executado (...). Em segundo lugar, é também pelo pedido do executado que o tribunal determinará o sentido do teor da decisão. Assim, se o fundamento atinente à obrigação for procedente, será decretada a simples apreciação negativa da dívida ou das suas condições; mas se o pedido for julgado improcedente não se faz caso julgado da existência da obrigação ou das suas condições – i.e., não é prolatada uma simples apreciação positiva da obrigação, pela simples razão de que numa ação declarativa o julgamento da improcedência do pedido do autor, não equivale a um inverso julgamento com valor de caso julgado da situação material oposta”.

Do que acaba de ser dito resulta, desde logo, e salvo melhor saber, a falta de razão da recorrente, quando invoca o efeito de caso julgado de uma decisão de improcedência dos embargos.

Note-se, por um lado, que “Julgados improcedentes embargos opostos a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior, vir invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) nos embargos que opôs à anterior execução e, a partir daqui, obter a restituição do pagamento que, no âmbito da anterior execução, haja efetuado ao ali exequente”[10] e, relevantemente, apenas nos casos em que haja pluralidade de executados (o que aqui não sucede) se discute se “o caso julgado, formal ou material, vincula os executados que não foram parte nos embargos”, sendo de admitir o aproveitamento aos executados que não embargaram em caso de litisconsórcio necessário, mas nos “casos de litisconsórcio voluntário, o litisconsórcio apenas tem efeitos sobre os executados embargantes”[11].

De algum modo descurando as particularidades próprias dos embargos à execução, a apelante sustenta, fundando-se na caraterização do instituto do caso julgado, que o mesmo acorre no caso presente, enquanto exceção ou, pelo menos, autoridade de caso julgado.

Sem razão, porém. Efetivamente, “nenhum efeito de caso julgado (ou mesmo de autoridade de caso julgado) pode ser extraído de uma decisão relativamente a sujeitos que não tiveram qualquer intervenção na ação em que foi proferida nem se integram na esfera da identidade subjetiva definida pelo art. 581.º, n.º 2[12] (STJ 30-11-21, 697/10, STJ 26-11-20, 7597/15)”[13].

Ora, no caso presente, ainda que estivéssemos, no cotejo dos dois embargos à execução, perante causas de pedir e pedidos semelhantes, o que pode aceitar-se sem agora cuidar de maior aprofundamento, e na medida em que se distingue a causa de pedir do título executivo, e a pretensão primeira em ambas as ações (extinção da execução) se equivale, não há identidade de sujeitos, condição necessária na exceção do caso julgado e não prescindível na autoridade de caso julgado.

A apelante, no entanto, sustenta a identidade de sujeitos, defendendo que ambos os executados assumem a “mesma relação jurídica”. Não é assim, porém, pois a relação jurídica estabelecida entre o condómino A e o condomínio não é a mesma que a estabelecida entre o condómino B e o condomínio, como nos parece evidente. Mesma relação jurídica e idêntica relação jurídica são realidade diferentes e tanto assim é que a apelante instaurou duas execuções distintas e o condómino B não responde pela dívida do condómino A, ou vice-versa. A aceitar-se o entendimento da apelante, todas as dívidas dos diversos condóminos seriam da responsabilidade de todos e qualquer um, o que não pode aceitar-se.

Aliás, a concordar-se com o entendimento da recorrente em relação ao pretendido efeito de caso julgado, a primeira decisão dos embargos (improcedentes, note-se) funcionaria como – passe a comparação – uma espécie de sentença uniformizadora de jurisprudência, cuja interpretação sobre a validade do título executivo (sobre a não invalidade, note-se) se repercutiria nas decisões posteriores dos embargos interpostos por qualquer outro condómino.

Importa ter presente que a identidade de sujeitos, imposta pelo n.º 2 do artigo 581 do CPC, ainda que se não confunda com a identidade física ou nominal – pois abrange a identidade sob o ponto de vista da qualidade jurídica – refere-se à eficácia material (no caso de caso julgado material) do objeto processual. Abrange os titulares do direito ou bem litigioso que sejam partes na causa, seja individualmente ou “em litisconsórcio necessário – como, ainda, os seus transmissários ou sucessores”[14] posteriores e nem sequer os casos de litisconsórcio voluntário, salvo se unitário.

No caso presente – já se adiantou – o condómino aqui embargante não tem a mesma identidade, ainda que do ponto de vista material, da sociedade que embargou na ação anterior.

Em suma, não poderiam os embargos improcedentes ter efeito de caso julgado material e nunca poderiam tê-lo, seja na vertente de exceção, fosse na de autoridade, relativamente a um condómino que não esteve naquela ação nem é titular, inicial ou por transmissão, do direito além discutido.

Por tudo, improcede o recurso interposto pela apelante, no qual estava em causa – apenas – a alegada ofensa do caso julgado.

Atento o decaimento, a apelante é responsável pelo pagamento das custas.

IV – Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, concluindo-se que a sentença recorrida não ofendeu o caso julgado e, consequentemente, confirma-se.

Custas pela apelante.




Porto, 4.03.2024 .
José Eusébio Almeida
Mendes Coelho
Fernanda Almeida
___________
[1] Mantemos o negrito constante da sentença.
[2] Relatora, Conselheira Catarina Serra, dgsi.
[3] Citando outra e abundante jurisprudência, bem como doutrina, refere, no mesmo sentido, António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição Atualizada, Almedina, 2022, nota 80, a págs. 54/55: “Na jurisprudência revela-se a estabilização do entendimento segundo o qual, uma vez interposto recurso com fundamento em violação do caso julgado, em ação cujo valor é inferior ao da alçada do tribunal a quo, é vedado ao recorrente suscitar outras questões que extravasem esse fundamento”.
[4] José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 4.ª Edição (Reimpressão), Almedina, 2021, pág. 749.
[5] Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL, 2023 (Reimpressão), pág. 372.
[6] Ob. cit., pág. 432.
[7] Correspondente ao anterior n.º 5 do mesmo preceito, antes da alteração decorrente da Lei n.º 117/19, de 13 de setembro. O autor que temos citado (Rui Pinto) refere-se, aliás, ao artigo 732, n.º 5, porquanto a obra citada (A Ação Executiva), sendo reimpressão de 2023, é originalmente de 2018.
[8] Págs. 434/345.
[9] Atual 732, n.º 6 do CPC, como supra já referimos.
[10] Citamos o sumariado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.05.2023 [Relator, Conselheiro António Barateiro Martins, Processo n.º 1704/21, dgsi].
[11] António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, Almedina, 2022, pág. 93, anotação 9.
[12] “Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”. Comentando o preceito, António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, referem, além do mais, os casos de intervenção formal no processo, os de sucessão mortis causa, a extensão a terceiros, como exemplifica a situação prevista no n.º 3 do artigo 263 do CPC e quando os sujeitos “são portadores do mesmo interesse substancial quanto à relação jurídica em causa” – Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, 2022, págs. 712/713, anotações 2, 3 e 4.
[13] António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil... cit., pág. 799, anotação 6. Acrescentam os autores, na mesma anotação: “Apesar desta evidência são ainda frequentes as decisões em que se aplicam os efeitos da autoridade de caso julgado em situações de falta de identidade subjetiva” (sublinhado nosso). Os mesmos autores, na anotação 10 ao mesmo preceito (pág. 800) referem que “respeitada a identidade de sujeitos (...) a autoridade de caso julgado decorrente de decisão proferida em anterior ação pode funcionar independentemente da verificação do restante condicionalismo de que depende a exceção de caso julgado (art. 581.º), em situações em que a questão anteriormente decidida não possa voltar a ser discutida entre os mesmo sujeitos” (sublinhados nossos).
[14] Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar Online, outubro/2018, Págs. 10/11.