Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4143/20.6T8MAI.P3
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: CASO JULGADO
CASO JULGADO MATERIAL
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
Nº do Documento: RP202303234143/20.6T8MAI.P3
Data do Acordão: 03/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O caso julgado material produz os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da excepção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas.
II - O caso julgado impor-se-á por via da sua autoridade quando a concreta relação ou situação jurídica que foi definida na primeira decisão não coincide com o objecto da segunda acção, mas constitui pressuposto ou condição da definição da relação ou situação jurídica que nesta é necessário regular e definir (neste caso, o Tribunal apreciará e definirá a concreta relação ou situação jurídica que corresponde ao objecto da acção, respeitando, contudo, nessa definição ou regulação, sem nova apreciação ou discussão, os termos em que foi definida a relação ou situação que foi objecto da primeira decisão), o que não sucede no caso vertente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2023:4143/20.6T8MAI.P3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
AA, divorciado, residente na Rua ..., ..., ... ..., instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum contra BB, residente na Rua ..., ... Maia, onde concluiu pedindo seja condenada a Ré:
- a pagar ao A. a quantia de € 10.211,96, devida a título de metade das despesas suportadas por este último com os bens comuns do casal, acrescida dos juros de mora legais, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, ou
- Subsidiariamente, a restituir ao A. a quantia de € 10.211,96 resultante do enriquecimento sem causa, acrescida dos juros de mora legais, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
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Citada, a Ré contestou, por excepção (de caso julgado e de caducidade) e por impugnação.
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Por despacho saneador sentença, a Sr.ª Juiz a quo, após ter dispensado a realização da audiência prévia, por via da autoridade do caso julgado absolveu a Ré do pedido.
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Não se conformando com a decisão proferida, veio o recorrente AA interpor recurso de apelação.
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Por decisão singular deste Tribunal, decidiu-se anular a decisão que dispensou a realização da audiência prévia e o subsequente despacho saneador-sentença, determinando-se que seja proferida decisão a convocar as partes para audiência prévia, nos termos e para os efeitos do artigo 591º do Código de Processo Civil.
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Por despacho saneador sentença, a Sr.ª Juiz a quo, após ter realizado a audiência prévia, por via da autoridade do caso julgado absolveu a Ré do pedido.
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Por decisão singular deste Tribunal, decidiu-se anular a decisão impugnada, devendo o tribunal recorrido proferir nova decisão suprindo a omissão dos factos com relevo jurídico processual, fundamentando-a de facto e aplicando o direito, após realização das diligências tidas por necessárias.
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Por despacho saneador sentença, a Sr.ª Juiz a quo, após ter realizado a audiência prévia, por via da autoridade do caso julgado absolveu, de novo, a Ré do pedido.
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Não se conformando, de novo, com a decisão proferida, o recorrente AA veio interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

I. Por douta Sentença de 02/11/2022 o Insigne Tribunal a quo julgou improcedente a acção apresentada pelo Autor e fê-lo, sem mais, em desrespeito pela Decisão Singular proferida pelo Tribunal da Relação do Porto a 05/07/2022, mantendo-a desprovida de factos concretos relativos ao caso sub judice, julgando, não obstante, “verificada a excepção da autoridade do caso julgado e, em conformidade” absolveu a Ré do pedido, por confronto a alegados factos provados e não provados num dos vários processos de prestação de contas que correu termos entre Recorrente e Recorrida!

II. Isto sem mais fundamentação; sem apontar os concretos pontos da referida acção de prestação de contas que teriam incidido e decidido sobre os diversos valores peticionados nos presentes autos: “taxas de justiça” (sic art.º 8º da p.i.); “honorários” (sic art.º 9º da p.i.); “fornecimento de electricidade” (sic art.º 12º da p.i.); “despesas relacionadas com pedidos de informações, certidões e cópias” (sic art. 13.º da p.i.); “prestação vencida” (sic art.º 14.º da p.i.); e “reparação de uma avaria na caixa de velocidade” (sic art.º 15.º da p.i.).

III. Portanto, o Recorrente não pode conformar-se com o sentido da Decisão aqui em crise atenta a manifesta falta de fundamentação e análise (inexistente), que se crê errada, dos factos carreados e respectiva aplicação do direito.

IV. Pode ler-se na Decisão recorrida o seguinte - praticamente cópia da Decisão anterior já revogada por este Insigne Tribunal:
“1 - O Autor intentou a presente acção requerendo que a Ré seja condenada a pagar a quantia de € 10.211,96.

2 - Como causa de pedir alega o pagamento de despesas por si suportadas com os bens comuns do casal.

3 - Correu termos acção de prestação de contas intentada pelo Autor contra a Ré, por apenso ao processo de inventário nº 1575/06.6TMPRT onde, entre outras verbas, foram apreciadas as verbas das despesas aqui peticionadas.

4 - Na sentença proferida nessa acção, já transitada em julgado, foi proferida decisão que julgou a mesma parcialmente procedente.

5 - Na fundamentação de facto da referida sentença foram dados como provados e não provados factos atinentes à causa de pedir, designadamente os constantes dos pontos 6 a 72 dos factos provados da referida sentença proferida no processo 1575/06.6TMPRT-F que aqui se dão por reproduzidos.”

V. Em relação à afirmação “Na fundamentação de facto da referida sentença foram dados como provados e não provados factos atinentes à causa de pedir, designadamente os constantes dos pontos 6 a 72 dos factos provados da referida sentença proferida no processo 1575/06.6TMPRT-F que aqui se dão por reproduzidos.”, a Douta Sentença é tão obscura e ambígua que nem se consegue perceber o alcance, que resta perguntar: mas qual fundamentação? Quais factos provados? Quais factos não provados? Algum dos pontos 6 a 72? Todos?

VI. Como pode o Recorrente apresentar o conveniente recurso se a Douta Sentença não concretiza, salvo o devido respeito que é muito, não contém os fundamentos que conduziram à formação da convicção do Julgador, bastando-se a remeter para diversos pontos que nenhuma correspondência têm com a presente causa de pedir?

VII. À míngua de melhor entendimento e sublinhando a excelência discursiva, leia-se o categórico Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, com o nº de processo 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, datado de 26/02/2019, acessível em www.dgsi.pt,: “I. A fundamentação da matéria de facto provada e não provada, com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas da decisão, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal. (…)

VIII. Na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjectivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável, pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível, habilitando ao cumprimento dos ónus impostos ao recorrente impugnante da matéria de facto, mormente, quanto à concreta indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos das als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.

IX. Uma deficiente ou obscura alusão aos factos provados ou não provados pode comprometer o direito ao recurso da matéria de facto e, nessa perspectiva, contender com o acesso à Justiça e à tutela efectiva, consagrada como direito fundamental no art. 20º da Constituição da República.”

X. Ora, veja-se que a Decisão recorrida refere “acção de prestação de contas” e, in casu, houveram duas acções de prestação de contas, que correram por apenso a um processo de inventário e ainda correu termos um processo de partilha adicional, agora remetendo para o apenso F sem qualquer objetividade ou critério!

XI. Ora, analisando o exposto e que em relação ao caso concreto o insigne Tribunal a quo despendeu apenas mais algumas linhas no final do Aresto, verificamos que aquele optou por remeter genericamente, sem qualquer fundamentação ou concretização, para a dita (?) acção de prestação (?) de contas todas as alegadas verbas aqui peticionadas!

XII. Tudo sem especificar nos termos da lei os fundamentos de facto, sem preocupação de analisar cada um dos diversos alicerces geradores da causa de pedir, sendo que, como se verificará, nenhuma das verbas peticionadas foram apreciadas em acção anterior, pelo que só por isso se compreenderá que o insigne Tribunal a quo não tenha especificado o ponto concreto da prestação contas em que as verbas sub iuris foram apreciadas!

XIII. Para o efeito, tal como decidido nas acções anteriores, veja-se que os valores peticionados nestes autos dizem respeito a quantias que o Autor alega ter despendido!

XIV. E as prestações de contas - foram duas e não apenas uma como refere erradamente a Douta Sentença - foram prestadas pela Ré pois era esta que administrava os bens do extinto casal!

XV. Ora, sendo pacífico que na prestação de contas, nos termos do art.º 941.º do Cód. Proc. Civil, “tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra os bens”, in casu, a Ré, as despesas aqui peticionadas suportadas pelo Autor/Recorrente nunca poderiam ser objecto da prestação de contas em questão - tal como ocorreu nos processos anteriores entre A. e Ré, não obstante o Recorrente ainda ter tentado fazê-lo.

XVI. Percorrido cada um dos pontos e do próprio processo 1575/06.6TMORT-F não se vislumbra qualquer correspondência com a causa de pedir e pedidos dos presentes autos.

XVII. Ora, resulta assim inequívoco que a Douta Sentença recorrida está ferida de manifesta omissão de fundamentação, bem como ambiguidade e obscuridade, o que consubstancia nulidade, nos termos dos arts. 607º, nº 4, e 615º, nº 1, als. c) e d) do Código de Processo Civil, que expressamente se invoca e espera ver deferida, por ter manifesta relevância na boa decisão da causa, com as legais consequências, devendo ser revogada e ordenado o prosseguimento dos autos.

XVIII. Até porque, o Tribunal a quo, com a repetição da Sentença anteriormente proferida, violou a Decisão do Tribunal da Relação do Porto, que transitou em julgado e que vincula o Tribunal de 1ª Instância!
Caso ainda assim não se entenda,

XIX. A presente ação em nada contende com o do Proc. n.º 1575/06.6TMPRT ou com o Apenso F, pois que, com a presente pretende o Recorrente a condenação da Recorrida, no pagamento de metade diversas despesas que aquele suportou, para manutenção do património comum do casal.

XX. Isto em consideração, resulta diáfano do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, junto com a P.I. como documento n.º 4, página 32, que: “No que concerne ao primeiro desses itens (despesas suportadas pelo autor) cremos que a decisão de os considerar excluídos do objeto do presente processo se impõe”.

XXI. Donde, resulta cristalino que é o próprio Tribunal da Relação do Porto que expressamente excluiu do âmbito da sua apreciação as despesas que o A./Recorrente suportou naquele processo de onde, aparentemente, resulta a fundamentação da Sentença para autoridade do caso julgado.

XXII. Dispõe o artigo 621.º do Código de Processo Civil: “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…)” pelo que outra conclusão não se impõe que não seja a de que não existe caso julgado algum!

XXIII. Mas não só, na página seguinte, do mesmo Acórdão (doc. 4 junto com a P.I), refere o Venerando Tribunal da Relação do Porto: “Se outrem que não a cabeça de casal entendeu suportar despesas em benefício do património comum apesar de não lhe caber a respetiva administração e, portanto, a obrigação legal de suportar tais despesas, terá de lançar mão das competentes ações comuns para obter dos outros titulares do património, se necessário com base no instituto do enriquecimento sem causa, aquilo que estes se locupletaram por terem recebido património beneficiado ou conservado em virtude das despesas.”.

XXIV. Portanto, não obstante algumas das verbas - e não todas apesar da Decisão recorrido não distinguir nenhuma delas - aqui referidas terem sido peticionadas, ainda que de forma distinta, os pedidos formulados pelo Recorrente no processo 1575/06.6TMPRT-F soçobraram, nomeadamente por falta de legitimidade do Recorrente, redundando apenas na absolvição da instância da Ré Recorrida, não tendo havido pronúncia de mérito, sendo indicado aliás que deveria aquele lançar mão de acções comuns, o que fez agora. Cfr. Sentença e Acórdão proferido no citado processo 1575/06.6TMPRT-F juntas a fls…

XXV. Não remanescem, assim, dúvidas que o trânsito em julgado das decisões proferidas no Processo n.º 1575/06.6TMPRT, não têm a virtualidade de servir de sustento ao arreigado caso julgado.

XXVI. Mas mais, na partilha adicional – apesar de não ser esta que aparentemente fundamenta a Decisão recorrida - que ocorreu no apenso D ao processo 1575/06.6TMPRT, também o Insigne Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Família e Menores de Gondomar, Juiz 1, decidiu, por Despacho de 03/02/2020, junto como Doc. 3 com a Contestação, sobre as verbas que o A./Recorrente ali pretendia relacionar:
“Perante o que antecede, tem de entender-se que os créditos reclamados pelo interessado não devem ser verificados para efeitos da presente partilha adicional. Consequentemente, sem prejuízo do recurso aos meios processuais próprios, não se reconhecem, para efeitos de partilha adicional, os créditos reclamados pelo interessado AA no requerimento com a refª 33667912.”

XXVII. E como se pode verificar da simples análise do Doc. 5 junto com a contestação da Ré/Recorrida, correspondente a requerimento do A./Recorrente em que peticiona a verificação de algumas dessas verbas nos presentes autos, que resultou no Despacho supra transcrito, tais verbas não foram apreciadas pelo que, uma vez mais, não pode ocorrer qualquer caso julgado.

XXVIII. Portanto, necessariamente se conclui que nunca antes o pedido e causa de pedir foi apreciado por qualquer Insigne Tribunal, nem a douta Sentença recorrida – ou sequer a Ré/Recorrida – identifica o concreto ponto das Decisões anteriores já proferidas que possam sustentar a alegada autoridade do caso julgado.

XXIX. Neste conspecto, até por violação, aqui sim do caso julgado, dado que foram os anteriores Tribunais, nas citadas Decisões juntas a fls…, que ordenaram que a discussão sub judice fosse efectuada nos Tribunais comuns, sempre deverá, em qualquer caso, ser revogada a Sentença recorrida, prosseguindo os seus termos o processo, com as legais consequências.

Acresce que,
XXX. No seguimento do exposto, resulta também inequívoco que mal andou o Insigne Tribunal a quo ao julgar provados os seguintes factos:
“3 - Correu termos acção de prestação de contas intentada pelo Autor contra a Ré, por apenso ao processo de inventário nº 1575/06.6TMPRT onde, entre outras verbas, foram apreciadas as verbas das despesas aqui peticionadas. (…)
5 - Na fundamentação de facto da referida sentença foram dados como provados e não provados factos atinentes à causa de pedir, designadamente os constantes dos pontos 6 a 72 dos factos provados da referida sentença proferida no processo 1575/06.6TMPRT-F que aqui se dão por reproduzidos.”

XXXI. Nenhuma das Decisões anteriores foi proferida Decisão de mérito sobre os créditos aqui peticionados, resultando expressamente daquelas ou absolvição da instância ou a obrigação de recurso para os meios comuns – quanto a algumas das verbas e não todas –, tal como acima se transcreveu.

XXXII. E repita-se, percorridos os “pontos 6 a 72 dos factos provados da referida sentença proferida no processo 1575/06.6TMPRT-F que aqui se dão por reproduzidos” em nenhum deles existe qualquer correspondência com os pedidos efetuados nos presentes autos. Cfr sentença proferida no processo 1575/06.6TMPRT-F e Acórdão proferido naqueles autos, juntos a fls…

XXXIII. Veja-se que em todos esses pontos verifica-se que foram despesas efectuadas pela aqui Ré/Recorrida e não despesas efectuadas pelo aqui A./Recorrente, despesas estas que originaram os presentes autos, inexistindo qualquer correspondência.

XXXIV. Assim, a Douta Sentença sempre deverá ser revogada em relação à matéria de facto dada como provada, passando a constar apenas, quanto ao ponto 3: “3 - Correu termos acção de prestação de contas intentada pelo Autor contra a Ré, por apenso ao processo de inventário nº 1575/06.6TMPRT.(…)

XXXV. E deverá ser dado como não provado que: “5 - Na fundamentação de facto da referida sentença foram dados como provados e não provados factos atinentes à causa de pedir, designadamente os constantes dos pontos 6 a 72 dos factos provados da referida sentença proferida no processo 1575/06.6TMPRT-F que aqui se dão por reproduzidos.”

XXXVI. O que tudo levará a que a Sentença seja revogada pois a alteração à matéria de facto agora apresentada conduzirá necessariamente, pelo menos, ao prosseguimento do processo, para que seja devidamente fundamentada de facto e de direito por outra Decisão, conforme já ordenado pelo Tribunal da Relação do Porto.

XXXVII. A douta Sentença recorrida violou as normas e princípios citados, nomeadamente os art.ºs 591.º a 593.º, 607.º e 615.º do Cód. Proc. Civil, pelo que deverá ser revogada nos termos e pelos fundamentos alegados, prosseguindo os presentes autos a sua normal tramitação!
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pela recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso prendem-se com saber:
- Da nulidade da decisão recorrida;
- Da verificação da excepção de caso julgado/autoridade de caso julgado;
- Da impugnação da matéria de facto.

3. Conhecendo do mérito do recurso:
3.1 Da nulidade da decisão recorrida
Arguiu, desde logo, o recorrente a nulidade da decisão recorrida, por ausência de fundamentação de facto, bem como por desobediência à decisão sumária deste Tribunal da Relação.
Vejamos, então, se a decisão sob recurso é nula.
Ora, as causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável a outras decisões, por força do disposto no artigo 613.º, n.º 3, onde se estabelece que é nula a sentença:
- Quando não contenha a assinatura do juiz (al. a)).
- Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)).
- Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).
- Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)).
- Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e)).
O Prof. Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pág. 297, na análise dos vícios da sentença enumera cinco tipos: vícios de essência; vícios de formação; vícios de conteúdo; vícios de forma e vícios de limites.
Refere o mesmo Professor, in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pág. 308, que uma sentença nula “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”.
Por seu turno, o Prof. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 686, no sentido de delimitar o conceito, face à previsão do artigo 668º do Código de Processo Civil (actual artigo 615º), salienta que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença.”.
Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, págs. 668 e 669, considera que apenas a “falta de assinatura do juiz” constitui fundamento de nulidade, pois trata-se de “um requisito de forma essencial. O acto nem sequer tem a aparência de sentença, tal como não tem a respectiva aparência o documento autêntico e o documento particular não assinados”. A respeito das demais situações previstas na norma, considera o mesmo autor tratar-se de “anulabilidade” da sentença e respeitam “à estrutura ou aos limites da sentença”.
No caso vertente, afirma o recorrente que a decisão recorrida continua a padecer do vício de nulidade por ausência de especificação dos fundamentos de facto e por desobediência ao determinado por este Tribunal da Relação em decisão sumária.
Conforme atrás referimos, e de acordo com o disposto no artigo 615º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil “é nula a sentença quando (…) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (…)”.
A nulidade contemplada nesse preceito ocorre quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda da decisão, impondo-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento.
Esse dever de fundamentação, causa de nulidade da sentença, respeita à falta absoluta de fundamentação, como dão nota A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 687, ao escreverem “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
Como já afirmava o Prof. Alberto os Reis, ob. citada, pág. 140, “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.
No mesmo sentido, constitui jurisprudência pacifica e reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, sufragada, entre outros, nos acórdãos de 9.10.2019, Procº nº 2123/17.8LRA.C1.S1, de 15.5.2019, Procº nº 835/15.0T8LRA.C3.S1 e de 2.6.2016, Procº nº 781/11.6TBMTJ.L1.S1, que só se verifica a nulidade da sentença em caso de falta absoluta de fundamentação ou motivação não bastando que esta seja deficiente, incompleta ou não convincente.
Percorrendo com atenção o texto da sentença recorrida, resulta que a mesma se encontra minimamente fundamentada de facto tendo, ainda, obedecido minimamente ao determinado na decisão sumária deste Tribunal da Relação.
Afigura-se-nos, por isso, não ter ocorrido ausência absoluta de fundamentação da decisão.
Não ocorre, assim, este fundamento de nulidade da decisão.

3.2 Da verificação da excepção de caso julgado/autoridade de caso julgado

Argui a recorrente a ausência de verificação dos requisitos da força do caso julgado/autoridade do caso julgado entre a presente acção e o processo n.º 1575/06.6TMPRT, cujo objecto foi o inventariar e partilhar os bens comuns do extinto casal, designadamente o apenso F, apenso de prestação de contas, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Família e Menores de Gondomar, Juiz 1.
Vejamos, então.
Nos termos dos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea i) do Código de Processo Civil, o caso julgado constituiu uma excepção dilatória que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância.
A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, depois da primeira ter já sido decidida por sentença sem possibilidade de recurso ordinário, e visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigo 497.º do Código de Processo Civil).
Para que se verifique a excepção de caso julgado é necessário (cf. artigo 581.º do Código de Processo Civil):
- identidade de sujeitos (quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade jurídica);
- identidade de pedido (quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico);
- identidade de causa de pedir (quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico)
Por sua vez, caso a acção tenha vários pedidos ou causas de pedir, a excepção pode verificar-se apenas quanto a algum ou alguns dos pedidos ou causas de pedir que tenham já sido objecto de apreciação judicial (cf. Prof. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, págs. 320 e ss.).
Ora, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.11.2013, proferido no processo n.º 106/11.0TBCPV.P1.S1, in www.dgsi.pt, e constitui enquadramento teórico consensual “o caso julgado tem, (…), como pressuposto a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e exerce duas funções: (i) uma função positiva e (ii) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade, e exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo tribunal. Visando tal excepção, assim, evitar que o tribunal contrarie na decisão posterior o que decidiu na primeira ou a repita; a autoridade do caso julgado é o comando da acção ou proibição de repetição. O que vale por dizer que a sentença faz caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável (efeito processual do caso julgado) em razão do que o tribunal não pode voltar a pronunciar-se sobre o decidido (excepção do caso julgado) e fica vinculado ao respectivo conteúdo (autoridade do caso julgado) (...). Sendo certo que a autoridade de caso julgado e a excepção de caso julgado não são duas figuras distintas, mas antes duas faces da mesma figura - consistindo o facto jurídico "caso julgado" em existir uma sentença (um despacho) com trânsito sobre determinada matéria (...). E, caso se encontrem preenchidos os pressupostos do caso julgado, pode distinguir-se entre o caso julgado formal, externo ou de simples preclusão e o caso julgado material ou interno. Consistindo o primeiro (art. 672.º) em estar excluída a possibilidade de recurso ordinário, nada obstando, porém, em que a matéria da decisão seja diversamente apreciada noutro processo, pelo mesmo ou por outro Tribunal. Correspondendo o mesmo às decisões que versam apenas sobre a relação processual, não provendo sobre os bens litigados. Consistindo o segundo (art. 671.º), geralmente designado como caso julgado "res judicata", em a definição dada à relação controvertida se impor a todos os Tribunais (e até a quaisquer outras autoridades), quando lhes seja submetida a mesma relação. Todos têm de a acatar, de modo absoluto, julgando em conformidade, sem nova discussão. Competindo o mesmo às decisões que versam sobre o fundo da causa, sobre os bens discutidos no processo, definindo a relação ou situação jurídica deduzida e discutida em Juízo (...). Quando constitui uma decisão de mérito (decisão sobre a relação material controvertida) a sentença produz, também fora do processo, efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se nos planos substantivo e processual, distinguindo-se, neste, como atrás aflorado, o efeito negativo da inadmissibilidade de uma segunda acção (proibição de repetição: excepção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade de caso julgado) (...). Enquanto excepção, o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa idêntica, repetindo-se a mesma quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (arts. 497.º, n.º 1, e 498.º, n.º 1): (i) há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; (ii) há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e (iii) identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico - arts. 497.º, n.º 1, e 498.º, do CPC.”.
Ou seja, a excepção do caso julgado tem como fundamento teleológico impedir que os tribunais se vejam obrigados a decidir novamente a mesma questão. Esse objectivo tem como preocupações subjacentes assegurar a paz jurídica dos cidadãos, que passam a poder confiar que o trânsito em julgado da decisão sobre um determinado conflito o resolve em definitivo e não terão a necessidade de demandarem ou se defenderem de novo a propósito do mesmo conflito jurídico, evitar a prolação de decisões divergentes e o risco que isso representa para a imagem da justiça e para a clareza dos comandos jurisdicionais a que se deve obediência, e, finalmente, obstar ao desperdício de meios que a repetição de procedimentos jurisdicionais para decidir a mesma questão implicaria desnecessariamente.
Tratando-se de um bloqueio ao direito de acesso aos tribunais e de um impedimento à suscitação de solução para uma controvérsia jurídica que as partes podem manter latente e cujos pontos de vista podem divergir ou evoluir, esta excepção tem naturalmente contornos rigorosos que se reconduzem ao requisito da chamada tripla identidade: para que estejamos perante a mesma questão jurídica é necessário que haja identidade de partes, de causas de pedir e de pedidos.
Este requisito encontra-se obviamente moldado para a situação comum que é a de a excepção se colocar entre uma acção declarativa já decidida e uma acção declarativa que se pretende instaurar, ou seja, os elementos que devem ser idênticos são elementos característicos das acções declarativas, nas quais se formula a pretensão de uma concreta tutela jurisdicional correspondente à forma como se pretende fazer valer um determinado direito (declarando a sua existência, condenando o réu na prestação que corresponde ao direito ou introduzindo na ordem jurídica a mudança que o direito implica), ancorando esse direito num fundamento específico traduzido em factos jurídicos concretos que delimitam o objecto da decisão do tribunal.
Reportando-nos ao caso vertente, importa consignar que os elementos fácticos a considerar para o conhecimento da excepção da autoridade do caso julgado, resultam da tramitação dos presentes autos, bem como do processo de inventário n.º 1575/06.6TMPRT., designadamente do apenso F.
A questão agora a apreciar é a de saber se a eficácia de caso julgado da decisão proferida no processo n.º 1575/06.6TMPRT, designadamente do apenso F, impede de conhecer da pretensão deduzida pelo autor/recorrente contra a ré/recorrida.
Está em causa a aferição dos limites do caso julgado material da referida decisão.
Conforme referimos, importa reter que o instituto do caso julgado tem por finalidade garantir o prestígio dos Tribunais - que seria comprometido se a mesma situação concreta, uma vez definida, pudesse ser decidida em sentido diferente por uma sentença posterior -, e assegurar a certeza e segurança jurídicas, impedindo o surgimento de decisões que ponham em causa o acertamento jurídico formulado judicialmente - cf. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1963, págs. 282 e ss.
Assim, proferida uma sentença, esta vincula o futuro Tribunal a não admitir nova discussão e julgamento sobre a relação jurídica nela definida, remetendo as partes para a mesma, sem conhecer do respectivo mérito, absolvendo os demandados da instância (artigos 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea i), do Código de Processo Civil).
Assim, há caso julgado quando se verifique a tríplice identidade de elementos nas lides - sujeitos, causa de pedir e pedido - e uma delas tenha já sido decidida por sentença transitada em julgado.
No que respeita aos limites subjectivos, em regra, a sentença só tem força de caso julgado entre as partes do processo onde a mesma foi proferida, entendendo-se esta identidade como abrangendo as pessoas que sucederam juridicamente na posição daquelas, sendo irrelevante que as partes surjam no novo processo em posição inversa da que participaram no processo primitivo (artigo 581.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No que concerne aos limites objectivos do caso julgado, que se reportam à identidade de pedido e de causa de pedir, realce-se novamente a finalidade subjacente a este instituto, que visa obviar à contradição prática de decisões, obstando a “decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de algumas delas); a que em novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por uma anterior decisão e, portanto, desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados” ou que possa excluir um efeito jurídico definido na primeira sentença.
A extensão objectiva do caso julgado corresponde ao objecto da acção, constituído este pelo pedido e causa de pedir, devendo a definição dada pela sentença à situação ou relação material apreciada ser respeitada para todos os efeitos em qualquer novo processo, tendo-se por assente que a mesma situação ou relação jurídica subsista tal como aquela a definiu.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/09/2010, acessível in www.dgsi.pt: “Todas as questões e excepções postas e solucionadas na sentença, por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor (ou do réu), estão compreendidas na expressão «precisos limites e termos em que se julga», do artigo 673.º [actual 621.º], do Código de Processo Civil, ao definir o alcance do caso julgado.”.
Postos estes considerandos, vejamos o caso dos autos.
Na presente acção, é indubitável que não se verifica a tríplice identidade de elementos nas lides em causa - sujeitos, causa de pedir e pedido - para poder ser equacionada a existência de caso julgado nos termos definidos pelo artigo 580.º, do Código de Processo Civil.
Coloca-se, por isso, a questão de saber se lhe pode ser oponível, nesta acção, a excepção da força e autoridade do caso julgado da decisão proferida no processo n.º 1575/06.6TMPRT, cujo objecto foi o inventariar e partilhar os bens comuns do extinto casal e, designadamente do apenso F – apenso de prestação de contas.
Conforme referimos, a força de caso julgado da sentença é um fenómeno essencial à garantia dos valores constitucionais da confiança e da segurança jurídica, bem como à prossecução da finalidade da pacificação social.
Espraia-se sob diferentes prismas ou modalidades.
Pode ocorrer por força da excepção do caso julgado, a qual reflecte a denominada função negativa do caso julgado.
Assim, segundo o disposto no artigo 580.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, as excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa. Repete-se uma causa quando se propõe uma ação idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir - artigo 581.º, n.º 1, do mesmo Código (tríplice identidade).
Já a figura da autoridade do caso julgado não se afeiçoa à ideia de identidade jurídica, mas de prejudicialidade entre objectos processuais.
Logo, julgada em termos definitivos certa matéria, numa acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objeto desta primeira causa, sobre essa precisa questio judicata, impõe-se necessariamente em todas as outras acções que venham a correr termos entre as mesmas partes, incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação depende decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda acção (cf. acórdão do STJ de 24.4.2015, processo 7770/07.3TBVFR.P1.S1, in www.dgsi.pt).
Nas palavras de Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora: Coimbra, 1979, pág. 305), o caso julgado material «consiste em a definição dada à relação jurídica controvertida se impor a todos os tribunais (e até a quaisquer outras autoridades) - quando lhes seja submetida a mesma relação, quer a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão), quer a título prejudicial (acção destinada a fazer valer outro efeito dessa relação). Todos têm que acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão».
A força obrigatória reconhecida ao caso julgado material, segundo o mesmo Autor (obra citada, p. 306), encontra arrimo na necessidade de garantir o prestígio dos tribunais, que ficaria seriamente comprometido «se a mesma situação concreta, uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente».
Impõe-se por razões de «certeza ou segurança jurídica», pois, sem a força do caso julgado, cairíamos «numa situação de instabilidade jurídica (instabilidade das relações jurídicas) verdadeiramente desastrosa - fonte perene de injustiças e paralisadora de todas as iniciativas».
Na verdade, o desígnio do processo não é apenas a justiça - a realização do direito objectivo ou a actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes - mas também a segurança e a paz social.
Miguel Teixeira de Sousa (in Objecto da Sentença e Caso Julgado Material, BMJ n.º 325, págs. 171 a 179) observa que, «quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão antecedente».
Numa breve explicação, Rui Pinto sintetiza desta forma a noção de caso julgado:
«O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da excepção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem.
O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior.
Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veritate habetur.
Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objectos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão.
(…) Explicado de outro modo, enquanto com o efeito negativo um acto processual decisório anterior obsta a um acto processual decisório posterior, com o efeito positivo um acto processual decisório anterior determina (ou pode determinar) o sentido de um acto processual decisório posterior. («Exceção e autoridade de caso julgado - algumas notas provisórias», Julgar Online, novembro de 2018, págs. 6-7).».
Tem sido discutida a problemática da extensão do caso julgado material.
A jurisprudência maioritária tem sufragado o entendimento de que não é apenas a conclusão ou o dispositivo da sentença que têm força de caso julgado, alcançando-se um critério mais eclético que, sem estender a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, atribua essa autoridade à decisão das questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado - cf., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.4.2004 (p. 04A1060), de 20.5.2004 (p. 04B281), de 13.1.2005 (p. 05A008), de 22.2.2018 (p. 3747/13.8T2SNT.L1.S11) e de 8.9.2018 (p. 3316/11.7TBSTB-A.E1.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt.
No caso vertente, o Tribunal a quo entendeu estar perante uma situação de aplicação da Autoridade do Caso Julgado.
Sustenta a apelante, com razão, que o Tribunal a quo partiu de uma premissa errada.
Com efeito, resulta do Acórdão do Tribunal desta Relação do Porto, junto com a p.i. como documento n.º 4, página 32, que: “No que concerne ao primeiro desses itens (despesas suportadas pelo autor) cremos que a decisão de os considerar excluídos do objeto do presente processo se impõe”.
Donde, resulta que é o próprio Tribunal da Relação que expressamente excluiu do âmbito da sua apreciação as despesas que o Autor/Recorrente suportou no referido processo de onde, aparentemente, resulta a fundamentação da sentença para autoridade do caso julgado.
De resto, é pacífico que a prestação de contas, nos termos do artigo 941.º, do Código de Processo Civil, “tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra os bens”, ou seja, in casu, a Ré/Apelada, pelo que as despesas aqui peticionadas suportadas pelo Autor/Recorrente não poderiam ser objecto da prestação de contas em questão.
Ora, dispõe o artigo 621.º do Código de Processo Civil, que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…)”.
Assim, concatenando o normativo atrás referido com a exegese do acórdão do Tribunal desta Relação atrás citado, outra conclusão não se impõe que não seja a de que não se verificam os pressupostos do caso julgado ou da excepção da autoridade do caso julgado.
Ademais, na página seguinte, do mesmo Acórdão (doc. 4 junto com a petição inicial), refere este Tribunal da Relação que “Se outrem que não a cabeça de casal entendeu suportar despesas em benefício do património comum apesar de não lhe caber a respetiva administração e, portanto, a obrigação legal de suportar tais despesas, terá de lançar mão das competentes ações comuns para obter dos outros titulares do património, se necessário com base no instituto do enriquecimento sem causa, aquilo que estes se locupletaram por terem recebido património beneficiado ou conservado em virtude das despesas.”.
Assim, conforme resulta da sentença e do acórdão proferido no processo 1575/06.6TMPRT-F, não obstante algumas das verbas - e não todas, sendo certo que a decisão recorrida não distingue nenhuma delas - aqui referidas terem sido peticionadas, ainda que de forma distinta, os pedidos formulados pelo Recorrente no processo 1575/06.6TMPRT-F soçobraram, nomeadamente por falta de legitimidade do Recorrente, redundando apenas na absolvição da instância da Ré Recorrida.
Afigura-se-nos, por isso, que não só o Tribunal não se pronunciou sobre as despesas efectivamente suportadas pelo A./Recorrente, como, aliás, remeteu a referida questão para ulterior oportunidade em acção a instaurar para o efeito.
Ou seja, parece-nos que o trânsito em julgado das decisões proferidas no Processo n.º 1575/06.6TMPRT, nomeadamente no apenso F, não têm a virtualidade de servir de sustento ao arreigado caso julgado.
Aliás, na partilha adicional – apesar de não ser esta que aparentemente fundamenta a decisão recorrida - que ocorreu no apenso D ao processo 1575/06.6TMPRT, também o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Família e Menores de Gondomar, Juiz 1, decidiu, por despacho de 03/02/2020, junto como doc. 3 com a contestação, sobre as verbas que o A./Recorrente ali pretendia relacionar: “Perante o que antecede, tem de entender-se que os créditos reclamados pelo interessado não devem ser verificados para efeitos da presente partilha adicional. Consequentemente, sem prejuízo do recurso aos meios processuais próprios, não se reconhecem, para efeitos de partilha adicional, os créditos reclamados pelo interessado AA no requerimento com a refª 33667912.”
Afigura-se-nos, portanto, que nunca antes o pedido e causa de pedir foram apreciados por qualquer Tribunal, nem a sentença recorrida - ou sequer a Ré/Recorrida - identifica o concreto ponto das decisões anteriores já proferidas que possam sustentar a alegada autoridade do caso julgado.
Assim, parece-nos insofismável inexistir caso julgado para os pedidos do Recorrente referentes a: “taxas de justiça” (art.º 8º da p.i.); “honorários” (art.º 9º da p.i.); “fornecimento de electricidade” (art.º 12º da p.i.); “despesas relacionadas com pedidos de informações, certidões e cópias” (art.º 13.º da p.i.); “prestação vencida” (art.º 14.º da p.i.); e “reparação de uma avaria na caixa de velocidade” (art.º 15.º da p.i.).
Afigura-se-nos, por isso, que a presente lide, atenta a alegada factualidade controvertida, não se insere, desde já, no âmbito dos limites objectivos do caso julgado produzido pela sentença proferida no processo n.º 1575/06.6TMPRT, designadamente do apenso F, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Família e Menores de Gondomar, Juiz 1, quer força do caso julgado stricto sensu, quer ainda em virtude da autoridade de caso julgado, impondo-se a sua improcedência e o prosseguimento dos autos.
Por virtude da referida decisão, considera-se prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso interposto.
Impõe-se, por isso, a procedência da apelação.
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Em jeito de síntese conclusiva:
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4. Decisão
Nos termos supra expostos, acorda-se, neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar a apelação procedente e revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos.
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As custas são a cargo da apelada.
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Notifique.

Porto, 23 de Março de 2023
Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
Isabel Silva
João Venade

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)