Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MANUELA MACHADO | ||
Descritores: | EMBARGOS DE EXECUTADO LIVRANÇA RELAÇÃO FUNDAMENTAL SUBJACENTE | ||
Nº do Documento: | RP20240606174/10.2TBPNF-B.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/06/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - Do art. 703.º do CPC resulta quais as espécies de títulos executivos que podem servir de base à execução, entre os quais se contam “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo” (al. c), do nº 1, do art. 703.º). II - A livrança que contenha os requisitos essenciais referidos nos arts. 75.º e 76.º da LULL, constitui título cambiário autónomo e abstrato, integrado no elenco dos títulos executivos por via do disposto no art. 703.º, nº 1, c) do CPC, incorporando no título o direito nele representado, com plena autonomia da relação fundamental subjacente. III - Dada à execução uma livrança como título de crédito, como acontece no caso, o exequente não tem que expor quaisquer factos que fundamentem o pedido, cabendo, antes, ao executado alegar e provar factos que ponham em causa a validade do título, incluindo da relação fundamental. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Apelação 174/10.2TBPNF-B.P1 Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto: I – RELATÓRIO Por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa titulada por uma livrança, instaurada por A..., S.A., veio a executada AA, portadora do cartão de cidadão da República Portuguesa com o número de identificação civil ..., válido 03.08.2031, NIF ..., casada, residente na Rua ..., (...) freguesia ..., concelho de Penafiel, deduzir oposição à execução mediante embargos de executado, invocando como fundamentos, nomeadamente, a falta de junção do título executivo, a ineptidão do requerimento executivo por falta de causa de pedir, bem como a falsidade da assinatura que consta no verso da livrança enquanto avalista, concluindo pela extinção da execução. A embargada foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência dos embargos. * Nessa sequência, foi proferido despacho saneador, nos seguintes termos, na parte que para o caso interessa:“Fixa-se aos presentes embargos o valor de € 11.817,87 (posteriormente retificado para € 17.028,90), que corresponde ao valor da execução. (…) Da ineptidão do requerimento executivo por falta de exposição dos factos. Invoca a embargante a ineptidão do requerimento executivo, alegando, para o efeito, que a exequente não indicou os factos jurídicos concretos que integram a causa de pedir. Em resposta, alega a exequente que o requerimento executivo não padece de qualquer omissão, uma vez que a execução se funda em título de crédito – livrança - que constitui, por si só, título executivo, sem necessidade de invocação de qualquer outra factualidade. Cumpre decidir. Nos termos do disposto no art. 186º/2, a) do Código de Processo Civil a petição inicial é inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir. Dispõe depois o nº 3 do mesmo preceito legal que se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na aliena a), não se julgará procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o R. interpretou convenientemente a petição inicial. É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial segundo o nº 1 do já citado art. 186º. A nulidade de todo o processo conduz à absolvição do réu da instância nos termos do disposto nos arts. 576º/2 e 577º/ b), do Código de Processo Civil. Em primeiro lugar, a verificar-se a falta de alegação de causa de pedir, ela resultaria suprida nos termos previstos no acima citado art. 193º/3 do Código de Processo Civil, pela forma como o executado se defendeu no requerimento de embargos, negando a subscrição da livrança a qualquer título, em que argui a falsidade da assinatura que consta no titulo executivo, limitando-se, por isso, a invocar desconhecimento do motivo porque figura como executada nos autos principais. Contudo, aquela não se verifica, em nosso entender, no caso em apreço. A este propósito e pela sua natureza sintética e clara permitimo-nos citar o Acórdão da Relação de Évora de 27/6/2017, in www.dgsi.pt, no qual se refere: “Por via do disposto no artigo 724.º, n.º 1, al. e), do CPC, no requerimento executivo o exequente deve expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo. O regime legal vigente traduz a afirmação de que, no âmbito da ação executiva, nem sempre a causa de pedir se consubstancia no título executivo. certo que era entendido e sustentado, à luz dos preceitos legais originários insertos no CPC nesta matéria e quando os títulos executivos eram maioritariamente de natureza cambiária e, por isso, abstratos (cheques, letras e livranças), que a causa de pedir numa ação executiva era consubstanciada pelo próprio título executivo.[9] Atualmente, porém, temos por certo que a causa de pedir na ação executiva assenta na obrigação exequenda, que constitui o seu fundamento substantivo, sendo o título executivo o instrumento documental privilegiado da sua demonstração. Tratando-se, no entanto, de títulos que valham como títulos de crédito, verificando-se a unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente (princípio da incorporação) e valendo a relação cambiária independentemente da causa que lhe deu origem (princípio da abstração), atento ainda o regime conjugado decorrente dos arts. 703.º, n.º 1, al. c) e 724.º, n.º 1, al. e), do CPC, cabe concluir que uma livrança enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai. No caso em apreço, o título executivo consiste na livrança, enquanto título de crédito. Por conseguinte, prescinde da alegação, no requerimento executivo, dos factos constitutivos da relação subjacente, pelo que não se verifica a exceção dilatória da falta de causa de pedir.” Assim, a alegação expressa no requerimento executivo é suficiente para fundar a execução. Nesta conformidade, sem necessidade de outras considerações, julga-se improcedente a ineptidão do requerimento executivo e a consequente nulidade arguida. (…)”. * Não se conformando com o assim decidido, veio a executada/embargante interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito devolutivo.A apelante formulou as seguintes conclusões: “A. No âmbito do processo principal – Execução, a Exequente apresentou à execução uma livrança. B. Com efeito, a Recorrente apresentou Embargos de Executado, tendo entre outras, invocado a ineptidão do requerimento executivo por falta de exposição dos factos. C. No entanto, a Meritíssima Juiz a quo, por despacho de fls. Julgou improcedente a invocada ineptidão. D. Pelo que, vem o presente recurso reagir contra o referido despacho, na parte em que julga improcedente a exceção de ineptidão do requerimento executivo. E. O Tribunal a quo fundamenta a sua decisão tendo em conta o disposto no artigo 724.º n.º 1 alínea e) do atual CPC. F. No entanto, conforme também foi referido no mesmo despacho, teremos de nos versar sobre a versão do CPC que se encontrava em vigor à data da instauração da execução – 26.01.2010. G. Em síntese a Recorrente refere que a ineptidão do requerimento executivo se deve à falta de alegação de factos que fundamentem o pedido, H. A Exequente apenas se limita a remeter para o teor da livrança, da qual no campo destinado a tal efeito apenas consta um número, I. Não discriminando como foi apurado o capital em divida ou a sua origem. J. A causa de pedir é o facto constitutivo da situação jurídica material que se quer fazer valer, é, pois, a relação fundamental. K. E, de acordo com o disposto no artigo 810.º nº. 1 al. e) do CPC, na redação dada pelo DL 226/2008 de 20/11, - em vigor à data da entrada do requerimento executivo, este deveria conter uma exposição sucinta dos factos (causa de pedir) que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo. L. Ora, a expressão que consta da livrança pode definir a natureza do negócio jurídico, mas não constitui a descrição de factos de que resulte ou nasça a obrigação de pagamento. M. Ora, nada foi alegado quanto ao nascimento dessa obrigação. N. Pelo que não constando a causa de pedir do título dado à execução, incumbiria à Exequente o ónus de alegar os factos sobre os quais recai a sua pretensão. O. Aliás a jurisprudência afasta a presunção que consta do artigo 458.º do Código Civil, P. Dando conta de que a parte não está dispensada de alegar a causa, sob pena de ineptidão, quando do título executivo não consta a causa e o devedor se limite a confessar a dívida, sem menção do respetivo negócio causal. Q. Assim, a presente instância padece do vício de ineptidão do requerimento executivo, decorrente da falta de alegação da causa de pedir – artigo 186.º, n.º 2, al. a) do CPC. R. Sendo que no despacho ora em crise, não foi efetuada uma correta e adequada aplicação da lei. S. O que necessariamente teria de ter ocorrido, era o reconhecimento da falta de causa de pedir. T. Com a consequente declaração de nulidade da execução e de todo o processo, nos termos do artigo 186.º n.º 2 alínea a) CPC. U. Levando à absolvição da instância da Recorrente. V. O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 810.º nº. 1 al. e) do CPC, na redação dada pelo DL 226/2008 de 20/11 - em vigor à data da entrada do requerimento executivo e 186.º n.º 1 e 2 CPC (anterior artigo 193.º n.º1 e 2). W. Atento o exposto, deve este Venerando Tribunal revogar o referido despacho, na parte que ora se recorre, X. Substituindo-o por um outro que determine a extinção da presente execução por existência da invocada exceção de ineptidão do requerimento executivo por falta de exposição dos factos. Assim quer pelo alegado, quer pelo doutamente suprido deve dar-se provimento ao recurso ora apresentado, revogando-se o despacho, na parte referente à excepção de ineptidão do requerimento executivo, com as demais consequências legais, sendo assim feita sã e inteira justiça.”. Não foram apresentadas contra-alegações. * Após os vistos legais, cumpre decidir.* II - DO MÉRITO DO RECURSO * 1. Objeto do recurso O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil. Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, a questão a apreciar é apenas de direito e prende-se com decidir se ocorre, ou não, a ineptidão do requerimento executivo, por falta de exposição dos factos que fundamentam o pedido. * 2. Matéria de facto com relevância para a decisão:A factualidade com relevância para a decisão é a que consta do relatório. * 3. Decidindo:Nos termos do disposto no art. 10.º, nº 5 do CPC, “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.”. Por sua vez, resulta do art. 703.º do mesmo diploma legal, quais as espécies de títulos executivos que podem servir de base à execução, entre os quais se contam “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo” (al. c), do nº 1, do art. 703.º). Do art. 724.º, nº 1, al. e) do CPC, consta que o exequente deve expor sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo. E, acrescente-se, o art. 810.º, nº 1, al. e) do CPC, na redação do Dec. Lei nº 226/2008, de 20-11, vigente à data da entrada da execução em juízo, já tinha a mesma redação, no que aqui interessa, ou seja, já referia que no requerimento executivo, o exequente expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo. Ora, a livrança que serviu de título à execução insere-se precisamente na categoria dos títulos executivos do art. 703.º, nº 1, al. c) CPC. Pode dizer-se que a livrança é um título à ordem, sujeito a certas formalidades, pelo qual uma pessoa (o emitente, subscritor ou passador) se compromete, para com outra (o tomador ou beneficiário), a pagar-lhe determinada quantia (cfr. Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada”, 4ª. ed. atualizada, Livraria Petrony, págs. 321/322). A Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL) menciona no art. 75.º os requisitos essenciais que a livrança deve conter, sendo que a falta de algum deles conduz, nos termos do disposto no art. 76.º do mesmo diploma legal, a que não produza os efeitos como livrança. Assim, a livrança que contenha os requisitos essenciais referidos nos arts. 75.º e 76.º da LULL, constitui título cambiário autónomo e abstrato, integrado no elenco dos títulos executivos por via do disposto no art. 703.º, nº 1, c) do CPC, incorporando no título o direito nele representado, com plena autonomia da relação fundamental subjacente. E sendo assim, como se entende, dada à execução uma livrança como título de crédito, como acontece no caso, o exequente não tem que expor quaisquer factos que fundamentem o pedido, cabendo, antes, ao executado alegar e provar factos que ponham em causa a validade do título, incluindo da relação fundamental. Neste sentido se pronunciou o Tribunal da Relação de Évora, em acórdão proferido no processo 67/21.8T8ELV.E1, de 30-06-2022, disponível em dgsi.pt, onde se diz: “I. No âmbito do processo executivo, a livrança, como título de crédito, tendo em consideração os princípios ínsitos da abstracção e da incorporação, dispensa o exequente de expor e densificar a relação jurídica causal, fundamental ou subjacente à sua emissão, como decorre do artigo 703º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil. II. Tal ónus de alegação apenas se exige no caso da apresentação dos ditos documentos como quirógrafos, cumprindo, então, ao exequente invocar no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente. III. Dada à execução a livrança como título de crédito, incumbe ao executado, no âmbito das relações imediatas, o ónus de alegação e prova dos factos reais, concretos e objectivos capazes de colocar em crise a validade, existência, manutenção, subsistência ou eficácia daquela relação fundamental que subjaz à livrança. IV. Assim, o ónus alegacional e probatório do preenchimento abusivo da livrança impende sobre o obrigado cambiário/executado, atenta a circunstância de estarmos perante um facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito.”. Também o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22-10-2020, processo 18694/19.1T8LSB-A.L1-2, decidiu: “(…) II – Na ação executiva, não tem cabimento falar em causa de pedir, pelo menos com o sentido em que é utilizado na ação declarativa, quando se trata de executar títulos que têm como características da incorporação, literalidade, autonomia e abstração, sendo desnecessária a alegação de qualquer relação extra-cartular ou causa de pedir. III - Embora atualmente (com as alterações legais ao elenco dos títulos executivos) se defenda que a causa de pedir na ação executiva assenta na obrigação exequenda, que constitui o seu fundamento substantivo, sendo o título executivo uma livrança, o instrumento documental privilegiado da sua demonstração, não tem que haver alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai. IV - Tratando-se, no entanto, de títulos que valham como títulos de crédito, verificando-se a unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente (princípio da incorporação) e valendo a relação cambiária independentemente da causa que lhe deu origem (princípio da abstração), uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai. V - Baseando-se a execução em título cambiário e sendo a obrigação cambiária autónoma da relação causal, é sobre os executados que invocam o preenchimento abusivo, que recai o ónus de alegação desse preenchimento abusivo, através da alegação circunstâncias concretas a ele referentes.”. Podemos, pois, concluir que uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente, da qual o título cambiário se abstrai, não ocorrendo a invocada ineptidão do requerimento executivo por falta de exposição dos factos que fundamentam o pedido. Improcedem, assim, as conclusões da apelação, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida. * III. DISPOSITIVO* Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida. Custas pela apelante – art. 527º, nº1 e 2, do CPC. Porto, 2024-06-06 Manuela Machado João Venade António Carneiro da Silva |