Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5390/22.1T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: USUFRUTO
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RP202409125390/22.1T8MTS.P1
Data do Acordão: 09/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O titular do usufruto actua em abuso do direito ao pretender que os titulares da nua propriedade abandonem a ocupação do imóvel objecto desses direitos quando tais direitos foram adquiridos em simultâneo e em conjunto, sobre duas casas em ruínas, para que numa delas o adquirente da nua propriedade fizesse obras para a tornar habitável e depois disso aí passasse a ter habitação permanente com a sua família, o que sucedeu e se prolonga há mais 8 anos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:5390.22.1T8MTS.P1
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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ..., e marido BB, contribuinte fiscal n.º ..., residentes na Rua ..., ..., instauraram acção judicial contra CC, contribuinte fiscal n.º ..., e marido DD, contribuinte fiscal n.º ..., ambos residentes na Rua ..., ..., formulando contra estes os seguintes pedidos:
a) declarar-se serem os autores legítimos usufrutuários do prédio dos autos e a posse dos réus insubsistente, ilegal e de má-fé;
b) condenar-se os réus a reconhecer aos autores aquele direito de usufruto e a restitui-lhes a referida habitação que ocupam, livre de pessoas e coisas.
Para fundamentar o seu pedido alegaram, em súmula, que são usufrutuários de dois prédios urbanos sitos na Rua ..., ..., Matosinhos, que esse direito se encontra inscrito no registo predial a seu favor, que autorizaram os réus a habitar num dos prédios por mera tolerância, que fruto da deterioração das relações retiraram essa autorização, estando os réus a ocupar sem título válido esse prédio.
Os réus foram citados e apresentaram contestação, defendendo a improcedência da acção com fundamento no abuso do direito, alegando para o efeito que quando foram adquiridas as casas não tinham condições de habitabilidade e exigiram a realização de grandes obras para puderem ser habitadas, que foram os réus que executaram essas obras e uma vez estas concluídas passaram a habitar numa das casas, que os autores nunca pretenderam habitar nas casas que a ré renunciou ao quinhão hereditário a que teria direito quando a autora falecesse, na condição de os autores renunciarem ao usufruto que detinham sobre a casa onde residem os réus, o que estes nunca concretizaram.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada improcedente e os réus absolvidos dos pedidos.
Do assim decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. O presente recurso visa a impugnação quer da matéria de facto, quer da matéria de direito.
II. Quanto à matéria dada como provada, ressalta é a quantidade de factos irrelevantes para a boa decisão da causa.
III. Há factos dados como provados que não o deveriam ser, bem como factos que não foram tidos em conta, e que têm uma relevância primordial para o desfecho da acção.
IV. Deveria ter sido dado como provado que foram os autores a liquidar o preço da raiz e usufruto do imóvel dos autos.
V. Os factos referidos em 25 a 27 deveriam ter sido dados como não provados.
VI. Não se verifica haver abuso de direito por parte dos autores dado existir uma substancial alteração das condições existentes à data da aquisição do imóvel.
VII. A manutenção da presente situação resulta num enriquecimento ilegítimo dos réus à custa do empobrecimento dos autores.
VIII. Os réus ocupam o imóvel dos autos sem qualquer título ou contrato que suporte essa ocupação.
Normas violadas, art.º 334º, 1439º e seguintes, 562º e seguintes, todos do Código Civil, 410º e seguintes do Código de Processo Civil.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso, em conformidade com as conclusões que antecedem.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser modificada.
ii. Se a pretensão da autora constitui um abuso do direito.

III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Na conclusão V os recorrentes afirmam que «os factos referidos em 25 a 27 deveriam ter sido dados como não provados».
Sucede, contudo, que no corpo das alegações não existe qualquer abordagem da decisão proferida sobre o ponto 25 e/ou apresentação de razões pelas quais a decisão deva ser diferente, sendo somente abordados os pontos 26 e 27.
Daqui resulta, portanto, que no corpo das alegações não há qualquer análise dos meios de prova e exposição dos motivos pelos quais a decisão sobre o ponto 25 devia ser alterada e, por conseguinte, que os recorrentes não fizeram alegações sobre a impugnação dessa decisão, mencionando somente a pretensão de essa decisão ser alterada na referida conclusão.
Ora as conclusões do recurso são a parte das alegações onde o recorrente deve, “de forma sintética,” indicar “os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão” (cf. artigo 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Tal como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.07.2001, in www.dgsi.pt, «nas conclusões, não pode o recorrente definir o objecto do recurso para além do que resulta das alegações, embora o possa restringir».
Também no Acórdão de 21.11.2006, loc. cit., o Supremo Tribunal de Justiça lembra que «Como ensina Alberto dos Reis (CPC anotado, 5º vol. reimpressão, Coimbra Editora, 1981) as conclusões representam “as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação”. Daí que, se determinada matéria não foi impugnada e tratada no corpo das alegações, não possa vir a ser contemplada em sede de conclusões. Como se diz no ac. do STJ de 21/10/93, CJSTJ1993, III, pág. 81 “…as conclusões são um mero resumo dos fundamentos ou da discordância com o decidido, sendo ilegal o alargamento do seu âmbito para além do que do corpo daquelas consta. Portanto, não tendo sido a questão impugnada no âmbito das alegações não tem sentido a conclusão 20º.»
Podemos citar ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.05.2002, loc. cit., no qual se afirma ser «corrente o entendimento segundo o qual o âmbito objectivo de um recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente formula ao alegar, conclusões estas que servem para sintetizar os fundamentos pelos quais se defende a revogação ou a alteração da decisão recorrida - art. 690/1 do CPC. A importância deste sistema está em que não há que conhecer, nem das questões versadas no arrazoado que antecede as conclusões, mas não estão contidas nestas, nem das que apenas nestas, e não naquele arrazoado, figuram
Deste modo, não se encontrando no corpo das alegações a explanação dos motivos pelos quais os recorrentes entendem dever ser alterada a decisão sobre o ponto 25, não existem propriamente conclusões a esse respeito, pois não pode formular-se um resumo ou síntese do que não existe, motivo pelo qual não há objecto do recurso quanto à tal matéria e não se pode conhecer de tal impugnação.
A mesma conclusão cita ainda os factos dos pontos 26 e 27, como devendo ser julgados não provados.
Mostram-se cumpridos de modo satisfatório os requisitos específicos desta impugnação, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que nada obsta à apreciação da mesma.
Tais factos têm a seguinte redacção:
26. Na casa com o n.º …, as obras foram supervisionadas e executadas pelo réu, com os materiais fornecidos pelos autores.
27. Pelo trabalho na reconstrução e ampliação das casas, o réu não solicitou qualquer contribuição monetária dos autores.
Efectivamente, ouvida a gravação da audiência, a decisão sobre o facto 25 deve ser alterada de modo a reflectir o que foi afirmado pelas próprias partes nos respectivos depoimentos.
De acordo com esses depoimentos, a casa destinada a ser habitada pelos réus (com o n.º de polícia ...) recebeu obras que foram realizadas e/ou suportadas pelos réus, enquanto que a outra casa que anos depois os autores foram habitar (é a esta, com o n.º de polícia ..., que se refere o facto em questão) recebeu obras em cuja execução também participou o réu com a sua mão-de-obra, mas os autores forneceram os respectivos materiais, cujos custos suportaram, além de terem pago a remuneração devida a outras pessoas que andaram a trabalhar na execução dessas obras (é, aliás, o que já consta do ponto 24 e cuja decisão não foi impugnada).
Por conseguinte, o ponto 26 tem de receber a seguinte resposta:
26. Na casa com o n.º …, o réu supervisionou e participou na execução das obras, tendo os autores suportado o custo dos materiais aplicados e pago a remuneração de outras pessoas que participaram na execução das obras.
No que concerne ao ponto 27, antes de sindicar a decisão é necessário perceber exactamente que facto a redacção dada pretende revelar.
Este ponto vem depois do 26 onde como se vimos se deu como provado que os materiais para as obras da casa do n.º … foram pagos pelos autores. Por conseguinte, quando imediatamente a seguir se afirma que pelo trabalho na reconstrução e ampliação das casas, o réu não solicitou qualquer contribuição monetária dos autores, o que, por certo, se pretendeu afirmar, sob pena de contradição, não é que os autores não suportaram qualquer custo financeiro com essas obras (segundo os próprios réus aceitam, pelo menos o custo da aquisição dos materiais sempre teriam suportado), é apenas que o réu marido não recebeu dos autores qualquer remuneração pela sua própria participação da execução das obras e supervisão dos trabalhos.
É o início da redacção do facto que o revela ao afirmar «... pelo trabalho na reconstrução e ampliação ...». Com essa leitura a decisão sobre o ponto 27 está correcta, porque o que a própria autora afirma é que o genro lhe tinha dito que ela não teria de pagar qualquer mão-de-obra, mas acabou por lhe ser pedido para pagar e ela pagou €1.500 de mão-de-obra a outras pessoas que andaram no imóvel a executar os trabalhos.
Os recorrentes defendem ainda que devia ser julgado provado que «foram os autores a liquidar o preço da raiz e usufruto do imóvel dos autos».
O que se retira dos depoimentos de parte produzidos é que o pagamento desse preço foi feito com dinheiro disponibilizado pela autora e que antes lhe pertencia. Todavia, já não resulta o esclarecimento cabal dos termos ou condições em que esse dinheiro foi proporcionado pela autora para ser usado para essa finalidade.
Por outras palavras, não se provou se a autora manteve a propriedade desse dinheiro até à sua entrega aos vendedores (portanto, que foi ela a pagar o preço do direito adquirido pelos réus) ou se antes da concretização da escritura e para a permitir ela doou parte desse dinheiro à ré sua filha para esta poder intervir na escritura a adquirir a nua propriedade dos imóveis, pagando o respectivo preço com dinheiro doado pela mãe. O apuramento destes factos exigia a produção de outros meios de prova mais amplos e exteriores aos intervenientes directos e não apenas os depoimentos de mãe e filha que nesse aspecto não estão conciliados.
Por conseguinte, o que se julga provado é somente o seguinte, que passa a constituir o ponto 55:
«O preço da raiz e do usufruto dos imóveis foi pago na totalidade com dinheiro proveniente da autora.»

IV. Fundamentação de facto:
Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos:
1. A autora AA é mãe da ré CC e sogra do réu DD.
2. A 11/10/2013, a ré e a autora outorgaram escritura pública denominada “título de compra e venda”, na qualidade segundas outorgantes A) e B), respectivamente, na qual declararam, além do mais:
«(…) D. Identificação do Prédio
D1. Elementos Descritivos do Prédio
Natureza: Urbano; Destino: Habitação; Composição: Duas casas de um pavimento, com uma dependência e logradouro, cada.
Situação: Rua ..., Freguesia ..., concelho de Matosinhos.
Inscrição matricial: ... e ... da União de Freguesias ..., ... e ... (anteriores ... e ... da extinta Freguesia ...).
(…) D2. Situação Registral
Prédio descrito sob o número ..., da Conservatória do Registo Predial de Matosinhos; (…) A Primeira interveniente por si e em nome das suas representadas e pelo preço global de Quarenta e Sete Mil e Quinhentos Euros, vende à Segunda interveniente da alínea A) a raiz do imóvel supra identificado, pelo preço de trinta e cinco mil seiscentos e vinte e cinco euros (correspondendo a dezassete mil oitocentos e doze euros e cinquenta cêntimos a cada um dos artigos), e à segunda interveniente da alínea B) o usufruto do referido imóvel, pelo preço de onze mil oitocentos e setenta e cinco euros (correspondendo cinco mil novecentos e trinta e sete euros e cinquenta cêntimos a cada um dos artigos), que já recebeu.
A Parte Vendedora declara que o prédio é vendido livre de ónus ou encargos.
E2. Outras Cláusulas a) A Parte Compradora declara que o imóvel a que corresponde o artigo 5181 se destina a sua habitação própria e permanente. (…)».
3. Através da ap. ..., de 11/10/2013, foi registada a favor dos réus, CC e DD, a aquisição, por “compra”, do prédio urbano sito na Rua ..., em ..., Matosinhos, inscrito nas cadernetas matriciais urbanas sob os artigos 5178.º e 5181.º (com origem, respectivamente, nos artigos matriciais ...... e ...), descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos com o n.º ....
4. Através da mesma ap. ..., de 11/10/2013, foi registado a favor dos autores a “compra” do usufruto do referido prédio urbano.
5. A referida edificação é composta por duas casas de um pavimento, com uma dependência e um logradouro.
6. À data da escritura, ambas as casas se encontravam em ruínas.
7. À data da escritura, as relações entre autores e réus eram boas.
8. Os autores e os réus acordaram em consignar na escritura que os ali primeiros outorgantes transmitiam “à segunda interveniente da alínea B) o usufruto do referido imóvel”, porque os primeiros haviam contribuído com a quantia de 11.875,00 € e porque a autora pretendia cultivar uma horta no quintal das casas.
9. Nesta altura, não era intenção dos autores irem residir para nenhuma daquelas casas.
10. Também nunca foi colocada a hipótese de os réus não irem residir para nenhuma daquelas casas.
11. A casa com a entrada n.º ..., correspondente ao artigo matricial ..., destinava-se, exclusivamente, a ser reconstruída e ampliada, para ser utilizada como residência dos réus.
12. Os réus, à data da escritura, residiam numa casa alugada, situada na Praceta ..., ..., 4.º andar esquerdo, na Maia.
13. Os autores, à data da escritura, residiam na Rua ..., ..., 2.º andar esquerdo, na União de Freguesias ... e ..., no concelho de Matosinhos.
14. O apartamento ocupado pelos autores corresponde a tipologia T2.
15. Esse apartamento está desocupado e completamente mobilado.
16. Em Novembro de 2013, os réus iniciaram obras nas casas, tendo sido necessário erguer paredes, retirar várias cargas de entulho, construir telhados, colocar tectos falsos, construir pátios, fazer as canalizações de água e de esgotos, criar as instalações eléctricas, fazer impermeabilizações com capoto e proceder às pinturas.
17. Também foi ampliada a área habitável em ambas as casas.
18. Na casa descrita no artigo matricial ..., com a entrada pela Rua ..., foram executadas as seguintes obras:
- O telhado, em tenha tradicional manteve-se, mas toda a sua estrutura foi reforçada e melhorada;
- No exterior, a porta de entrada foi eliminada e a entrada para o interior da casa passou a ser feita exclusivamente por um portão, que dá acesso a um pátio interior;
- No pátio das traseiras foram construídas 3 novas divisões, numa está instalada uma cozinha exterior, noutra um atelier de costura e na outra uns arrumos.
19. Na casa descrita no artigo matricial ..., com entrada pela Rua ..., foram executadas as seguintes obras:
- O telhado, em tenha tradicional manteve-se, mas toda a sua estrutura foi reforçada e melhorada;
- O interior da habitação foi ampliado com a construção de uma cozinha e uma casa de banho;
- O exterior foi ampliado com a construção de um galinheiro e um canil.
20. No pátio das traseiras, que serve as duas casas, foi contruída uma casa de banho.
21. Todas as obras realizadas nas duas casas foram supervisionadas e executadas pelo réu.
22. Na data da realização das obras, o réu trabalhava na área da construção civil, tendo os conhecimentos necessários para a realização das intervenções em causa.
23. Nesses trabalhos, o autor foi auxiliado pelo seu irmão, pelo genro EE e pelo amigo e vizinho FF.
24. O réu pagava, diariamente, a quantia de 50,00 €, ao referido FF e, nos trabalhos realizados na casa com o n.º …, também os autores contribuíram com igual quantia.
25. As obras executadas na casa com o n.º ... foram custeadas, na íntegra, pelos réus.
26. Na casa com o n.º …, o réu supervisionou e participou na execução das obras, tendo os autores suportado o custo dos materiais aplicados e pago a remuneração de outras pessoas que participaram na execução das obras.
27. Pelo trabalho na reconstrução e ampliação das casas, o réu não solicitou qualquer contribuição monetária dos autores.
28. As obras anteriormente descritas prolongaram-se no tempo.
29. Em Fevereiro de 2014, quando a casa com o n.º ... passou a poder ser habitada, entregaram ao senhorio o apartamento onde residiam anteriormente e mudaram-se para aquela casa.
30. Em Junho de 2014, para conseguir custear as obras, o réu foi trabalhar para Angola.
31. O réu trabalhou em Angola até Dezembro de 2015.
32. Durante o período que permaneceu a trabalhar em Angola, o réu regressava a Portugal de 4 em 4 meses e, cá, permanecia durante um mês.
33. Quando o réu estava em Portugal, passava esse período de tempo a trabalhar nas obras das casas.
34. Em Março de 2016, o réu foi contratado por uma empresa espanhola e foi trabalhar para vários países da Europa, nomeadamente, Escócia, Inglaterra, Alemanha, Itália, Holanda e Bélgica.
35. Neste período, regressava a Portugal em intervalos de tempo não concretamente apurados, permanecendo de Sexta-feira ao final do dia, até Segunda-feira de madrugada.
36. A 29/04/2016, a ré CC outorgou documento autenticado pelo Ilustre Advogado Dr. GG, no qual declarou:
«CC (…) vem, para os devidos efeitos, na qualidade de presuntiva herdeira legitimária de AA (…) declarar que pretende renunciar ao quinhão hereditário a que terá direito mortis causa por aquela linha sucessória, declarando nada ter a reclamar ou exigir da herança daquela. (…)».
37. Em data não concretamente apurada, mas seguramente entre 2018 e 2019, o réu termina, definitivamente, a sua actividade profissional no estrangeiro.
38. Em Maio de 2019, as obras nas casas encontram-se concluídas.
39. Nesta altura, o réu decidiu procurar emprego em Portugal.
40. O réu, para concretizar esse objectivo, decidiu frequentar um curso de formação para a obtenção do certificado de motorista de táxi.
41. Depois de ter concluído a formação, o réu começou a trabalhar como motorista de táxi para a empresa A..., Lda.
42. O exercício dessas funções de motorista de táxi continua a ser o único rendimento mensal dos réus.
43. Os autores começaram a residir na casa da Rua ..., com entrada pelo n.º ..., em ..., em data não concretamente apurada, mas, seguramente, após finais de 2019.
44. Até essa data, os autores passavam 2 a 3 dias na casa e, depois desse período, regressavam à casa sita na Rua ..., ..., 2.º andar esquerdo, na União de Freguesias ... e ....
45. Os autores, por si directamente e através dos ante possuidores, há mais de vinte anos, vêm fruindo da habitação com o n.º …, dependência e respectivo logradouro, nela realizando obras e habitando-a com o convencimento de que o gozo da casa em causa lhes pertence.
46. Tal ocupação tem vindo a ser feitas pelos autores e ante possuidores na ignorância de lesarem direitos de outrem, se porventura os havia, sem resistência ou oposição de quem quer que seja, ininterruptamente e à vista de todos.
47. Os autores pagam as contribuições, obras e reparações da casa com a entrada n.º ....
48. Os réus ocupam a habitação correspondente ao n.º ... e ao artigo matricial ....
49. A ocupação daquela habitação pelos réus foi consentida pelos autores.
50. Entre autores e réus as relações vêm-se pautando por conflitos, tendo sido instaurados dois processos crime, que correram termos na 1.ª e 3.ª Secções do DIAP de Matosinhos, com os n.ºs 3393/21.2T9MTS e 180/22.4PCMTS, entretanto findos, um por desistência da queixa do réu marido e, o outro, por ausência de indícios suficientes.
51. O Ilustre Mandatário dos autores, a 23 Novembro de 2021, remeteu carta registada com aviso de recepção aos réus, com o seguinte teor:
«(…) Represento a D. AA, usufrutuária da habitação que actualmente ocupam.
Tal ocupação carece de qualquer título que a legitime, seja um contrato de arrendamento, um comodato ou qualquer outro, e impede o gozo por parte da minha cliente dos direitos que registralmente lhe assistem.
Pretende a minha cliente reaver o imóvel pelo que solicita a sua entrega, livre de pessoas, coisas e animais, no prazo de 90 dias a contar da recepção da presente carta.
Em alternativa poderá celebrar-se um contrato de arrendamento nos termos e condições a acordar.
Findo este prazo, caso o imóvel não seja entregue ou celebrado um contrato de arrendamento, intentarei de imediato a competente acção possessória. (…)».
52. Apesar dessa carta, os réus sempre se recusaram a desocupar a habitação com o n.º ..., como continuam a fazê-lo.
53. A habitação com a entrada n.º ... foi avaliada, em 16/12/2022, em 187.000,00 €.
54. A habitação com a entrada n.º ... foi avaliada, em 16/12/2022, em 59.500,00 €.
55. O preço da raiz e do usufruto dos imóveis foi pago na totalidade com dinheiro proveniente da autora.

V. Matéria de Direito:
A questão de direito suscitada pelos autores recorrentes prende-se com o instituto jurídico do abuso do direito.
Resulta da matéria de facto que por compra e venda, a autora e a ré, respectivamente mãe e filha, adquiriram em conjunto a propriedade de duas casas de habitação, tendo sido transmitido para a autora o respectivo usufruto e para a ré a respectiva nua propriedade. Esses direitos adquiridos não estão em causa na presente acção, pela singela razão de que os mesmos se encontram inscritos no registo predial a favor das partes e os réus não questionam a titularidade do direito de usufruto da autora.
As casas estavam em ruínas e nelas foram realizadas obras para as tornar habitáveis. Desde a execução dessas obras, uma das casas é habitada pela ré e pela respectiva família; a outra ficou para a autora, que nela passou a habitar inicialmente de modo ocasional ou esporádico e posteriormente de modo permanente.
Em resultado da enorme deterioração das relações pessoais entre a autora e a filha e o genro, aquela veio instaurar a presente acção, pedindo a entrega da casa a filha e o genro habitam depois de a terem reconstruído, invocando para o efeito a titularidade do respectivo direito de usufruto, cujo conteúdo lhe confere a faculdade de fazer uso pleno e exclusivo do imóvel (artigo 1439.º do Código Civil), nomeadamente contra o titular da nua propriedade.
Na sentença recorrida, o tribunal a quo entendeu que a pretensão da autora configura um abuso do direito e, por isso, julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido de entrega à autora da casa onde habitam e da qual são apenas titulares da nua propriedade, cabendo à autora o usufruto.
É contra essa qualificação jurídica dos factos que a autora se insurge, mas, podemos desde já adiantá-lo, sem razão, uma vez que o caso parece constituir mesmo um exemplo de escola de uma situação de abuso do direito, passível de ser integrada na figura da supressio.
Segundo o artigo 334.º do Código Civil, que define a figura do abuso do direito, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
Para Castanheira Neves, in Lições de Introdução ao Estudo do Direito, edição copiografada, Coimbra, 1968/69, pág. 391, entende-se por exercício abusivo do direito «um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica - por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde - e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício». O mesmo autor, in Questão-de-facto - questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade, I, Coimbra 1967, pág. 513 e seguintes, sublinha que o abuso do direito é «um princípio geral de validade independente das específicas formulações que o concretizem».
O instituto do abuso do direito visa impedir situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante - cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008, in www.dgsi.pt/jstj - ou apresenta uma «contrariedade clamorosa ao sentimento jurídico dominante na comunidade» - cf. Manuel de Andrade, in Teoria Geral das Obrigações, 1, 2.ª ed., Coimbra, 1963, pág. 63 e seg. -. E isso é assim porque no exercício dos seus direitos toda a pessoa deve adoptar um comportamento honesto, correcto e leal, respeitando e correspondendo às legítimas expectativas que criou em outrem.
«O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito, casos em que se excede os limites impostos pela boa fé» – apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in Colectânea de Jurisprudência - AcSTJ, 1996, tomo III, pág. 117. Para o efeito, não é necessário que a parte tenha a consciência de com a sua actuação exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, basta que objectivamente esse excesso ocorra – cf. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 7ª edição, pág. 536 –.
Existem diversas figuras típicas que encerram uma violação desse dever de actuação conforme às expectativas criadas e que reconhecidamente constituem exercícios abusivos do direito. Conta-se entre elas o chamado venire contra factum proprium que se reconduz à situação em que o titular do direito adopta um comportamento capaz de criar no outro pólo da relação jurídica a expectativa de que o direito é concebido e será exercido pelo seu titular em consonância com o significado desse comportamento, mas depois vem a actuar em contradição ou desconformidade com o comportamento anterior, frustrando aquela confiança.
Subjacente ao conceito do venire contra factum proprium está a ideia de que os riscos originados na credibilidade da conduta anterior do agente não devem ser suportados por quem, dentro da normalidade da vida da relação, acreditou na mensagem irradiada pelo significado objectivo da conduta do mesmo agente.
Para Menezes Cordeiro, in Da Boa Fé no Direito Civil, pág. 745, «o venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro - o factum proprium - é, porém, contrariado pelo segundo». Para este autor, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, pág. 964, os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium” são quatro; «1.º Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium); 2.º Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis; 3.º Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4.º Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.»
Para Paulo Mota Pinto, Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil, in Boletim da Faculdade de Direito, Volume comemorativo do 75º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito, 2003, pág. 302 e seguintes, o venire contra factum proprium possui pressupostos imprescindíveis. Assim, «… deverá, antes de mais, existir um comportamento anterior do agente - o “factum proprium” a que se refere a expressão -, que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. .... Depois, há que apurar a imputação ao agente, quer desse comportamento anterior, quer do actual comportamento. … em regra, não poderá prescindir-se da culpa (apenas poderá abrir-se uma excepção, a nosso ver, quando o factum proprium fundou, embora sem culpa, determinadas expectativas na outra parte, por exemplo, por lhe terem sido prestadas informações jurídicas erradas, por o agente dispor de uma posição de superioridade ou ser, de outra forma, responsável pela ineficácia de uma vinculação na qual a outra parte confiou). …. Em terceiro lugar, há que verificar a necessidade e o merecimento de protecção do atingido com a conduta contraditória. Assim, este tem de estar de boa fé, isto é, há-de ter confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando não culposamente eventuais intenções contrárias do agente. … Por outro lado, importa apurar a existência e o tipo de “disposição” levada a cabo, ou seja, o “investimento de confiança”, ou baseado na confiança, realizado, sendo que este pode traduzir-se, por exemplo, da realização de uma contraprestação. A sua irreversibilidade ou a eventual afectação da situação existencial daquele que confiou, por virtude da frustração desse “investimento”, … serão elementos cuja presença reforça a conclusão de proibição da conduta contraditória. Terá também de existir causalidade, quer entre a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, quer entre esta e a “disposição” (causadora do dano) levada a cabo. Para que o agente seja responsável - rectius, para que seja impedido de venire contra factum proprium - o investimento de confiança tem, pois, de ser causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada».
Todavia, como logo adverte este autor, «deve rejeitar-se a aplicação automática dos pressupostos mencionados, após a sua enumeração e verificação no caso concreto. Antes todos deverão ser globalmente ponderados, in concreto, pata se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta-com os ditames da boa fé em sentido objectivo».
Constituem modalidades (ou figuras próximas consoante os autores) da figura do venire contra factum proprium os casos chamados suppressio e surrectio. Tratam-se dos casos em que o comportamento do titular do direito ao longo do tempo criou a legítima confiança de que aquele não exercerá mais o direito ou renunciou a ele ou então que reconhece a outrem um direito ou faculdade jurídica que de outra forma não existiria ou já se encontrava extinta.
Enquanto formas de tutela da confiança concitada noutrem por um determinado comportamento, o que releva é o significado da aparência do comportamento, a ilação que o mesmo permite quanto ao comportamento da mesma pessoa – do mesmo titular do interesse juridicamente protegido – no futuro. Por isso, não importa se por não exercer o direito, o seu titular queria ou não renunciar ao mesmo, nem isso poderia ser facilmente concluído a partir de um comportamento – puramente – omissivo. Importa sim que a esse comportamento possa ser legitimamente associado um determinado significado perceptível pelo comum dos destinatários.
Como tal, a acrescer ao decurso do tempo são necessários indícios objectivos desse significado que permitam concluir que a confiança criada não foi iminentemente subjectiva – correspondente à vontade e desejo de outrem – mas objectivamente fundada, só assim merecendo a tutela do direito. Esses elementos objectivos hão-de indiciar que o direito não mais será exercido ou se renunciou a ele em definitivo. O que significa, afinal, que o contexto e as circunstâncias em que o comportamento tem lugar podem ser decisivos para a interpretação do seu significado.
A suppressio, enquanto possível expressão de abuso de direito, está ligada à inacção ou à omissão, acompanhada de outras circunstâncias colaterais, que não apenas o decurso do tempo, sob pena de atingir, sem vantagens, a natureza plena da caducidade e da prescrição que são os institutos jurídicos através dos quais o legislador regula o exercício dos direitos por referência exclusivamente ao decurso do tempo.
Refere Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, Almedina, 2011, pág. 323 e seg., que «o factum proprium é, por definição, uma actuação positiva: não uma omissão. Além disso, os regimes deverão ser distintos: o factum proprium é de fácil determinação, através de coordenadas pessoais (o autor), materiais (o que ele fez), geográficas (onde fez) e cronológicas (quando fez); tudo isso falta na omissão conducente à suppressio. (…) teremos de compor um modelo de decisão, destinado a proteger a confiança de um beneficiário, com as proposições seguintes: um não-exercício prolongado; uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança; a imputação da confiança ao não-exercente». E mais à frente, «o não-exercício prolongado estará na base quer da situação de confiança, quer da justificação para ela. Ele deverá, para ser relevante, reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não mais será exercida. O investimento de confiança traduzirá o facto de, mercê da confiança criada, o beneficiário não dever ser desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis. Finalmente: tudo isso será imputável ao não-exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inacção. Não se exige culpa: apenas uma imputação razoavelmente objectiva».
Também Nuno de Oliveira, in A Suppressio ex bona fide, Revista de Direito Civil, 2015, Almedina, pág. 171 e seg., distingue o venire contra factum proprium e a suppressio do seguinte modo: «… o venire contra factum proprium pressupõe a sobreposição de dois actos, de sentido distinto, não necessitando de um lapso temporal entre eles. O mecanismo típico de actuação da figura compreende um acto praticado por alguém que gera em outrem uma situação de confiança, que deve ser justificada, imputável ao comportamento alheio e possibilitar um investimento de confiança. Posteriormente, a mesma pessoa vem actuar em sentido contrário, violando essa confiança e causando prejuízos à contraparte. O Direito não deve permitir este tipo de actuação por ele ser abusivo e violar os ditames da boa fé. Já na suppressio, o que está pressuposto é o contrário: a inacção, prolongada no tempo, de quem, podendo agir, não o fez antes, vindo posteriormente actuar o direito. Embora estejamos igualmente perante uma situação que exige o cumprimento dos requisitos da tutela da confiança, a diferença reside aqui no mecanismo de actuação prévio. Não há qualquer acto de um credor, mas sim a total ausência do mesmo, durante um período de tempo mais ou menos prolongado. Uma vez gerada a confiança de que o direito não mais será exercido, ou um desequilíbrio no seu exercício, devido ao lapso temporal, o seu exercício será paralisado pela suppressio».
Ora, resultou provado que:
● quando foram adquiridas pela autora e pela ré as casas encontravam-se em ruínas (ponto 6),
● a casa com o n.º de polícia ... foi destinada desde o início pelas partes a ser usada pelos réus, como sua residência familiar (ponto 11),
● as obras executadas nessa casa foram custeadas na íntegra pelos réus (ponto 25),
● a propriedade plena das casas foi adquirida pelo preço global de 47.500,00 € (ponto 2) e após a realização das obras de reconstrução a casa n.º ... foi avaliada em 187.000,00 € e a casa n.º ... em 59.500,00 € (ponto 53 e 54),
● em Fevereiro de 2014, quando a casa com o n.º ... passou a poder ser habitada, os réus entregaram ao senhorio o apartamento arrendado onde residiam anteriormente e mudaram-se para aquela casa (ponto 29), sem que a autora se tenha em momento algum oposto a isso (pontos 10 e 49),
● para além da casa n.º ... os autores dispõem de outro imóvel para a sua habitação, o qual lhes pertence (ponto 13), sendo que aquando da aquisição das casas objecto da acção os autores não tinham intenção de habitar qualquer delas, só tendo passado a habitar na casa n.º ... após finais de 2019 (pontos 9 e 43).
Perante estes factos parece claro que a pretensão da autora de privar os réus da habitação que construíram e que só mediante as obras que eles nela realizaram deixou de estar em estado de ruínas (ou seja, se tornou habitável), afronta directa e intoleravelmente os acordos estabelecidos entre as partes aquando da aquisição de ambas as casas, contraria de modo frontal a forma de utilização futura das casas definida de forma válida pelos titulares do respectivo direito real e representa uma ruptura inovadora mas unilateral com a utilização que ao longo dos anos passou a ser feita das casas.
Ao adquirir o usufruto das casas com a intenção de permitir à filha que fizesse obras de reconstrução da casa n.º ... e nela passasse a ter a sua residência familiar e ao permitir à filha não apenas a execução das obras (sem as quais a casa, por se encontrar em ruínas, não poderia ser habitada por ninguém, designadamente pela própria autora, a qual por não ser titular da nua propriedade também não poderia executar as obras de reconstrução) como a efectiva utilização plena e exclusiva dessa casa desde que ficou em condições de ser habitada, a autora na prática como que renunciou, prescindiu dos efeitos materiais do direito de usufruto sobre esta casa.
O mais que se pode questionar é se essa conclusão deve ser rebatida pelo facto de se ter provado que o preço da raiz e do usufruto dos imóveis foi pago na totalidade com dinheiro proveniente da autora.
A nosso ver claramente não.
Com efeito, essa circunstância (que evidentemente foi resultado da relação familiar existente entre autora e ré e em cujo âmbito actos dessa natureza são naturais e comuns, representando disposições em favor dos filhos) não impediu a autora de decidir adquirir as casas em conjunto com a filha, ficando apenas com o usufruto (não obstante na altura não tivesse sequer intenção de ocupar qualquer das casas) e permitindo que a nua propriedade fosse adquirida pela filha.
O objecto da acção não é a anulação nem a modificação do facto jurídico que permitiu essa aquisição, tão pouco a definição ou o âmbito dos direitos de que cada uma é titular. O que se discute na acção é apenas a utilização da casa por parte dos réus e se, não obstante caiba à autora o usufruto da habitação, essa utilização como casa de morada de família deve ser consentida à ré por tal ser sido expressamente autorizado e consentido pela autora em condições e circunstâncias que ainda hoje justificam essa utilização (a execução pelos réus das obras para tornar possível habitar a casa e cujo valor é substancialmente superior ao que, a fazer fé no título aquisitivo, a autora pode ter aplicado na compra e venda).
Como já vimos, assim o impõem os deveres ético-jurídicos da boa fé que constituem a figura do abuso do direito.
Improcede, por isso, o recurso.

VI. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação confirmam a sentença recorrida.
Custas do recurso pelos recorrentes, o qual vai condenado a pagar aos recorridos, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
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Porto, 12 de Setembro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 842)
Ana Vieira
João Venade

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]