Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0656686
Nº Convencional: JTRP00039985
Relator: FERNANDES DO VALE
Descritores: CISÃO DE SOCIEDADES
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
ERRO
ANULAÇÃO DA DECLARAÇÃO
Nº do Documento: RP200701220656686
Data do Acordão: 01/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA.
Indicações Eventuais: LIVRO 287 - FLS 138.
Área Temática: .
Sumário: Uma escritura pública de cisão simples de sociedade (comercial) não admite a respectiva anulação ao abrigo do disposto no art. 247º do Código Civil, porquanto o acto assim formalizado não tem natureza contratual, antes nele intervindo, exclusiva e unilateralmente, a sociedade cindida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1 – “B………., Lda” instaurou, em 20.12.04, na comarca do Funchal (com posterior remessa à competente – territorialmente – comarca de Marco de Canaveses), acção ordinária contra “C………., Lda”, pedindo que seja anulada a declaração negocial contida na escritura pública de cisão da R., devidamente identificada no art. 1º da p. i.
Fundamentando a respectiva pretensão, alegou, em resumo e essência, a existência de erro na declaração negocial constante da referida escritura, porquanto foi omitida, no documento complementar da mesma, a indicação de um prédio da R. e que também deveria passar a integrar o património social da A. (constituída através daquela cisão), o que, com conhecimento da R., era revestido de essencialidade para a A..
Contestando, pugnou a R. pela improcedência da acção, deduzindo a excepção peremptória da caducidade do direito invocado pela A. e impugnando, em qualquer caso, a remanescente e relevante factualidade por esta aduzida.
Na respectiva réplica, a A. sustentou a inaplicabilidade ao caso do disposto nos arts. 285º e segs. do CC, contrapondo que o invocado vício de que a declaração negocial padece ainda não cessou, não se tendo, pois, iniciado, sequer, a contagem do prazo de caducidade mencionado pela R. Assim devendo improceder a correspondente excepção deduzida pela R.
No subsequente despacho saneador, o M.mo Juiz conheceu do mérito da acção, julgando esta improcedente, na decorrência da procedência da deduzida e supra caracterizada excepção.
Inconformada, apelou a A., visando a revogação da decisão recorrida, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:
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1ª – “In casu”, a disciplina do art. 285º e segs. do CC não tem aplicação;
2ª – Com efeito, a A. demandou a R., invocando a existência do erro a que alude o art. 247º do CC, na declaração contida na escritura pública de cisão “sub judice”;
3ª – Por outro lado, deve improceder a alegada excepção de caducidade, uma vez que o prazo de um ano para a interposição da presente acção ainda não iniciou a sua contagem, ou seja, por um lado, o invocado vício, como decorre do petitório e da douta sentença, ainda subsiste, o mesmo, e consequentemente, ainda não cessou;
4ª – Por outra via, o contrato titulado pela escritura pública de cisão “sub judice” nunca chegou a ser cumprido, pois, no momento da sua respectiva celebração, não chegou a ser entregue pela apelada à apelante o prédio em causa, uma vez que aquela continua a deter a posse do mesmo;
5ª – Assim, em qualquer dos casos, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, razão pela qual deve improceder a alegada excepção de caducidade;
6ª – A douta sentença recorrida viola, nomeadamente, o preceituado nos arts. 247º, 287º e 285º, do CC, pelo que deve ser revogada.
Contra-alegando, defende a apelada a manutenção do julgado.
Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2 – Na decisão apelada, tiveram-se por provados os seguintes factos (os quais, por inimpugnados e na ausência de fundamento legal para a respectiva alteração, temos por definitivamente fixados):
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a) – Em 22 de Dezembro de 1994, por escritura pública, foi titulada a cisão da sociedade – R., onde, através do destaque de parte do património desta, foi a A. formalmente constituída, sob a forma de sociedade comercial do tipo por quotas (art. 1º da petição inicial);
b) – Foi, assim, constituída a sociedade – A., com o capital social de € 1.077.403,46, o qual era suposto ser realizado com a transmissão da totalidade dos bens imóveis e móveis localizados na Madeira (art. 5º da petição inicial);
c) – O que, então, os sócios e legais representantes da R., unanimemente, pretenderam foi que todos os bens desta, móveis e imóveis, que se encontrassem na Madeira, com a celebração da escritura pública passassem a integrar o património da sociedade – A. (art. 8º da petição inicial);
d) – De entre os vários bens imóveis pertencentes à R., localizados na Madeira, fazia parte integrante o prédio rústico localizado no ………., freguesia de ………., concelho do Funchal, com a área de 30.210 m2, que confronta, do Norte, com herdeiros de D………. e E………., do Sul, com F………. e herdeiros de G………. e outros, do Nascente, com ………., herdeiros de H………. e E………. e, do Poente, com estrada ………. e a ………. (art. 9º da petição inicial);
e) – Sucede que, por manifesto lapso, no momento da outorga da respectiva escritura pública de cisão, o aludido prédio não foi expressamente mencionado no documento complementar àquela anexo (art. 14º da petição inicial);
f) – Assim que se aperceberam do erro, quer os gerentes da A., quer os da R. acordaram proceder à rectificação da aludida escritura (art. 14º da petição inicial);
g) – A R. sempre reconheceu à A. aquele erro e a necessidade de o rectificar (art. 16º da petição inicial);
h) – A R. sempre foi invocando motivos diversos, uns mais verosímeis que outros, para ir protelando a dita rectificação (art. 17º da petição inicial);
i) – Em 12 de Dezembro de 2000, faleceu o sócio e gerente da A., I………., e, desde então, a R. tem vindo a criar na A. a ideia de que não tem nenhuma intenção de rectificar o aludido erro, designadamente, outorgando uma escritura de rectificação do erro daqueloutra (art. 18º da petição inicial);
j) – Se, no momento em que outorgaram a escritura, os legais representantes da A. tivessem tido consciência de que o indicado prédio não ficaria a pertencer à A., não teriam declarado o que declararam, isto é, não teriam outorgado a escritura pública (art. 20º da petição inicial).
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3 – Como é pacífico, são as conclusões formuladas pelo recorrente que, em princípio (exceptuando as questões de oficioso conhecimento), delimitam o âmbito e objecto do recurso (Cfr. arts. 660º, nº2, 664º, 684º, nº3 e 690º, nº1, todos do CPC).
Assim, a questão suscitada pela apelante consiste, tão só, em saber se, no caso dos autos, ocorreu a caducidade do direito exercitado pela A. através da propositura da presente acção, com directa repercussão na decretada improcedência desta.
Vejamos:
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4 – Quer a A., quer a decisão apelada efectuaram a subsunção jurídica do caso debatido nos autos, com referência ao disposto no art. 247º do CC, onde se dispõe que “Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.
Ou seja, foi pressuposto um quadro ou contexto negocial em que foi operada uma equiparação entre a A. e a R. como sujeitos do correspondente contrato. Sendo que, a dever manter-se tal subsunção jurídica, nenhumas dúvidas teríamos em subscrever, integralmente, a douta decisão apelada e respectivos fundamentos, não merecendo o recurso provimento por tais razões (Cfr., designadamente, o Prof. Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1976, págs. 472), acrescidas do facto de só em via de recurso ter sido invocada a não conclusão do “negócio”, o que consubstancia questão nova de que o Tribunal de recurso não pode conhecer.
Defendemos, porém, diversa subsunção jurídica para o caso debatido nos autos, porquanto, em nosso entendimento, lhe é inaplicável o estatuído no art. 247º do CC, o qual pressupõe, necessariamente, a existência de um declarante e de um declaratário, num quadro negocial em que aquele emite e este fica em poder (da) ou conhece a correspondente declaração negocial, em ordem à formação e perfeição do perspectivado contrato.
Ora, no caso que nos ocupa, não pode visionar-se um tal cenário.
Com efeito, como nela é expressamente referido, através da escritura pública outorgada em 22.12.94, a R. – e só ela, como decorre do respectivo conceito – procedeu a uma sua cisão simples, ao abrigo do disposto no art. 118º, nº1, al. a), do CSC (Código das Sociedades Comerciais), destacando parte do seu património para com ela constituir a A.
Ora, como sustenta o Prof. Raul Ventura (in “Fusão, Cisão, Transformação de Sociedades”, 1999, págs. 369), “…Quanto, porém, à cisão simples e à cisão – dissolução, todos os esforços para construir o acto de cisão como um contrato são necessariamente vãos. Nessas modalidades intervém uma só sociedade: é apenas a sociedade cindida que elabora o projecto, que toma a deliberação, que outorga o acto de cisão. O acto de cisão, nessas modalidades, é, pois, um acto unilateral, da autoria exclusiva da sociedade cindida”. Continuando (“Ob. citada”, págs. 370): “Para se tentar atribuir natureza contratual à cisão simples e à cisão – dissolução será indispensável encontrar uma segunda sociedade com a qual a sociedade cindida contrate; segundas ou terceiras sociedades para este efeito só poderão ser a nova ou as novas sociedades criadas por aqueles actos” (Negrito de nossa autoria).
Aliás, se bem se reparar, e como já ficou observado, na sobredita escritura pública interveio apenas (unilateralmente) a R., em total e estrita observância dos pertinentes comandos legais, não sendo, aí, possível conferir à A. as vestes de declaratária do quer que seja.
Podemos, assim, concluir que uma escritura pública de cisão simples de sociedade (comercial) não admite a respectiva anulação ao abrigo do disposto no art. 247º do CC, porquanto o acto assim formalizado não tem natureza contratual, antes nele intervindo, exclusiva e unilateralmente, a sociedade cindida.
Estando, pois, votada a total inêxito a pretensão da A., a qual, conquanto por fundamentos diversos dos acolhidos na decisão apelada, improcede, manifestamente.
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5 – Em face do exposto, improcedendo as conclusões formuladas pela recorrente, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, em consequência, com a aduzida fundamentação, o despacho saneador – sentença recorrido.
Custas pela apelante.
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Porto, 22 de Janeiro de 2007
José Augusto Fernandes do Vale
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira