Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5816/21.1T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
REPARAÇÃO DE VEÍCULO
ONEROSIDADE DA REPARAÇÃO
Nº do Documento: RP202401165816/21.1T8MAI.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em princípio deve optar-se pela reparação do veículo, caso seja viável, mesmo que o custo seja superior ao valor comercial do mesmo, na medida em que interessa, na reparação integral do dano, atender à utilização que era dada ao mesmo pelo lesado na satisfação das suas necessidades.
I - Assim, a jurisprudência tem, maioritariamente, entendido que o critério orientador adoptado quanto ao valor de substituição é o valor patrimonial e não o valor comercial ou venal.
III - Ao autor cabia a prova do quantum da reparação, restaurando in natura o veículo danificado
IV - À Ré cabia a prova de que tal montante era excessivamente oneroso – não apenas oneroso para si própria - mas que era flagrantemente desproporcionado o custo que ia suportar em relação ao interesse do lesado na reparação.
V - Esta excessividade há-de aferir-se, naturalmente, pela diferença entre dois pólos: um deles é o preço da reparação e o outro valor a ter em conta é aquele a que chamaremos o valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 5816/21.1T8MAI.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível da Maia - Juiz 4


Relatora: Juíza Desembargadora Ana Lucinda Cabral
1º Adjunta: Juiz Desembargador Alberto Taveira
2º Adjunto: Juiz Desembargador Fernando Vilares



Acordam no Tribunal da Relação do Porto




I – Relatório
AA, residente na Rua ..., Urbanização ..., Maia, intentou a presente acção declarativa de condenação contra A..., S.A., pessoa colectiva nº ...58, com sede ..., Lisboa, actualmente designada por A..., S.A – Sucursal em Portugal, pedindo a sua condenação no pagamento:
a) A quantia de 21.070,43€ (vinte e um mil e setenta euros e quarenta e três cêntimos) para a reparação do veículo;
b) A quantia de 811,68 € (oitocentos e onze euros e sessenta e oito cêntimos) para a reparação do telemóvel;
c) A quantia de 9.338,16€ (nove mil, trezentos e trinta e oito euros e dezasseis cêntimos) a título de danos emergentes da paralisação do veículo;
d) A quantia de 2.910,00€ (dois mil novecentos e dez euros) a título de indemnização pela privação do uso;
e) A quantia de 2.441,55€ (dois mil quatrocentos e quarenta e um euros e cinquenta e cinco cêntimos) a título de despesas pelo parqueamento do veículo;
f) A quantia 1.787,51€ (mil setecentos e oitenta e sete euros e cinquenta e um cêntimos) a título de juros de mora contados sobre cada uma das quantias e desde 08/10/2020 até à presente data, acrescendo os juros de mora à taxa legal em vigor, vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto, em síntese, que no dia 8.10.2022, na Via ..., Zona Industrial da Maia, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo de matrícula ..-PN-.., sua propriedade, e o veículo de matrícula ..-QT-.., segurado na ré, e cuja responsabilidade se deveu ao condutor deste, conforme a ré reconheceu. Mais alegou que como consequência do sinistro o veículo sofreu danos materiais, cuja reparação ascende a 21.070,43€ e teve de ser rebocado para a oficina, onde se mantém, com um custo diário de parqueamento. Mais aduziu que por força do embate o seu telemóvel ficou danificado e que desde a data do acidente se encontra privada do veículo suportando custos com o aluguer de um veículo até Janeiro de 2021 e desde então sofrendo os incómodos inerentes a tal privação.


Regularmente citada, a ré contestou aceitando a versão do acidente e a responsabilidade pela reparação dos danos. Alegou, contudo, que atendendo ao valor venal do veículo, de 14.000,00 € e ao valor do salvado de 2.120,00 €, o valor da reparação ultrapassa os 120% daquele valor venal pelo que a indemnização deve ser satisfeita em dinheiro correspondendo ao valor venal do veículo deduzido o valor do salvado, conforme propôs à autora. No mais impugnou os factos alegados, bem como a obrigação de reparar os demais danos invocados em face da proposta de indemnização que a Autora não aceitou.


Pronunciou-se a autora quanto ao teor da contestação impugnando os factos alegados e concluindo como na petição inicial.


Dispensada a realização de audiência prévia foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio, enunciados os temas de prova e admitidos os meios de prova.


A audiência de discussão e julgamento realizou-se com estrita observância do formalismo legal.


Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente e em consequência condeno a Ré a pagar à Autora a quantia de 33.318,59 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, á taxa legal de 4%, desde 3.01.2022 até efectivo e integral pagamento.”


A ré, A..., S.A. –
SUCURSAL EM PORTUGAL, interpôs recurso, concluindo:
1. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença proferida a fls.__, no âmbito do processo supra identificado, a qual julgou parcialmente procedente a ação apresentada pela Autora, condenando, em consequência, a Ré, ora Recorrente, ao pagamento à Autora do valor global de 33.318,59€ (trinta e três mil trezentos e dezoito euros e cinquenta e nove cêntimos) – 21.070,43€, a título de reparação do veículo ..-PN-.., 9.338,16€, a título de danos emergentes da paralisação do veículo e 2.910,00€, a título de indemnização pela privação do uso do mesmo -, com o qual a Ré, ora Recorrente, salvo o devido respeito, não se poderá conformar.
2. As presentes Alegações de recurso visam alterar quer a matéria de facto como a de direito, pretendendo a ora Recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos previstos no artigo 640.º, n.º 1, do C.P.C.; e pugnar pela alteração do teor da Sentença proferida com base na factualidade dada como provada nos presentes autos.
3. Com efeito, face àquela que foi a prova produzida, a ora Recorrente considera incorretamente julgado o ponto 12, na medida em que dos elementos probatórios constantes dos presentes autos, não é possível, salvo o devido respeito, concluir pela procedência do entendimento seguido pelo douto Tribunal a quo.
4. Efetivamente, não poderá ser dado como provado o supra referido ponto 12, atendendo a toda a prova carreada para os presentes autos.
5. O douto Tribunal a quo considerou que ficou demonstrado que o valor de mercado de um veículo de características semelhantes ao da Autora, aqui Recorrida, ascende a, pelo menos, 17.000,00€.
6. Sucede que, o douto Tribunal a quo fundamentou a sua decisão, única e exclusivamente, nos documentos juntos aos autos pela Autora na sua Petição Inicial, sob o n.º 10 a 12, conforme se constata pelo teor da Sentença.
7. Tendo o Tribunal a quo feito tábua rasa da posição trazida aos autos pela ora Recorrente, a qual se encontra probatoriamente suportada pelo documento n.º 5 junto aos autos na Contestação e, em especial, o depoimento da testemunha e perito-avaliador BB.
Ora, vejamos,
8. Em bom rigor, de acordo com a documentação supra referida, havia quatro veículos, no total, com características semelhantes ao veículo PN, cujo valor de mercado era de 13.400,00€, 14.000,00€, 16.987,00€ e 16.500,00€.
9. Salvo o devido respeito, deveria o Tribunal a quo ter tido em conta todos os valores de mercado apresentados pelas partes, o que não fez!
Em acréscimo,
10. Atente-se, que o Exmo. Senhor Perito BB, em sede de esclarecimentos, explicou, de forma clara, as suas conclusões, nomeadamente que o valor venal do veículo PN deveria ser fixado em 14.000,00€ - conforme depoimento gravado em ficheiro de áudio com a referência Diligencia_5816-21.1T8MAI_2023-06-22_11-28-58.mp3, com início ao minuto 03:53 e fim ao minuto 05:00.
Por conseguinte,
11. Entende a ora Recorrente, salvo o devido respeito, que o douto Tribunal a quo andou mal na forma como valorou, única e exclusivamente, os documentos juntos aos autos com a Petição Inicia sob os n.ºs 10 a 12 e (por não valorar) a prova documental junta aos autos com a Contestação sob o n.º 5 e, em especial,o depoimento do Exmo. Senhor Perito BB.
12. É verdade que, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do C.P.C., o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
13. Ou seja, o Tribunal a quo aprecia livremente as provas ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova. Contudo, a livre apreciação encontra-se sempre subordinada à experiência e prudência do julgador e a uma análise séria e objetiva de toda a factualidade e elementos probatórios apresentados nos autos, não se tratando de uma decisão arbitrária.
14. De facto, o douto Tribunal a quo, salvo o devido respeito, desconsiderou, por completo, a documentação junta aos autos com a Contestação sob o n.º 5 e, bem assim, o depoimento supra indicado.
15. No presente caso, no entendimento da Recorrente, o douto Tribunal a quo não dispunha de elementos probatórios para considerar como provado que o veículo ..-PN-.. tinha, à data do sinistro, valor venal de 17.000,00€.
Cumpre ainda referir o seguinte,
16. Como bem explicita o Tribunal a quo, ainda que o veículo tenha “extras colocados no veículos, nomeadamente as jantes especiais, e a reparação no motor não o valorizam sobremaneira não é menos certo de que aumentam o seu interesse comercial.” (destaque nosso).
17. Daqui se concluiu que, de facto, os extras colocados, a posteriori, pela Recorrida,
não contemplam uma valorização extraordinária do veículo.
18. Novamente, tal foi confirmado pelo depoimento do Exmo. Senhor Perito BB, em sede de esclarecimentos – conforme depoimento gravado em ficheiro de áudio com a referência Diligencia_5816-21.1T8MAI_2023-06-22_11-28- 58.mp3, com início ao minuto 05:45 e fim ao minuto 06:14.
Mais,
19. A própria Autora, aqui Recorrida, confirma que as jantes em apreço nos autos, colocadas no veículo PN, não eram novas – conforme depoimento gravado em ficheiro de áudio com a referência Diligencia_5816-21.1T8MAI_2023-06-22_11- 00-05.mp3, com início ao minuto 10:55 e fim ao minuto 11:08.
20. Ou seja, não só os acessórios extras colocados pela aqui Recorrida não sobrevalorizaram o veículo de sobremaneira, como as jantes em questão nem sequer eram novas aquando da sua colocação!
Isto posto,
21. Ficou por provar, em sede de Audiência de Julgamento, que os extras colocados nos veículos sobrevalorizam o veículo em 3.000,00€!
Face ao exposto,
22. Não entende a ora Recorrente como pôde o douto Tribunal a quo considerar provada a matéria de facto elencada no ponto 12. Da análise da prova documental e testemunhal produzida nos autos, resulta que o douto Tribunal a quo concluiu pela verificação de factos que, na realidade, não poderão ser dados como provados (nomeadamente, o facto n.º 12).
Assim,
23. Entende a ora Recorrente, tendo em conta o supra exposto, que a resposta dada ao facto n.º 12 deverá ser alterada: o quesito 12.º deverá ser dado como Não Provado.
Em consequência,
24. Deverá ser dado como Facto Provado que “O valor de mercado de um veículo de características semelhantes ao da Autora ascende a 14.000,00€”, o que desde já se requer para os devidos e legais efeitos.
25. Uma vez que é esta a posição que se depreende, facilmente, do depoimento do perito BB e, bem assim, da documentação probatória junta aos autos.
26. Por conseguinte, estamos perante um caso de perda total, uma vez que a reparação do veículo (21.070,43€) ultrapassa, largamente, o valor comercial do veículo PN (14.000,00€), tornando-se num encargo excessivamente oneroso e insustentável para a aqui Recorrente de suportar.
De facto,
27. Não foi produzida qualquer prova bastante suficiente e inequívoca sobre a matéria de facto elencada no referido ponto considerado como provado, entende a ora Recorrente que o ponto 12 deverá ser julgado não provado, o que desde já se requer para os devidos e legais efeitos.
Ora, neste seguimento,
28. Não tendo resultado provado, como não resultou, o facto elencado no ponto 12, não poderia a ora Recorrente ter sido condenada nos termos em que foi.
Vejamos, no que concerne à reparação do veículo,
29. Refere a douta Sentença recorrida que estabelece o “artigo 566.º, n.º 1, do Código Civil, a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não for possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”.
30. Sendo que o veículo da Recorrida, foi considerado perda total devido ao facto de o valor da reparação ultrapassar o valor venal deduzido o valor do salvado, tal inviabilizaria a reparação do referido veículo, por conta do artigo 41.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 27 de agosto.
31. Porém, o Tribunal a quo determinou que o princípio da restituição natural é de se aplicar ao presente caso, uma vez que a sua reparação é viável.
Porém, há que ter em conta o seguinte,
32. A reparação do veículo PN não é, de todo, economicamente viável.
33. Aliás, tal foi confirmado pela testemunha CC – conforme depoimento gravado em ficheiro de áudio com a referência Diligencia_5816- 21.1T8MAI_2023-06-22_11-17-10.mp3, com início ao minuto 02:58 e fim ao minuto 03:13.
Isto posto,
34. Perante os factos dados como provados, nomeadamente o valor da reparação e o valor comercial do veículo em causa, estamos diante de uma perda total por conta da sua inviabilidade económica, devendo-se aplicar ao presente caso a alínea c) do artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei em causa.
35. Resulta do exposto que, o veículo PN, tendo um valor de mercado de 14.000,00€, se encontra, inevitavelmente, em situação de perda total, uma vez que o valor da sua reparação ultrapassa em mais de 120% o valor venal da viatura.
Ainda assim,
36. Caso se mantenha fixado o valor venal de 17.000,00€, o que não se admite e por mero dever de patrocínio se equaciona, tal como o douto Tribunal a quo, o valor da reparação continua a ultrapassar em 127,18% do valor venal da viatura – o que consubstancia, sem sombra de dúvidas, uma situação de perda total!
Não obstante,
37. Determina o douto Tribunal a quo que o Decreto-Lei supra citado não tem aplicação no presente caso, uma vez que a Recorrida não aceitou a indemnização proposta pela Recorrente tendo em conta os critérios dispostos no diploma legal.
38. Assim, recorrendo-se às vias judiciais, a determinação da espécie e o quantum da indemnização passa a ser regulado pelas regras gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, nomeadamente o princípio da reparação in natura ou da reparação integral do dano.
39. Deste modo, não aceitou o Tribunal a quo a aplicação da alínea c) do artigo 41.º, n.º 1 do Decreto-Lei em causa, conforme defendido pela ora Recorrente.
Ora,
40. Não se entende, salvo o devido respeito, como é que o Tribunal a quo afasta a inviabilidade de reparação do veículo por não ser excessivamente onerosa para o devedor, aqui Recorrente.
41. De facto, o Tribunal a quo limita-se a utilizar o argumento deduzido da acima, afastando, por completo, a aplicação do Decreto-Lei n.º 291/2007 e, em específico, o artigo 41.º, n.º 1, alínea c).
Porém,
42. Em simultâneo, o Tribunal a quo aplica esse mesmo diploma legal, nomeadamente a alínea b) do n.º 1 do artigo 41.º, a contrario, para demonstrar a viabilidade da reparação do veículo em causa, uma vez que não serão afetadas as suas condições de segurança.
Isto posto,
43. Estamos, notoriamente, perante um caso de contradição do próprio Tribunal a quo, salvo o devido respeito que é muito.
44. Assim, andou mal o Tribunal a quo quando aplicou a contrario o artigo 41.º, n.º 1, alínea b) do Decreto-Lei n.º 291/2007, para demonstrar a viabilidade da reparação do veículo em termos técnicos e, contemporaneamente, afasta a aplicação desse mesmo diploma legal, nomeadamente a alínea c) desse preceito, para demonstrar que há viabilidade de reparação do mesmo em termos económicos, por não se demonstrar excessivamente oneroso para o devedor, aqui Recorrente.
Ou seja,
45. Por um lado, para o Tribunal a quo, em termos económicos de viabilidade de reparação diz que é de se afastar a aplicação do Decreto-Lei; porém, por outro lado, em termos técnicos de viabilidade de reparação já se é de aplicar este diploma legal, ainda que a contrario.
Desta forma,
46. Mantém a Recorrente a posição de que é de se aplicar o disposto no artigo 41.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 291/2007, segundo o qual a reparação do veículo da aqui Recorrida é inviável economicamente para a Recorrente, uma vez que ultrapassa 120% do valor venal do veículo.
47. Tendo em conta este entendimento, não poderia o douto Tribunal a quo ter desconsiderado a indemnização pela perda total e condenar a Ré, ora Recorrente, a pagar o valor correspondente à reparação do veículo in casu e que, espante-se, é bastante superior ao valor venal do referido viatura.
48. Desde logo, porque determina o artigo 566.º, n.º 1, do C.C., que a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural seja excessivamente onerosa para o devedor.
49. Sucede que, o Tribunal a quo, com o devido respeito, ignorou o estabelecido neste preceito e acabou por condenar a Ré, ora Recorrente, no pagamento do valor correspondente à reparação da viatura.
50. O Tribunal a quo considerou, assim, não relevar para o caso a excessiva onerosidade económica referida no artigo supra citado, cuja letra deveria ter sido considerada e não ignorada!
51. De facto, atenta a prova produzida nos autos, resultou claro que a reparação do veículo em causa mostrava-se (e mostra-se) excessivamente onerosa para o devedor.
52. Não pode a Recorrente ser condenada a pagar o montante orçamentado para a reparação do veículo em causa, sob pena de clara violação do disposto no artigo 566.º, n.º 1 do C.C. e o 41.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 291/2007, porquanto a reparação afigura-se, conforme supra referido, excessivamente onerosa.
De facto,
53. O regime da perda total previsto neste Decreto-Lei vem concretizar, e bem, o disposto no artigo 566.º, n.º 1, in fine, do C.C., na medida em que vem auxiliar o intérprete a perceber quando pode considerar-se excessivamente onerosa para o devedor, neste caso para a Seguradora, a reconstituição natural (leia-se, reparação do veículo).
54. O legislador entendeu que a regra de reconstituição natural que vigora no âmbito do regime da obrigação de indemnização não pode existir per si, sob pena de se criar situações inconcebíveis, nas quais os credores seriam colocados numa situação económico-financeira superior à existente antes do evento danoso, à custa do devedor.
55. Até porque caso não se delimitasse os valores (neste caso, através de percentagens) para ser possível a restituição natural, poderiam surgir cenários que colocariam o devedor numa situação de grande desvantagem e supressão económica em benefício do enriquecimento injustificado do credor.
56. E não é, nem se pode aceitar que seja, esta a ratio deste regime!
57. Assim, a indemnização pela perda total do veículo em causa sempre seria manifestamente suficiente para reparar os danos sofridos pela Recorrida, na medida em que, podendo esta, novamente, com a indemnização supra referida, adquirir um veículo similar, pelo que sempre ficaria em igual situação à que se encontrava em momento anterior ao acidente.
58. Assim, deverá a douta decisão ora recorrida ser revogada e substituída por outra que condene a pagar à Recorrida, tão e somente, o valor correspondente à indemnização pela perda total do seu veículo em consequência do sinistro de viação, sob pena de manifesta violação do disposto nos artigos 483.º, n.º 1, 562.º, 563.º e 566.º, do C.C., 414.º do C.P.C. e 41.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
Vejamos, no que concerne à indemnização pela privação do uso do veículo,
59. Foi a aqui Recorrente condenada pelo douto Tribunal a quo, no pagamento da quantia de 9.338,16€ à aqui Recorrida, a título de indemnização pelos danos patrimoniais emergentes da privação de uso do veículo PN.
60. Acontece que, a douta Sentença ora recorrida, condena, também, a aqui Recorrente no valor de 2.910,00€, a título de indemnização pela paralisação do referido veículo, à taxa diária de 10,00€, sendo este um dano não patrimonial.
61. Ora, não poderia nem a Autora, ora Recorrida, ter peticionado, nem poderia o douto Tribunal a quo, salvo o devido respeito, ter condenado, a aqui Recorrente em ambos os danos.
62. Uma vez que tal configura uma duplicação do valor de indemnização a título de privação, na sua vertente patrimonial e não patrimonial, violadora da Lei e dos princípios da equidade que presidem à fixação do montante indemnizatório em causa.
63. O que não se aceita, nem pode subsistir!
64. De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15/06/2021 que: “Para o computo da indemnização por não uso, deve recorrer-se à equidade, na falta de prova de danos efetivos causados pela privação do uso do veículo – artº. 566º, nº 3, do C.C..”.
65. Daqui se retira que, só quando não haja, efetivamente, danos patrimoniais decorrentes da privação do uso do veículo, é que se poderá recorrer, em segundo plano, à equidade.
66. No caso em apreço, houve, de facto, efetivos e reais danos patrimoniais na esfera jurídica da Recorrida, danos esses líquidos e quantificáveis, nomeadamente o montante de 9.338,16€, a título de despesas que aquela teve com o aluguer de uma viatura de substituição.
Ora,
67. Havendo danos patrimoniais efetivos, não há qualquer necessidade de proceder à equidade para apurar a existência de outros danos, como peticionou a Autora e condenou o douto Tribunal a quo.
68. Deste modo, não poderá a aqui Recorrente ser condenada ao pagamento do montante de 2.910,00€, a título de danos não patrimoniais pela paralisação do veículo PN.
69. Tal levaria não só a uma inevitável duplicação dos danos, como também teria como consequência natural o enriquecimento ilegítimo e injusto da Recorrida.
Caso assim não se entenda, cumpre referir o seguinte,
70. A Recorrente não pode deixar de se insurgir contra o valor de 10,00€ diários arbitrados na douta Sentença recorrida, porquanto, o mesmo, não tem qualquer fundamento, afigurando-se manifestamente discricionário.
71. Ora, existe jurisprudência com entendimento diverso do adotado pela douta Sentença de que ora se recorre, nomeadamente que entende ser necessária a prova concreta dos efetivos prejuízos e danos causados por tal privação, nomeadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13/03/2007 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/06/2006.
72. Não só terá o lesado de provar os efeitos danos causados pela privação do uso do veículo, como o direito à indemnização por esta privação depende, inteiramente, do nexo de causalidade entre o dano e o acidente
73. Dito isto, importa referir que, da matéria considerada como provada nos presentes autos e supra transcrita, não resultou, de forma clara e inequívoca, que a Autora, ora Recorrida tenha sofridos danos não patrimoniais decorrentes da privação do uso do veículo PN e em que medida.
Neste sentido,
74. A Recorrente não poderá (de todo) conformar-se com o critério seguido na fixação da referida indemnização pelos danos não patrimoniais, nem com o quantum indemnizatório a que chegou o douto Tribunal a quo, por considerar que o mesmo se encontra desfasado do que vem sendo o entendimento da nossa doutrina e jurisprudência, sendo manifestamente excessivo face ao dano a ressarcir, criando mesmo uma situação de enriquecimento injustificado da lesada e de desigualdade e injustiça face a situações semelhantes.
75. Face a tudo o que antecede, entende a ora Recorrente que nenhuma indemnização deverá ser arbitrada à ora Recorrida, a título de dano não patrimonial pela privação do uso do veículo PN, porquanto a mesma não logrou provar a existência de prejuízos verificados na sua esfera jurídica em consequência da privação do uso do referido veículo, devendo, assim, a douta sentença ser revogada e, em consequência, a Ré, ora Recorrente, ser absolvida do pagamento da indemnização arbitrada pelo Tribunal a quo, a título de privação do uso do veículo, sob pena de violação do disposto nos artigos 483.º,562.º e 563.º, todos do C.C.
Não obstante, sem conceder e caso assim não se entenda, cumpre ressalvar,
76. Não basta que tenha existido uma imobilização forçada do veículo para que a Seguradora responsável seja, pura e simplesmente, condenada no pagamento das quantias indiscriminadamente peticionadas pelos lesados. Na verdade, é preciso verificar, em cada caso concreto, se tais lesados contribuíram, ou não, para o agravamento do dano, nomeadamente protelando no tempo a privação alegadamente causadora do mesmo
77. No presente caso, tendo o sinistro ocorrido a 08/10/2020 e tendo a Seguradora, ora Recorrente, informado a 09/03/2021, a Autora, ora Recorrida, de que aceitava a responsabilidade pela eclosão do acidente e a disponibilizar a respetiva indemnização, uma vez que o veículo da Autora foi dado como perda total, sempre se dira que a ora Recorrida tinha, desde a data da comunicação em causa, conhecimento perfeito e esclarecido de que a ora Recorrente pretendia recorrer à regularização do sinistro em causa nos presentes autos.
78. Assim, a Recorrida ao não aceitar a respetiva indemnização optou, intencionalmente, protelar no tempo o alegado agravamento dos danos que agora reclama.
Pelo que,
79. O protelamento da instauração da ação indemnizatória que importe agravamento dos custos por privação do uso, para além dum período de tempo razoável, face às regras da boa-fé, em termos de se considerar “culposa” a inércia do lesado, justifica uma repartição do dano global, com a inerente redução do respetivo montante indemnizatório, fundada no concurso de facto do lesado para o agravamento do dano.
80. Ora, emerge dos autos que a Autora intentou a competente ação de indemnização contra a Seguradora 6 meses após a comunicação da perda total e disposição da indemnização por esta última, sabendo, aquela primeira, sem dúvida, da dilação que causava no período de imobilização do veículo, com o inerente agravamento dos custos da paralisação.
81. Em tal contexto, não pode deixar de se ter em conta que a Autora, ora Recorrida, contribuiu, também, em certa medida para o agravamento dos danos que da paralisação advieram, havendo que situar o seu comportamento no âmbito do art.º 570.º, n.º 1, do C.C.
Sucede que,
82. O Tribunal a quo não teve em consideração o supra exposto e, assim, condenou a ora Recorrente no valor de 2.910,00€, a título de privação do uso do veículo PN, pelo período de 291 dias, correspondente a um valor diário de 10,00€.
83. Assim, tendo em conta a contribuição da Recorrida para o agravamento do dano, a Recorrente entende que se apresenta como injustificável o referido valor diário que se manifesta como desfasado da realidade e excessivo.
84. Sendo certo que o douto Tribunal a quo, na Sentença ora recorrida, nada fundamentou a este respeito, limitando-se a condenar a ora Recorrente, sem mais, em valores discricionários e manifestamente exagerados e injustos perante os valores fixados pela jurisprudência nacional.
85. Neste sentido atente-se o teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/12/2019, que atribuiu o quantitativo de 9,00€/dia; ou o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 26/10/2017, que determina o montante de 7,50€/dia.
Ora,
86. Daqui se constata que o valor de 10,00€/dia considerado pelo Tribunal a quo é manifestamente exagerado e incongruente com a jurisprudência dos Tribunais Superiores.
87. Nestes termos e pelas razões expostas, não pode a ora Recorrente concordar com o valor arbitrado, salvo o devido respeito, com a douta Sentença proferida, na medida em que a interpreta e aplica de forma incorreta e/ou imprecisa, as normas legais constantes dos arts.º 562.º, 563.º e 566.º, n.º 3, do C.C., devendo ser substituído por um montante indemnizatório, a título de privação do uso, nunca superior a 7,50€/dia.
Não obstante,
88. Caso se mantenha a condenação da ora Recorrente no valor dos 10,00€/dia a título de privação, o que não se admite e apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, sempre se dirá que tal valor deverá ser contabilizado desde o momento do sinistro até à data da comunicação (09/03/2021) pela Recorrente à Recorrida da perda total do seu veículo e, simultaneamente, quando colocou ao seu dispor uma indemnização.
Nesta medida e por qualquer dos identificados fundamentos, deverá ser dado provimento ao presente recurso, procedendo a impugnação da matéria de facto, sendo revogada a douta Sentença recorrida e substituindo-se a mesma por uma decisão que:
a) Condene a ora Recorrente no pagamento de uma indemnização no valor de 11.880,00€ pela perda total do veículo ..-PN-.., tendo em conta o valor venal do mesmo ser fixado em 14.000,00€; e
b) Absolva a mesma da indemnização peticionada a título de danos não patrimoniais derivados da privação do uso do referido veículo; caso assim não se entenda,
c) Condene a ora Recorrente no pagamento de uma indemnização peticionada a título de danos não patrimoniais derivados da privação do uso do referido veículo por um montante indemnizatório nunca superior a 7,50€/dia; ainda assim,
d) Caso se mantenha a condenação da ora Recorrente no valor dos 10,00€/dia a título de privação, o montante em causa deverá ser contabilizado desde o momento do sinistro até à data da comunicação (09/03/2021) pela Recorrente à Recorrida da perda total do seu veículo;
Só assim se fazendo a acostumada Justiça!

A autora, AA. Apresentou contra-alegações, defendendo que a apelação deve ser julgada totalmente improcedente.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, as questões a resolver consiste em saber se:
- ocorreu erro de julgamento;
- a reparação do veículo é excessivamente onerosa para a ré;
- houve duplicação do valor da indemnização, a título de privação do uso do veículo, na sua vertente patrimonial e não patrimonial;
- a recorrida ao não aceitar a respectiva indemnização optou, intencionalmente, por protelar no tempo o agravamento dos danos que reclama

II – Fundamentação de facto
O tribunal recorrido considerou
A) Os factos provados
1. No dia 08.10.2020, pelas 22h50, a Autora circulava ao volante da sua viatura, marca Chrysler, matrícula ..-PN-.., na Via ..., Zona Industrial da Maia, no sentido norte-sul.
2. A determinado momento, deparou-se com um peão a atravessar a passadeira, tendo imobilizado o seu veículo.
3. Nesta altura, o veículo de marca BMW, matrícula ..-QT-.., conduzido por DD, embateu na traseira do referido veículo.
4. À data do acidente, o proprietário e condutor do veículo de matrícula ..-QT-.. havia transferido para a Ré a responsabilidade civil pelo risco resultante da circulação do seu veículo, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...80.
5. Em carta datada de 9 de Março de 2021 a Ré assumiu a responsabilidade pelo sinistro participado.
6. Em consequência dos danos no veículo da Autora, este ficou impossibilitado de circular e teve de ser transportado por reboque para a oficina da empresa “B... Unipessoal, Lda” onde se encontra imobilizado desde então.
7. Após peritagem na oficina da referida empresa, a Ré informou a Autora, por carta datada de 9.03.2021, de que o custo de reparação do veículo ascende a 21.070,43 € (vinte e um mil e setenta euros e quarenta e três cêntimos).
8. A Ré fixou o valor venal do veículo em 14.000,00€ e apresentou uma proposta de indemnização de 11.880,00€, deduzido o valor do salvado no montante de 2.120,00€.
9. O veículo da Autora é da marca Chrylser, modelo ..., do ano de 2008, a gasóleo, com 2957cm3 de cilindrada.
10. O veículo dispõe de interior com pele integral, bancos aquecidos, jantes (versão SRT, de 20 polegadas).
11. O motor do veículo foi alvo de uma obra de reparação tendo a Autora efectuado 30.000 km (trinta mil quilómetros) desde então.
12. O valor de mercado de um veículo de características semelhantes ao da Autora ascende a, pelo menos, 17.000,00€.
13. A reparação do veículo é tecnicamente viável, não afectando as suas condições de segurança.
14. A Autora necessita do veículo para o exercício da sua profissão.
15. A Autora alugou à empresa “C..., Lda.”, uma viatura entre 09.10.2020 e 22.01.2021, pelo qual pagou a quantia de 9.338,16€ (nove mil, trezentos e trinta e oito euros e dezasseis cêntimos).
16. Desde 22.01.2021 a Autora tem-se socorrido de carros emprestados, dependendo dos favores e boa vontade de amigos.
17. Este era o único veículo de que a Autora dispunha para a sua vida particular sendo usado nas suas deslocações pessoais e de família.
B) Os factos não provados:
1. O depósito do veículo na empresa “B... Unipessoal, Lda.” tem um custo diário de 6,15 € (seis euros e quinze cêntimos).
2. O veículo dispõe de lâmpadas Xenon originais, isofix.
3. À data do acidente, o veículo dispunha de pneus novos adquiridos em Janeiro de 2020 no valor total de 6.145,08€ (seis mil cento e quarenta e cinco e oito cêntimos).
4. A reparação do motor ocorreu no final de 2018 e ascendeu ao valor de 1.700,00 € (mil e setecentos euros).
5. O veículo dispunha de uma grelha edição especial proveniente de uma parceria da Chrysler com a Bentley adquirido por 1.500,00€ (mil e quinhentos euros).
6. O valor de mercado do veículo ascende a 20.000,00€ (vinte mil euros).
7. Com o impacto do embate o telemóvel da Autora ficou danificado ascendendo a sua reparação à quantia de 811,68€ (oitocentos e onze euros e sessenta e oito euros).

II – Do mérito do recurso
Defende, desde logo, a recorrente que o facto o n.º 12 deverá ser alterado, passando a ter o seguinte teor:
O valor de mercado de um veículo de características semelhantes ao da Autora ascende a 14.000,00€”.
Fundamenta que o Tribunal se baseou única e exclusivamente nos documentos juntos aos autos pela autora na sua Petição Inicial, sob os n.ºs 10 a 12, desconsiderando documento n.º 5 junto aos autos na contestação e, em especial, o depoimento da testemunha e perito-avaliador BB. Que não só os acessórios extras colocados pela recorrida não sobrevalorizaram o veículo de sobremaneira, como as jantes em questão nem sequer eram novas aquando da sua colocação, ficando por provar, em sede de Audiência de Julgamento, que os extras colocados nos veículos sobrevalorizam o veículo em 3.000,00€.
Cumpridos os ónus inerentes à impugnação da matéria de facto, ponderemos.
A autora, AA, em declarações de parte, informou que o carro, um Chrysler, estava muito bem conservado e tinha muitos extras, como as jantes especiais, estofos de pele com aquecimento, um mini frigorifico, por exemplo.
É um carro de luxo que, por vezes, emprestava a um primo para casamentos e festas.
Andou dez anos em dois trabalhos para conseguir comprar aquele carro que era o carro dos seus sonhos.
Levou o carro para a oficina “B...” onde a ré seguradora fez a peritagem. A seguradora considerou que havia perda total. Mas o mecânico contactou a Chrysler que confirmou que o carro tinha condições para ser reparado. A seguradora disse-lhe que tinha direito a veículo de substituição se aceitasse a indemnização mas o quer é o seu carro arranjado. Inicialmente alugou um carro mas, como as suas poupanças estavam a desaparecer, começou a pedir um carro emprestado ao pai, a amigos e utilizou por vezes os transportes públicos, mas o tempo que demorava para ir e vir do trabalho era impossível. Esta situação alterou a sua vida toda.
BB, mecânico, disse que fez a avaliação e que faz peritagens em exclusividade por conta da seguradora ré. Apurou que era necessária uma reparação no montante de cerca de 21.000,00 euros pelo que, confrontado o preço de mercado, concluiu-se pela perda total. Conseguiram encontrar carros semelhantes com um preço de mercado a rondar os 14.000,00 euros. Considera que os extras perdem muito valor com os anos e os Km. Tecnicamente a viatura era reparável mas o valor das peças era muito elevado.
A testemunha EE, mecânico da oficina “B...”, explicou que a viatura tinha danos, sobretudo na parte traseira. Com a ajuda da Chrysler conseguiu fazer o orçamento da reparação que era viável pois não havia danos estruturais. A reparação poderá ser demorada porque as peças têm de vir dos EUA.
A carrinha era especial e muito cobiçada. Tinha extras que a valorizavam: umas rodas enormes, bancos com apoios em pele e aquecidos e um frigorífico no porta-luvas.
Andou a pesquisar na NET e o valor de mercado, sem aquelas jantes, era de 22/23.000, 00 euros.
No que concerne à prova documental observa-se o seguinte.
A autora juntou com a P.I. o orçamento elaborado pela testemunha EE e três anúncios de venda de veículos marca Chrysler 300 nos montantes, respectivamente, de 16.987,00€, 16.500,00€ e 14.000,00€. A ré juntou dois anúncios de venda deste tipo de veículos nos montantes, respectivamente, de 13.400,00€ e 16.987,00 €.
Cotejando toda esta prova surge-nos muito adequado o facto provado de que o valor de mercado de um veículo de características semelhantes ao da autora ascende a, pelo menos, 17.000,00 €.
De notar que os extras do veículo certamente lhe aumentam o valor até porque permitem a sua utilização em eventos especiais, retirando-se do mesmo um possível rendimento nessa área.
Deste modo, improcede a impugnação da decisão de facto.
Considera também a recorrente que que é de se aplicar o disposto no artigo 41.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 291/2007, segundo o qual a reparação do veículo da aqui recorrida é inviável economicamente para a recorrente, uma vez que ultrapassa 120% do valor venal do veículo.
Vejamos.
Em primeiro lugar, deve esclarecer-se que é pacífica, na doutrina e na jurisprudência, a posição de que o procedimento regulado no DL 291/2007 [regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel] só vale em sede extrajudicial pelo que, não sendo possível às partes chegar a um entendimento sobre o quantum indemnizatório, não são tais regras vinculativas para o tribunal que passará a julgar de acordo com a lei, ou seja, de acordo com as disposições do Código Civil e os princípios atinentes à responsabilidade civil.
Com efeito, o artigo 562º do Código Civil consagra para a obrigação de indemnização o princípio da reposição natural: “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
A indemnização só é fixada em dinheiro, quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor – vide artigo 566º, n 1 do C. Civil.
Em princípio deve optar-se pela reparação do veículo, caso seja viável, mesmo que o custo seja superior ao valor comercial do mesmo, na medida em que interessa, na reparação integral do dano, atender à utilização que era dada ao mesmo pelo lesado na satisfação das suas necessidades.
Assim, a jurisprudência tem, maioritariamente, entendido que o critério orientador adoptado quanto ao valor de substituição é o valor patrimonial e não o valor comercial ou venal.
Um veículo já com muito uso pode ter um valor comercial pouco significativo, mas, ainda assim, pode satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor de mercado, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades, por não lhe permitir a aquisição de uma viatura da mesma marca, com as mesmas características e com o mesmo uso.”- vide Ac. do STJ de 05-07-2007, Proc. 07B1849, in www.dgsi.pt.
Por impressivo cita-se o trecho do Ac. do STJ de 04-12-2007, Proc. 06B4219:
“Como já dissemos em outras decisões (por exemplo, no proc. nº4047-05, desta mesma secção do STJ, e antes no Ac. RC de 10 de Dezembro de 1998, CJ, T5, págs.40 a 43) bosquejando a abundante caminhada doutrinária a este propósito - Antunes Varela, Das obrigações Em Geral, vol. I, 3ª edição, págs.775 e segs, Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 5ª edição, pág.637 e segs, Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. III, 1993, pág.38 – em matéria da obrigação de indemnização por danos o princípio, a regra, é a restauração natural; a excepção é a indemnização por equivalente.
Aplicando à situação as regras básicas do ónus da prova, ao Autor cabe a prova do princípio, à Ré cabe a prova da excepção.
Ao autor cabia, aqui, a prova do em quanto importava a reparação, restaurando in natura o veículo danificado – e provou que importava em 5 843,50 euros;
à Ré cabia a prova de que tal montante era excessivamente oneroso – não apenas oneroso, ou até mais oneroso, mas excessivamente oneroso - para si própria, que era flagrantemente desproporcionado o custo que ia suportar em relação ao interesse do lesado na reparação.
Esta «excessividade» há-de aferir-se, naturalmente, pela diferença entre dois pólos: um deles é o preço da reparação (no caso, 5 843,50 euros como já se disse) mas o outro não é o valor venal do veículo, no caso 1 200,00 euros.
Porque – passe a expressão, que aliás nos agrada - uma coisa é ter o valor, outra coisa é ter a coisa.
Uma coisa é ter 1 200,00 euros, outra coisa é ter um Renault Clio de 1992 - ainda que valendo apenas essa quantia - mas que é nosso, que satisfaz os nossos interesses e as nossas necessidades – caminhando nesta preocupação, veja-se o voto de vencido no AC. STJ de 9 de Maio de 1996, CJSTJ, T2, pág.61.
E com 1 200,00 euros compraria o autor um veículo ligeiro do mesmo tipo, adequado a satisfazer as mesmas necessidades e interesses (sem falarmos já da afectividade que é também um valor que poderia ser considerado, conquanto in casu o não tivesse sido pelo autor )?!
Não é facto que a ré, sequer, alegue.
A ré coloca-se apenas na posição de quem quisesse vender o veículo e por isso diz que o prejuízo do autor é apenas de 1000,00 euros porque podendo vender o Renault Clio por 1200,00 antes do acidente agora só tem salvados a valerem 200,00.
Mas quem disse que o réu queria vender, se o réu tem um veículo que satisfaz as suas necessidades?!
O valor a ter em conta não é, então, o valor venal do veículo mas aquele a que chamaremos o valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado.
“Oferecendo” apenas, no seu articulado, o valor venal, a ré não oferece, na verdade, o outro pólo a partir do qual o tribunal pudesse chegar à onerosidade excessiva que é pressuposto da excepção da indemnização em dinheiro, como resulta do disposto no nº1 do art.566º. Porque esta – nº2 do mesmo artigo – tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
Essa, a situação patrimonial, é que seria o segundo pólo a considerar:
quanto teria a Ré seguradora de entregar ao Autor, à data da citação da Ré, para que ele, Autor, pudesse repor o seu património no estado que se encontrava antes do acidente ?
Não que pusesse o seu património à venda - se assim se pode dizer e parece a ré querer impor - mas que o reintregasse no status quo ante.
O problema não é, repetimos, o do valor venal do veículo sinistrado (como por exemplo se entendeu no Ac. STJ de 20 de Maio de 1995, CJSTJ, T2, pág.97) mas seguramente o do seu valor patrimonial, o valor que ele representa efectivamente – tal como estava antes do sinistro – dentro do património do autor (e não o valor que ele obteria se naquele mesmo estado o vendesse).
Não pode «obrigar-se» alguém a vender, apenas para ficcionar um polo de comparação da excessiva onerosidade.
Fica então a regra, uma vez que a Ré não provou a excepção.
E a regra é reparar.
In natura. Pagando a indemnização necessária à reparação integral do veículo, ainda que mais dispendiosa para a ré.”
A clareza e, por tal, a perfeição desta exposição, dispensa-nos de mais comentários e a verdade é que o caso que nos ocupa é similar ao deste aresto.
Aqui o valor da reparação é de 21.070,43€ e o valor venal do veículo é de, pelo menos, 17.000,00. Tal como no caso citado não foi alegado pela ré o valor patrimonial.
Portanto, sem este valor não se pode apurar da excepção da onerosidade excessiva porque esta é medida pela diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
Conclui-se, pois, que não tendo a ré provado a excessiva onerosidade, como lhe competia, deve proceder ao pagamento da reparação do veículo do autor.
Mais argumenta a recorrente que foi condenada no pagamento da quantia de 9.338,16€ a título de indemnização pelos danos patrimoniais emergentes da privação de uso do veículo PN. Acontece que foi também condenada no valor de 2.910,00€, a título de indemnização pela paralisação do referido veículo, à taxa diária de 10,00€, sendo este um dano não patrimonial. Que tal configura uma duplicação do valor de indemnização a título de privação, na sua vertente patrimonial e não patrimonial. Que havendo danos patrimoniais efectivos, não há qualquer necessidade de proceder à equidade para apurar a existência de outros danos, como peticionou a autora e condenou o Tribunal a quo. Que não poderá ser condenada ao pagamento do montante de 2.910,00€, a título de danos não patrimoniais, pela paralisação do veículo PN.
Que caso assim não se entenda, o valor de 10,00€ diários arbitrados não tem qualquer fundamento, afigurando-se manifestamente discricionário. Que da matéria considerada como provada não resultou, de forma clara e inequívoca, que a autora, ora recorrida tenha sofridos danos não patrimoniais decorrentes da privação do uso do veículo PN e em que medida.
Que no presente caso, tendo o sinistro ocorrido a 08/10/2020 e tendo a Seguradora, ora recorrente, informado a 09/03/2021, a recorrida, de que aceitava a responsabilidade pela eclosão do acidente, tinha a recorrida, desde a data desta comunicação, conhecimento perfeito e esclarecido de que a ora recorrente pretendia recorrer à regularização do sinistro pelo que a recorrida, ao não aceitar a respectiva indemnização optou, intencionalmente, por protelar no tempo o agravamento dos danos que agora reclama. Que recorrida, contribuiu, também, em certa medida para o agravamento dos danos que da paralisação advieram, havendo que situar o seu comportamento no âmbito do art.º 570.º, n.º 1, do C.C.
Avaliemos.
Não obstante as diferentes posições que têm surgido sobre a prova do prejuízo na indemnização pela privação do uso (e que no caso não se debatem), a doutrina e a jurisprudência têm assentado na ideia de que verificação do prejuízo patrimonial deve ser feita casuisticamente, em face do concreto circunstancialismo, nomeadamente a utilidade/destino do bem em causa, e terá ainda que ser cotejada com o ónus da prova.
Os danos a considerar neste, como noutros casos, apresentam-se em duas vertentes de prejuízos –patrimoniais e não patrimoniais.
Não existe qualquer impedimento à cumulação das indemnizações. O dano patrimonial traduz-se na efectiva lesão do correspondente direito real de propriedade e o dano de natureza não patrimonial, que eventualmente o lesado tenha suportado, traduz-se na afectação moral do autor.
Importante é que não sejam os mesmos factos a suportar ambas as indemnizações. - Vide Ac. desta Relação. do Porto de 16/3/2015, proc. 224/12.8TVPRT.P1 in www.dgsi.pt.
No caso entre 09.10.2020 e 22.01.2021 a autora alugou à empresa “C..., Lda.”, uma viatura, tendo pago a quantia de 9.338,16 €.
Neste período foi este o prejuízo patrimonial a indemnizar.
A partir de 22.01.2021 a autora tem-se socorrido de carros emprestados, dependendo dos favores e da boa vontade de amigos, sendo que que este era o único veículo de que dispunha para a sua vida particular, sendo usado nas suas deslocações pessoais e de família.
Neste período seguinte considerou-se que a autora sofreu um dano não patrimonial decorrente dos transtornos provocados pela privação do uso do referido veículo.
O montante desta indemnização baseou-se no valor que a ré suportaria se a autora tivesse alugado um veículo semelhante ao veículo sinistrado e na equidade, considerando-se adequado o montante indemnizatório correspondente a um valor diário de 10,00 €, no valor de 2.910,00€.
Entendemos que este montante encontrado satisfaz as exigências de racionalidade justiça e equidade.
Na realidade, este dano apresenta um cariz patrimonial na medida em que visa ressarcir um prejuízo efectivo decorrente da impossibilidade de utilização do veiculo e um aspecto não patrimonial na medida em que intenta compensar autora pelos relevantes incómodos, transtornos e limitações que lhe advieram de não poder utilizar a sua viatura como dantes, ficando dependente da disponibilidade e da boa vontade de terceiros em emprestarem-lhe uma viatura ou sujeitando-se a tempos intermináveis nos transportes públicos, como a autora referiu.
Esta factualidade ressalta da matéria dada como provada e das regras da experiência comum, tendo a autora declarado que ficou com a vida toda alterada, o que é perfeitamente compreensível e normal.
Portanto, não existe qualquer duplicação de indemnizações pois que cada uma se alicerça em factos diferentes, ou seja, em períodos temporais distintos.
Quanto à alegação de que a recorrida ao não aceitar a respectiva indemnização optou, intencionalmente, por protelar no tempo o agravamento dos danos sufragamos, naturalmente. o que se disse na sentença:”… o facto de a Ré ter informado a Autora que o veículo se encontrava em situação de perda total e ter proposto uma indemnização é irrelevante com vista à cessação da obrigação de indemnização por privação do uso, visto que a Autora não aceitou tal proposta e o direito á reparação do veículo é aqui reconhecido judicialmente…”


Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.


Porto, 16 de Janeiro de 2023
Ana Lucinda Cabral
Alberto Taveira
Fernando Vilares Ferreira

(A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.)