Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | TERESA PINTO DA SILVA | ||
| Descritores: | COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS DIREITO À MEAÇÃO DIREITO À INFORMAÇÃO CONTAS BANCÁRIAS | ||
| Nº do Documento: | RP20251013452/24.3T8VNG.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - No regime da comunhão de adquiridos, cada cônjuge tem direito a conhecer a composição do património comum, para poder exercer efetivamente o seu direito à meação. II - Este direito à informação decorre diretamente dos deveres de cooperação entre cônjuges e dos princípios da boa fé e da transparência que devem presidir às relações patrimoniais no casamento, recaindo sobre o ex-cônjuge titular exclusivo de contas bancárias e aplicações financeiras o dever de prestar informação ao outro ex-cônjuge sobre essas contas quando tal seja necessário para o exercício do direito à meação, nos termos do artigo 573.º do Código Civil e dos princípios de cooperação e boa fé. III - A presunção de comunicabilidade dos bens móveis prevista no artigo 1725.º do Código Civil é ilidível, competindo ao cônjuge que invoca a natureza própria dos bens o ónus de a demonstrar. IV - O dever de prestar informação sobre contas bancárias não prejudica o direito do ex-cônjuge titular de ilidir a presunção de comunicabilidade, demonstrando a natureza própria dos bens, seja na própria prestação de informação, seja posteriormente em sede de inventário ou em ação declarativa autónoma. V - O direito à informação necessária ao exercício do direito à meação prevalece sobre o direito à privacidade do cônjuge titular das contas, em aplicação do princípio da proporcionalidade, quando a informação solicitada esteja temporalmente delimitada e funcionalmente orientada para a partilha dos bens comuns. VI - Para fundamentar o direito à informação sobre contas bancárias tituladas pelo outro cônjuge durante o casamento, cabe ao ex-cônjuge que a solicita alegar e provar que foi casado no regime de comunhão de adquiridos, que o casamento se dissolveu e que tem direito à meação, não lhe incumbindo fazer prova prévia da existência concreta de cada conta bancária. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 452/24.3T8VNG.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 5 Recorrente: AA Recorrida: BB
Relatora: Des.ª Teresa Pinto da Silva 1º Adjunto: Des. Miguel Baldaia de Morais 2º Adjunto: Des. Mendes Coelho * Acordam os Juízes subscritores deste Acórdão, da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO BB intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo que este seja condenado a: 1) Informar os números de contas bancárias e históricos dos movimentos, pelo menos por um prazo de 1 (um) ano anterior à saída do Réu da casa de morada de família, ocorrida em 17 de Fevereiro de 2015, designadamente, depósitos à ordem e a prazo, PPR’s, ações, títulos do tesouro, contas-poupança, seguros de capitalização, certificados de aforro e outros créditos de que o Réu é titular, oficiando-se ao Banco de Portugal - Departamento de Supervisão Bancária, com a incumbência ainda de difusão a todos os Bancos e Instituições Financeiras, com o legal levantamento do sigilo bancário. 2) Informar os números de contas bancárias e históricos dos movimentos para onde foram transferidas as verbas, não podendo as instituições invocar o segredo ou sigilo bancário que envolvam património comum. 3) Pagar à Autora os montantes que forem apurados e correspondentes ao seu direito, acrescidos dos respetivos juros moratórios, a partir da data de cada um dos levantamentos e/ou apropriação indevida, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento. Para tanto, alegou, em síntese, que Autora e Réu contraíram entre si casamento no dia 18 de julho de 1998, sem convenção antenupcial, o qual veio a ser declarado dissolvido por sentença proferida no dia 07 de Setembro de 2015, nos autos de divórcio por mútuo consentimento que correu termos sob o nº ..., na 5ª Secção de Família e de Menores - J3 da Instância Central de Vila Nova de Gaia. Em 29 de Fevereiro de 2016, o Réu requereu inventário notarial para partilha de bens comuns do casal, no Cartório Notarial da Senhora Notária CC, ao qual foi atribuído o nº ..., tendo sido nomeada como Cabeça de Casal a Autora. Em 24 de Maio de 2016 a Autora apresentou a respetiva relação de bens referindo, entre o mais, que: “1. O Inventariado tem ainda em seu poder avultados depósitos bancários, PPR´s, Certificados de Aforro, acções e títulos, depositados em instituições bancárias e para-bancárias, das quais o cabeça-de-casal desconhece a identificação. 2. Sabe, agora, a cabeça-de-casal que já antes e aquando da separação do casal, o inventariado procedeu ao levantamento de elevados montantes das contas então existentes e provenientes do aforro do casal. 3. No entanto, não é possível à cabeça-de-casal obter informação das novas contas de que o Requerido é titular e para onde transferiu esses valores. 4. Designadamente o valor de €31.000,00 (Trinta e Um Mil Euros) proveniente da movimentação de uma aplicação de dinheiro do casal existente junto do Banco 1.... Portanto 5. Requer que, a fim de informar os números de contas bancárias e movimentos, pelo menos por um prazo de um ano anterior à saída do inventariado da casa de morada de família, depósitos à ordem e a prazo, PPR’s, acções, Títulos do Tesouro, Contas-Poupança, Seguros de Capitalização, Certificados de Aforro e outros créditos de que o Inventariado é titular, se oficie, ao BANCO DE PORTUGAL - Departamento de Supervisão Bancária, com a incumbência ainda, de difusão a todos os Bancos e Instituições Financeiras, com o legal levantamento do sigilo bancário.” Porém, o Réu não forneceu aos autos de inventário a informação, nessa data, nem posteriormente, apesar dos pedidos repetidamente apresentados nos seus requerimentos de 22 de Junho de 2016, 6 de Março de 2017, 25 de Setembro de 2017 e 18 de Fevereiro de 2019, tendo a Srª Notária, por despacho datado de 11 de fevereiro de 2021, ordenado a remessa das partes para os meios comuns para a decisão desta questão atendendo à complexidade da mesma, suscetível de influenciar a partilha e na determinação dos bens a partilhar. A vida em comum do casal cessou no dia 14 de Fevereiro de 2015, dia em que o Réu, com solenidade, transmitiu à Autora que gostava de outra e queria o divórcio, tendo o Réu, a 17 de Fevereiro de 2015, por sua vontade e iniciativa, abandonado a casa de morada de família, levando consigo toda a documentação referente a prédios, veículos automóveis, depósitos bancários, PPR`s, certificados de aforro, ações e títulos, depositados em instituições bancárias e para-bancárias, valores mobiliários superiores a 200.000,00 euros, aforro proveniente do trabalho de ambos, desconhecendo a Autora se tais valores foram transferidos para contas individuais do Réu ou para contas de terceiros. A Autora instou o Réu a fazer chegar os documentos aos autos de inventário, porém, tal nunca aconteceu, remetendo-se ao silêncio perante o pedido de autorização do levantamento do sigilo bancário das suas contas, conforme indicação do Banco de Portugal. A Autora jamais deu o seu consentimento, nem autorização, nem mandatou o Réu para proceder aos levantamentos dos depósitos bancários e aplicações, pretendendo exercer o direito de indemnização por danos decorrentes de atos praticados pelo Réu, enquanto administrador de bens comuns, com intenção de lhe causar prejuízo, com fundamento na previsão do artigo 1681.º, n.º 1, do Código Civil, obtendo informação sobre as contas bancárias em nome do Réu, respetivos movimentos e saldos existentes pelo menos por um prazo de 1 (um) ano anterior à saída do Réu da casa de morada de família, ocorrido em 17 de Fevereiro de 2015. Regularmente citado, o Réu contestou, excecionando a nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial, impugnando parte da factualidade alegada pela Autora, sustentando que todos os valores mobiliários por ele detidos na pendência do casamento eram bens próprios dele, estando relacionados no processo de inventário todos os bens mobiliários comuns, de caráter financeiro, que existiam à data da propositura da ação de divórcio, não existindo quaisquer outros bens móveis a conferenciar ou partilhar, invocando ainda a litigância de má-fé por parte da Autora. Conclui pugnando pela procedência da exceção deduzida, com a sua consequente absolvição da instância, e, sem prescindir, pela improcedência, por não provados, dos pedidos deduzidos pela Autora contra o Réu, sendo, por via disso, o Réu absolvido dos pedidos, e ainda que seja julgada provada a litigância de má-fé por parte da Autora, sendo a mesma condenada em multa e indemnização ao Réu em valor não inferior a €2500,00. Em 16 de outubro de 2024, realizou-se a audiência prévia, na qual foi tentada a conciliação entre as partes, após o que foram solicitados esclarecimentos às partes, tendo o Mmº Juiz tecido considerações quanto à impossibilidade de conhecimento de parte dos pedidos, tal qual estão formulados, e determinado que os autos lhe fossem conclusos. Em 5 de fevereiro de 2025, o Tribunal a quo proferiu despacho saneador-sentença, no qual se julgou incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido deduzido sob a alínea c), dele absolvendo o Réu da instância. No mais, entendeu que os autos continham todos os elementos necessários para o imediato conhecimento do mérito da ação, tendo proferido decisão com o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, decide-se, condenar o réu na obrigação de informar a autora: A) Dos números de contas bancárias e históricos dos movimentos, entre o período de dezassete de fevereiro de dois mil e catorze e dezassete de fevereiro de dois mil e quinze, designadamente, depósitos à ordem e a prazo, PPR’s, ações, títulos do tesouro, contas-poupança, seguros de capitalização, certificados de aforro e outros créditos de que o réu fosse então titular. B) Dos números de contas bancárias e históricos dos movimentos para onde foram transferidas, dessas contas, no período referido em A, verbas. Custas remanescente da ação pelo réu.» * Inconformada com tal decisão veio o Réu dela interpor o presente recurso, pugnando para que ao mesmo seja dado provimento, e, em consequência, seja a decisão recorrida revogada, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: A. O presente Recurso versa exclusivamente sobre o douto despacho saneador na parte em que foram considerados procedentes os dois primeiros pedidos formulados pela Autora, tendo por essa via sido o aqui Recorrente condenado na obrigação positiva de prestar informação à Autora relativamente a todo o seu ativo financeiro, com históricos dos movimentos e respetivos saldos, entre o período de 17.02.2014 a 17.02.2015. B. Para fundamentar a sua decisão, o Tribunal a quo tomou apenas em consideração o facto de Autora e Réu serem casados no regime da comunhão de adquiridos e, por esse motivo, ser-lhes-ia aplicável a presunção da comunicabilidade dos bens móveis, ao abrigo do 1725.º do Código Civil. C. Entendendo, por isso, que ao abrigo de tal presunção legal a Autora tinha legitimidade para exigir ao Réu a obrigação positiva de prestar informações sobre TODOS os números de contas bancárias e históricos de movimentos entre 17.02.2014 a 17.02.2015. D. Descurando, por completo, a própria a proveniência e titularidade das eventuais contas bancárias e o facto de estar a condenar o Réu à prestação de informações que só a ele mesmo diriam respeito, em clara violação da proteção de dados e da própria esfera privada. E. Pois que, algumas das contas bancárias já nem sequer existem; outras, a própria Autora era titular e por isso tinha como saber os respetivos saldos e movimentos; outras, eram e são bens próprios, por constituídas anteriores ao casamento, e por isso ressalvadas da presunção aplicável. F. O Réu foi condenado com base na aplicação de uma presunção legal, da qual não teve sequer oportunidade de a ilidir, já que o Tribunal entendeu pela desnecessidade de produção de prova, e ignorou todas as informações prestadas/obtidas quer em sede do processo de inventário por divórcio, quer em sede do procedimento cautelar de arrolamento, relativamente às contas bancárias do Réu. G. In casu, nos termos do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, o ónus probatório da existência de tais contas bancárias impendia sobre a Autora, por se tratar de facto constitutivo do direito que alegou, mas a Autora não fez qualquer prova da existência de contas bancárias, nem foi sequer capaz de concretizar quais as contas e/ou as instituições bancárias, mesmo delas sendo cotitular. H. Não tendo a Autora provado a existência desses bens, ou pelo menos um fumus boni iuris da sua existência, outra não podia ser a decisão do Tribunal se não a de julgar improcedente os pedidos formulados pela Autora. I. Mas, a contrario, o Tribunal a quo preferiu violar/limitar a privacidade do Réu, atribuindo prevalência ao direito à informação por parte da ex-cônjuge, sem que, preliminarmente, se aferisse da efetiva titularidade dos ativos financeiros. J. O Tribunal a quo conclui pela existência, na esfera jurídica da Autora, do direito à prestação da informação solicitada como base no regime de bens do casamento – comunhão de adquiridos – ou seja, um regime onde se prevê a existência de bens próprios a par de bens comuns. K. E mais longe ainda foi ao fixar o período de 17.02.2014 a 17.02.2015 para prestação de informações, com base na data que a Autora alegou como saída do Réu da casa de morada de família (17.02.2015), facto esse que não foi sequer dado como provado. L. Tudo isto, reitera-se, sem recurso à produção de prova requerida pelo Réu, em clara violação do direito à prova e do princípio da justiça e da verdade material – artigos 6.º e 411.º do CPC. M. Resultando, assim, uma decisão sem cobro na realidade, o que não se pode aceitar. * A Autora / Apelada contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso e a manutenção da sentença recorrida. * Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e com efeito devolutivo. * Recebido o processo nesta Relação, emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. * Delimitação do objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões vertidas pelo Recorrente nas suas alegações (artigos 635º, nºs 4 e 5 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil). Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais prévias, destinando-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não à prolação de decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido. Mercê do exposto, da análise das conclusões vertidas pela Recorrente nas suas alegações decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à seguinte questão: 1ª – Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao condenar o Recorrente na obrigação de prestar informações relativas ao seu ativo financeiro (pedidos A e B). * Fundamentação de facto Analisada a decisão recorrida, constata-se que da mesma emerge a seguinte factualidade provada: 1) A Autora e o Réu contraíram entre si casamento no dia 18 de Julho de 1998, sem convenção antenupcial. 2) O casamento foi declarado dissolvido por sentença proferida no dia 07 de Setembro de 2015, transitada em julgado, nos autos de divórcio por mútuo consentimento que correu termos sob o n.º ..., na 5ª Secção de Família e Menores – J3, da Instância Central de Vila Nova de Gaia. 3) Na sentença que decretou o divórcio não foi fixada a data da separação de facto para efeitos patrimoniais. Para além destes factos, importa ainda ter presente que da certidão emitida pelo Cartório Notarial de CC, junta com a petição inicial, resulta o seguinte facto: 4) Sob o nº ..., correram termos no Cartório Notarial de CC, autos de inventário para separação de meações, na sequência do divórcio de Apelante e Apelada, tendo, em 11 de fevereiro de 2021, sido proferido despacho a ordenar a remessa das partes para os meios comuns quanto à matéria alegada pela Apelada de “continuada sonegação de bens por parte do cabeça-de-casal, nomeadamente no que a depósitos bancários, certificados de aforro, aplicações financeiras, entre outros, diz respeito, pois é certo que o casal dispunha de valores mobiliários superiores a €200.000,00, tendo o cabeça de casal apropriando-se de todos esses valores indevidamente e ainda devido à falta de colaboração do cabeça de casal, que persiste em ocultar tais valores imobiliários”[1] * 1ª – Se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao condenar o Recorrente na obrigação de prestar informações relativas ao seu ativo financeiro (pedidos A e B) No caso vertente, o Recorrente pretende a revogação do saneador / sentença recorrido, na parte em que foram julgados procedentes os pedidos deduzidos pela Apelada sob as alíneas A) e B) da petição inicial, com a sua condenação na obrigação de prestar informações à Autora sobre números de contas bancárias, históricos de movimentos e contas para onde foram transferidas verbas, relativamente ao período compreendido entre 17.02.2014 e 17.02.2015. Para tanto, sustenta o Apelante que tal decisão, ao condená-lo a prestar informações sobre todas as suas contas bancárias, incluindo aquelas que possam ser bens próprios seus, viola o seu direito à privacidade e à proteção de dados pessoais, consagrados nos artigos 26.º e 35.º da Constituição da República Portuguesa,. O cerne do recurso reside, por conseguinte, em saber se, no âmbito da dissolução do casamento celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos, a Autora tem ou não direito à prestação de informação pelo Réu quanto aos ativos financeiros por este titulados no período relevante (anterior ao divórcio), atentas as regras de comunicabilidade de bens (arts. 1725.º, 1689.º, 1789.º do Código Civil). O Apelante começa por sustentar que o Tribunal a quo violou o seu direito à prova, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, bem como os princípios da justiça e da verdade material previstos nos artigos 6.º e 411.º do Código de Processo Civil, ao ter decidido pela procedência da ação sem permitir a produção de prova testemunhal requerida, crítica que, no nosso entendimento, não procede. O direito à prova, enquanto corolário do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa), não é um direito absoluto e ilimitado. Está sujeito aos princípios da relevância, pertinência e necessidade dos meios probatórios para a decisão da causa. No caso vertente, o Tribunal da 1.ª instância considerou, e bem, que dispunha dos elementos necessários para decidir de imediato o mérito da causa, por se tratar de questão essencialmente documental e jurídica. Com efeito, a factualidade necessária à decisão resulta de documentos autênticos juntos aos autos e não impugnados: a certidão de casamento, a certidão da sentença de divórcio e a certidão do processo de inventário. A partir destes elementos documentais é possível extrair os factos dados como provados. A questão jurídica nuclear dos presentes autos não é a de saber se determinadas contas bancárias existem ou não, nem qual a sua natureza jurídica (própria ou comum), mas antes apurar se a Autora tem direito a exigir do Réu a prestação de informação sobre contas bancárias de que este era titular durante o casamento. Para responder a esta questão jurídica são suficientes os elementos documentais já constantes dos autos, sendo desnecessária, e até impertinente, a produção de prova testemunhal sobre factos acessórios ou conclusivos. A produção de prova testemunhal sobre a existência concreta de contas ou sobre a proveniência dos fundos nelas depositados é matéria que, a ser relevante, caberá apreciar em momento posterior – seja em sede de inventário, seja em ação declarativa autónoma – após a prestação da informação ora determinada. Não se verifica, pois, qualquer violação do direito à prova do Recorrente. Em linha com o argumento anterior, e com ele relacionado, alega também o Recorrente que a decisão recorrida se baseou exclusivamente na presunção de comunicabilidade dos bens móveis, prevista no artigo 1725.º do Código Civil, sem lhe ter sido dada a oportunidade de ilidir essa presunção através da produção de prova, argumento que não procede. Dispõe o artigo 1725.º do Código Civil que "Quando haja dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes consideram-se comuns." Esta presunção legal visa resolver situações de incerteza sobre a natureza jurídica de bens móveis, incerteza que é particularmente frequente em relação a saldos bancários e aplicações financeiras constituídas durante o casamento. A presunção do artigo 1725.º é uma presunção iuris tantum, ou seja, é ilidível mediante prova em contrário, cabendo ao cônjuge que invoca a natureza própria dos bens o ónus de a demonstrar, nos termos gerais do artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil. No caso vertente importa reiterar que a presente ação não tem por objeto a declaração definitiva de que determinados bens são comuns ou próprios. O objeto da ação é apenas a condenação do Réu na obrigação de prestar as informações requeridas pela Autora. Após a prestação dessas informações, e se o Réu entender que determinados saldos ou aplicações financeiras são bens próprios seus, terá ampla oportunidade de o alegar e demonstrar, seja em sede de inventário (onde compete ao cabeça-de-casal relacionar os bens e onde os interessados podem reclamar contra a relação de bens), seja em ação declarativa autónoma. A prestação das informações agora determinada não preclude nem prejudica o direito do Réu de ilidir a presunção de comunicabilidade. Pelo contrário, é através da prestação dessas informações que se criarão as condições para que ambas as partes possam exercer plenamente os seus direitos. Sustenta ainda o Recorrente que, nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, incumbia à Autora fazer prova da existência das contas bancárias cuja informação pretende obter, por se tratar de facto constitutivo do direito alegado, argumento que, com o devido respeito por distinta opinião, assenta numa incorreta compreensão do objeto da presente ação e das regras de repartição do ónus da prova. O objeto da presente ação não é a declaração de que determinadas contas bancárias são bens comuns do casal. O objeto da ação é a condenação do Réu na obrigação de prestar informação sobre contas bancárias de que era titular durante o casamento. A diferença é essencial. Não estamos perante uma ação declarativa para obter o reconhecimento de que determinados saldos bancários são bens comuns e devem ser partilhados. O que está em causa é o direito da Autora a obter informação sobre o património financeiro de que o Réu era titular durante o casamento, informação essa que é necessária para o exercício do direito à meação. O desiderato da presente ação restringe-se à prestação de uma obrigação de facto positivo – as informações requeridas. Como tal, não incumbe à Autora, nesta fase, fazer prova da existência concreta de cada conta bancária, do respetivo saldo, da sua natureza comum ou própria, ou da proveniência dos fundos nelas depositados. Essa é matéria que será apurada posteriormente, em sede de inventário ou de outra ação declarativa, após a prestação da informação agora determinada. A pretensão do Recorrente de que a Autora teria de provar previamente a existência das contas cuja informação pretende obter configura uma probatio diabolica – uma prova impossível ou excessivamente difícil –, já que a Autora não tem acesso direto a informações sobre contas bancárias tituladas exclusivamente pelo Réu. É precisamente para obviar a esta impossibilidade prática que a lei consagra o direito à informação - como instrumento de tutela do direito à meação. No regime da comunhão de adquiridos cada cônjuge tem direito a conhecer a composição do património comum para poder exercer efetivamente o seu direito à meação. Este direito à informação decorre diretamente dos deveres de cooperação entre cônjuges e dos princípios da boa fé e da transparência que devem presidir às relações patrimoniais no casamento e após a sua dissolução, recaindo por conseguinte sobre o ex-cônjuge titular exclusivo de contas bancárias e aplicações financeiras o dever de prestar informação ao outro ex-cônjuge sobre essas contas quando tal seja necessário para o exercício do direito à meação, nos termos do artigo 573.º do Código Civil, e dos princípios de cooperação e boa fé. Por outro lado, importa recordar que o Réu, na sua contestação, não negou ser ou ter sido titular de contas bancárias durante o casamento. Limitou-se a sustentar que não tinha obrigação de prestar a informação solicitada e que algumas das contas já tinham sido objeto de escrutínio noutros processos. Ora, se o Réu é ou foi titular de contas bancárias durante o casamento, está em posição de prestar a informação solicitada. Se algumas contas já foram objeto de análise noutros processos, nada impede que a informação seja novamente prestada de forma organizada e completa. Se outras contas já não existem ou a Autora era cotitular, a informação a prestar permitirá clarificar essas situações. Não assiste, pois, razão ao Recorrente quanto à alegada violação das regras do ónus da prova. Sustenta também o Recorrente que a decisão recorrida, ao condená-lo a prestar informações sobre todas as suas contas bancárias, incluindo aquelas que possam respeitar a bens próprios seus, viola o seu direito à privacidade e à proteção de dados pessoais, consagrados nos artigos 26.º e 35.º da Constituição da República Portuguesa, A análise da questão suscitada coloca desde logo em confronto dois direitos fundamentais: - Por um lado, o direito à privacidade e à proteção de dados do Réu (artigos 26.º e 35.º da Constituição da República Portuguesa); - Por outro lado, o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva da Autora, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, concretizado, in casu, no direito à meação dos bens comuns do casal (artigos 1689.º e 1730.º do Código Civil). A resolução deste conflito de direitos fundamentais exige a aplicação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), em especial dos seus três subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A respeito da adequação diremos que a prestação de informação sobre contas bancárias tituladas pelo Réu durante o casamento é meio adequado para permitir à Autora exercer o seu direito à meação no património comum. Sem essa informação, a Autora fica impossibilitada de fiscalizar a composição do acervo a partilhar e de defender os seus legítimos interesses patrimoniais. Quanto à necessidade, consideramos que não existe meio menos gravoso para a privacidade do Réu que seja igualmente eficaz. A Autora não tem acesso direto a informações sobre contas bancárias tituladas exclusivamente pelo Réu, estando dependente da colaboração deste ou de ordem judicial para as obter. No que concerne à proporcionalidade em sentido estrito, entendemos que o sacrifício imposto ao direito à privacidade do Réu é proporcionado ao benefício que a medida proporciona à Autora. A informação a prestar limita-se a contas bancárias e aplicações financeiras existentes durante um período temporal restrito (um ano) e reporta-se a um período em que as partes estavam casadas no regime de comunhão de adquiridos. Por outro lado, importa sublinhar três aspetos fundamentais: Primeiro: A prestação de informação não implica, por si só, uma determinação definitiva sobre a natureza comum ou própria dos bens. Como bem afirmou o Tribunal a quo, "dessa informação a prestar não resulta que os eventuais saldos comunicados sejam comuns ou próprios de cada cônjuge". Essa definição resultará, eventualmente, de outro processo judicial, com objeto diferente do presente. Segundo: Se o Réu entende que determinadas contas ou aplicações financeiras são bens próprios seus (por terem sido constituídas antes do casamento, por se tratarem de heranças ou doações, etc), terá oportunidade de ilidir a presunção de comunicabilidade prevista no artigo 1725.º do Código Civil, através da alegação e prova dos factos demonstrativos dessa natureza própria. Terceiro: A informação a prestar está temporalmente delimitada e funcionalmente orientada para a partilha dos bens do extinto casal. Não se trata de uma devassa indiscriminada e sem limites da vida financeira do Réu, mas de uma obrigação de informação circunscrita ao que é estritamente necessário para o exercício do direito à meação da Autora. Assim, nesta ponderação de interesses, não pode deixar de prevalecer o direito da Autora à informação necessária para exercer o seu direito constitucional e legalmente consagrado à meação dos bens comuns do casal. A respeito desta matéria, importa ainda ter em conta o artigo 335º, do Código Civil, que, sobre a colisão de direitos iguais ou da mesma espécie estabelece que os titulares devem ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito. O direito à privacidade não é absoluto e cede perante outros direitos fundamentais e interesses constitucionalmente protegidos, designadamente o direito à propriedade e à tutela jurisdicional efetiva, com sucede, in casu, pelo que também nesta parte não procede o recurso. Finalmente, o Recorrente alega que o Tribunal a quo errou ao fixar o período de 17 de fevereiro de 2014 a 17 de fevereiro de 2015 para a prestação de informações, tomando apenas por base a alegação da Autora quanto à saída do Réu da casa de morada de família em 17.02.2015, facto que não foi dado como provado. Alega ainda que, tendo a ação de divórcio sido proposta em 11 de maio de 2015, os efeitos patrimoniais devem ser considerados tendo em conta essa data, à luz do artigo 1789º, nº1, do Código Civil, e nunca a data alegada pela Autora como a data em que o Réu alegadamente terá saído de casa, pelo que também neste segmento decisório andou mal o Tribunal a quo, ao fixar o período de 17.02.2014 a 17.02.2015 para prestação de informações, tomando apenas por base a alegação da Autora quanto à saída do Réu da casa de morada de família em 17.02.2015, facto esse que não foi nem poderia ter sido dado como provado. Dispõe o artigo 1789.º, n.º 1 do Código Civil que "Os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges." O n.º 2 do mesmo artigo acrescenta que "Se a separação de facto entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio retroajam à data, que a sentença fixará, em que a separação tenha começado." No caso vertente: * O divórcio foi decretado por sentença proferida em 7 de setembro de 2015; * Não foi fixada na sentença de divórcio qualquer data de separação de facto para efeitos patrimoniais; Assim sendo, aplicando a regra geral do n.º 1 do artigo 1789.º, os efeitos patrimoniais do divórcio retrotraem à data da propositura da ação de divórcio. No caso concreto, a certidão junta indica que o processo de divórcio tem o n.º ..., mas não especifica a data exata da entrada da ação. Não obstante, resulta da própria numeração do processo de divórcio (...) que a ação foi proposta no ano de 2015. É certo que a Autora alegou na petição inicial que o Réu saiu da casa de morada de família em 17 de fevereiro de 2015, mas este facto não foi dado como provado, nem era necessário à decisão. O que releva é que a ação de divórcio foi proposta em 2015, necessariamente em data anterior a 7 de setembro de 2015, (segundo alega o Recorrente, em maio de 2015, embora a certidão junta não permita confirmar a data exata), e que os efeitos patrimoniais do divórcio retrotraem a essa data, pelo que, tendo a Autora limitado o seu pedido de informação ao período compreendido entre 17 de fevereiro de 2014 e 17 de fevereiro de 2015, nada impede que a informação seja prestada relativamente a esse período, pois corresponde a um período de vigência do matrimónio. Importa ainda ter presente que a fixação desse período concreto não prejudica o Réu. Se determinadas contas ou aplicações financeiras existentes nesse período eram bens próprios seus (por terem sido constituídas antes do casamento ou por outra razão), poderá alegá-lo e prová-lo quando prestar a informação ou em momento posterior. A informação a prestar sobre o período de 17.02.2014 a 17.02.2015 permitirá à Autora conhecer a situação patrimonial do Réu em período anterior à dissolução do casamento, o que é relevante para aferir a composição do acervo a partilhar. Impõe-se, pois, negar provimento ao presente recurso, com a consequente manutenção da sentença recorrida. * Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527º do Código de Processo Civil, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção. Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as custas serão da responsabilidade do Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia Síntese conclusiva (da exclusiva responsabilidade da Relatora – artigo 663º, nº7, do Código de Processo Civil): * III – DECISÃOPelo exposto, acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5ª Secção, Cível, do Tribunal da Relação do Porto, em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida. Custas pelo Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. * Porto, 13 de outubro de 2025* Os Juízes Desembargadores Teresa Pinto da SilvaMiguel Baldaia de Morais Mendes Coelho _____________ [1] Nestes casos a Relação limita-se a aplicar as regras vinculativas extraídas do direito probatório, devendo integrar na decisão o facto que considere provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado, pois que, nos termos do artigo 663.º, nº 2 do diploma citado, aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre as quais se insere o artigo 607.º, nº 3 do mesmo diploma legal, norma segunda a qual o juiz, na fundamentação, toma em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência, sendo que, nesta caso, estamos perante documento com força probatória plena (cf. artigo 369.º a 371.º do Código Civil). |