Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00041595 | ||
Relator: | VIEIRA E CUNHA | ||
Descritores: | CRÉDITO AO CONSUMO APREENSÃO DO BEM RESERVA DE PROPRIEDADE | ||
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Nº do Documento: | RP200807010823636 | ||
Data do Acordão: | 07/01/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO. | ||
Decisão: | CONFIRMADA A DECISÃO. | ||
Indicações Eventuais: | LIVRO 277 - FLS 234. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | A convenção, em contrato de crédito ao consumo no qual não interveio o vendedor do bem, de que, em garantia, a mutuante goza de reserva de propriedade, é inválida, por objecto legalmente impossível (art. 280º nº 1 do CC), dado não ter existido, ôntica e previamente, qualquer direito substantivo que atribuísse à requerente a propriedade sobre o bem, ou seja, o direito de, posteriormente, a reservar para si, em negócio de alienação. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acórdão do Tribunal da Relação do Porto Os Factos Recurso de apelação interposto na acção com procedimento cautelar de apreensão de veículo automóvel nº…/08.0TBAMT, do .º Juízo da Comarca de Amarante. Apelante/Requerente – B………., S.A. Requerido – C………. . Na acção adrede referenciada, requereu a Apelante a imediata apreensão do veículo ligeiro de matrícula ..-..-QD (Mitsubishi ……….) e respectivos documentos. Alega ter sido registada, a seu favor, reserva de propriedade sobre o veículo em causa, com base em contrato de financiamento, no montante de € 16.750, destinado, por parte do Requerido, à aquisição do veículo. Como condição da celebração do referido contrato e como garantia do seu bom cumprimento, foi exigido pela Requerente ao Requerido a constituição de uma reserva de propriedade, a favor daquela e sobre o referido veículo; assim, o veículo foi vendido por terceiro ao Requerido através do financiamento do preço pela ora Requerente e com o encargo de reserva de propriedade, encargo esse estipulado para garantia do cumprimento do contrato de mútuo. A certidão do registo automóvel junta aos autos comprova o citado registo da reserva de propriedade, a favor da Requerente. Sucede que, das 72 prestações mensais e sucessivas a que o Requerido se obrigou, no valor de € 378,54 cada, só pagou ele 35. Nessa conformidade, a Requerente concedeu ao Requerido um prazo de oito dias úteis para liquidação das importâncias em atraso, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo. Todavia, nem a viatura foi entregue, nem o pagamento efectuado. Despacho Recorrido A Mmª Juiz “a quo” indeferiu liminarmente o procedimento cautelar em questão nos autos, fundando-se, em conclusão, no facto de o regime jurídico do D.-L. nº 54/75 de 12 de Fevereiro – procedimento cautelar de apreensão de veículos automóveis – impedir que o financiador da aquisição dele beneficie, invocando ter sido constituída a seu favor cláusula de reserva de propriedade. Conclusões do Recurso: A – Da análise do D.-L. nº 359/91 de 21 de Setembro, resulta, sem margem para dúvidas, que não só é admissível a constituição da reserva de propriedade a favor de quem financia, como o acordo sobre a mesma deve constar do contrato de financiamento para aquisição de bens. B – “In casu”, tal acordo está estipulado nas condições particulares do contrato junto com o requerimento inicial, onde constam os seguintes dizeres – “Garantias: Livrança em barco subscrita p/ cliente(s) e Reserva de Propriedade”. C – Tal previsão normativa justifica-se perante a evolução verificada no financiamento da aquisição de veículos automóveis através de empresas vocacionadas para o efeito, prevendo uma situação que, de facto, é em tudo idêntica à que ocorreria se fosse o vendedor a permitir o pagamento do preço em prestações. D – Correndo o risco do não pagamento do preço por conta do mutuante, é legítimo que a reserva de propriedade seja constituída e inscrita a seu favor, com a consequente possibilidade de recurso à providência cautelar de apreensão de veículo regulada nos artºs 15º e 16º D.-L. nº 54/75 e, consequentemente, à acção principal, nos termos do artº 18º do mesmo diploma. E – A entrega da quantia mutuada, por parte da Recorrente, ao vendedor do bem, configura o pagamento do preço, ou seja, o cumprimento da obrigação do comprador – artº 879º al.c) C.Civ. F – O mutuante ficou subrogado nos direitos do vendedor, adquirindo, na medida dessa satisfação, os poderes que a este competiam – artºs 589º e 593º nº1 C.Civ. G – É admissível estipular validamente num contrato de financiamento a reserva de propriedade, até porque tal solução não é contrária à lei, à moral ou à ordem pública e não existe qualquer impedimento de natureza jurídica, pelo que é plenamente sustentada no princípio da liberdade contratual. H – Interpretando-se o artº 409º nº1 C.Civ. nos termos do disposto no artº 9º nº1 C.Civ., conclui-se que aquele normativo legal abrange, na sua letra e espírito, a situação dos presentes autos, isto é, a admissibilidade da constituição da reserva de propriedade a favor da entidade financiadora, aqui Recorrente, I – na medida em que permite, como condicionante da transferência de propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes de um contrato de compra e venda, assim como existe uma verdadeira conexão entre o contrato de financiamento a prestações e o contrato de compra e venda do veículo, já que o objecto mediato do primeiro constitui o elemento do preço do segundo, tudo se passando como se o pagamento do preço do contrato de compra e venda fosse fraccionado no tempo. J – A Recorrente fez prova do seu direito de propriedade (ainda que condicionado), através do registo inscrito na Conservatória do Registo Automóvel pelo que, de acordo com o disposto no artº 7º C.Reg.Pred., goza da presunção do respectivo direito. L – A douta sentença recorrida viola o disposto nos artºs 18º D.-L. nº54/75, 9º e 409º C.Civ. e 7º C.Reg.Pred. Factos Apurados Encontram-se provados os factos supra resumidamente descritos e relativos à alegação da Apelante e ao teor da decisão judicial impugnada. Fundamentos A pretensão a Agravante ancora-se unicamente no questionar do bem fundado da decisão impugnada, no que concerne o indeferimento liminar do procedimento cautelar de apreensão de veículo automóvel intentado, face, em substância, à conclusão propugnada, no sentido de que o financiador da aquisição do bem não pode beneficiar de uma cláusula de reserva de propriedade. I Pese embora o inconformismo da Recorrente, expresso em bem fundadas alegações, pensamos que a razão se encontra com a Mmª Juiz “a quo”.Vejamos porquê. Singularmente, desde o momento da generalização do crédito ao consumo e da litigância associada ao incumprimento, encontramos uma doutrina tradicional que poderia sustentar a tese da Recorrente. Tomamos como exemplo o Ac.R.L. 19/10/00 Subjudice 24º/73 (Salvador da Costa), no qual se defendeu que o artº 409º nº1 C.Civ. (que prevê que, nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento), que essa dita norma, como dizíamos, abrange, na sua letra e espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda de veículo automóvel, por virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo. Em sentido idêntico já se pronunciara o Ac.R.L. 11/12/97 Col.V/120, bem como se pronunciaram os Ac.R.L. 23/11/00 Col.V/99, Ac.R.L. 13/3/03 Col.II/74, Ac.R.L. 12/6/03 Col.III/111 e Ac.S.T.J. 12/9/06 in www.dgsi.pt, pº nº06A1901 (Faria Antunes). Dessa reserva de propriedade decorre a norma do artº 15º nº1 D.-L. nº 54/75 de 24 de Fevereiro, no sentido de que vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula. Todavia, o primeiro dos citados arestos explicitava já que “a lei expressa uma solução clara de que só o titular activo do registo da cláusula de reserva de propriedade tem direito a requerer em juízo a apreensão do veículo automóvel” (no mesmo sentido, também já se expressava já o Ac.R.L. 13/1/94 Col.I/89); e tal titular activo apenas poderia constituir o vendedor, em contrato de compra e venda. Neste ponto, nem o que designámos como “doutrina tradicional” valeria à Recorrente, pois sempre dos referidos e citados arestos decorre que os processos comportavam uma parte activa litisconsorciada entre vendedor, por um lado, e mutuante, por outro, podendo então concluir-se que, se a resolução do contrato de mútuo, operada pelo mutuante, dada a conexão que possui com a compra e venda, afecta a eficácia deste último contrato, é o vendedor, também presente na acção como parte activa, quem tem o direito de requerer a apreensão do veículo automóvel, pelo facto de ele vendedor, e só ele, beneficiar da inscrição da titularidade da reserva de propriedade – ora, desde logo e em conclusão, no caso dos autos, o vendedor do bem encontra-se ausente. II Mais tarde, porém, a doutrina divergiu.Ao Ac.S.T.J. 12/5/05 in www.dgsi.pt, pº nº05B538 (Araújo Barros) deparou-se idêntica relação triangular, em que ocorreu a celebração de dois contratos autónomos (se bem que económica e funcionalmente interligados): a) B vendeu à requerida C um veículo automóvel, reservando a respectiva propriedade até ao cumprimento por esta das suas obrigações contratuais (nomeadamente o pagamento do preço); b) por sua vez, A, através de operação de financiamento, celebrou com a mesma requerida contrato de mútuo do montante necessário ao pagamento do veículo (montante que terá sido, como usualmente, entregue pela financiadora directamente à vendedora). A solução foi, porém, diversa (e citamos): “O nº 1 do artº 15º do Dec.lei nº 54/75, quando estabelece que, não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos, é perfeitamente claro na sua estatuição, não deixando margem para duvidar de que apenas quis conferir legitimidade ao titular do registo da reserva de propriedade para requerer o processo cautelar de apreensão.” “É, desde logo, inquestionável que aquilo que o legislador do Dec.lei nº 74/75 quis prevenir e regular foi a possibilidade de destruição ou desvalorização do veículo, alienado com reserva de propriedade, que impossibilitasse o vendedor de recuperar, na falta de cumprimento pelo comprador das suas obrigações, o veículo ainda antes de este se ter totalmente depreciado.” “Por isso incluiu no âmbito das providências cautelares específicas a da apreensão de veículos automóveis, sujeita a uma regulamentação autónoma caracterizada pela simplicidade, eficácia e celeridade, com a intenção de constituir uma rápida protecção dos créditos dos vendedores com reserva de propriedade, um suporte da satisfação dos direitos de crédito (preço) relacionados com veículos automóveis.” “Sendo que no texto daquele diploma se não descortinam indícios (que o mesmo é dizer, não ocorre o mínimo de correspondência) de uma qualquer intenção do legislador de proporcionar à financiadora da aquisição, designadamente quando esta se reporte a veículos automóveis, a possibilidade de declarar, por si só, a resolução do contrato de compra e venda com reserva de propriedade e de preventivamente recorrer à medida cautelar especificada de que trata o Dec.Lei n° 54/75.” “E não se invoque, para legitimar a interpretação actualista (aqui já verdadeiramente actividade integradora) a inércia do legislador quanto à regulamentação apropriada à defesa do mutuante naquela relação triangular para extrair do direito positivo respostas que nele se encontram, nem sequer em potência.” “Em concreto, não pode pretender-se que um diploma que visou regular uma realidade muito específica, no dealbar da liberalização do crédito e da explosão do consumo, sirva de cobertura à multiplicidade de instrumentos económico-financeiros, mais ou menos conjunturais, que passo a passo são introduzidos nas práticas comerciais.” “E nem mesmo valem considerações acerca da desprotecção em que alegadamente se encontra a entidade que financia a aquisição a crédito de veículos automóveis.” “Na verdade, o nosso sistema jurídico está dotado de outros mecanismos que, adequadamente utilizados, asseguram a necessária protecção a interesses como os que as agravantes invocam: bastaria, por exemplo, que, em lugar da reserva de propriedade a favor da vendedora (cujo direito de crédito se encontra integralmente satisfeito) tivesse sido clausulado no contrato de compra e venda a constituição de uma hipoteca em benefício da mutuante, com o que, para além da garantia real que lhe concedia prioridade de tratamento na graduação de créditos, se poderiam abrir as portas da providência cautelar de apreensão do veículo, nos termos do citado art. 15° do Dec.Lei n° 54/75.” “Aliás, independentemente de outros quaisquer caminhos, teriam, ainda, as agravantes acesso generalizado ao procedimento cautelar comum, se bem que a correspondente providência não dependa apenas da prova sumária do direito acautelado, mas ainda da prova sumária do perigo de ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável, a exigir mais do que a mera prova de uma situação de incumprimento.” Esta longa citação pensamos que se justifica, pois que, após, sempre que o Supremo Tribunal de Justiça se tem pronunciado sobre a matéria, quase sempre não divergiu deste estabelecido entendimento (pensamos nos Acs.S.T.J. 2/10/07 in www.dgsi.pt, pº nº07A2680 – Fonseca Ramos – ou de 27/9/07 in www.dgsi.pt, pº nº07B2212 – Santos Bernardino). III A questão dos autos, tal como expressa na Petição Inicial, nem nos levará tão longe.Como é pacífico, a reserva de propriedade a que alude o artº 409º nº1 C.Civ. não respeita apenas aos contratos de compra e venda, mas deve circunscrever-se ao que a lei designa como “contratos de alienação”, isto é, contratos que visem a transmissão, onerosa ou gratuita, do direito de propriedade sobre um bem (ut Ana Prata, Dicionário, 3ªed., pg. 60). Ora, é manifesto que o mútuo invocado pela Requerente, no âmbito do crédito ao consumo, não é um contrato de alienação (artº 1142º C.Civ.), mas um contrato de “colocação na disponibilidade” (“mise à disposition” – Antonmattei e Raynard, Contrats Spéciaux, Litec, Iª parte, título II), à semelhança do contrato de arrendamento ou de locação financeira. Por isso, não se encontra em causa no contrato a propriedade do bem rectius da quantia em dinheiro emprestada. Aliás, a própria tese de Gravato Morais, União de Contratos de Crédito e de Venda para o Consumo, 2004, pg. 307, nota 572, que também se estribava já em Paulo Duarte, Contratos de Concessão de Crédito ao Consumidor (dissertação de mestrado), Coimbra, 2000, pg. 193, entende que o artº 409º nº1 C.Civ. permite apenas ao alienante reservar para si a propriedade da coisa (também Meneses Leitão, Obrigações, I/176, e Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, pg. 23); logo, se o credor apenas financia a aquisição, não aliena a coisa, pelo que não pode constituir ou ver constituída reserva de propriedade a seu favor. E a verdade é que, no caso dos autos, nem se poderá falar com propriedade de união de contratos de compra e venda (do veículo automóvel) e de crédito ao consumo (quanto ao preço pago ao vendedor – D……….), já que este vendedor não apenas não acompanha a Requerente como parte activa da providência cautelar intentada, como também foi totalmente alheio ao contrato de “financiamento para aquisição a crédito”, como se pode ver do “fac-simile” contratual junto como documento nº 2, com a Petição Inicial. De tal maneira, que o registo do encargo da reserva de propriedade foi efectuado não em benefício do vendedor, mas em benefício da mutuante Requerente. Ora, pese embora esse falado registo, é manifesto que a Requerente nunca possuiu qualquer direito de propriedade sobre o veículo em causa, sobre o qual pudesse ressalvar uma “reserva”. E a lei portuguesa é expressa no sentido de não admitir como garantia a transferência da propriedade (alienação fiduciária) - neste sentido, Gravato Morais, op. e loc. cits., e Leite de Campos, A Locação Financeira, §§ 4 a 11. É certo que no artº 5º nºs 1 al.b) e 2 D.-L. nº54/75 de 12 de Fevereiro se prevê a inscrição obrigatória no registo automóvel da reserva de propriedade, mas esta, como resulta do artº 46º do Regulamento do Registo Automóvel – D.-L. nº55/75 de 12 de Fevereiro – está reservada ao que for estipulado nos contratos de alienação de veículos. Por sua vez, é também certo que, no artº 6º nº3 al.f) D.-L. nº359/91 de 21 de Setembro (contratos de aquisição a crédito) se prevê que fique a constar no texto do contrato de financiamento “o acordo sobre a reserva de propriedade” – todavia, tal disposição reporta-se em exclusivo a situações em que o vendedor era e continua a ser proprietário, mesmo que sob reserva, financiando a aquisição através de algumas das formas previstas no artº 2º (diferimento do pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou outro acordo de financiamento semelhante). Assim, não pode tal norma ter aplicação às situações previstas no artº 12º D.-L. nº359/91, nas quais o crédito é concedido por terceiro, para financiar um bem adquirido ao vendedor, e não exista qualquer forma de colaboração ou cooperação entre o credor e o vendedor, na conclusão do contrato de crédito (neste sentido, cf. Ac.R.L. 27/5/03 Col.III/93). Nem muito menos no caso dos autos se poderia divisar qualquer espécie de sub-rogação – nem sub-rogação pelo credor (artº 589º C.Civ., dado que o vendedor não interveio em qualquer negociação com a financiadora), nem muito menos qualquer espécie de sub-rogação legal (artº 592º nº2 C.Civ.), já que não decorre pura e simplesmente ou como efeito automático do regime da compra e venda, afora a vontade do concreto vendedor que, como tal, seja manifestada, que lhe incumba, a ele vendedor, reservar (sempre), para si, a propriedade do bem. Assim, a reserva de propriedade, ainda que lograda registar, é de concluir que foi registada indevidamente, por não existir qualquer direito substantivo que atribuísse à Requerente a propriedade sobre o bem, ou seja, o direito de a reservar para si, em negócio de alienação. A consagração da “garantia” da reserva de propriedade, a favor da mutuante, no contrato de financiamento à aquisição de bens de consumo, não sendo a mutuante a proprietária do bem, é nula, por consubstanciar uma prestação “legalmente impossível” de efectuar – artº 280º nº1 C.Civ. – isto é, por não poder à luz do Direito a mutuante reservar propriedade em garantia, nem o mutuário proceder ao registo desse direito a favor de pessoa que não é o anterior proprietário, alienante ou disponente do bem. Se a possibilidade do objecto contende ontologicamente com o Direito, o objecto do negócio é nulo, analisando-se num efeito jurídico não permitido (Meneses Cordeiro, Tratado, I/§§ 149 e 150). Por isso, também, não podia a Requerente fazer actuar as consequências da respectiva inscrição no registo automóvel como proprietária, para efeito de requerer em juízo a apreensão do veículo automóvel, em providência cautelar especificada, ao abrigo do genericamente disposto no D.-L. nº 54/75 de 12 de Fevereiro. Em suma, a decisão dos autos merece, de pleno, ser confirmada, mesmo enquanto indeferimento liminar, posto que a improcedência do pedido é “manifesta”, consoante os termos da redacção do artº 234º-A nº1 C.P.Civ., constituindo “caso extremo, de evidência irrecusável” (cf. S.T.J. 22/6/89 Bol.388/437, Ac.R.C. 4/4/89 Bol.386/519 e Ac.R.C. 31/3/92 Bol.415/736). Resumindo a fundamentação: I – Na união de contratos de crédito ao consumo e de compra e venda, tendo sido convencionada a reserva de propriedade do bem a favor do vendedor, duas correntes se perfilam na doutrina: a) uma primeira, que confere legitimidade substantiva ao vendedor para, face ao incumprimento e à resolução do contrato de mútuo, peticionar a apreensão do veículo em providência cautelar especificada, ao abrigo do disposto no D.-L. nº54/75 de 12 de Fevereiro, desde que tal vendedor seja acompanhado na acção, em litisconsórcio necessário, pela entidade mutuante; b) uma segunda, mais recente e com aceitação no Supremo Tribunal de Justiça, que nega ao vendedor e/ou ao mutuante, em qualquer caso, tal possibilidade, para o caso de incumprimento do contrato de crédito ao consumo. II – A convenção, em contrato de crédito ao consumo, no qual não interveio o vendedor do bem, de que, em garantia, a mutuante goza de reserva de propriedade, é inválida, por objecto legalmente impossível (artº 280º nº1 C.Civ.), dado não ter existido, ôntica e previamente, qualquer direito substantivo que atribuísse à Requerente a propriedade sobre o bem, ou seja, o direito de, posteriormente, a reservar para si, em negócio de alienação. Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, acorda-se neste Tribunal da Relação: Julgar improcedente, por não provado, o recurso interposto, em consequência confirmando integralmente o despacho recorrido. Custas pela Apelante. Porto, 01/VII/08 José Manuel Cabrita Vieira e Cunha Maria das Dores Eiró de Araújo João Carlos Proença de Oliveira Costa |