Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2476/19.3T9VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA ÂNGELA REGUENGO DA LUZ
Descritores: ART.º 152-B DO CÓDIGO PENAL - VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA (INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO)
Nº do Documento: RP202510292476/19.3T9VFR.P1
Data do Acordão: 10/29/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO O RECURSO DA ARGUIDA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – no quadro do tipo legal referente ao crime de violação das regras de segurança, com resultado morte, p. e p. pelos art.ºs 152.º- B, n.ºs1, 2 e 4, alínea b) do Código Penal, não constituindo o exercício de uma actividade perigosa, sem as condições que eliminem ou reduzam substancialmente o perigo, uma infracção “in se”, então parece que estamos perante um crime específico próprio, em que é a relação de subordinação laboral (a posição de domínio e a obrigação de garantir as condições de segurança no trabalho) que confere “dignidade penal” à sujeição do trabalhador à realização de actividades perigosas, sem que estejam cumpridas as respectivas condições de segurança.
II - Na medida em que o tipo objectivo exige a sujeição do trabalhador a uma situação de perigo concreto para a vida, o corpo ou a saúde, verificado que está que não foi o arguido, ou outro a seu mando, que, com violação das disposições legais ou regulamentares vigentes à data do facto, ordenou ao trabalhador a realização de trabalhos em altura que incluíam o acesso ao telhado, conclui-se que o tipo legal não se encontra preenchido.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 2476/19.3T9VFR.P1

Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum (tribunal singular) que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Espinho - Juiz 2, com NIPC 2476/19.3T9VFR, foram os arguidos AA e a sociedade A..., S.A., condenados, por sentença lavrada em 13/03/2025, na se decidiu:
1. CONDENAR o arguido AA pela prática, de um crime de violação das regras de segurança, com resultado morte, p. e p. pelos art.ºs 152.º- B, n.ºs1, 2 e 4, alínea b) do Código Penal, com referência aos
i.-art.ºs 11., n.º2, 12.º, n.º1, alínea b), 14.º, 15.º, alínea a), 18.º e 26.º, todos do Código Penal, bem como aos
ii.art.ºs 15.º, n.ºs1, 2, alíneas a), c), d) e j), 3, 4, 5, 10, 19.º e 20.º, da Lei n.º102/2009, de 10.09;
iii.art.ºs 4.º e 6.º do D.L. n.º348/93, de 01.10;
iv.art.ºs 3.º, 36.º e 37.º, do D.L. n.º50/2005, de 25.02; e
v.art.ºs 4.º, 7.º, alínea a), e 14.º do D.L. n.º273/2003, de 29.10.,

na pena de 36 (trinta e seis) meses de prisão;

2. SUSPENDER na sua execução a pena aplicada em 1), por igual período.

3. CONDENAR a sociedade arguida pela prática, de um crime de violação das regras de segurança, com resultado morte, p. e p. pelos art.ºs152.º-B, n.ºs1, 2 e 4, alínea b) do Código Penal, com referência aos art.ºs11.º, n.º2, 12.º, n.º1, alínea b), 14.º, 15.º, alínea a), 18.º e 26.º, todos do Código Penal, bem como aos art.ºs15.º, n.ºs1, 2, alíneas a), c), d) e j), 3, 4, 5, 10, 19.º e 20.º, da Lei n.º102/2009, de 10.09; art.ºs4.º e 6.º do D.L. n.º348/93, de 01.10; art.ºs3.º, 36.º e 37.º, do D.L. n.º50/2005, de 25.02; e art.ºs4.º, 7.º, alínea a), e 14.º do D.L. n.º273/2003, de 29.10, na pena de 360 dias de multa, à taxa diária de € 250,00;

4. SUBSTITUIR a pena aplicada em 3) por sanção de boa conduta no valor de €9,000,00 (nove mil Euros) pelo período de 03 (três) anos.

5. JULGAR o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e, consequentemente, condenar os arguidos no pagamento solidário das seguintes quantias:

A. € 5.000,00 (cinco mil Euros), a título de danos não patrimoniais próprios sofridos pelo demandante civil.

B. € 65.000,00 (sessenta e cinco mil Euros), a título de indemnização devida pelo dano morte.

C. € 35.000,00 (trinta e cinco mil Euros), a título de indemnização global por danos respeitantes ao sofrimento da vítima e atinentes ao período que mediou entre o acidente e a sua morte.

A estas quantias acrescem juros, às sucessivas taxas legais em vigor, desde a data desta sentença e até efetivo e integral pagamento.

6. ABSOLVER os arguidos do demais peticionado.

7. ABSOLVER BB da instância cível, por ilegitimidade.

8. CONDENAR ambos os arguidos no pagamento das custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 03 (três) UC para cada;

9. CONDENAR as partes civis nas custas cíveis do processo na proporção do respetivo decaimento (52% para o demandante e 48% para os demandados).

10. FIXAR o valor da instância cível em € 219.000,00 (duzentos e dezanove mil Euros).

Em 22/04/2025, porque inconformados com tal decisão, vieram os arguidos, A..., S.A. e AA, interpor recurso, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“CONCLUSÕES

1.ª Os arguidos recorrentes foram condenados:

c) A arguida A..., S.A., pela prática de um crime de violação das regras de segurança, com resultado morte, p. e p. pelos art.ºs152.º-B, n.ºs1, 2 e 4, alínea b) do Código Penal, com referência aos art.ºs11.º, n.º2, 12.º, n.º1, alínea b), 14.º, 15.º, alínea a), 18.º e 26.º, todos do Código Penal, bem como aos art.ºs 15.º, n.ºs1, 2, alíneas a), c), d) e j), 3, 4, 5, 10, 19.º e 20.º, da Lei n.º102/2009, de 29.10, na pena de 360 dias de multa à taxa diária de 250€, substituída por caução de boa conduta

b) O arguido AA, pela prática, de um crime de violação das regras de segurança, com resultado morte, p. e p. pelos art.ºs152.º-B, n.ºs1, 2 e 4, alínea b) do Código Penal, com referência aos art.ºs11.º, n.º2, 12.º, n.º1, alínea b), 14.º, 15.º, alínea a), 18.º e 26.º, todos do Código Penal, bem como aos art.ºs15.º, n.ºs1, 2, alíneas a), c), d) e j), 3, 4, 5, 10, 19.º e 20.º, da Lei n.º102/2009, de 10.09; art.ºs4.º e 6.º do D.L. n.º348/93, de 01.10; art.ºs 3.º, 36.º e 37.º, do D.L. n.º50/2005, de 25.02; e art.ºs4.º, 7.º, alínea a), e 14.º do D.L. n.º273/2003, de 29.10, na pena de 36 meses de prisão suspensa por igual período.

2.ª Os arguidos não se conformam com a douta Sentença, porquanto entendem que a douta Sentença padece de:

a) Erro de julgamento relativamente à prova produzida e consequentemente erro de julgamento quanto aos factos dados como provados – factos 4.º, 9.º, 10.º, 11.º, 19.º, 21.º, 24.º, 25.º, 27.º, 29.º, 30.º e 31.º

b) Insuficiência da matéria de facto provada, para a decisão de direito

3.ª O facto provado 4 deverá ser alterado, passando a ter a seguinte redação:

Ao CC competia auxiliar na execução de trabalhos de manutenção e conservação das instalações da fábrica, sob ordens e instruções dos administradores, por si ou por interposta pessoa por sua ordem.

4.ª Pelas seguintes razões:

a) resulta do contrato de trabalho (fls. 479/480) que o sinistrado CC foi contratado para serviços de apoio, o que vem igualmente refletido na fundamentação da Sentença, a fls. 17

b) cabendo-lhe apenas auxiliar os colegas que estavam na equipa de manutenção;

5.ª O Facto provado 9.º deveria ser alterado, passando a ter a seguinte redação:

Em data que não foi possível determinar com rigor, mas anterior ao dia 30.11.2015, o arguido AA, agindo em nome e representação da sociedade arguida, ordenou que se procedesse à substituição de painéis acrílicos, que se encontravam bastante degradados, na cobertura de Um armazém designado pavilhão de expedição; para isso, determinou ao chefe de equipa, DD, que diligenciasse nesse sentido.

6.ª Pelas seguintes razões:

a) o arguido AA confiava as tarefas que eram necessárias ao Chefe de Equipa, Sr. DD, cabendo a este escolher quem iria executar as tarefas ou quem iria auxiliar nas tarefas que lhe estavam incumbidas, desconhecendo em concreto a data, hora e que iria realizar a tarefa;

b) nem todas as tarefas a realizar pela equipa de manutenção exigem a intervenção de todos os seus elementos;

c) conforme referido pelo próprio Chefe de Equipa Sr. DD e pelo próprio Sr. EE, nunca iria mandar o trabalhador sinistrado para cima do telhado, bem sabendo que o mesmo ainda era recente na empresa – menos de 1 mês – e que não tinha formação profissional;

d) Nem tal seria necessário, pois quer o Sr. DD, quer o Sr. EE – pessoas afetas à manutenção – tinham recebido formação para trabalhos em altura –, estando pelo menos documentada nos autos a certificação e comprovativo de formação ministrada ao Sr. DD

- cfr. documento de fls. 164, e fundamentação da Sentença no §1.º de fls. 17.

- cfr. Declarações da testemunha EE, 03/02/2025, transcritas a fls 3, 4 e 5 das alegações

- Cfr. Declarações da testemunha DD, 03/02/2025, transcritas a fls. 5, 6, 7 e 8 das alegações

6.ª O Facto provado 10.º deveria ser alterado, passando a ter a seguinte redação:

No dia 30.11.2015, pelas 10:00 horas, nas instalações da sociedade arguida, em ..., Espinho, CC e EE, também trabalhador da sociedade arguida,

7.ª Pelas seguintes razões:

a) a tarefa de substituição das telhas nem sequer chegou a ser iniciada;

b) quem iria auxiliar o Sr. EE e o Sr. DD era o sinistrado CC, e não o contrário

c) o sinistrado CC não iria sequer executar qualquer tarefa no telhado

- cfr. documento de fls. 164, e fundamentação da Sentença no §1.º de fls. 17.

- cfr. Declarações da testemunha EE, 03/02/2025, transcritas a fls 9 e 10 das alegações

- Cfr. Declarações da testemunha DD, 03/02/2025, transcritas a fls. 5, 6 e 7 das alegações

7.ª O Facto provado 11.º deveria ser alterado, passando a ter a seguinte redação:

O trabalhador CC, sem qualquer ordem para tal, subiu para o telhado do pavilhão, ao qual acedeu através de um terreno contíguo em plano elevado, sem qualquer equipamento individual de proteção, designadamente capacete, linha de vida, cinto de segurança ou arnês.

8.ª Pelas seguintes razões:

a) o sinistrado CC não iria sequer executar qualquer tarefa no telhado, ficando a auxiliar os colegas no terreno, sendo a intenção do Sr. DD que o CC chegasse as telhas e materiais para ele e o Sr. EE executarem a tarefa;

b) subiu ao telhado sem qualquer indicação para tal, pela sua iniciativa, enquanto esperavam que o Sr. DD trouxesse os materiais, ferramentas e equipamentos de segurança

- cfr. documento de fls. 164, e fundamentação da Sentença no §1.º de fls. 17.

- cfr. Declarações da testemunha EE, 03/02/2025, transcritas a fls 9 e 10 das alegações

- Cfr. Declarações da testemunha DD, 03/02/2025, transcritas a fls. 5, 6 e 7 das alegações

9.ª A matéria constante do facto 19, deveria ser dada como não provada, passando para os factos não provados.

10.ª Pelas seguintes razões:

a) não foi produzida qualquer prova para o Tribunal concluir que a arguida sociedade e o arguido seu administrador, ou o chefe de equipa Sr. DD, ordenaram ou tiveram intenção de ordenar, que o trabalhador CC, efetuasse qualquer trabalho no telhado;

b) pelo que os arguidos não acautelaram, porque não tinham acometido essa tarefa ao trabalhador, pelo nunca previram sequer a possibilidade de o acidente ocorrer.

c) não foi dada qualquer ordem ao sinistrado CC para subir ao telhado ou executar ele próprio qualquer tarefa de substituição das telhas;

d) a subida ao telhado pelo sinistrado CC, foi espontânea ou motivada por razões desconhecidas, o que rompe o nexo causal entre a conduta do arguido e o evento danoso;

- cfr. Fundamentação da douta Decisão recorrida, § 4 de fls. 20 da Sentença

- cfr. Declarações da testemunha EE, 03/02/2025, transcritas a fls 9 e 10 das alegações

- Cfr. Declarações da testemunha DD, 03/02/2025, transcritas a fls. 5, 6 e 7 das alegações

11.ª A matéria constante dos factos 21 e 24, deveria ser dada como não provada, passando para os factos não provados.

12.ª Pelas seguintes razões:

a) não foi ordenado, não estava previsto, que o sinistrado CC subisse ao telhado, pelo que a queda resultou não da violação de normas de segurança, mas pela atuação espontânea de subida ao telhado por aquele;

b) não podem os arguidos, por essa razão, serem responsabilizados por terem, com a sua atuação, determinado, direta ou indiretamente a execução, pelo sinistrado CC, de qualquer tarefa que o colocasse em risco e consequentemente que possa a sua atuação ter contribuído ou causado a ocorrência do acidente.

c) resulta dos autos que o telhado apenas na zona das telhas translúcidas era inseguro, sendo a cobertura composta de chapa grossa, colocada em cima de vigas, e tem telhas translúcidas colocadas espaçadamente, sendo perfeitamente seguro andar em cima das chapas que são a maior parte do telhado

d) atendendo à configuração do telhado – na sua grande parte seguro -, à existência de equipamentos de proteção individual para aqueles trabalhadores (arnês, linha de vida), os arguidos ficaram convictos que a tarefa em causa, seria executada em segurança

e) não podendo ser aceite que a cobertura era frágil e danificada;

f) Por outro lado, vem reconhecido quer no relatório do acidente elaborado pela ACT, que a arguida tinha previsto os trabalhos em altura, no seu relatório de avaliação de riscos.

- cfr. fls 1 do relatório de averiguação solicitado pela companhia de seguros, elaborado pela sociedade B..., a fls. 19 e ss dos autos (Volume I Anexo), que constata que a cobertura é feita em chapa metálica, com 3 fileiras de painéis translúcidos acrílicos, juntando no final fotografias do telhado

- cfr. relatório do acidente, elaborado pela sociedade C..., a fls. 103 e ss, de onde constam as fotografias do telhado onde se vê a cobertura em chapa

- cfr as declarações do arguido AA, 25/11/2024, transcritas nas alegações a fls. 11 e 12

- Cfr. Declarações da testemunha DD, 03/02/2025, transcritas a fls. 12 das alegações

13.ª Facto provado 25.º deveria ser alterado, passando a ter a seguinte redação:

A arguida levou a cabo formação prévia com vista à utilização de equipamentos de proteção individual, designadamente capacete, linha de vida, cinto de segurança e arnês, de modo a prevenir quedas em altura, bem como possui equipamentos de proteção coletiva, como por exemplo plataforma elevatória com cesto e andaimes.

14.ª Pelas seguintes razões:

a) a arguida sociedade deu formação prévia para trabalhos em altura, como consta dos diversos relatórios juntos aos autos, bem com consta que a arguida tinha fornecido aos seus trabalhadores EE e DD, os equipamentos individuais de proteção, nomeadamente linha de vida e arnês;

b) a arguida possuiu equipamentos de proteção coletiva usados em determinados trabalhos;

c) a empresa encarregada do serviço de higiene e segurança, que fez a avaliação de risco inicial da atividade da arguida, considerou que a empresa possuía os equipamentos necessários para os trabalhos em altura identificados na avaliação de riscos (mudança de lâmpadas a 7 metros de atura)

- cfr. fls 1 do relatório de averiguação solicitado pela companhia de seguros, elaborado pela sociedade B..., a fls. 23 e ss dos autos (Volume I Anexo), que constata a existência de equipamentos individuais de proteção;

- cfr. fls 7 do relatório do acidente, elaborado pela sociedade C..., a fls. 103 e ss dos autos, de onde constam as fotografias do telhado onde se vê a cobertura em chapa

- cfr. Fundamentação da decisão recorrida - §6, de fls. 20 da douta Sentença

- cfr as declarações da testemunha FF, 03/20/2025, transcritas nas alegações a fls. 16

- cfr as declarações do arguido AA, 25/11/2024, transcritas nas alegações a fls. 17

15.ª A matéria constante dos factos 27 e 29, deveria ser dada como não provada, passando para os factos não provados.

16.ª Pelas seguintes razões:

a) Não foi produzida qualquer prova de onde pudesse o Tribunal “a quo”, dar como provado que o arguido AA “conhecia” as obrigações em matéria de regras de segurança, ou que “sabia” que dos seus comportamentos por ação e omissão eram suscetíveis de criar perigo para a integridade física e vida dos trabalhadores, concretamente ao sinistrado CC;

b) apenas se concede como hipótese académia que o Tribunal desse como provado que o arguido tinha a obrigação e conhecer e a obrigação de saber;

c) apesar de as entidades patronais e seus administradores não se eximirem da responsabilidade por violação de normas de segurança, pelo facto de contratarem empresa para efetuar essa avaliação, não deixa de ser relevante que não lhe foi transmitida nenhum requisito adicional para além da formação para trabalhos em altura – que foi ministrada -, e para além de dotar os seus trabalhadores com os equipamentos individuais de proteção;

d) apesar das preocupações em contratar uma empresa para a avaliação de riscos, nomeadamente para trabalhos em altura, apesar da formação profissional dada nesta matéria, facto é que o arguido desconhecia a obrigatoriedade de ter de fazer uma avaliação prévia especifica para a tarefa de mudança de telhas

- cfr as declarações do arguido AA, 25/11/2024, transcritas nas alegações a fls. 18

17.ª A matéria constante dos factos 30 e 31, deveria ser dada como não provada, passando para os factos não provados.

18.ª Pelas seguintes razões:

a) o conhecimento pelo arguido das obrigações relativas a normas de segurança para trabalhos em altura, decorrem da avaliação de riscos efetuada pela empresa C..., que referia que a empresa estava dotada dos equipamentos necessários, sem referir qualquer necessidade de avaliação para cada tarefa;

b) o arguido AA conhecia as suas obrigações tanto mais que providenciou por formação aos seus trabalhadores EE e DD em trabalhos em altura, e a empresa estava dotada de equipamentos individuais de proteção e coletivos;

c) o que não sabia é que, sempre que fosse fazer uma tarefa em altura, deveria fazer uma avaliação prévia dos riscos dessa específica tarefa;

d) por outro lado, reitera-se, o trabalhador sinistrado não iria sequer trabalhar para o telhado; pelo que nem sequer previram a possibilidade de existência de risco para o trabalhador CC;

e) acresce que o telhado não tem um acesso “livre”, tendo uma rede à volta do mesmo, conforme decorre das declarações do Sr. DD e das fotografias constantes dos relatórios juntos aos autos.

- Cfr. declarações de FF, a fls. 19 destas alegações

- cfr. declarações do arguido AA a fls, 19 e 20 destas alegações

- cfr. relatório de averiguação solicitado pela companhia de seguros, elaborado pela sociedade B..., a fls. 23 e ss dos autos (Volume I Anexo), que constata a existência de equipamentos individuais de proteção;

- cfr. relatório do acidente, elaborado pela sociedade C..., a fls. 103 e 170 ss dos autos, de onde constam as fotografias do telhado onde se vê a cobertura em chapa

19.ª Igualmente se diga que a matéria dada como provado em 30 e 31, é incompatível com a fundamentação apresentada pelo Tribunal, e constante da Decisão recorrida, mais concretamente no § 4 de fls. 20 da Sentença, na qual se refere que não se conseguiu demonstrar que tenha o sinistrado CC sido incumbido ele próprio de substituir as telhas em cima do telhado.

20.ª Na procedência do pedido de alteração dos factos provados 4, 9 10, 11 e 25, e com a exclusão dos factos provados 19, 21, 24, 27, 29, 30 e 31, deverá a douta decisão recorrida, ser declarada nula por erro na apreciação da prova e ser substituída por outra que, absolva os arguidos dos crimes que lhes foram imputados e, consequentemente, sejam absolvidos do pedido cível.

Do direito

21.ª Entende o Tribunal que o arguido AA atuou com dolo de perigo e negligência consciente relativamente ao resultado, considerando que o dolo assumiu a forma de dolo direto.

22.ª Com a procedência da alteração da matéria de facto, desde logo deixa de haver matéria que possa permitir a subsunção da atuação dos arguidos no tipo legal de crime que lhes vem imputado.

Quando assim se não entenda

23.ª Sempre se diga que a atuação do arguido AA não foi dolosa, uma vez que nem sequer diretamente deu qualquer ordem ao trabalhador sinistrado, cabendo a distribuição do trabalho e a indicação e tarefas ao Sr. DD, chefe de equipa.

24.ª Por outro lado, parece-nos evidente a preocupação com o cumprimento das normas de segurança, quer no que toca a formação profissional ministrada ao Sr. DD e Sr. EE, e também pela circunstância de os arguidos terem dotado os seus trabalhadores de equipamentos individuais de proteção, e contratado empresa da especialidade para proceder à avaliação de riscos da atividade.

25.ª Pelo que, a ter existido uma conduta ilícita, tal apenas decorre do desconhecimento da exigência de ter de ser realizada uma avaliação prévia para este específico trabalho em altura.

26.ª O arguido AA atuou na convicção de que aquelas iniciativas (formação, equipamentos e avaliação de riscos) era suficiente para prevenir os riscos da tarefa de mudança das telhas translúcidas.

27.ª Para que o crime possa ser imputado, na sua conduta base – violação de normas de segurança – a título doloso, seria necessário que o arguido, intencionalmente, de forma propositada, incumprisse essa obrigação de avaliação prévia do risco. O que não ocorreu.

28.ª Ora, se para a situação dos trabalhos em altura constantes da avaliação de risco (mudança de lâmpadas) nunca lhe foi referida a necessidade de haver uma avaliação prévia, de uma forma natural, o arguido não concebeu sequer que para a mudança das telhas fosse necessário.

29.ª De facto, o arguido AA não teve a consciência de que, ao não ter pedido a avaliação prévia de riscos para a tarefa em causa, criaria uma situação de perigo para a vida ou saúde de outrem, e que ele ainda assim siga adiante com a conduta.

30.ª Muito menos do trabalhador sinistrado que nem sequer iria executar nenhuma tarefa no telhado.

31.ª Pelo que, inexistindo matéria de facto em que se possa subsumir a conduta do arguido no tipo de crime que lhe vem imputado, deverá o mesmo ser absolvido.

32.ª Por outro lado, cremos, que para haver responsabilidade penal por negligência deve ser exigido mais do que a verificação objetiva de um risco: exige que o agente tenha atuado com descuido censurável, o que, salvo mais sábia e douta opinião, não aconteceu no caso sub judice.

33.ª Foram violadas as seguintes normas legais: art 410.º CPP.

Termos em que,

Com o douto suprimento que se invoca, deve o presente recurso ser admitido e, na procedência do mesmo, ser a douta Sentença recorrida substituída por outra que absolva os arguidos da prática dos crimes em que foram condenados, e bem assim do pedido de indemnização civil, assim se fazendo Justiça…”


***

Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência.

*

O Assistente/Demandante civel GG respondeu ao recurso considerando que a sentença proferida não merece qualquer censura nem no que concerne à decisão sobre a matéria de facto nem relativamente à subsunção jurídico-penal realizada, não tendo a decisão violado qualquer normativo legal mormente os indicados nas alegações. Termos em que, deve improceder na íntegra o recurso apresentado.

*

A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação teve vista do processo, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 416º, nº 2 do CPP, sendo a mesma do seguinte Parecer que:

“(…) precisamente na violação de dever de garante que a sentença recorrida contêm, salvo melhor opinião, uma contradição insanável entre a fundamentação de facto e os factos dados como provados em 9.º. 10.º, 11.º.

9. Em data que não foi possível determinar com rigor, mas anterior ao dia 30.11.2015, o arguido AA, agindo em nome e representação da sociedade arguida, ordenou que se procedesse à substituição de painéis acrílicos, que se encontravam bastante degradados, na cobertura de um armazém designado pavilhão de expedição; para isso, determinou que os trabalhos deveriam ser executados por uma equipa da qual faziam parte os trabalhadores CC, EE e o chefe de equipa, DD, a quem o arguido AA transmitiu a ordem.

10. No dia 30.11.2015, pelas 10:00 horas, nas instalações da sociedade arguida, em ..., Espinho, CC deu início à execução da referida tarefa, com o auxílio de EE, também trabalhador da sociedade arguida, e, seguindo instruções do chefe de equipa DD, começaram por transportar para perto do pavilhão os novos painéis acrílicos a aplicar.

11. Continuando a execução da tarefa de que fora incumbido, CC subiu para o telhado do pavilhão, ao qual acedeu através de um terreno contíguo em plano elevado, sem qualquer equipamento individual de proteção, designadamente capacete, linha de vida, cinto de segurança ou arnês.

Ora, na motivação de facto da sentença recorrida acima transcrita, diz-se o contrário daquilo que foi dado como provado, dado que o tribunal a quo valorou positivamente as declarações do arguido AA e das testemunhas DD e EE, no sentido de que a tarefa da qual foi incumbido o trabalhador CC, aqui ofendido, era de apoiar os trabalhadores que subissem ao telhado e não de que o próprio o fizesse, provando-se ainda que quer o ofendido, quer o trabalhador EE se anteciparam, sem autorização, à execução da tarefa, sendo que por outro lado o ofendido não foi incumbido de subir ao telhado.

Ou seja, as regras de segurança que possam ter sido violadas não se destinavam àquele trabalhador em concreto, mas sim aos trabalhadores que subissem ao telhado.

Deste modo, existe uma quebra de nexo de causalidade entre a violação das regras de segurança e o resultado decorrente da subida ao telhado pelo ofendido, não autorizada.

O tribunal a quo ao acreditar na versão dos factos do arguido AA e das duas testemunhas inquiridas, conforme faz consignar na sua motivação de facto, não podia, por ser contraditório, de modo insanável, dar como provado que o trabalhador estava incumbido de executar a tarefa em altura através de ordem que lhe foi dada em concreto.

Verifica-se, pois, assim se entendendo, um vício da própria sentença, previsto na alínea b) do n.º2 do artigo 410.º do CPP, que poderá levar à anulação do julgamento nessa parte e ao reenvio à 1ª instância, caso este Tribunal considere que não poderá decidir, nos termos do artigo 426.º do CPP.(…)”.


*

Em 15/09/2025, após cumprimento do preceituado no art. º417 n. º2 do C.P.P., veio o assistente pugnar pela inexistência do vício previsto no art.º410 n. º2 do C.P.P., na medida em que o considera sanado no quadro do próprio texto da decisão recorrida.

*

Procedeu-se a exame preliminar.

*

Colhidos os vistos e tendo sido realizada a audiência, com observância dos requisitos legais previstos no artigo 423º do CPP, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Fundamentação.

II.I - Delimitação do objeto do recurso.

Atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso. Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida (art.º412 do C.P.P.).

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelos recorrentes das respetivas motivações, as questões a apreciar e a decidir são as seguintes:

- Determinar se a decisão recorrida enferma dos vícios consagrados na alínea a) e b) do no nº 2 do artigo 410º do CPP: insuficiência para a decisão da matéria de facto e contradição insanável da fundamentação;

- Determinar se ocorreu erro de julgamento da matéria de facto, por errada valoração da prova quanto aos factos dados como provados – factos 4.º, 9.º, 10.º, 11.º, 19.º, 21.º, 24.º, 25.º, 27.º, 29.º, 30.º e 31.º;

- Do elemento subjectivo do tipo legal - do dolo de perigo; da negligência consciente quanto ao resultado.


*

II.II - A decisão recorrida.

No texto da sentença proferida o Tribunal a quo considerou provada a seguinte matéria de facto:

“(…)Factos Provados:

Da discussão da causa, após ponderação crítica dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, resultaram provados os seguintes factos:

1. A sociedade arguida tem por objeto social “fabricação, comercialização, importação e exportação de papéis e seus derivados” e sede na Rua ..., em ..., Espinho.

2. No ano de 2015, o arguido AA era administrador de facto daquela sociedade, sendo responsável, entre outras competências, por contratar trabalhadores, efetuar pagamentos a fornecedores, celebrar contratos com clientes e assegurar o cumprimento e implementação de todas as normas legais e regulamentares respeitantes às áreas de segurança e saúde no trabalho da empresa.

3. Por acordo escrito datado de 02.11.2015, o arguido, agindo em nome e representação da sociedade arguida, contratou CC para prestar atividade correspondente à categoria de Serviço de Apoio para a A..., S.A.

4. A CC competia a execução de trabalhos de manutenção e conservação das instalações da fábrica, sob ordens e instruções dos administradores, por si ou por interposta pessoa por sua ordem.

5. O contrato de trabalho previa na sua cláusula oitava um período experimental de 30 dias.

6. No ano de 2015, a sociedade arguida tinha em vigor um contrato de prestação de serviços em matéria de segurança e saúde no trabalho com a sociedade C... S. A. (posteriormente com a denominação D... S.A.), tendo por objeto as atividades englobadas no objeto social da empresa; neste âmbito, competia ao administrador AA solicitar expressamente à C... a avaliação dos riscos e procedimentos de segurança a adotar, bem como formação a ministrar a trabalhadores, em caso de exercício de atividades não abrangidas pelo objeto social da sociedade.

7. Aquando da sua admissão, por ordem do arguido AA, o trabalhador recebeu instruções básicas para realizar o seu trabalho de Serviço de Apoio, sem receber qualquer formação profissional genérica sobre questões de segurança e saúde no trabalho.

8. O arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, decidiu que tal formação genérica sobre questões de segurança e saúde no trabalho seria ministrada ao trabalhador CC em data não determinada, mas posterior ao termo do período experimental de 30 dias.

9. Em data que não foi possível determinar com rigor, mas anterior ao dia 30.11.2015, o arguido AA, agindo em nome e representação da sociedade arguida, ordenou que se procedesse à substituição de painéis acrílicos, que se encontravam bastante degradados, na cobertura de um armazém designado pavilhão de expedição; para isso, determinou que os trabalhos deveriam ser executados por uma equipa da qual faziam parte os trabalhadores CC, EE e o chefe de equipa, DD, a quem o arguido AA transmitiu a ordem.

10. No dia 30.11.2015, pelas 10:00 horas, nas instalações da sociedade arguida, em ..., Espinho, CC deu início à execução da referida tarefa, com o auxílio de EE, também trabalhador da sociedade arguida, e, seguindo instruções do chefe de equipa DD, começaram por transportar para perto do pavilhão os novos painéis acrílicos a aplicar.

11. Continuando a execução da tarefa de que fora incumbido, CC subiu para o telhado do pavilhão, ao qual acedeu através de um terreno contíguo em plano elevado, sem qualquer equipamento individual de proteção, designadamente capacete, linha de vida, cinto de segurança ou arnês.

12. Deslocando-se sobre a cobertura do pavilhão, constituída, além do mais, por painéis acrílicos já bastante degradados, um dos painéis partiu-se, pelo que o trabalhador CC caiu desamparado desde uma altura de mais de seis metros sobre o piso do pavilhão, chocando com chão em cimento e também, com a cabeça desprotegida, na esquina de uma palete de madeira.

13. Em consequência direta e necessária de tal queda e choque com o solo, CC sofreu grave traumatismo crânio-encefálico, com perda de consciência, bem como lesões traumáticas e neurológicas que determinaram intervenções cirúrgicas, internamentos em Unidade de Cuidados Intensivos e múltiplos tratamentos clínicos.

14. Porém, as intervenções médicas não evitaram que as graves lesões traumáticas sofridas pelo trabalhador, e que lhe atingiram zonas vitais, conduzissem direta e necessariamente à sua morte, ocorrida no dia 25-02-2019, no Centro Hospitalar ..., em Santa Maria da Feira.

15. O trabalhador CC não tinha qualquer experiência ou formação prévia à sua admissão em trabalhos a executar em altura.

16. No ano de 2015, o arguido AA determinou a realização de formação para segurança em trabalhos em altura, com a duração de oito horas, unicamente para o trabalhador DD.

17. O arguido AA, em representação da sociedade arguida, não proporcionou ao trabalhador CC, aquando da sua admissão, nem posteriormente, formação em matéria de segurança e saúde no trabalho, nomeadamente em trabalhos a executar em altura, a fim de serem evitados riscos para a sua vida e integridade física.

18. Para a descrita tarefa de substituição das placas acrílicas do telhado não lhe forneceram quaisquer equipamentos de proteção individual, designadamente capacete, linha de vida, cinto de segurança ou arnês, nem foi pelo arguido, em representação da sociedade, determinada a implementação de qualquer equipamento de proteção coletiva dos funcionários a quem encarregara de executar os trabalhos.

19. Para esta tarefa, o arguido não acautelou, como poderia ter feito, a segurança do trabalhador CC face ao risco de queda – um risco elevado, porque se tratava de atuar sobre a cobertura do pavilhão, ser necessário pisar painéis acrílicos já degradados e em risco de quebra, tanto assim que deveriam ser substituídos -, adotando as medidas de segurança essenciais, adequadas e eficazes, a fim de prevenir a queda desamparada no solo a partir de uma altura superior a seis metros.

20. O trabalho em questão deveria ser executado em altura e expunha necessariamente os trabalhadores, e em especial CC, a um grave risco de queda, pondo igualmente em risco as suas vidas e integridade física.

21. Acontece que o arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, não fez nem determinou previamente um planeamento de avaliação dos riscos profissionais subjacentes à tarefa cuja realização incumbiu os trabalhadores, incluindo CC, considerando o tipo de trabalhos, a altura do telhado, a fragilidade e degradação da respetiva cobertura e o perigo associado; não elencou um conjunto de procedimentos de segurança concretos, por forma a transmiti-los aos trabalhadores, nem diligenciou pela adoção de medidas preventivas que garantissem a realização da tarefa em segurança.

22. O arguido não procedeu nem determinou que se procedesse à avaliação dos riscos associados à execução daquele trabalho, não definiu as medidas de prevenção adequadas ao trabalho a realizar e não elaborou fichas de procedimentos de segurança, apesar de aquele trabalho implicar riscos especiais, nem assegurou que os trabalhadores a quem encarregara de executar essa tarefa tivessem conhecimento das mesmas.

23. Essas medidas de segurança adequadas, a serem definidas na organização e planeamento do trabalho, envolviam, desde logo, a necessidade de escolherem o procedimento e equipamentos de proteção individual e de proteção coletiva mais apropriados para os trabalhadores executarem as diversas tarefas necessárias do serviço em causa, sem colocarem as suas vidas em risco, de modo a estarem salvaguardadas as condições de trabalho seguras através da eliminação ou minimização do risco na sua origem, o que não aconteceu.

24. A queda do trabalhador CC no solo e as graves lesões traumáticas sofridas, que direta e necessariamente lhe causaram a morte, ficaram a dever-se à atuação descuidada do arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, ao determinar a execução da descrita tarefa a um trabalhador em período experimental, sem experiência anterior, em condições de insegurança e sem ter recebido a adequada formação em matéria de segurança no trabalho, designadamente para trabalhos em altura.

25. Tais medidas de segurança passariam, entre outras, pela formação prévia com vista à utilização de equipamentos de proteção individual, designadamente capacete, linha de vida, cinto de segurança e arnês, de modo a prevenir quedas em altura, bem como pela utilização de equipamentos de proteção coletiva, como por exemplo estrado elevatório, munido com braço extensível e cesto ou andaimes.

26. O arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, tendo a direção de todos os trabalhos na empresa e nomeadamente a concreta tarefa de substituição de painéis acrílicos degradados da cobertura do pavilhão, sabiam que esta era tarefa de elevado risco para a integridade física e vida dos trabalhadores que a executassem, não só pela altura da cobertura – mais de seis metros – como pela facilidade com que os painéis acrílicos se desintegram ao serem pisados.

27. O arguido, pelas funções de gestão e administração que exercia na sociedade A..., S. A., conhecia as obrigações que lhe são impostas em matéria de regras de segurança no trabalho, designadamente pelas normas previstas na Lei n.º102/2009, de 10.09, no Decreto-Lei n.º348/93, de 01.10, no Decreto-Lei n.º50/20053, de 25.02, e no Decreto-Lei n.º273/2003, de 29.10.

28. Ao atuar conforme descrito, o arguido sabia que infringia normas legais e regulamentares de segurança e saúde no trabalho, normas essas que devem, obrigatoriamente, ser observadas no posto e tipo de trabalho descrito e criava necessariamente perigo para a integridade física e a vida dos trabalhadores e, em especial, CC, perigo esse que veio a concretizar-se com a perda da vida no dia 25.02.2019.

29. O arguido sabia que os seus comportamentos por ação e omissão eram suscetíveis de causar perigo para a integridade física e vida dos trabalhadores e, concretamente, de CC, em face da sua inexperiência profissional e falta de formação em segurança no trabalho.

30. Todavia, podendo, devendo e sendo capaz de proceder de forma diferente, omitiu os seus deveres de cuidado enquanto administrador da sociedade arguida, não fornecendo equipamento de proteção individual adequado ao exercício da função em causa, o que protegeria de quedas, não providenciando o uso de equipamento de proteção coletiva que evitaria ou tornasse segura a deslocação e trabalho em cima do telhado, não elaborando fichas de procedimento de segurança e não determinando, logo aquando da admissão, formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de atividades de risco, bem como sobre como proceder a trabalhos em altura, sujeitando, deste modo, o seu trabalhador CC ao perigo que todos sabiam existir.

31. O arguido AA, em nome e representação da sociedade arguida, ao determinar a execução da referida tarefa a uma equipa que sabia incluir o trabalhador CC, ainda em período experimental, sem experiência naquele tipo de trabalhos e sem formação para executar trabalhos com risco para a vida e integridade física, sabia que colocava o trabalhador numa situação de perigo para a sua vida; porém, desconsiderou o perigo e determinou a execução da tarefa em condições de insegurança.

32. Apesar disso, bem sabendo que a subida a uma cobertura e o pisar sobre painéis acrílicos degradados, sem qualquer proteção individual ou coletiva, criava o perigo de queda mortal do trabalhador, dada a desproteção e a altura, confiou que tal fatalidade não ocorreria.

33. Atuou de forma livre e consciente, bem sabendo que os seus comportamentos eram proibidos e puníveis, além do mais, por lei penal.

34. GG, nascido em 06.02.2006, encontra-se registado como filho de HH e de CC.

35. CC celebrou contrato de trabalho com a sociedade arguida mediante a remuneração mensal de € 520,00 x 14, a título de vencimento e de € 2,62 x 252 dias, a título de remuneração.

36. CC, decorrente da queda, sofreu grave traumatismo crânio encefálico, com perda de consciência, bem como severas lesões traumáticas e neurológicas que determinaram intervenções cirúrgicas, internamento em unidade de cuidados intensivos e múltiplos tratamentos clínicos;

37. Consequente e diretamente, foram detetados múltiplos focos de contusão, apagamentos das cisternas da base, hemorragia subdural frontal esquerda, sem condicionar desvio da linha média, fraturas diastáticas da lambdoide esquerda e temporoparietal esquerda, com irradiação ao rochedo;

38. Foi transportado para o Serviço de Urgência do Centro Hospitalar 1... onde foi avaliado pela especialidade de Neurocirurgia e operado de urgência e no mesmo dia para “realização de craniectomia, tendo sido colocado o retalho ósseo na espessura da parede abdominal” tendo sido feita “craniectomia, descompressiva hemisférica esquerda e drenagem do hematoma subdural agudo”.

39. Tendo então ficado internado na Unidade de Cuidados Intensivos, em coma até 25.12.2015.

40. Durante o internamento apresentou intercorrência com infeção do sistema nervoso central (SNC)/meningite.

41. Em 07.01.2016 foi novamente operado para realização de cranioplastia.

42. Em 22.02.2016 foi transferido para a Santa Casa da Misericórdia ..., onde ficou em isolamento e mantido o tratamento antibiótico.

43. Em 31.03.2016 foi internado no Hospital ... – ..., onde iniciou programa de reabilitação.

44. Em 25.05.2016 foi observado em consulta externa de Neurocirurgia do CH... e “apresentava discurso pouco percetível desorientação temporo-espacial; sem capacidade mental/psíquica para reger de forma adequada a sua pessoa e ou os seus bens”.

45. O evento supra descrito foi causa direta das lesões, dores e danos corporais sofridos por CC bem como, entre outras, das seguintes sequelas: “desorientação no tempo e no espaço, discurso desorganizado, lentificado e impercetível, sialorreia; evidência défices cognitivos severos com comprometimento das funções executivas e alterações de memória; mantém períodos de heteroagressividade verbal e física; encontra-se totalmente dependente para as atividades da vida diária; deambula para curtas distâncias com auxílio bilateral, com desequilíbrio na marcha; risco acrescido de queda”.

46. Em consequência direta do evento supra descrito, à data dos factos, CC “não consegue colocar-se de pé ou caminhar; apresenta disartria importante, pelo que não consegue comunicar corretamente; não consegue manter qualquer conversação; usa fralda descartável.”

47. À data dos factos, “encontra-se totalmente dependente de terceira pessoa para a realização de todas as atividades da vida diária, alimentação, vigilância e administração de medicamentos; não consegue gerir as suas economias; não consegue desempenhar qualquer atividade profissional.”

48. Apresentava as seguintes lesões e/ou sequelas: “Consciente, desorientado, é transportado em cadeira de rodas com necessidade de tensão a nível de tórax e punhos. Cicatriz de craniotomia, curvilínea, de concavidade inferior, parieto-temporo-frontal esquerda, medindo 23 cm de comprimento; área de elevação óssea na região frontal esquerda, em provável relação com a craniotomia; Disartria acentuada, sendo a fala impercetível, não conseguindo estabelecer qualquer discurso; irritável; discreto desvio da comissura labial à esquerda, com sialorreia; apenas executa ordens simples; fechar os olhos, apertar as mãos, abrir a boca; hipotrofia muscular generalizada; preensão das mãos com força muscular grau 4(+)/5; Mobiliza ativamente os membros inferiores, evidenciando força muscular grau 4/5, e rigidez articular moderada dos joelhos; Reflexos rotulianos simétricos e normorrefléxicos; titude postural do pescoço em flexão e lateralização à esquerda; Abdómen: cicatriz com vestígios de pontos de sutura, transversal, no quadrante inferior direito da região umbilical, medindo 11 cm de comprimento.”

49. O evento supra descrito acarretou para CC uma incapacidade temporária absoluta (ITA) entre 30.11.2015 e 08.06.2017 (data da consolidação médico-legal das lesões pelo GML), durante o qual esteve totalmente impedido de realizar a sua atividade profissional.

50. Bem como danos permanentes que originaram incapacidade permanente e absoluta para todo e qualquer trabalho até à data da sua morte.

51. Por sentença proferida no Proc.n.º6719/16.7T8VNG em 05.01.2018 foi, com caráter definitivo, decretada a interdição de CC.

52. Veio a falecer em 25.02.2019 no Hospital 1... por penumonite de aspiração em consequência da disfagia grave por “status pós politrauma com TCE.”

53. A disfagia grave requeria a utilização de sonda nasogástrica permanentemente para proceder à alimentação diária em função do traumatismo crânio-encefálico sofrido em 30.11.2015.

54. A ocorrência supra descrita constituiu igualmente acidente de trabalho, cuja ação correu os seus termos sob o n.º4071/16.0T8VFR-B, Juízo Central do Trabalho de Santa Maria da Feira – Juiz 1.

55. No âmbito do processo aludido em 54), a sociedade arguida, ali 3.ª R., havia transferido a sua responsabilidade infortunística laboral para a E..., S.A., tendo sido proferida sentença judicial, transitada em julgado, cujo dispositivo é o seguinte:

«Decisão:

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a presente ação e, em consequência:

a) Reconhecer que o sinistrado CC sofreu um acidente de trabalho no dia 30/11/2015, do qual veio a resultar a sua morte em 25.02.2019

b) Declarar que, em consequência do acidente de trabalho, o sinistrado esteve em situação de Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 30/11/2015 até 08/06/2017 e, após esta data, sendo reconhecida uma Incapacidade Permanente Absoluta (IPA) para todo e qualquer trabalho;

c) Declarar que, em consequência de tal acidente, o sinistrado carecia de ajuda permanente de terceira pessoa para a realização de todas as atividades de vida diária e necessitava de seguimento clínico regular;

d) Condenar a Ré E..., S.A. a pagar a GG a título sucessório e pessoal as seguintes quantias:

i) pensão por incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho referente ao período de 09.06.2017 a 25.02.2018, no valor de €12.532,64;

ii) indemnização por incapacidade temporária absoluta no valor de €12.109,33;

iii) subsídio por situação de elevada incapacidade no valor de €5.533,70;

iv) prestação suplementar para assistência a terceira pessoa no valor de €9.553,43; v) reembolso de despesas de transporte do sinistrado no valor de €30,00;

vi) pensão por morte no valor anual de €1.587,04 sendo atualizável de acordo com as portaria em vigor a partir do dia seguinte ao da morte (26.02.2019) até à maioridade ou, em caso de prosseguimento dos estudos, até ao limite previsto no artigo 60º, n.º1 b) e c) da LAT; vii) subsídio por morte no valor de €5.725,03;

viii) reembolso de despesas de transporte do beneficiário - €30,00.

Tudo sem prejuízo do direito de regresso eventualmente a exercer contra a entidade empregadora;

e) Condenar a Ré A..., S.A. a pagar ao Autor GG, a título sucessório e pessoa. Os seguintes quantias:

i) Pensão por incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, referente ao período de 09.06.2017 a 25.02.2019, no valor de €1.392,51; ii) pensão por morte no valor anual de €6.348,16, sendo atualizável de acordo com as Portaria em vigor, a partir do dia seguinte ao da morte (26.02.2019) até à maioridade ou, em caso de prosseguimento dos estudos, até ao limite previsto no artigo 60º, n.º1 b) e c) da LAT.

(…).»

56. GG recebeu, por conta do processo aludido em 56), pelo menos, o valor de € 94.154,86.

57. Em resultado da queda, CC, durante o tempo correspondente à queda e até atingir o solo, sofreu angústia e completo desespero.

58. Sofreu dores muito intensas no momento do embate.

59. Entre a data do acidente (30.11.2015) e a data da morte (25.02.2019), apresentava:

● Completa ausência da consciência de si e do ambiente circundante;

● Impossibilidade de interação com o próximo;

● Ausência de respostas intencionais e voluntárias a estímulos;

● Ausência de compreensão ou expressão verbais;

● Vigília intermitente, ciclos sono-vigília;

● Preservação das funções hipotalâmicas e autonómicas suficientes para a sobrevivência;

● Incontinência urinária e fecal.

60. Necessitava da ajuda de terceira pessoa em permanência para satisfação das suas necessidades humanas mais básicas, mormente, alimentação, higiene e limpeza, de ajudas medicamentosas e ajudas técnicas.

61. Vivia numa situação miserável, definhadora.

62. Deixou de poder dedicar o seu afeto e amor ao seu filho.

63. Os pais do demandante, à data do seu nascimento, não se encontravam casados entre si.

64. O seu nascimento foi fruto de uma relação de namoro.

65. Situação que não se alterou.

66. Em momento algum os pais do demandante regularam o exercício das responsabilidades parentais quanto a ela.

67. Existia entre os pais cordialidade suficiente para o estabelecimento de um regime livre de visitas.

68. Nunca tendo a mãe do demandante colocado entraves à ligação entre pai e filho.

69. Os arguidos não têm registo de antecedentes criminais.

70. O arguido AA foi sócio-gerente da sociedade arguida até 18.11.2024, trabalhando atualmente numa fábrica de laminação de papel, com o vencimento mensal de € 2.500,00.

71. Reside com cônjuge e dois filhos maiores dependentes, em casa própria pela qual paga a prestação mensal de crédito habitação de € 700,00.

72. Despende mensalmente a quantia de € 400,00 pela prestação do crédito automóvel, mais declarando a quantia de € 1.000,00 por despesas correntes.

73. A sociedade arguida recorreu à figura do lay-off entre 15.05.2023 e 14.08.2023, com fundamento em «motivos económicos ou tecnológicos».

74. No exercício de 2023, a sociedade arguida apresentou um volume de negócios de € 9.235.277,63 e teve um resultado líquido de - € 49.995,20, tendo mais de 15 trabalhadores no ativo.

Factos Não Provados:

Com relevo para a boa decisão da causa, não se provou:

A. Que CC tenha atuado sempre diligentemente na execução das tarefas que lhe foram cometidas, da melhor forma que sabia e de acordo com o nível de formação que lhe foi ministrada.

B. Que durante a queda, CC tenha sentido que iria morrer.

C. Que fosse um bom e dedicado pai.

D. Que dedicasse muito afeto, amor e carinho ao filho e uma natural ternura e amor.

E. Que fosse um bom companheiro e amigo do filho.

F. Que o demandante e o acidentado constituíssem uma feliz família e que sempre que podiam passeassem aos fins-de-semana, que fizessem férias juntos e que aquele acompanhasse o filho nas suas novas experiências.

G. Que CC fosse um pai presente.

H. Que lhe fosse conhecida a ambição de ver o filho “bem na vida”, feliz, formado e com profissão.

I. Que a sua morte tenha provocado e vá continuar a provocar, por toda a vida do demandante, uma profunda tristeza, consternação e pesar, um sentimento de culpa quando tem momentos mais alegres, ansiedade de separação e que seja uma verdadeira lacuna na sua vida que jamais será preenchida.

J. Que à data da morte, o demandante tenha mergulhado num ciclo de descrença e solidão.

K. Que o demandante sofra de forma inigualável com a partida daquele seu ente querido.

L. Que, em virtude da morte do pai, o demandante não seja o mesmo jovem alegre que antes era e que, por via disso, apresente dificuldades em dormir, em se relacionar, em conviver.

M. Que, mercê da morte do pai, o demandante seja um jovem triste, melancólico que, por vezes, passa a ter acessos de fúria como um adolescente revoltado.

N. Que o demandante se mantenha atualmente a estudar e que tal fosse o desejo do pai.

O. Que o demandante civil sinta muito a falta do pai nas datas que mais o marcam, nos aniversários, no Natal, no Ano Novo, no dia do Pai.

P. Que as datas aludidas em O) tenham deixado de ser celebradas pelo demandante.

Q. Que os pais do demandante tenham deixado de namorar um com o outro pouco tempo após o nascimento daquele.

R. Que, apesar do circunstancialismo aludido em 68), o pai convivesse com o demandante.

S. Que CC entregasse à mãe do demandante a quantia mensal de € 100,00 a título de prestação alimentícia e que tal fosse normalmente pago em dinheiro por aquele à mãe.

T. Que tal montante fosse adveniente dos salários dos seus empregos e dos biscates que realizasse.

U. Que tal quantia tenha deixado de ser paga apenas a partir de dezembro de 2015.

V. Que o demandante, atualmente, além do salário da sua mãe, sobreviva com o valor da pensão auferida e resultante do acidente de trabalho.

W. Que o demandante se encontre atualmente a frequentar o 1.º ano do curso de educação e formação de operador de informática na Escola Profissional ....

X. Que o demandante pretenda continuar com a sua formação na Universidade.

III. Motivação quanto à matéria de facto:

O Tribunal fundou a sua convicção na totalidade dos meios de prova produzidos em sede de audiência de julgamento e nos documentos juntos aos autos, avaliados à luz da experiência comum.

Foram relevantes, então, os seguintes documentos:

- De fls.4v a 48 [certidão emitida pelo Proc.n.º..., do Juízo Central do Trabalho de Santa Maria da Feira, que contém, aqui se destacando, a participação do acidente; o diário clínico de fls.8 datado de 25.05.2016 de onde, além de indicar que a admissão de CC se deveu a uma queda de aproximadamente 7m de altura, resulta a evolução do estado do paciente, sinistrado, desde a data do evento até à data da emissão do documento; os relatórios de neurocirurgia; o inquérito da ACT, com o qual foi confrontada a sua subscritora, aqui testemunha e, de onde, com relevo, e além do mais, expressamente se extrai que «no momento do acidente, o trabalhador sinistrado não usava qualquer tipo de equipamento de proteção individual contra o risco de queda em altura»; o relatório de clínica forense elaborado em 20.06.2017 de onde, além do mais, resulta que a Incapacidade temporária absoluta é fixável num período total de 557 dias, que o examinando apresenta Incapacidade Permanente e Absoluta (IPA) para todo e qualquer trabalho e que carece de apoio permanente de terceira pessoa e de seguimento clínico regular; o assento de nascimento de CC; a decisão judicial no âmbito da impugnação de contraordenações laborais (concretamente, a de a sociedade arguida não ter assegurado aos trabalhadores de forma contínua e permanente as condições de segurança e saúde em todos os aspetos do seu trabalho e a de não ter ministrado àquele trabalhador formação) da qual resulta que foi absolvida da primeira e mantida a condenação quanto à segunda; o certificado – posteriormente também junto a fls.65/66 – e o relatório de óbito].

- De fls.81 e 553/554 [relatórios médico-legais elaborados em 27.9.2019 e 06.11.2019, de cujo teor, além do mais, que aqui se dá por reproduzido, resulta que «é possível admitir nexo de causalidade entre a causa de morte referida no Certificado de Óbito datada de 25-02-2019 (”pneumonite de aspiração em consequência da disfagia grave por “Status pos politrauma com TCE”) e as sequelas resultantes do acidente de trabalho sofrido a 30-11-2015, tendo em conta que a morte foi devida a pneumonite de aspiração em consequência da disfagia grave (requerendo sonda nasogástrica permanentemente para proceder à alimentação diária) de que ficou portador em resultado do traumatismo cranioencefálico sofrido em 2015»].

- De fls.96 a 97 [auto de notícia elaborado pela ACT que conclui que «a arguida não comprovou ter procedido no sentido de ter sido ministrada formação sobre segurança e saúde no trabalho ao trabalhador sinistrado CC»].

- De fls.100 a 107v e 165 a 171v [documento denominado de “investigação e análise de acidente no trabalho” elaborado pela empresa C... e que expressamente conclui que «se tivessem sido cumpridos os procedimentos de segurança aplicáveis a trabalhos em altura (trabalhos em superfícies frágeis), possivelmente o acidente de trabalho não teria ocorrido, ou em caso de ocorrências, os efeitos e consequências do acidente de trabalho podiam ter sido minorados de forma considerável»].

- De fls.164 (documento denominado de “certificado de Formação Profissional” emitido para DD, testemunha que aqui se arrogou de ser o chefe da equipa integrada pelo malogrado CC, de onde resulta que aquele «concluiu com aproveitamento o curso de Formação Profissional de Sensibilização para a Segurança em Trabalhos de altura, em 22/10/2015»).

- De fls.227 a 230 (condições particulares da apólice de seguro por acidentes de trabalho subscrito pela sociedade arguida junto da Tranquilidade).

- De fls.255 a 295 e 432 a 453v [sentença no âmbito da ação declarativa com processo especial emergente de acidente de trabalho n.º4071/16.0TBVFR-B, com o dispositivo supra transcrito no facto provado 55) e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto que a confirmou].

- De fls.479/480 [documento denominado de “contrato de trabalho a termo certo” entre a sociedade arguida e CC, assinado pelo arguido AA pela empregadora, celebrado em 02.11.2015 do qual constam, além do demais teor, que aqui se dá por reproduzido, as condições aludidas no facto provado 35) e que aquele foi admitido para «prestar a atividade correspondente à categoria de Serviço de Apoio, previstas na CCT aplicável»].

- De fls.534 (documento que expressa a relação contratual entre a sociedade arguida e a empresa C..., S.A. para prestação de serviços de higiene e segurança no trabalho).

- De fls.547v/548 (assento de nascimento de GG, de onde se extrai a data de nascimento e a filiação).

- De fls.548v a 552v (certidão da sentença de maior acompanhado proferida em 05.01.2018 respeitante a CC).

- De fls.554v [documento denominado de “declaração”, emitida pela Escola Profissional ... na qual é dito que, na data da sua emissão (07.10.2022), GG ali se encontrava inscrito; no entanto, inserimos o facto alegado correspondente no rol dos factos não provados sob W) em virtude da admissão do próprio, em sede do seu depoimento na audiência de julgamento, de que já assim não é, tendo o Tribunal entendido adotar um critério atualista quanto à inserção de tal facto no acervo fáctico, porquanto a informação veiculada por este documento só é verdadeira à data da sua emissão e já não ao presente momento].

- De fls.570v7571 (folha de presenças na ação de sensibilização para a segurança em trabalhos em altura, da qual não consta a menção e/ou assinatura de CC).

- De fls.656 (informação quanto ao período em que aquele esteve internado na Santa casa da Misericórdia 1...).

- De fls.658 (informação prestada pelo Hospital 2... quanto ao período de internamento nas suas instalações e que, ainda que não dispusesse de documento de registo de visitas, que existem registos da visita do irmão II e da cunhada JJ, o que ajuda a concluir pela ausência de contacto com o demandante civil e a sedimentar a credibilidade daquelas duas testemunhas).

- De fls.676 e 677 (CRC’s).

- De fls.679v a 681 (documentos de onde resulta que foram pagos à progenitora do ora maior demandante civil nestes autos oi por reembolso à seguradora, a quantia de € 94.154,86).

- De fls.682 a 689v e ref.ª n.º136734617 (certidão permanente referente à sociedade arguida, de onde, além do mais, resulta que o aqui arguido AA cessou funções como sócio- gerente – Ap...).

- Documentos atinentes às condições socioeconómicas da sociedade, c/ a ref.ªn.º17414772 e o comprovativo de liquidação do IRC junto por último.

Em complemento e conjugação com os documentos que vimos de elencar, foram relevantes as declarações do arguido AA e os depoimentos das testemunhas KK, LL, FF, II, MM, EE, DD, GG, NN, OO, JJ e HH.

O arguido AA começou por relatar que foi quem deu a ordem para o serviço de substituição das telhas ser feito, mais referindo que CC não tinha recebido formação para a realização de trabalho em altura e, com relevo, que estava previsto vir a tê-la tendo, à data, contudo, apenas recebido a formação inicial, formação esta que, tal como o referiu a testemunha MM, não era mais do que a entrega de um manual de boas-vindas e uma visita pelas instalações e atribuição de vestuário, calçado e luvas, sendo que a restante formação apenas seria dada em momento posterior ao período experimental. Referiu ainda que foi o próprio, em representação da sociedade arguida, quem deu a ordem de serviço de substituição dos painéis acrílicos do telhado do armazém ao funcionário DD, para que este a executasse com a sua equipa, constituída por EE e CC, bem sabendo que este não tinha formação em trabalhos em altura.

Todavia, esclareceu o arguido que estes dois funcionários não teriam como função, naquele serviço, aceder diretamente ao telhado, e que mais concretamente CC deveria apenas auxiliar no transporte e entrega dos painéis de acrílico, nunca acedendo diretamente ao telhado, acrescentando que aquele serviço seria para o funcionário visualizar o trabalho e perceber como funcionavam os trabalhos em altura.

Tal versão é convergente com os depoimentos das testemunhas DD e EE.

Este último relatou que a ordem de substituição das placas acrílicas lhe foi transmitida, a si e a CC pelo chefe de equipa, DD e esclareceu que aquela fora somente para transporte das telhas até terreno elevado contíguo ao telhado, e que uma vez lá chegados deveriam aguardar que o chefe de equipa chegasse.

Relatou ainda que o propósito era a substituição das placas de acrílico, mas esclareceu que não lhes fora dada ordem para avançar sobre o telhado, somente para transportarem as telhas até ao local, o que fizeram, mas que, contudo, uma vez lá chegados, apesar de não estarem equipados para o efeito (com equipamentos de proteção individual) e de não se encontrar ainda instalado qualquer equipamento de proteção coletiva, ambos avançaram para cima do telhado.

Esta testemunha afirmou que só subiu para o telhado porque CC o fez primeiro, e porque sabia que, apoiando-se nas zonas compostas por zinco, e não em cima das placas acrílicas, seria seguro permanecer em cima do telhado e que, então, terá dito àquele para não pisar as telhas de acrílico, mas que este, sem que nada o fizesse antever, avançou sobre o telhado e perante a cedência de uma das telhas caiu cerca de 10 metros no interior do armazém, dando-se assim por provada a sequência cronológica do episódio do acidente.

Tal versão, e como supra se indiciou, é grosso modo coincidente com a da testemunha DD, apesar de algumas divergências que, não obstante, o tribunal relevou atento o hiato temporal decorrido entre a data do sinistro (2015) e a data de produção de prova em julgamento (2025). Assim, esta testemunha, chefe de equipa, que também se mostrou coerente e credível apesar da manutenção da relação laboral com a sociedade arguida, confirmou ter informado EE e CC de que lhes havia sido atribuída a tarefa de substituição das placas de acrílico do telhado e que tal lhe havia sido comunicado pelo arguido.

Afirmou, ainda, a testemunha que não se recorda de ter dado a ordem de transporte das telhas para local próximo do telhado, mas que se recorda de ter afirmado que aguardassem o seu retorno.

Ora, a inquirição das testemunhas e as declarações do arguido AA são convergentes no que se reporta à negação de existência de ordem direta dada a CC para aceder ao telhado, convencendo assim a versão dos factos apresenta pelo arguido de que, não obstante ter sido atribuída a tarefa de substituição das placas acrílicas do telhado do armazém à equipa chefiada por DD e integrada por EE e CC, bem sabendo que a este não tinha sido ministrada formação de trabalho em altura, a sua função concreta seria de transporte e facilitação das telhas a quem estivesse a executar a concreta substituição da tarefa em cima do telhado.

Desse modo, não se conseguiu afirmar que CC tenha sido incumbido de ele próprio substituir as telhas em cima do telhado, mas sim que na distribuição das tarefas entre os membros de equipa e, como é corrente, ao membro mais novo foi atribuída a função menos especializada, o que, no caso da tarefa de substituição de telhas, seria a função de entrega das telhas aos seus colegas de trabalho, o que, por si, sem acesso ao telhado, não apresentava um risco de queda elevado, porquanto ele ao telhado não precisaria de aceder, mantendo-se no terreno elevado contíguo, para onde, de resto, havia transportado as placas acrílicas para substituição.

No seguimento das suas declarações, o arguido AA afirmou ainda que, à data da prática dos factos, desconhecia a obrigatoriedade de avaliação de risco em momento prévio à execução do trabalho em altura, afirmando não ter conhecimento de que seria necessário fazer uma auditoria prévia.

Ora, segundo o próprio, ele exercia as mesmas funções de administração há aproximadamente sete anos, tendo acrescentado que já em momento anterior já havia dado

ordem para troca de lâmpadas em plataforma elevatória com recurso a cesto com empilhador.

Esta tarefa de substituição de placas acrílicas do telhado, porém, disse ter sido a primeira vez que fora executada por funcionários da sociedade arguida, tendo anteriormente recorrido a prestação de serviço por sociedade terceira, o que é convergente com o depoimento de FF, técnica superior de segurança no trabalho, que, à data da prática dos factos, prestava serviços para a entidade SUCH.

Aqueles outros serviços de substituição de lâmpadas constam do relatório de risco que esta testemunha elaborou, porquanto lhe foi comunicado por aquele arguido, não tendo avaliado esta tarefa de substituição de telhas por não se integrar nas tarefas habituais da sociedade arguida, não lhe tendo sido comunicada ou solicitada a sua avaliação.

Da mesma forma, a testemunha LL, inspetora ACT, confirmando as diligências de prova constantes no inquérito ACT supra aludido, reafirmou que o relatório de riscos da sociedade arguida não contemplava a totalidade dos trabalhos em altura, mas que incluía outros trabalhos como o sejam a substituição de lâmpadas.

Assim, não se poderá acolher a invocação de desconhecimento por parte do arguido pois, desde logo, tem de se afirmar a obrigação de conhecimento por parte de profissional que exerce a função de administrador há aproximadamente sete anos, não sendo, de igual modo, credível que, tendo o arguido comunicado, por saber da sua obrigatoriedade, serviços em altura de substituição de lâmpadas do teto de um armazém com aproximadamente sete metros de altura, e que se reflete no relatório de risco, venha agora afirmar não saber da obrigatoriedade de comunicação de outro serviço em altura para a sua avaliação de risco, como o é a substituição de telhas.

É seguro, então, concluir que resulta da prova produzida que, apesar de saber das imposições legais no que se reporta a matéria de segurança no trabalho, concretamente para trabalhos em altura, não cuidou o arguido, enquanto legal representante da sociedade arguida, de proceder à avaliação dos riscos e procedimentos a adotar, sendo pacífico que, quer o arguido, quer as testemunhas que vimos de referir afirmaram a existência de EPI (equipamentos de proteção individual), mas que, à data da ocorrência, não estavam na posse dos funcionários e, bem assim, que não se encontrava montado qualquer equipamento de proteção coletiva.

Por seu turno, KK, agente da PSP, recordando-se do episódio, mas não o conseguindo localizar temporalmente, uma vez confrontado com a participação junta aos autos, corroborou o seu teor, afirmando nada ter presenciado relativamente aos factos em análise nos presentes autos.

Voltando-nos para a causa de pedir inerente ao pedido de indemnização civil, II, irmão do falecido CC, recordou o percurso de vida deste e o seu acolhimento e ajuda por si do seu irmão, que culminou num pedido para ser admitido na sociedade arguida, acrescentando, com relevo, que o filho do seu irmão nunca foi visita de sua casa e que só o conheceu no velório. O seu depoimento quanto à interação entre pai e filho (ou falta dela), de aparência credível, em consonância com o depoimento da sua esposa JJ, também de aparência verosímil, foi relevante no sentido de nos esboçar a inexistência de uma relação entre o sinistrado e o filho, aqui demandante civil, o que, grosso modo, foi confirmado pelo próprio demandante. Não só referiu que eram ele e a esposa os únicos que acompanharam o trajeto médico e situacional do sinistrado desde o acidente até à sua morte, o que é corroborado, por exemplo, pela informação de fls.658, como é eloquente a afirmação dele de que se o irmão tivesse uma relação próxima com o filho, o mais natural seria dizer-lhe em virtude da sua relação próxima de irmãos, aliás, coabitantes.

O demandante GG contou que os seus pais se separaram quando era pequeno e que teria cerca de dois anos de idade e que, de vez em quando, o seu pai lhe ligava até entrar na escola e que, depois disso, deixou de estar consigo, limitando-se o contacto ao telefónico. Com relevo, mais referiu não se lembrar de ter passado férias com o pai após a separação dos pais, acrescentando não saber o que o pai fazia ou onde morava, tendo, contudo, referido terem-lhe dito que moraria na rua. Em suma, até aos seus 06 anos de idade, o pai ia visitá-lo a casa da mãe, tendo cessado a partir de tal idade, perdendo gradualmente a ligação com o pai, nunca o tendo visitado após o acidente, por exemplo.

NN, companheiro da mãe do demandante, pouco ou nada soube adiantar, reiterando a frase: «nunca me meti nisso!», ora referindo que o pai ligava ao filho, ora referindo não saber se o pai ligava ao filho. Curiosa é a afirmação de que o demandante ficou triste com a morte do pai, quando referiu não saber qual a data de tal evento, logo, não pôde permitir fazer uma correspondência temporal, atento o caráter reservado que, por exemplo, a própria mãe, atribuiu ao demandante.

Ao invés, e esta testemunha é a exceção dentro do universo das testemunhas próximas do demandante civil, OO, ainda que de modo incoerente e pouco natural, tentou afirmar a existência de proximidade entre pai e filho. Ora, não só foi contraditória per se, apresentando um depoimento pouco credível, como foi contrariada pelas demais testemunhas, com particular ênfase para o demandante civil, atribuindo sensações e mesmo desabafos a este para consigo que o próprio não verbalizou nem a versão que este contou o permite admitir.

HH, mãe do demandante civil, referiu, com foros de seriedade, que o pai teve contacto com o seu filho até aos 06 anos deste e que depois foi viver para África com alguém e deixou de ligar àquele. Mais afirma que o filho nunca passou férias com o pai, sendo que tudo o que conta em termos de contactos são-no por reporte a uma idade mais tenra do demandante, o que é convergente com as declarações deste, sendo eloquente a sua frase de que «a partir dos 07 anos, o GG nunca mais esteve com o pai pessoalmente».

Quanto à factualidade correspondente às condições socioeconómicas dos arguidos, levou-se em consideração as declarações do arguido a esse respeito porquanto aparentemente credíveis e, quanto à sociedade, a certidão de contas anuais junta aos autos.

Por fim, quanto aos factos não provados, além do que fomos referindo, assim resultaram por ausência de prova em sentido contrário.

IV. Enquadramento Jurídico-penal:

Feito o enquadramento fáctico, importa, agora, proceder ao enquadramento jurídico-penal.

É imputada aos arguidos a prática de um crime de violação das regras de segurança, com resultado morte, p. e p. pelos art.ºs152.º-B, n.ºs1,2 e 4, alínea b) do Código Penal, com referência aos art.ºs11.º, n.º2, 12.º, n.º1, alínea b), 14.º, 15.º, alínea a), 18.º e 26.º, todos do Código Penal, bem como aos art.ºs15.º, n.ºs1, 2, alíneas a), c), d) e j), 3, 4, 5, 10, 19.º e 20.º, da Lei n.º102/2009, de 10.09; art.ºs4.º e 6.º do D.L. n.º348/93, de 01.10; art.ºs3.º, 36.º e 37.º, do D.L. n.º50/2005, de 25.02; e art.ºs4.º, 7.º, alínea a), e 14.º do D.L. n.º273/2003, de 29.10.

Preceitua, desde logo, o art.º152.º-B do Código Penal, no seu n.º1, que “quem, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal,” complementando o n.º2 que “se o perigo previsto no número anterior for criado por negligência o agente é punido com pena de prisão até três anos.”

Com relevo, mais plasma a alínea b) do n.º4 da norma que “se dos factos previstos nos n.ºs1 e 2 resultar a morte o agente é punido (…) com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 2.”

O presente tipo legal foi inserido no Capítulo III do Código Penal, sob a epígrafe “Dos Crimes contra a Integridade Física”, mercê de aditamento introduzido pela Lei n.º59/2007, de 04.09, juntamente com o crime de maus-tratos previsto no art.º152.º-A, ilícitos estes que foram, desse modo, autonomizados em relação ao primitivo crime de maus-tratos nascido no Código Penal de 1982, e que abrangia as situações atualmente previstas nestes art.ºs152º-A e 152º-B, e no crime de violência doméstica do art.º152.º do Código Penal.

O crime de violação de regras de segurança é, assim, considerado como uma forma especial do crime de maus-tratos, sendo os bens jurídicos protegidos a integridade física e psíquica, mas também a vida.

É considerado um crime específico próprio, fundado na relação de vigilância existente entre empregador e trabalhador, tendo embora um âmbito mais amplo do que o tipo legal de crime de infração de regras de construção, do art.º277.º do Código Penal, que cobre apenas as regras de segurança na construção, demolição ou instalação.

Trata-se de crime de perigo concreto quanto ao bem jurídico e de resultado quanto ao objeto da ação, sendo-lhe, por isso, aplicável a teoria da causalidade adequada consagrada no art.º10º do Código Penal, na exigência de adequação do resultado à conduta.

O tipo subjetivo é tripartido, podendo o agente agir:

- Com dolo de perigo – n.º1;

- Com negligência de perigo – n.º2;

- Com dolo de perigo e negligência em relação ao resultado agravante – n.ºs1, 3 e 4;

ou com negligência de perigo abrangente do resultado agravante – n.ºs2, 3 e 4.

Assim sendo, concatenando com o disposto no art.º10.º, numa leitura apoiada também no acórdão do STJ, de 5/11/97 in C.J. STJ, tomo III, pág. 227, para que se preencha o tipo objetivo de crime, terá que se verificar:

 A não observância de disposições legais ou regulamentares destinadas a evitar o perigo para a vida ou o perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde, de trabalhador;

 Recair sobre o omitente da observância de tais disposições legais ou regulamentares um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse perigo;

 A previsibilidade da produção do evento lesivo desses bens jurídicos;

 A possibilidade de o agente, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, prever ou prever corretamente a realização do tipo legal;

 A verificação do resultado típico (sujeição do trabalhador a perigo para a vida ou integridade física) e o nexo de causalidade entre este e a omissão do dever de observar as disposições legais ou regulamentares aplicáveis.

Esboçada a natureza e conteúdo do tipo legal em apreço, analisemos as disposições legais e regulamentares postas em evidência e cuja violação é imputada aos arguidos:

- Lei n.º102/2009, de 10.09 - aprova o Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho:

Art.º15.º

Obrigações gerais do empregador

“1 - O empregador deve assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho.

2 - O empregador deve zelar, de forma continuada e permanente, pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, tendo em conta os seguintes princípios gerais de prevenção:

a) Evitar os riscos;

(…)

c) Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos;

d) Integração da avaliação dos riscos para a segurança e a saúde do trabalhador no conjunto das atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, devendo adotar as medidas adequadas de proteção;

(…)

j) Priorização das medidas de proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual;

(…)

3 - Sem prejuízo das demais obrigações do empregador, as medidas de prevenção implementadas devem ser antecedidas e corresponder ao resultado das avaliações dos riscos associados às várias fases do processo produtivo, incluindo as atividades preparatórias, de manutenção e reparação, de modo a obter como resultado níveis eficazes de proteção da segurança e saúde do trabalhador.

4 - Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.

5 - Sempre que seja necessário aceder a zonas de risco elevado, o empregador deve permitir o acesso apenas ao trabalhador com aptidão e formação adequadas, pelo tempo mínimo necessário.

(…)

10 - Na aplicação das medidas de prevenção, o empregador deve organizar os serviços adequados, internos ou externos à empresa, estabelecimento ou serviço, mobilizando os meios necessários, nomeadamente nos domínios das atividades técnicas de prevenção, da formação e da informação, bem como o equipamento de proteção que se torne necessário utilizar.

(…).”

Art.º19.º

Informação dos trabalhadores

“1 - O trabalhador, assim como os seus representantes para a segurança e para a saúde na empresa, estabelecimento ou serviço, deve dispor de informação atualizada sobre:

a) As matérias referidas na alínea j) do n.º 1 do artigo anterior [art. 18º/1, j) Os riscos para a segurança e saúde, bem como as medidas de proteção e de prevenção e a forma como se aplicam, quer em relação à atividade desenvolvida quer em relação à empresa, estabelecimento ou serviço];

(…)

2 - Sem prejuízo da formação adequada, a informação a que se refere o número anterior deve ser sempre disponibilizada ao trabalhador nos seguintes casos:

a) Admissão na empresa;

(…)

4 - O empregador deve informar os serviços e os técnicos qualificados exteriores à empresa que exerçam atividades de segurança e de saúde no trabalho sobre os fatores que presumível ou reconhecidamente afetem a segurança e a saúde dos trabalhadores e as matérias referidas nas alíneas a) e g) do n.º 1 do artigo 18.º.”

Art.º20.º

Formação dos trabalhadores

“1 - O trabalhador deve receber uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de atividades de risco elevado.

2 - Aos trabalhadores designados para se ocuparem de todas ou algumas das atividades de segurança e de saúde no trabalho deve ser assegurada, pelo empregador, a formação permanente para o exercício das respetivas funções.

(…).”

- Decreto-Lei n.º348/93, de 01.10 que estabelece o regime jurídico do enquadramento da segurança, higiene e saúde no trabalho, visando transpor para a ordem jurídica interna a Diretiva 89/656/CEE, do Conselho de 30/11, relativa às prescrições mínimas de segurança e saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de proteção individual.

Art.º4.º - Princípio Geral

“Os equipamentos de proteção individual devem ser utilizados quando os riscos existentes não puderem ser evitados ou suficientemente limitados por meios técnicos de proteção coletiva ou por medidas, métodos ou processos de organização do trabalho.”

Art.º6.º - Obrigações do empregador

“Constitui obrigação do empregador:

a) Fornecer equipamento de proteção individual e garantir o seu bom funcionamento;

b) Fornecer e manter disponível nos locais de trabalho informação adequada sobre cada equipamento de proteção individual;

c) Informar os trabalhadores dos riscos contra os quais o equipamento de proteção ndividual os visa proteger;

d) Assegurar a formação sobre a utilização dos equipamentos de proteção individual, organizando, se necessário, exercícios de segurança.”

- Decreto-Lei n.º50/2005, de 25.02 - diploma que transpõe igualmente para a ordem jurídica interna a Diretiva 89/655/CEE, do Conselho, de 30/11 (com alterações subsequentes), relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho

Art.º3.º

Obrigações gerais do empregador

“Para assegurar a segurança e a saúde dos trabalhadores na utilização de equipamentos de trabalho, o empregador deve:

a. Assegurar que os equipamentos de trabalho são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efetuar e garantem a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização;

b) Atender, na escolha dos equipamentos de trabalho, às condições e características específicas do trabalho, aos riscos existentes para a segurança e a saúde dos trabalhadores, bem como aos novos riscos resultantes da sua utilização;

c) Tomar em consideração os postos de trabalho e a posição dos trabalhadores durante a utilização dos equipamentos de trabalho, bem como os princípios ergonómicos;

d) Quando os procedimentos previstos nas alíneas anteriores não permitam assegurar eficazmente a segurança ou a saúde dos trabalhadores na utilização dos equipamentos de trabalho, tomar as medidas adequadas para minimizar os riscos existentes; (…).”

Art.º36.º

Disposições gerais sobre trabalhos temporários em altura

“1 - Na situação em que não seja possível executar os trabalhos temporários em altura a partir de uma superfície adequada, com segurança e condições ergonómicas apropriadas, deve ser utilizado equipamento mais apropriado para assegurar condições de trabalho seguras.

2 - Na utilização de equipamento destinado a trabalhos temporários em altura, o empregador deve dar prioridade a medidas de proteção coletiva em relação a medidas de proteção individual.

(…).”

Art.º37.º

Medidas de proteção coletiva

“1 - As medidas de proteção coletiva destinadas a limitar os riscos a que os trabalhadores que executam trabalhos temporários em altura estão sujeitos devem atender ao tipo e características dos equipamentos de trabalho a utilizar.

2 - Sempre que a avaliação de riscos considere necessário, devem ser instalados dispositivos de proteção contra quedas, com configuração e resistência que permitam evitar ou suster quedas em altura.

(…).”

- Decreto-Lei n.º273/2003, de 29.10 – estabelece as condições de segurança e de saúde no trabalho em estaleiros temporários ou móveis

Art.º4.º

Princípios gerais do projeto da obra

“1 - A fim de garantir a segurança e a proteção da saúde de todos os intervenientes no estaleiro, bem como na utilização da obra e noutras intervenções posteriores, o autor do projeto ou a equipa de projeto deve ter em conta os princípios gerais de prevenção de riscos profissionais consagrados no regime aplicável em matéria de segurança, higiene e saúde no trabalho.

2 - Na integração dos princípios gerais de prevenção referidos no número anterior devem ser tidos em conta, designadamente, os seguintes domínios:

a) As opções arquitetónicas;

b) As escolhas técnicas desenvolvidas no projeto, incluindo as metodologias relativas aos processos e métodos construtivos, bem como os materiais e equipamentos a incorporar na edificação;

c) As definições relativas aos processos de execução do projeto, incluindo as relativas à estabilidade e às diversas especialidades, as condições de implantação da edificação e os condicionalismos envolventes da execução dos trabalhos;

d) As soluções organizativas que se destinem a planificar os trabalhos ou as suas fases, bem como a previsão do prazo da sua realização;

e) Os riscos especiais para a segurança e saúde enumerados no artigo 7.º, podendo nestes casos o autor do projeto apresentar soluções complementares das definições consagradas no projeto;

f) As definições relativas à utilização, manutenção e conservação da edificação.

(…).”

Art.º7.º

Riscos especiais

“O plano de segurança e saúde deve ainda prever medidas adequadas a prevenir os riscos especiais para a segurança e saúde dos trabalhadores decorrentes de trabalhos:

a) Que exponham os trabalhadores a risco de soterramento, de afundamento ou de queda em altura, particularmente agravados pela natureza da atividade ou dos meios utilizados, ou do meio envolvente do posto, ou da situação de trabalho, ou do estaleiro;

(…).”

Art.º14.º

Fichas de procedimentos de segurança

“1 - Sempre que se trate de trabalhos em que não seja obrigatório o plano de segurança e saúde de acordo com o n.º 4 do artigo 5.º mas que impliquem riscos especiais previstos no artigo 7.º, a entidade executante deve elaborar fichas de procedimentos de segurança para os trabalhos que comportem tais riscos e assegurar que os trabalhadores intervenientes na obra tenham conhecimento das mesmas.

2 - As fichas de procedimentos de segurança devem conter os seguintes elementos:

a) A identificação, caracterização e duração da obra;

b) A identificação dos intervenientes no estaleiro que sejam relevantes para os trabalhos em causa;

c) As medidas de prevenção a adotar tendo em conta os trabalhos a realizar e os respetivos riscos;

(…)

3 - O coordenador de segurança em obra deve analisar a adequabilidade das fichas de procedimentos de segurança e propor à entidade executante as alterações adequadas.

4 - A entidade executante só pode iniciar a implantação do estaleiro quando dispuser das fichas de procedimentos de segurança, devendo o dono da obra assegurar o respeito desta prescrição.

5 - As fichas de procedimentos de segurança devem estar acessíveis, no estaleiro, a todos os subempreiteiros e trabalhadores independentes e aos representantes dos trabalhadores para a segurança, higiene e saúde que nele trabalhem.

(…).”

Aqui chegados, conclui-se ser incontornável que ao trabalhador CC não foi administrada qualquer formação, não se podendo considerar como tal a mera entrega de um manual de boas vindas e visita às instalações do local de trabalho, competindo ao empregador, sociedade arguida representada pelo arguido AA, assegurar tal formação, mormente por contratação de entidade externa para o efeito e bem assim com vista à prévia avaliação de risco das tarefas executadas pelos seus trabalhadores, elaboração de fichas de procedimentos de segurança e sua divulgação.

Esta obrigação de formação e informação impende sobre o empregador [e não a um mero chefe de equipa, por exemplo], seja por avaliação dos riscos para a segurança e a saúde no trabalho, incluindo os respeitantes aos grupos de trabalhadores sujeitos a riscos especiais, ou o equipamento de proteção que seja necessário utilizar, os riscos para a segurança e saúde, bem como as medidas de proteção e de prevenção e a forma como se aplicam, quer em relação à atividade desenvolvida quer em relação à empresa, estabelecimento ou serviço, nos termos do supra aludido art.º18.º, n.º1, alíneas a), i) e j) da Lei n.º102/2009, de 10.09.

Nos termos do n.º4 do art.º19º do mesmo diploma legal, o empregador deve informar os serviços e os técnicos qualificados exteriores à empresa que exerça, atividades de segurança e de saúde no trabalho sobre os fatores que presumível ou reconhecidamente afetem a segurança e a saúde dos trabalhadores, o que, aqui, os arguidos claramente não fizeram, sendo assim evidente a violação, por parte dos arguidos, das diligências e cuidados legalmente estabelecidos e adequados a evitar a queda de trabalhadores em altura.

O trabalhador em questão integrou, assim, uma equipa destacada para fazer a substituição das placas acrílicas translúcidas localizadas no telhado do armazém a uma altura de aproximadamente sete metros, sem que para tal tenha sido elaborada qualquer avaliação de riscos ou fichas de procedimento de segurança ou sequer qualquer informação distribuída ao mesmo acerca dos riscos daquela intervenção, sendo pois indiferente “a conduta do sinistrado, ainda que com relevância para a produção do evento [porquanto a mesma] não exclui a omissão relevante por violação desse dever de garante, ao não lhe terem sido fornecidos os meios necessários e exigíveis para o evitar.” – neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 04.04.2013, processo 58/08.4GCSTB-E1, relator Maria Isabel Duarte, in http://www.dgsi.pt.

No caso em apreço, o arguido, por si e em representação da sociedade, agiu com dolo de perigo, pois agiu de forma livre, voluntária e consciente, não observou as disposições legais aplicáveis, não implementando as condições de segurança legalmente previstas para a execução da tarefa laboral acometida ao trabalhador, bem sabendo que desse modo expunha o trabalhador CC a perigo para a vida, embora não se conformando com a sua verificação, resultando na sua morte.

Assim, o resultado agravante é imputado aos arguidos a título de negligência consciente, cfr. alínea a) do art.º15.º do Código Penal.

“A negligência é a omissão de um dever objetivo de cuidado adequado, segundo as circunstâncias concretas do caso, a evitar a produção de um evento lesivo, e será consciente quando o agente prevê como possível a realização de um facto correspondente a um tipo legal de crime, mas atua sem se conformar com essa realização, e inconsciente quando o agente nem sequer representa a possibilidade da realização do facto.

No desempenho das ações socialmente valiosas que comportam em si um perigo inato, o agente tem o dever de atuar prudentemente e de se munir de todos os conhecimentos indispensáveis que lhe permitam levar a cabo essa ação com segurança.

A delimitação do dever de cuidado faz-se através de um juízo “ex ante”, em que se atende ao cuidado exigível a qualquer pessoa medianamente conhecedora e diligente do tipo social do agente, colocada na situação concreta deste e com os conhecimentos especiais que este tinha.

A mera omissão de um dever jurídico não implica a possibilidade objetiva de negligência, sendo necessário que esse dever seja adequado a evitar o evento.

A previsibilidade do resultado, requisito da imputação objetiva do resultado à conduta do agente, é apreciada objetivamente, de acordo com as regras gerais da experiência, em função da capacidade de conhecer e avaliar de uma pessoa normal do mesmo tipo social do agente e munido dos conhecimentos pessoais deste.

É o nexo de causalidade adequada que fixa objetivamente os deveres de previsão, ou seja, que vem dizer quando se deve prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo.” – aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.12.2023, processo 224/18.4T9CNT.C1, relator Exma. Desembargadora Rosa Pinto, in http://www.dgsi.pt.

O arguido sabia que, ao não proporcionar ao trabalhador CC a necessária e legalmente imposta formação e informação na área da segurança e saúde no trabalho para os trabalhos em altura que ordenou que a equipa em que este se integrava executasse, violando assim as transcritas regras de segurança, expunha o trabalhador ao perigo morte, apesar de não se conformar com a sua verificação, que acabou por se concretizar na morte daquele.

Encontram-se, assim, aqui presentes os elementos, quer objetivo, quer subjetivo, na modalidade de dolo direto, deste tipo legal de crime, e não havendo elementos que afastem a ilicitude ou a culpa, impondo-se concluir que o arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, com dolo de perigo e negligência consciente quanto ao resultado agravante, preencheu, com a sua conduta, o disposto no art.º152.º-B, n.ºs2 e 4, alínea b) do Código Penal.(…)


***

II.III - Apreciação do mérito do recurso.
A) Dos vícios da decisão consagrados nas alíneas a) e b) do no nº 2 do artigo 410º do CP:

Invocam os arguidos, nas suas motivações de recurso e nas conclusões que da mesma extraíram, a existência dos vícios consagrados na alínea a) e b), nº 2 do artigo 410º do CPP.

Importa ter presente que a invocação dos vícios consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, que denominamos de impugnação restrita, não se confunde com a invocação de um erro de julgamento, ou seja, com a impugnação da matéria de facto em sentido amplo, a qual deve observar os ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4. Na impugnação restrita, diferentemente do que sucede na impugnação da matéria de facto em sentido amplo, os vícios da decisão, consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP deverão resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, e a sua verificação pelo tribunal de recurso prescinde da análise da prova concretamente produzida.

Analisemos, então, os vícios da sentença invocado pelos recorrentes, sem prejuízo da indagação oficiosa que sempre cumpriria a este tribunal ad quem no que toca à presença dos demais vícios previstos no n.º2 do C.P.Penal.

O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre nas situações em que a simples leitura da decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, permite concluir que a matéria de facto provada na sentença não suporta a decisão de direito, quer quanto à culpabilidade quer quanto à determinação da pena. Ou seja, aquele vício verifica-se quando a conclusão retirada não é suportada pelas respetivas premissas, isto é, quando a matéria de facto apurada não é a suficiente para fundamentar a solução de direito encontrada. E tal sucede não só quando os factos dados como provados não permitem concluir se o arguido praticou ou não um crime, mas também quando de tais factos não constam todos aqueles que foram tidos em consideração para a verificação de causas de exclusão da ilicitude, da culpa ou da imputabilidade do arguido ou para a graduação da medida da pena.

Retira-se do teor do Acórdão do STJ de 24/02/2016[1], que “O vício previsto pela alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP verifica-se quando, da factualidade vertida na decisão, se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição: a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.”

No caso em apreço, diremos que, considerando o elenco dos factos provados tal como os mesmos se encontram plasmados no texto da decisão recorrida, e a sua subsunção ao direito, não descortinamos a existência do aludido vício, uma vez que a matéria de facto dada como assente manifesta-se suficiente para fundamentar a decisão final e em função da construção lógica em que esta última assenta. Efetivamente, o Tribunal a quo deu como provados todos os factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos dos dois ilícitos penais pelos quais os arguidos foram condenados, tendo a respetiva subsunção às normas penais sido realizada nos termos claramente explicitados na sentença.

Certo é que os recorrentes não esclareceram de onde resulta a insuficiência e quais os factos que deveriam ter sido provados ou não provados que sustentariam adequadamente a decisão de que ora recorrem tendo por base o texto da decisão. Estamos em crer que os recorrentes alegam o indicado vício partindo, desde logo, da base factual que pretendem que seja dada como não provada, isto é, com base na factualidade que querem ver alterada, razão pela qual a questão do presente vício é apenas colocada pelos mesmos após uma primeira questão, a do erro de julgamento em que fundam a impugnação alargada da matéria de facto.

Ora, pelas razões já atrás aduzidas, isto é, que os vícios da decisão, consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP deverão resultar do próprio texto da decisão de que se recorre, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, temos como não verificado o alegado vício.

Mas, já o mesmo não se pode concluir quanto ao vicio da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, tal como vem previsto no art. º410 n.º 2 b) do C.P.P., dado que tal contradição ressalta do texto da decisão aquando da confrontação dos factos provados – n. º 9, 10.ºe 11.º, a motivação e a análise crítica da prova realizada pelo juiz a quo.

A propósito do vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão alegam os recorrentes que “19.ª Igualmente se diga que a matéria dada como provado em 30 e 31, é incompatível com a fundamentação apresentada pelo Tribunal, e constante da Decisão recorrida, mais concretamente no § 4 de fls. 20 da Sentença, na qual se refere que não se conseguiu demonstrar que tenha o sinistrado CC sido incumbido ele próprio de substituir as telhas em cima do telhado.

Da decisão recorrida resultam provados, entre outros, os seguintes factos:

“9. Em data que não foi possível determinar com rigor, mas anterior ao dia 30.11.2015, o arguido AA, agindo em nome e representação da sociedade arguida, ordenou que se procedesse à substituição de painéis acrílicos, que se encontravam bastante degradados, na cobertura de um armazém designado pavilhão de expedição; para isso, determinou que os trabalhos deveriam ser executados por uma equipa da qual faziam parte os trabalhadores CC, EE e o chefe de equipa, DD, a quem o arguido AA transmitiu a ordem.

10. No dia 30.11.2015, pelas 10:00 horas, nas instalações da sociedade arguida, em ..., Espinho, CC deu início à execução da referida tarefa, com o auxílio de EE, também trabalhador da sociedade arguida, e, seguindo instruções do chefe de equipa DD, começaram por transportar para perto do pavilhão os novos painéis acrílicos a aplicar.

11. Continuando a execução da tarefa de que fora incumbido, CC subiu para o telhado do pavilhão, ao qual acedeu através de um terreno contíguo em plano elevado, sem qualquer equipamento individual de proteção, designadamente capacete, linha de vida, cinto de segurança ou arnês.

(…)

19. Para esta tarefa, o arguido não acautelou, como poderia ter feito, a segurança do trabalhador CC face ao risco de queda – um risco elevado, porque se tratava de atuar sobre a cobertura do pavilhão, ser necessário pisar painéis acrílicos já degradados e em risco de quebra, tanto assim que deveriam ser substituídos -, adotando as medidas de segurança essenciais, adequadas e eficazes, a fim de prevenir a queda desamparada no solo a partir de uma altura superior a seis metros.

20. O trabalho em questão deveria ser executado em altura e expunha necessariamente os trabalhadores, e em especial CC, a um grave risco de queda, pondo igualmente em risco as suas vidas e integridade física.

(…)

24. A queda do trabalhador CC no solo e as graves lesões traumáticas sofridas, que direta e necessariamente lhe causaram a morte, ficaram a dever-se à atuação descuidada do arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, ao determinar a execução da descrita tarefa a um trabalhador em período experimental, sem experiência anterior, em condições de insegurança e sem ter recebido a adequada formação em matéria de segurança no trabalho, designadamente para trabalhos em altura.(…)”

Isto é, de acordo com tal factualidade dada como provada resultou inequívoco que o arguido AA deu uma ordem expressa direcionada à equipa de trabalho liderada por DD para proceder à substituição de painéis acrílicos no telhado do pavilhão dada a sua detioração e que, na referida data, as funções atribuídas à infeliz vítima incluíam a efectiva subida ao telhado do pavilhão, facto assumido e conhecido daquele.

Porém, prosseguindo a leitura da sentença recorrida, já aquando da indicação dos meios de prova em que alicerçou a sua convicção e na sua análise crítica da prova, verificamos que a conclusão do julgador, no que se refere à natureza das funções atribuídas à infeliz vítima no quadro da substituição dos painéis acrílicos, foi no sentido contrário ao da factualidade descrita.

É o que resulta do seguinte trecho daquela decisão:

“O arguido AA começou por relatar que foi quem deu a ordem para o serviço de substituição das telhas ser feito, mais referindo que CC não tinha recebido formação para a realização de trabalho em altura e, com relevo, que estava previsto vir a tê-la tendo, à data, contudo, apenas recebido a formação inicial, formação esta que, tal como o referiu a testemunha MM, não era mais do que a entrega de um manual de boas-vindas e uma visita pelas instalações e atribuição de vestuário, calçado e luvas, sendo que a restante formação apenas seria dada em momento posterior ao período experimental. Referiu ainda que foi o próprio, em representação da sociedade arguida, quem deu a ordem de serviço de substituição dos painéis acrílicos do telhado do armazém ao funcionário DD, para que este a executasse com a sua equipa, constituída por EE e CC, bem sabendo que este não tinha formação em trabalhos em altura.

Todavia, esclareceu o arguido que estes dois funcionários não teriam como função, naquele serviço, aceder diretamente ao telhado, e que mais concretamente CC deveria apenas auxiliar no transporte e entrega dos painéis de acrílico, nunca acedendo diretamente ao telhado, acrescentando que aquele serviço seria para o funcionário visualizar o trabalho e perceber como funcionavam os trabalhos em altura.

Tal versão é convergente com os depoimentos das testemunhas DD e EE.

Este último relatou que a ordem de substituição das placas acrílicas lhe foi transmitida, a si e a CC pelo chefe de equipa, DD e esclareceu que aquela fora somente para transporte das telhas até terreno elevado contíguo ao telhado, e que uma vez lá chegados deveriam aguardar que o chefe de equipa chegasse.

Relatou ainda que o propósito era a substituição das placas de acrílico, mas esclareceu que não lhes fora dada ordem para avançar sobre o telhado, somente para transportarem as telhas até ao local, o que fizeram, mas que, contudo, uma vez lá chegados, apesar de não estarem equipados para o efeito (com equipamentos de proteção individual) e de não se encontrar ainda instalado qualquer equipamento de proteção coletiva, ambos avançaram para cima do telhado.

Esta testemunha afirmou que só subiu para o telhado porque CC o fez primeiro, e porque sabia que, apoiando-se nas zonas compostas por zinco, e não em cima das placas acrílicas, seria seguro permanecer em cima do telhado e que, então, terá dito àquele para não pisar as telhas de acrílico, mas que este, sem que nada o fizesse antever, avançou sobre o telhado e perante a cedência de uma das telhas caiu cerca de 10 metros no interior do armazém, dando-se assim por provada a sequência cronológica do episódio do acidente.

Tal versão, e como supra se indiciou, é grosso modo coincidente com a da testemunha DD, apesar de algumas divergências que, não obstante, o tribunal relevou atento o hiato temporal decorrido entre a data do sinistro (2015) e a data de produção de prova em julgamento (2025). Assim, esta testemunha, chefe de equipa, que também se mostrou coerente e credível apesar da manutenção da relação laboral com a sociedade arguida, confirmou ter informado EE e CC de que lhes havia sido atribuída a tarefa de substituição das placas de acrílico do telhado e que tal lhe havia sido comunicado pelo arguido.

Afirmou, ainda, a testemunha que não se recorda de ter dado a ordem de transporte das telhas para local próximo do telhado, mas que se recorda de ter afirmado que aguardassem o seu retorno.

Ora, a inquirição das testemunhas e as declarações do arguido AA são convergentes no que se reporta à negação de existência de ordem direta dada a CC para aceder ao telhado, convencendo assim a versão dos factos apresenta pelo arguido de que, não obstante ter sido atribuída a tarefa de substituição das placas acrílicas do telhado do armazém à equipa chefiada por DD e integrada por EE e CC, bem sabendo que a este não tinha sido ministrada formação de trabalho em altura, a sua função concreta seria de transporte e facilitação das telhas a quem estivesse a executar a concreta substituição da tarefa em cima do telhado.

Desse modo, não se conseguiu afirmar que CC tenha sido incumbido de ele próprio substituir as telhas em cima do telhado, mas sim que na distribuição das tarefas entre os membros de equipa e, como é corrente, ao membro mais novo foi atribuída a função menos especializada, o que, no caso da tarefa de substituição de telhas, seria a função de entrega das telhas aos seus colegas de trabalho, o que, por si, sem acesso ao telhado, não apresentava um risco de queda elevado, porquanto ele ao telhado não precisaria de aceder, mantendo-se no terreno elevado contíguo, para onde, de resto, havia transportado as placas acrílicas para substituição.”

Face a esta redacção da decisão recorrida, nomeadamente no que concerne à análise comparativa entre os factos dados por provados, nomeadamente os factos n, º 9, 10 e 11, e a análise crítica da prova, concluindo esta última que, perante a concatenação dos depoimentos que identifica, prevalece a versão dos factos apresentada pelo arguido de que a função da vítima seria de transporte e facilitação das telhas a quem estivesse a executar a concreta substituição da tarefa em cima do telhado, não tendo sido este último incumbido de ele próprio, substituir as telhas em cima do telhado, estamos, sem dúvida perante o vicio previsto na al. b) do n. º2 do art.º410 do C. P.Penal.

Na verdade, após considerar válidos os depoimentos das identificadas testemunhas no sentido de que a vítima não foi incumbida substituir as telhas em cima do telhado, não poderia o julgador concluir como o fez ao dar como provados, nomeadamente, os factos 9, 10 e 11, incorrendo assim em manifesta contradição, vicio este previsto no art.º 412 n.º 2 b) do C. P. Penal.

O vício da contradição insanável, tal como os demais previstos no nº 2 do artigo 410º, ocorre nas situações em que a simples leitura da decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, permite concluir ter-se verificado a referida contradição insanável.

Continuando a citar o Acórdão do STJ de 24/02/2016, diremos que “Quanto ao vício previsto pela alínea b) do n.º 2 do mesmo preceito legal, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação - quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.

(…)Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, refere-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de março de 2015, Proc. n.º 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».

Assim, pode afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.

A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.

Nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques «[p]or contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.»…”

Ora, na situação vertente, e como anteriormente já o evidenciamos, deteta-se uma contradição resultante da ausência de uma sequência lógica entre os factos afirmados sob os n. º9, 10 e 11 e a convicção do tribunal no que toca à credibilidade e fiabilidade dos depoimentos do arguido e das testemunhas, concretamente, no que se refere às funções a serem exercidas pela infeliz vítima no quadro dos trabalhos a iniciar pela equipa em que estava integrado.

Lida e relida a decisão recorrida não encontramos qualquer conexão entre a factualidade que o tribunal recorrido julgou provada, os meios de prova em que se baseou e a valoração que fez dos mesmos, sendo, por isso, inaceitável e incompreensível a decisão a que chegou face à motivação consignada para a convicção, a qual inclui a valoração de factos que interrompem o nexo causal necessário para o preenchimento do tipo legal.

Certo é que analisando os diversos trechos acima evidenciados resta-nos uma única conclusão, a de que se verificam as invocadas contradições e são manifestamente insanáveis porquanto não são ultrapassáveis com recurso às regras da experiência, nem tão-pouco com recurso à decisão recorrida no seu todo.

Concluindo-se pela presença do apontado vício de contradição insanável a que se reporta o artigo 410.º, nº 2.º, alínea b) do CPP, vejamos qual o procedimento adequado para o suprir.

O legislador prevê a supressão de tal vício pelo tribunal ad quem, o que acarreta também, por consequência, que este mesmo tribunal de recurso decida do objecto do processo, da causa. Porém, esta solução tem limitações pois que, tal como o afirma Pereira Madeira[2] «a eventual correção dos vícios aqui elencados, implica sempre uma decisão sobre matéria de facto, sendo portanto uma decisão de facto a levar a cabo nos termos do artigo 426.º, n.os 1 e 2, quer pelo próprio tribunal de recurso com jurisdição em matéria de facto, ou, tal não sendo possível, pelo tribunal reenviado para o efeito».
Efectivamente, o art.º431 do C.P.P. refere-se à modificabilidade da decisão recorrida nos seguintes termos:

Artigo 431.º

Modificabilidade da decisão recorrida

Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou

c) Se tiver havido renovação da prova.
Para que o vício detectado, o qual incide sobre a matéria de facto, - pois que estamos no quadro da impugnação restrita -, seja sanado pelo tribunal da Relação, impõe-se que o recorrente tenha também impugnado a matéria de facto nos termos do art.º412 n. º3 do C.P.Penal.
Pronunciando-se sobre o tema, Paulo Pinto de Albuquerque, em nota ao referido preceito legal[3] sublinha que “A ordem do elenco dos poderes do TR não é arbitrária. Ele respeita a ordem querida pelo legislador e reflectida nos preceitos dos art. º426 e 431º. Com efeito, havendo impugnação da matéria de facto com arguição do vício do art.º410 n. º2, o TR (isto é, o relator e, havendo reclamação, a conferência), deve verificar «se é possível decidir a causa» com os elementos disponíveis no processo, ou seja, se o vício pode ser sanado com a documentação da prova junta aos autos; não sendo esta documentação da prova suficiente para sanar o vicio do artigo 410 n. º2, o TR deve então ponderar se o vício pode ser resolvido com a renovação da prova (art.º431, n. º1). Só não sendo possível sanar o vício do artigo 410 n. º2 com a renovação da prova, o TR deve ordenar o reenvio do processo…”
Assim, não sendo viável sanar o vício deverá o tribunal ad quem determinar então a anulação do julgamento e o reenvio do processo para novo julgamento na totalidade ou para questões concretas identificadas na decisão de reenvio (artigo 426.º, n.º 1, do CPP).
No caso dos presentes autos, o recorrente defende que a Sentença padece Erro de julgamento relativamente à prova produzida e consequentemente erro de julgamento quanto aos factos dados como provados – factos 4.º, 9.º, 10.º, 11.º, 19.º, 21.º, 24.º, 25.º, 27.º, 29.º, 30.º e 31.º, cumprindo, aliás, o onús de impugnação consagrado no art.º412 n. º3 e n. º4 do C.P.Penal.
Por outro lado, do processo constam todos os elementos de prova que lhe serviram de base.
Donde que, encontrando-se preenchidas as alíneas a) e b) do art.º431 do C. P. Penal, cumprirá, ora, a este tribunal ad quem, determinar a modificação da decisão recorrida, nomeadamente, alterando a matéria de facto dada por provada.
Ora, após a audição e leitura da prova produzida, conclui-se que o juiz a quo fez uma correcta avaliação desta última, concretamente no que concerne à credibilidade dos depoimentos das testemunhas concatenadas com as declarações do arguido, validando-se a conclusão de que não foi dada qualquer ordem à vítima para que procedesse, ela mesma, à substituição dos painéis, função essa que exigiria que o mesmo subisse ao telhado.
Tendo este tribunal procedido à audição da prova gravada, certo é que, no que concerne à matéria de facto provada e não provada foram determinantes os depoimentos das testemunhas DD e EE, as quais suportaram as declarações do arguido a saber:
- declarações do arguido, o qual confirmou que foi quem deu a ordem para o serviço de substituição dos painéis acrílicos do telhado ser realizado, mais referindo que porque o CC não tinha recebido formação para a realização de trabalho em altura não lhe caberia subir ao telhado mas apenas auxiliar no transporte e entrega dos painéis de acrílico;
- tal como aferido em sede de decisão recorrida, neste concreto ponto as declarações do arguido foram confirmadas pelas testemunhas DD e EE, ambos elementos que integravam a equipa a quem tinha sido dada a ordem de reparação.
EE, confirmou que a ordem que lhe foi transmitida, a si e a CC pelo chefe de equipa, DD apenas incluía o transporte das telhas até terreno elevado contíguo ao telhado, onde deveriam ficar a aguardar que o chefe de equipa chegasse, reafirmando que não lhes fora dada qualquer ordem para avançar sobre o telhado. Esclareceu ainda que apenas subiu para o telhado porque CC o fez primeiro, desconhecendo o que o levou a tomar tal atitude, e porque sabia que, apoiando-se nas zonas compostas por zinco, e não em cima das placas acrílicas.
Também o chefe da equipa, DD, confirmou a natureza da ordem dada à vítima e a EE, sendo, grosso modo, coincidentes ambos os depoimentos.
Em suma, a indicação da prova e a análise da mesma pelo juiz a quo, no que se reporta às declarações do arguido e das testemunhas ora identificadas, encontra-se adequadamente fundamentada e explanada, aderindo este tribunal ad quem, no mais, ao que da mesma se retira e, concretamente, à conclusão de que “não se conseguiu afirmar que CC tenha sido incumbido de ele próprio substituir as telhas em cima do telhado, mas sim que na distribuição das tarefas entre os membros de equipa e, como é corrente, ao membro mais novo foi atribuída a função menos especializada, o que, no caso da tarefa de substituição de telhas, seria a função de entrega das telhas aos seus colegas de trabalho, o que, por si, sem acesso ao telhado, não apresentava um risco de queda elevado, porquanto ele ao telhado não precisaria de aceder, mantendo-se no terreno elevado contíguo, para onde, de resto, havia transportado as placas acrílicas para substituição.(..)”
- atendeu-se também ao depoimento da testemunha LL, inspetora ACT, a qual confirmou as diligências de prova constantes no inquérito ACT supra aludido, reafirmando que o relatório de riscos da sociedade arguida não contemplava a totalidade dos trabalhos em altura, mas que incluía outros trabalhos como o sejam a substituição de lâmpadas o que legitima igualmente a conclusão da decisão recorrida no sentido de que “(…), não se poderá acolher a invocação de desconhecimento por parte do arguido pois, desde logo, tem de se afirmar a obrigação de conhecimento por parte de profissional que exerce a função de administrador há aproximadamente sete anos, não sendo, de igual modo, credível que, tendo o arguido comunicado, por saber da sua obrigatoriedade, serviços em altura de substituição de lâmpadas do teto de um armazém com aproximadamente sete metros de altura, e que se reflete no relatório de risco, venha agora afirmar não saber da obrigatoriedade de comunicação de outro serviço em altura para a sua avaliação de risco, como o é a substituição de telhas.”

Para além dos demais documentos listados na decisão recorrida, e para onde nos remetemos, mereceu especial destaque a presente decisão o teor dos seguintes documentos:
- De fls.479/480 [documento denominado de “contrato de trabalho a termo certo” entre a sociedade arguida e CC, assinado pelo arguido AA pela empregadora, celebrado em 02.11.2015 do qual constam, além do demais teor, que aqui se dá por reproduzido, as condições aludidas no facto provado 35) e que aquele foi admitido para «prestar a atividade correspondente à categoria de Serviço de Apoio, previstas na CCT aplicável»];
- - De fls.96 a 97 [auto de notícia elaborado pela ACT que conclui que «a arguida não comprovou ter procedido no sentido de ter sido ministrada formação sobre segurança e saúde no trabalho ao trabalhador sinistrado CC»]..

Em conformidade com o supra exposto, altera-se a matéria de facto nos seguintes moldes, mantendo-se no demais o fixado no quadro da decisão recorrida:

Factos Provados:

4. A CC competia exercer funções correspondentes à categoria de Serviço de Apoio no quadro da execução de trabalhos de manutenção e conservação das instalações da fábrica, sob ordens e instruções dos administradores, por si ou por interposta pessoa por sua ordem;

9. Em data que não foi possível determinar com rigor, mas anterior ao dia 30.11.2015, o arguido AA, agindo em nome e representação da sociedade arguida, ordenou que se procedesse à substituição de painéis acrílicos, que se encontravam bastante degradados, na cobertura de um armazém designado pavilhão de expedição; tal ordem foi comunicada ao chefe de equipa, DD, da qual faziam parte os trabalhadores CC, EE, a quem competiam diferentes funções.

10. No dia 30.11.2015, pelas 10:00 horas, nas instalações da sociedade arguida, em ..., Espinho, CC, com o auxílio de EE, também trabalhador da sociedade arguida, e, seguindo instruções do chefe de equipa DD, transportaram para perto do pavilhão os novos painéis acrílicos.

11. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, CC subiu para o telhado do pavilhão, ao qual acedeu através de um terreno contíguo em plano elevado, sem qualquer equipamento individual de proteção, designadamente capacete, linha de vida, cinto de segurança ou arnês.

27. O arguido, pelas funções de gestão e administração que exercia na sociedade A..., S. A., estava obrigado a conhecer as obrigações que lhe são impostas em matéria de regras de segurança no trabalho, designadamente pelas normas previstas na Lei n.º102/2009, de 10.09, no Decreto-Lei n.º348/93, de 01.10, no Decreto-Lei n.º50/20053, de 25.02, e no Decreto-Lei n.º273/2003, de 29.10.

Factos não provados:

- que em data que não foi possível determinar com rigor, mas anterior ao dia 30.11.2015, o arguido AA, agindo em nome e representação da sociedade arguida, através do chefe de equipa DD, ordenou, à infeliz vítima que procedesse à substituição de painéis acrílicos, que se encontravam bastante degradados, na cobertura de um armazém designado pavilhão de expedição;

- que no dia 30.11.2015, pelas 10:00 horas, nas instalações da sociedade arguida, em ..., Espinho, CC deu início à execução da referida tarefa (facto 10);

- que continuando a execução da tarefa de que fora incumbido, CC subiu para o telhado do pavilhão (facto 11);

- que para esta tarefa, o arguido não acautelou, como poderia ter feito, a segurança do trabalhador CC face ao risco de queda - um risco elevado, porque se tratava de atuar sobre a cobertura do pavilhão, ser necessário pisar painéis acrílicos já degradados e em risco de quebra, tanto assim que deveriam ser substituídos -, adotando as medidas de segurança essenciais, adequadas e eficazes, a fim de prevenir a queda desamparada no solo a partir de uma altura superior a seis metros;

- que o arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, não fez nem determinou previamente um planeamento de avaliação dos riscos profissionais subjacentes à tarefa cuja realização incumbiu os trabalhadores, incluindo CC, considerando o tipo de trabalhos, a altura do telhado, a fragilidade e degradação da respetiva cobertura e o perigo associado; não elencou um conjunto de procedimentos de segurança concretos, por forma a transmiti-los aos trabalhadores, nem diligenciou pela adoção de medidas preventivas que garantissem a realização da tarefa em segurança;

- que a queda do trabalhador CC no solo e as graves lesões traumáticas sofridas, que direta e necessariamente lhe causaram a morte, ficaram a dever-se à atuação descuidada do arguido AA, por si e em representação da sociedade arguida, ao determinar a execução da descrita tarefa a um trabalhador em período experimental, sem experiência anterior, em condições de insegurança e sem ter recebido a adequada formação em matéria de segurança no trabalho, designadamente para trabalhos em altura.

- que tais medidas de segurança passariam, entre outras, pela formação prévia com vista à utilização de equipamentos de proteção individual, designadamente capacete, linha de vida, cinto de segurança e arnês, de modo a prevenir quedas em altura, bem como pela utilização de equipamentos de proteção coletiva, como por exemplo estrado elevatório, munido com braço extensível e cesto ou andaimes.

- que o arguido sabia que os seus comportamentos por ação e omissão eram suscetíveis de causar perigo para a integridade física e vida dos trabalhadores e, concretamente, de CC, em face da sua inexperiência profissional e falta de formação em segurança no trabalho.

- que o arguido, todavia, podendo, devendo e sendo capaz de proceder de forma diferente, omitiu os seus deveres de cuidado enquanto administrador da sociedade arguida, não fornecendo equipamento de proteção individual adequado ao exercício da função em causa, o que protegeria de quedas, não providenciando o uso de equipamento de proteção coletiva que evitaria ou tornasse segura a deslocação e trabalho em cima do telhado, não elaborando fichas de procedimento de segurança e não determinando, logo aquando da admissão, formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de atividades de risco, bem como sobre como proceder a trabalhos em altura, sujeitando, deste modo, o seu trabalhador CC ao perigo que todos sabiam existir.

- que o arguido AA, em nome e representação da sociedade arguida, ao determinar a execução da referida tarefa a uma equipa que sabia incluir o trabalhador CC, ainda em período experimental, sem experiência naquele tipo de trabalhos e sem formação para executar trabalhos com risco para a vida e integridade física, sabia que colocava o trabalhador numa situação de perigo para a sua vida; porém, desconsiderou o perigo e determinou a execução da tarefa em condições de insegurança.


*

Enquadramento jurídico face à alteração da matéria de facto provada e não provada em sede recursória:
Sob a epígrafe “violação de regras de segurança, estipula o artigo 152º-B, do Código Penal que:
1 - Quem, não observando disposições legais ou regulamentares, sujeitar trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se o perigo previsto no número anterior for criado por negligência o agente é punido com pena de prisão até três anos.
3 - Se dos factos previstos nos números anteriores resultar ofensa à integridade física grave o agente é punido:
a) Com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 1;
b) Com pena de prisão de um a cinco anos no caso do n.º 2.
4 - Se dos factos previstos nos n.os 1 e 2 resultar a morte o agente é punido:
a) Com pena de prisão de três a dez anos no caso do n.º 1;
b) Com pena de prisão de dois a oito anos no caso do n.º 2.
A alusão ao sujeito do crime remete-nos igualmente para o teor do artigo 11º, nº2, alíneas a) e b), do Código Penal, segundo o qual as pessoas colectivas são igualmente responsáveis pelo crime previsto no artigo 152º-B quando cometido:
a) Em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou
b) Por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem.
No nº 4 do mesmo artigo 11º dispõe que “entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa coletiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade, incluindo os membros não executivos do órgão de administração e os membros do órgão de fiscalização”.

No caso concreto, os arguidos/recorrentes AA e “A..., S.A.”, foram punidos, em primeira instância, nos seguintes termos:
O arguido AA pela prática, de um crime de violação das regras de segurança, com resultado morte, p. e p. pelos art.ºs 152.º- B, n.ºs1, 2 e 4, alínea b) do Código Penal, com referência aos -art.ºs 11., n.º2, 12.º, n.º1, alínea b), 14.º, 15.º, alínea a), 18.º e 26.º, todos do Código Penal, bem como aos art.ºs 15.º, n.ºs1, 2, alíneas a), c), d) e j), 3, 4, 5, 10, 19.º e 20.º, da Lei n.º102/2009, de 10.09; art.ºs 4.º e 6.º do D.L. n.º348/93, de 01.10; art.ºs 3.º, 36.º e 37.º, do D.L. n.º50/2005, de 25.02; e art.ºs 4.º, 7.º, alínea a), e 14.º do D.L. n.º273/2003, de 29.10., na pena de 36 (trinta e seis) meses de prisão, suspensa na sua execução a pena aplicada em 1), por igual período.
A sociedade arguida pela prática, de um crime de violação das regras de segurança, com resultado morte, p. e p. pelos art.ºs152.º-B, n.ºs1, 2 e 4, alínea b) do Código Penal, com referência aos art.ºs11.º, n.º2, 12.º, n.º1, alínea b), 14.º, 15.º, alínea a), 18.º e 26.º, todos do Código Penal, bem como aos art.ºs15.º, n.ºs1, 2, alíneas a), c), d) e j), 3, 4, 5, 10, 19.º e 20.º, da Lei n.º102/2009, de 10.09; art.ºs4.º e 6.º do D.L. n.º348/93, de 01.10; art.ºs3.º, 36.º e 37.º, do D.L. n.º50/2005, de 25.02; e art.ºs4.º, 7.º, alínea a), e 14.º do D.L. n.º273/2003, de 29.10, na pena de 360 dias de multa, à taxa diária de € 250,00, a qual substituída por sanção de boa conduta no valor de €9,000,00 (nove mil Euros) pelo período de 03 (três) anos.
Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, em anotação ao artigo 152-B, pág. 543 e ss, faz notar que “os bens jurídicos protegidos por este tipo legal são a vida, a integridade física e a saúde psíquica ou mental do trabalhador por conta de outrem”.
No que respeita ao tipo objectivo de ilícito, este tipo de crime pressupõe:
- a existência de uma relação de subordinação laboral entre o agente e a vítima;
- uma relação de domínio do agente do crime sobre o trabalhador/vítima e a actividade que este exerce;
- que sobre o sujeito dominador recaia uma a obrigação de garante das condições de segurança no trabalho, previstas pelas respectivas disposições legais, regulamentares ou técnico-profissionais.
Na mesma obra citada esclarece-se que “não constituindo o exercício de uma actividade perigosa, sem as condições que eliminem ou reduzam substancialmente o perigo, uma infracção in se, então parece que estamos perante um crime específico próprio, em que é a relação de subordinação laboral (a posição de domínio e a obrigação de garantir as condições de segurança no trabalho) que confere “dignidade penal” à sujeição do trabalhador à realização de actividades perigosas, sem que estejam cumpridas as respectivas condições de segurança”.

Estamos igualmente perante um crime de perigo concreto de lesão da vida ou de lesão grave da integridade física ou da saúde do trabalhador.

A propósito do tipo legal em questão traduzir a prática de um crime de perigo concreto o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/12/2023 (proc.224/18.4TCNT.C1 in dgsi.pt) refere o seguinte: “Afirma ainda o mesmo Professor que “é um crime de perigo concreto de lesão da vida ou de lesão grave da integridade física ou da saúde do trabalhador. Por exemplo, o trabalhador que é “obrigado” a realizar uma actividade manifestamente perigosa sem a observância das disposições legais ou regulamentares … ou em condições sem segurança (por exemplo, o trabalhado a grande altura, sem qualquer protecção contra quedas). Mas, diferentemente da generalidade dos tipos legais de crime de perigo concreto (em que, além de se ter de provar a actividade perigosa, tem ainda de se provar que essa actividade efectivamente pôs em perigo o bem jurídico respectivo), neste caso a sujeição do trabalhador à realização de uma actividade manifestamente perigosa (para a vida, integridade física ou saúde) sem serem observadas as respectivas regras ou condições de segurança (isto é, eliminadoras ou minimizadoras do perigo) já co-envolve e constitui um efectivo perigo; o que significa que basta provar a sujeição do trabalhador à prática da actividade perigosa e a não observância das condições em que essa actividade pode ser exercida(…) Por exemplo, o trabalhador que é “obrigado” a realizar uma actividade manifestamente perigosa sem a observância das disposições legais ou regulamentares … ou em condições sem segurança (por exemplo, o trabalhado a grande altura, sem qualquer protecção contra quedas). Mas, diferentemente da generalidade dos tipos legais de crime de perigo concreto (em que, além de se ter de provar a actividade perigosa, tem ainda de se provar que essa actividade efectivamente pôs em perigo o bem jurídico respectivo), neste caso a sujeição do trabalhador à realização de uma actividade manifestamente perigosa (para a vida, integridade física ou saúde) sem serem observadas as respectivas regras ou condições de segurança (isto é, eliminadoras ou minimizadoras do perigo) já co-envolve e constitui um efectivo perigo; o que significa que basta provar a sujeição do trabalhador à prática da actividade perigosa e a não observância das condições em que essa actividade pode ser exercida.

É igualmente um tipo legal de crime de resultado, “na medida em que é necessário para a sua consumação que o agente consiga o resultado de (efectiva) “sujeição” do trabalhador à realização da actividade fora das indispensáveis condições de segurança” – cfr. obra supra citada pág. 544.”[fim de citação]
No que toca ao elemento subjectivo do tipo legal verificamos que no seu nº 1 exige o dolo: dolo em relação à não observância das regras legais e regulamentares assim como o dolo em relação ao perigo que a actividade imposta ao trabalhador acarreta para a vida, integridade física ou saúde deste, quando não são cumpridas aquelas regras.
Em relação do dolo do perigo para o trabalhador, o agente tem que representar o perigo que o trabalhador corre com a actividade que lhe é ordenada, e tem, pelo menos, de se conformar com esse perigo.
O nº 2 prevê a possibilidade do perigo ter sido causado por negligência do agente que, ao ordenar ao trabalhador determinada actividade perigosa, o faz porque está convencido que não há, para o trabalhador, um efectivo perigo.
Ora, estando nós perante um crime específico próprio, isto é, que assenta na relação de garante existente entre empregador e trabalhador ganha aqui especial relevo a teoria da adequação do resultado à conduta, o que nos remete novamente para o elemento objectivo do tipo legal, concretamente, na exigência em que o agente do crime tenha sujeitado o trabalhador a uma situação de perigo concreto para a vida, o corpo ou a saúde deste último.
Refere Figueiredo Dias (Direito Penal, Parte Geral, I, 2.ª ed., 2.ª reimp., pp. 328 e ss.) que o critério da imputação objectiva do resultado à acção parte da teoria da adequação ou da causalidade adequada, revelada através do n.º 1 do art.º 10.º do CP , segundo o qual quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo e para a valoração jurídica da ilicitude serão relevantes as condições que segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer são idóneas para produzir o resultado.
Retornando ao caso dos autos, não ficou provado que os arguidos tivessem emitido uma ordem à infeliz vítima para que esta executasse qualquer trabalho que exigisse a sua subida ao telhado do pavilhão onde as placas de acrílico iriam ser substituídas. Pelo contrário, toda a prova foi no sentido que o mesmo apenas recebeu ordens directas no sentido de transportar as telhas para a proximidade do referido telhado devendo aí esperar pelo chefe da equipa.
Na verdade, desconhece-se a razão pela qual o mesmo subiu ao referido telhado sem que para tal lhe tivesse sido dada qualquer ordem nesse sentido. E inexistindo tal ordem/comando não se pode dar como provado qualquer nexo causal entre a conduta do arguido AA e o resultado previsto no tipo legal base – a exposição ao perigo, e a qualificativa do crime - a morte do trabalhador. E, assim sendo, da factualidade provada não se pode retirar que os arguidos tenham sujeitado o trabalhador a perigo para a vida ou a perigo de grave ofensa para o corpo ou a saúde.
Na medida em que o tipo objectivo exige a sujeição do trabalhador a uma situação de perigo concreto para a vida, o corpo ou a saúde, verificado que está que não foi o arguido AA, ou outro a seu mando, que, com violação das disposições legais ou regulamentares vigentes à data do facto, ordenou ao trabalhador a realização de trabalhos em altura que incluíam o acesso ao telhado, conclui-se que o tipo legal não se encontra preenchido.
Afasta-se assim a incriminação que pendia sobre o arguido AA, assim como a que pendia sobre a sociedade arguida. Esta, na medida em que as pessoas coletivas apenas são responsabilizadas pela prática dos crimes previstos nos artigos 152.º-B quando cometido em seu nome, no interesse coletivo por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança – isto é, quando cometidos pelos órgãos e representantes da pessoa coletiva e por quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade – ou quando cometidos por quem aja sob a autoridade das pessoas que ocupam uma posição de liderança, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem (n.ºs 2, 4 e 5 do artigo 11.º).
Face ao exposto, cumpre julgar procedente o recurso interposto e consequentemente, absolver os arguidos da prática do crime porque foram acusados.

*
Atento o ora decidido, no que importa para a instância crime, não será apreciada a terceira questão enunciada ligada ao apuramento do elemento subjectivo do tipo de crime imputado aos arguidos.
*
Do Pedido Cível
GG, então menor representado pela sua mãe HH, apresentou pedido de indemnização civil, peticionando a quantia global de € 219.000,00, acrescida de juros desde a notificação até efetivo e integral pagamento.
O art.º129.º do Código Penal estipula que a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, donde, consequentemente, resulta a necessidade de recurso a tais normativos, concretamente ao disposto nos art.ºs483.º e seguintes e 562.º e seguintes, todos do Código Civil, para deste modo aferir da responsabilidade dos arguidos.
O art.º483º do Código Civil estabelece que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Porém, atendendo ao supra exposto e decidido o que toca à inexistência de responsabilidade criminal dos arguidos, resta-nos concluir que fica prejudicado o conhecimento do pedido cível, e consequentemente, conclui-se pela sua improcedência.
***
III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso apresentado pelos arguidos AA e sociedade A..., S.A., pelo que:
A) determina-se a alteração da matéria de facto nos termos acima referenciados;
B) Consequentemente, absolvem-se os arguidos como autores, respectivamente, da prática de um crime de violação das regras de segurança, com resultado morte, p. e p. pelos art.ºs 152.º- B, n.ºs1, 2 e 4, alínea b) do Código Penal, com referência aos -art.ºs 11., n.º2, 12.º, n.º1, alínea b), 14.º, 15.º, alínea a), 18.º e 26.º, todos do Código Penal, bem como aos art.ºs 15.º, n.ºs1, 2, alíneas a), c), d) e j), 3, 4, 5, 10, 19.º e 20.º, da Lei n.º102/2009, de 10.09; art.ºs 4.º e 6.º do D.L. n.º348/93, de 01.10; art.ºs 3.º, 36.º e 37.º, do D.L. n.º50/2005, de 25.02; e art.ºs 4.º, 7.º, alínea a), e 14.º do D.L. n.º273/2003, de 29.10.;
C) Julga-se improcedente o Pedido de Indemnização Civil formulado por GG, então menor representado pela sua mãe HH;


*

Sem custas crime.

Custas cíveis da responsabilidade do demandante, o qual beneficia de apoio judiciário.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)


Porto, 29/10/2025
data e assinaturas electrónicas no topo do documento
Maria Ângela Reguengo da Luz
Pedro Afonso Lucas
Pedro Vaz Pato
______________
[1] relatado pelo Juiz Conselheiro João Silva Miguel, no proc.502/08.0GEAZR.E1.S1, disponível in dgsi/pt;
[2] Código de Processo Penal Comentado, Almedina, Coimbra, 2014, p. 1547 r 1357;
[3] na sua obra Comentário ao Código do Processo Penal, vol.II, 5.ª edição, UCP editora;