Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PEDRO VAZ PATO | ||
Descritores: | CRIME DE COACÇÃO SEXUAL ACTO SEXUAL DE RELEVO GRAVIDADE | ||
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Nº do Documento: | RP20210113115/17.6GAETR.P1 | ||
Data do Acordão: | 01/13/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | CONFERÊNCIA (RECURSO DP ARGUIDO) | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Se a proposta de um beijo na boca foi espontânea e firmemente rejeitada, já não estávamos perante um gesto de cortesia e/ou afeto, mas perante um gesto de conotação sexual, uma forma de satisfação de um impulso sexual do arguido. Com tal gesto, seria violada a intimidade e a vítima seria reduzida a simples objeto de satisfação desse impulso do arguido, a quem não a ligava qualquer relação afetiva ou de outro tipo. Estaríamos perante aquela “coisificação” da vítima própria dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. II - Por outro lado, também é significativa a atitude do arguido, que se fez valer da sua superior força física e desistiu dos seus intentos não apenas pela resistência da ofendida, mas também porque outra pessoa se apercebeu do que se passava. O arguido sussurrou na altura, dirigindo-se à ofendida: «não contes nada a ninguém». Tudo isto significa que a conduta do arguido não era, nem seria, nem por ele, nem pela ofendida, nem pela generalidade das pessoas, tida por inocente ou inócua. III - Essa postura do arguido e a reação da ofendida também são sinais inequívocos de que em causa não estava uma simples “importunação” que levaria a qualificar a conduta do arguido como tentativa (não punível, nos termos do artigo 23.º. n.º 1, do Código Penal) de prática do crime de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170.º desse Código. Não estaria em causa um toque entre os lábios ligeiro e momentâneo, que pudesse ser considerado um ato ainda de conotação sexual mas desprovido de relevo. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Pr 115/17.6GAETR.P1 Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto I – B… veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 1 do Juízo de Competência Genérica de Estarreja do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que o condenou, pela prática, na forma tentada, de um crime de coação sexual, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, 163.º, n.º 1, e 177.º, n.º 6, do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos, com imposição de deveres. São as seguintes as conclusões da motivação do recurso: «1.ª - A douta sentença recorrida, salvo o devido respeito, viola o disposto no art. 163.º-1 do CP e ofende o princípio constitucional do bom senso e da justa medida (Constituição 18.º-2). Com efeito, 2.ª - A conduta do arguido narrada na factualidade assente - num corredor/átrio da Igreja C…, ainda com pessoas lá dentro e a poderem passar por ali, o arguido, com 23 anos de idade, solteiro, pediu dois beijinhos…. e um beijo na boca à aniversariante de 14 anos, segurando-a com alguma força pela cintura, com ambos os braços - não pode ser entendida pelas pessoas comuns normais da sociedade do séc. XXI como um “acto sexual de relevo, por meio de violência”. 3.ª - Opina o Prof. FIGUEIREDO DIAS: “Um simples beijo ou a sua tentativa, ou um simples toque nas pernas, nos seios ou nas nádegas de outrem, ou mesmo no sexo - diferentemente do que sucederá em regra com o “beijo lingual”, a “carícia insistente”, o “apalpão” - não integrarão em princípio o conceito típico de acto sexual de relevo”. 4.ª - E doutrina MAIA GONÇALVES: “O direito criminal, como última ratio, implica que só seja tutelada a liberdade sexual contra acções que revistam certa gravidade. Em tais termos, actos como o coito oral e a masturbação devem aqui ser incluídos; o mesmo não sucederá, em regra, com os beliscões e os beijos, que só o deverão ser em casos extremos, ou seja naqueles em que existem grande intensidade objectiva e intuitos sexuais atentatórios da autodeterminação sexual”. 5.ª - Sendo gerais e abstractos os conceitos “acto sexual de relevo, por meio de violência”, há mister corrigir e complementar a matéria de facto assente, com alguns pormenores caracterizadores da precisa e concreta conduta do arguido, em função da sua espécie, intensidade e duração. 6.ª - Primeiro pormenor: a sintaxe da narração factual deve ser corrigida quanto ao sujeito e quanto ao complemento indirecto: “Tu (ofendida) não me dás (a mim, arguido) dois beijinhos?... e um beijo na boca?”. 7.ª - Segundo pormenor: o arguido colocou os seus braços à volta da cintura da menor e com os braços da menor por baixo dos seus, “mantendo no entanto afastados um do outro os corpos propriamente ditos”. 8.ª - Terceiro pormenor: “a terceira pessoa, quando acedeu ao corredor/átrio onde estavam o arguido e a ofendida, já esta ia a sair para o exterior da Igreja e aquele, em sentido contrário, vinha a dirigir-se para o seu interior”. O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso. O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso. Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir. II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se a factualidade provada não integra a prática do crime de coação sexual por que o arguido e recorrente foi condenado por não estarmos perante “ato sexual de relevo”. III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte: «(…) II. FUNDAMENTAÇÃO: Discutida a causa e com relevância para a decisão final, resultaram provados os seguintes factos:A) Factualidade assente: 1 – No dia 20 de maio de 2017, cerca das 18h00, quando a ofendida D… – que naquela data completava 14 anos de idade – se encontrava a sair da Igreja C…, sita na localidade de C… - …, foi abordada pelo arguido B… que se abeirou da mesma e lhe perguntou se lhe podia “dar dois beijinhos”. 2 – Convencida de que o arguido pretendia cumprimentá-la em virtude de ser o seu dia de aniversário, a menor respondeu afirmativamente, acenando com a cabeça. 3 – Então, o arguido colocou os seus braços à volta da cintura da menor e com os braços da menor por baixo dos seus, e ao mesmo tempo que, fazendo uso da sua superior força física, a puxava para si, perguntou-lhe se lhe podia dar um beijo na boca, ao que a menor respondeu não e tentava libertar-se dos braços do arguido. Não obstante, o arguido continuou com a aquela conduta, puxando-a para si e ensaiando tentativa de beijar a ofendida na boca, só não o tendo logrado fazer em virtude de a menor D… ter oferecido resistência e ali ter surgido uma terceira pessoa, o que levou o arguido a libertar a menor. 4 – Com a conduta acima descrita, agiu o arguido com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que agia completamente contra a vontade da ofendida D… e que colocava em crise os sentimentos de pudor e vergonha da mesma, além do sentimento de decência inato à generalidade das pessoas, só não tendo conseguido concretizar os seus intentos por razões alheias à sua vontade. 5 – O arguido sabia que a menor D… contava apenas 14 anos de idade. 6 - O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. (…) 8 – O arguido vive, há cerca de dois anos, com a namorada, presentemente desempregada, na sequência do Covid-19, e sem auferir qualquer subsídio. 9 – O arguido trabalha como operário fabril auferindo o vencimento de €650/mês bruto. 10 – O arguido e agregado vivem em casa arrendada, pela qual pagam €250/ mês de renda, e suportam ainda a quantia de €160/mês de um crédito automóvel, do qual faltam cerca de 9 anos para pagar. 11 – O arguido tem o 9º ano de escolaridade. 12 – O arguido foi anteriormente condenado: i. Pela prática, em 07/02/2012, de um crime de coacção sexual, p.p. pelo art.º 163.º/1 do CP, na pena de 18 meses de prisão suspensa por igual período com regime de prova a elaborar pela DGRSP [PCS 32/12.6GAETR de Competência Genérica de Estarreja – Juiz 1; sentença de 04/12/2014, transitada em julgado em 16/01/2015). Tendo a pena de prisão suspensa sido declarada extinta nos termos do art.º 57.º do CP, pelo cumprimento a 13.12.2016. (…)» IV – Cumpre decidir. Vem o arguido e recorrente alegar que a factualidade provada não integra a prática do crime de coação sexual por que foi condenado, por não estarmos perante “ato sexual de relevo”. Alega, citando Figueiredo Dias e Maia Gonçalves, que não integram tal conceito os simples beijos. Alega que a sentença recorrida ofende o princípio constitucional do bom senso e da justa medida (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição). Vejamos. O crime de coação sexual, p. e p. pelo artigo 163.º, n.º 1, do Código Penal, cuja prática, na forma tentada, foi na sentença recorrida imputada ao arguido e recorrente supõe a verificação de um “ato sexual de relevo”. Como se refere na sentença recorrida, a doutrina e jurisprudência têm considerado, em geral, que “acto sexual de relevo” será todo aquele comportamento que de um ponto de vista essencialmente objectivo pode ser reconhecido por um observador comum como possuindo carácter sexual e que, em face das suas espécie, intensidade ou duração, ofende em elevado grau a liberdade de determinação sexual da vítima. Considera o arguido e recorrente que o ato que lhe foi imputado (a tentativa de um beijo na boca da ofendida) não configura um “ato sexual de relevo”. Invoca, nesse sentido, as opiniões de Figueiredo Dias e Maia Gonçalves, que cita nas conclusões da motivação do recurso e estão acima transcritas. Deve reconhecer-se, porém, que tais autores não excluem em absoluto a qualificação de um ato desse tipo como “ato sexual de relevo”. Por outro lado, a resposta à motivação do recurso apresentada pelo Ministério Público invoca a opinião de Paulo Pinto de Albuquerque, que aponta no sentido de considerar “ato sexual de relevo” o beijo na boca (ver Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição, Universidade Católica Portuguesa, pág. 163, ponto 8). No que à jurisprudência diz respeito, também podemos encontrar opiniões díspares. Assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de julho de 2005, proc. n.º 0592442, relatado por Simas Santos (acessível em www.dgsi.pt) não considera um beijo na boca “ato sexual de relevo” Já os acórdãos da Relação de Coimbra de 9 de julho de 2008, proc. n.º 28/06.7JACBR.C1, relatado por Luís Ramos, e de 24 de abril de 2018, proc. n.º 364/12.3JALRA.C2, relatado por Jorge França, e da Relação de Guimarães de 2 de julho de 2016, proc. n.º 73/12.3GAVNC.P1, relatado por João Lee Ferreira (todos acessíveis em www.dgsi.pt) consideram os beijos na boca “atos sexuais de relevo”, sendo certo que nas situações em apreço esse atos estavam associados a outros de gravidade inequivocamente maior. O acórdão da da Relação do Porto de 21 de junho de 2006, proc . nº 0610510, relatado por Guerra Banha (também acessível em www. dgsi.pt) considera que a qualificação de um beijo na boca como “ato sexual de relevo” dependerá da sua intensidade e duração. No caso que agora nos cabe apreciar, há sinais que nos permitem confirmar a qualificação (operada pela sentença recorrida) do ato imputado ao arguido e recorrente como “ato sexual de relevo”. O mais importante desses sinais é a própria reação da ofendida perante a conduta do arguido. Apesar da sua tenra idade (perfez catorze anos no próprio dia da prática dos factos), ela distinguiu clara e espontaneamente a proposta inicial de beijos na face, que, segundo as convenções socias entre nós vigentes, são tidos por gestos que de cortesia e/ou afeto, da proposta de um beijo na boca. A proposta inicial foi aceite, mesmo que entre ela e o arguido não se verificassem relações de proximidade, familiar ou de amizade. A proposta de um beijo na boca foi espontânea e firmemente rejeitada. Precisamente porque já não estávamos perante um gesto de cortesia e/ou afeto, mas perante um gesto de conotação sexual, uma forma de satisfação de um impulso sexual do arguido. Com tal gesto, seria violada a sua intimidade e ela seria reduzida a simples objeto de satisfação desse impulso do arguido, a quem não a ligava qualquer relação afetiva ou de outro tipo. Estaríamos perante aquela “coisificação” da vítima própria dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. Por outro lado, também é significativa a atitude do arguido, que se fez valer da sua superior força física e desistiu dos seus intentos não apenas pela resistência da ofendida, mas também porque outra pessoa se apercebeu do que se passava. De acordo com a motivação da sentença recorrida (no que à análise da prova diz respeito), o arguido sussurrou na altura, dirigindo-se à ofendida: «não contes nada a ninguém». Tudo isto significa que a conduta do arguido não era, nem seria, nem por ele, nem pela ofendida, nem pela generalidade das pessoas, tida por inocente ou inócua. Essa postura do arguido e a reação da ofendida também são sinais inequívocos de que em causa não estava uma simples “importunação” que levaria a qualificar a conduta do arguido como tentativa (não punível, nos termos do artigo 23.º. n.º 1, do Código Penal) de prática do crime de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170.º desse Código. Não estaria em causa um toque entre os lábios ligeiro e momentâneo, que pudesse ser considerado um ato ainda de conotação sexual mas desprovido de relevo. É claro que o ato em causa (um beijo na boca) não se reveste de uma gravidade acentuada e equiparável a outros atos que envolvam diretamente os órgãos genitais. Isso mesmo foi tido em conta (como refere o Ministério Público na sua resposta à motivação do recurso) na sentença recorrida. É isso mesmo que explica a opção por uma pena de prisão suspensa na sua execução apesar de o arguido ter sido anteriormente condenado (em pena de prisão suspensa na sua execução extinta cerca de seis meses antes da prática dos factos em apreço) pela prática de outro crime de coação sexual. Sendo certo que tal condenação anterior também justifica que a suspensão da execução da pena de prisão a que o arguido e recorrente foi agora condenado seja acompanhada da imposição de deveres. Em conclusão, não pode dizer-se que a sentença recorrida ofenda aquilo a que na motivação do recurso se designa por «princípio constitucional do bom senso e da justa medida». A sentença recorrida não é, pois, merecedora de reparo. Deverá ser negado provimento ao recurso. O arguido e recorrente deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais). V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a douta sentença recorrida. Condenam o arguido e recorrente em três (3) U.C.s de taxa de justiça. Notifique Porto, 13 de janeiro de 2021. (processado em computador e revisto pelo signatário) Pedro Vaz PatoEduarda Lobo |