Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
575/21.0T8OVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONDOMÍNIO AUTÓNOMO
Nº do Documento: RP20220221575/21.0T8OVR-A.P1
Data do Acordão: 02/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Ainda que se trate de um só edifício, mas cuja configuração integre uma estrutura que se possa autonomizar em relação às demais estruturas, é possível constituírem-se condomínios autónomos, tendo cada uma deles personalidade judiciária para intervir nos assuntos que respeitam às partes comuns das frações que os integram.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 575/21.0T8OVR-A.P1
Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
K..., Lda, instaurou ação executiva contra AA, n.º ..., para cobrança da quantia de €6.839, 62, relativamente a despesas com elevadores (conforme requerimento de injunção que constitui título executivo) requerendo, entre o mais, a penhora de contas bancárias tituladas pelo requerido.
Foram penhoradas, entre outras,
a) 1.437,67€ Depositados na conta nº ...01 da Banco...;
b) 6.087,33€ Depositados na conta nº ...02 da Banco...;

Por requerimento remetido aos autos de execução, vieram o AA e BB, n.º ..., solicitar o levantamento da penhora referindo que o prédio em causa tem três entradas sendo que a entrada n.º ... respeita às frações ..., ..., ..., ..., ... a ..., administrada pela I..., Ldª, não sendo este titular das contas bancárias penhoradas.
Já as frações ... a ..., relativas à entrada n.º ..., são administradas pela T..., ..., Unipessoal, Ldª, tendo contrato de manutenção de elevadores com outra empresa que não a aqui exequente.
Quanto ao condomínio relativamente às AA, é constituído pelas frações ... a ... e ...., tendo por administradora a mesma empresa do n.º ..., não possuindo sequer elevador.
Estes dois condomínios são os donos das contas penhoradas, sendo que a propriedade horizontal abrange os n.ºs ... e ..., sendo composto por ... comercial e dois corpos, poente e nascente, de ..., seis andares e sótão aproveitado, não possuindo frações comuns.
A penhora em causa ofende a posse e a propriedade das requerentes, sendo que, nos termos do n.º 4 do art. 1424.º CC, nas despesas dos ascensores só participam os condóminos cujas frações por eles possam ser servidas.

A exequente opõe-se a tal pretensão, dizendo que se encontra constituída apenas uma propriedade horizontal e um número de identificação fiscal, de modo que a existência de vários números de polícia e a forma como internamente se organizou a gestão das frações não podem prejudicar o interesse dos credores.

Veio a se proferida decisão, datada de 15.11.2021, com o seguinte teor:
Incidente suscitado através dos requerimentos apresentados, em 28.06, em 10.09.2021 e em 04.10.2021 por BB nº ..., contribuinte nº ... e AA, contribuinte nº ...:
Conforme resulta da comunicação enviada aos autos pela “Banco..., S.A.”, a penhora incidiu sobre os saldos das contas tituladas pelo NIF ... – AA

Por outro lado, da leitura do título constitutivo da propriedade horizontal constata-se que o prédio é um só, embora composto por vários corpos.
O que está em causa é saber se a administração de facto de cada um dos blocos do edifício tem personalidade judiciária nos termos do art. 12º al. e) do CPC.
As administrações descentralizadas por blocos do mesmo edifício constituído em propriedade horizontal constituem apenas uma gestão de facto e não a gestão de direito do condomínio nos termos art.1430º, nº 1 CC (que se refere a um só administrador das partes comuns do edifício).
Sendo assim, há que entender que, quando o prédio em regime propriedade horizontal seja composto por mais do que um bloco de frações – como é a situação dos autos –, a administração do condomínio até pode estar descentralizada pelos diferentes blocos, para permitir uma melhor gestão, mas não se pode ignorar que a administração descentralizada por blocos de frações não passa de uma técnica de gestão e, por isso, de uma gestão de facto, que não se confunde com a administração do condomínio, a única gestão de direito, distinção que se impõe fazer para proteção da segurança (dinâmica) dos terceiros que com a administração do condomínio estabelecem relações jurídicas, nomeadamente os credores.
Como resulta do título constitutivo de propriedade horizontal, não foi deliberada a criação de uma administração geral do condomínio das partes comuns que coexistisse com a administração de cada um dos blocos, no sentido de estas últimas serem totalmente autónomas, e atribuindo ao administrador de cada bloco legitimidade para agir em juízo.
Como nada disto foi deliberado, então, há que entender que a legitimidade passiva pertence ao AA na Avenida ..., independentemente dos blocos ou unidades que materialmente o integram, ou à ....
Pelo exposto, decido manter a penhora dos saldos das contas tituladas pelo NIF ....

Deste despacho recorrem as requerentes AA e BB, n.º ..., visando a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que considere as recorrentes partes legítimas, nos presentes autos por gozarem de personalidade judiciária, seguindo-se os ulteriores termos do processo.
Para tanto formularam com argumentos os seguintes que assim deixaram em conclusões recursivas:
I. o prédio objeto dos presentes autos apesar ser um só para efeitos de propriedade horizontal, possui vários corpos, que são distintos entre si os recorrentes, mais concretamente é constituído por rés do chão comercial e dois corpos, poente e nascente, de rés do chão, seis andares e sótão aproveitado de acordo com a propriedade horizontal já junta aos autos.
II. Tanto o rés do chão como os dois blocos poente e nascente, têm entradas distintas e zonas comuns distintas entre si.
III. O Condomínio do prédio sito na Avenida ..., no que respeita ao bloco com a entrada nº ..., em ..., constituído em regime de propriedade horizontal, é formado pelas frações designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... T e U” sendo sua administradora T..., Unipessoal Lda., a qual foi regular e legitimamente eleita para o cargo de Administradora do Condomínio supra referido a 25 de Janeiro de 2011 (cfr. acta de assembleia extraordinária de Condóminos n.º 21 que já junta aos autos), tendo contrato de manutenção de ascensores com a empresa A... e não com a exequente, conforme documento já junto.
IV. O Condomínio do prédio sito na Avenida ..., no que diz respeito ao rés do chão comercial, denominado, AA, em ..., constituído em regime de propriedade horizontal, é formado pelas fracções designadas pelas letras ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., e A., sendo sua administradora T..., Unipessoal Lda., a qual foi regular e legitimamente eleita para o cargo de Administradora do Condomínio supra referido a 15 de Abril de 2015, conforme ata de assembleia extraordinária de Condóminos n.º 1/2015 que ora se junta sob o Doc. nº 4 e cujo teor se dá integralmente por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos).
V. Para alem destes dois blocos temos o bloco com a entrada ..., que é a entrada que respeita às frações ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e que têm a dívida perante a exequente.
VI. Tais condomínios, de acordo com a propriedade horizontal junta aos autos, derivam da mesma propriedade horizontal, contudo, possuem entradas distintas e individualizadas, são organizados de maneira distinta, não possuem fracções comuns, encontrando-se completamente individualizados uns dos outros.
VII. As recorrentes partilham com o BB nº ..., sendo este bloco possui a divida perante a exequente e peticionada no seu requerimento executivo, a mesma propriedade horizontal e o mesmo número de contribuinte, pois a partir de 2007 deixou de ser possível atribuir nºs de contribuintes diferentes por blocos no caso de existir uma única propriedade horizontal, contudo,
VIII. São autónomos face às fracções que compõem o BB nº ..., possuindo os seus próprios orçamentos, com contador de luz autónomos, tendo a primeira recorrente no que toca à EDP como código de identificação o nº ....2 e a segunda o nº ....5.
IX. Acresce que, o Condomínio do prédio sito na Avenida ..., nem elevador possui, nem, este bloco nem o ... usufrui, se serve, dos ascensores do bloco ..., nem aos mesmos tem acesso não constituindo os mesmo uma parte comum relativamente aos três blocos.
X. Cada um dos três blocos dispõem de uma entrada independente ao nível do rés-do-chão, e de uma caixa de escadas e elevador próprios, no que diz respeito ao bloco com a entrada ... e ..., e o bloco de ... com entrada independente e sem elevador em consequência do que estamos também perante uma administração autónoma das partes comuns relativas a 23 frações autónomas, das 35 que integram todo o edifício constituído em propriedade horizontal, referentes a um daqueles 3 blocos, o “...” e as “galerias comerciais”, devidamente delimitadas e independentes dos restantes, cada uma com entrada própria e com funcionalidade própria, com fracções autónomas e partes comuns próprias, que não servem funcionalmente quaisquer dos restantes blocos.
XI. Por outro lado, em situações de propriedade horizontal de edifícios integrados por blocos, em que algum ou alguns deles é servido por partes comuns que lhe são exclusivamente próprios, ou seja, que não sirvam funcionalmente outros blocos, não há qualquer proibição legal de que todos os condóminos aprovem a administração autónoma relativa a tais blocos.
XII. A questão aqui em causa prende-se, por isso, com a problemática da constituição de mais de um condomínio, com administração própria, para gerir a administração e conservação das partes comuns que só servem uma zona do edifício, não obstante a constituição de uma só propriedade horizontal, e se tal constituição é legal.
XIII. A mais recente jurisprudência do douto Tribunal da Relação de Guimarães, nomeadamente a constante dos seus Acórdãos de 02.02.2017, no Proc. 34/16.3TBGMR.G1, Relator Dr. Carvalho Guerra, e de 02.05.2016, no Proc. n.º 1132/14.3TBBCL.G1, Relatora Dra. Anabela Tenreiro, bem como a do STJ, nomeadamente no seu Acórdão de 16.10.2008, no Proc. 08B3011, Relator Dr. Salvador da Costa, todos disponíveis em www.dgsi.pt, tem sido do entendimento de que «a regra da unidade de administração e condomínio», aplicável aos edifícios constituídos em propriedade horizontal, «no sentido de que, em princípio, a cada edifício constituído em propriedade horizontal corresponde um condomínio e uma administração», embora constitua «o paradigma legal», conforme decorre do disposto nos artigos 1414º e ss. do C.Civil, «pode ser afastada quando haja interesse dos condóminos na autonomização da administração de áreas comuns, que servem determinadas frações do edifício»; e de que «a autonomização de uma assembleia de condóminos com a finalidade de administrar partes comuns respeitantes a uma zona do edifício não é proibida por lei e poderá contribuir para uma gestão mais eficiente».
XIV. Nas situações de propriedade horizontal de edifícios integrados por blocos, em que algum destes é servido por partes comuns que lhe são exclusivamente inerentes, podem os condóminos aprovar a administração autónoma relativa a tais blocos, sem prejuízo da coordenação com a administração geral nos pontos em que ela deva existir.» E tal «solução não depende da especificação no título constitutivo da propriedade horizontal dos elementos relativos a cada um dos blocos, designadamente as frações em que se decompõem e as partes comuns que lhe estão afetas.» (cfr. Ac. do STJ supra referido, de 16.10.2008).
XV. Excecionalmente, a lei atribui personalidade judiciária a entidades que não têm personalidade jurídica.
XVI. Entre esses casos, conta-se “o condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador” [cfr. art.º 6º, al e) do C.P.C.
XVII. Como é sabido, a propriedade horizontal é uma figura típica dos direitos reais que se traduz na situação em que as frações independentes de um edifício, como estrutura unitária, pertencem a proprietários diversos, exclusivos em relação a tais frações e comproprietários das respetivas partes comuns, em quadro de incindibilidade desses direitos (cfr. art.ºs 1414.º e 1420.º, ambos do Código Civil).
XVIII. Porém, só podem ser objeto de propriedade horizontal as frações autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública (cfr. art.º1415.ºdoCódigoCivil).
XIX. Terá que se considerar que as recorrentes possuem personalidade judiciária reconhecendo se essa autonomia para efeitos de determinação do direito de praticar atos de administração.
XX. Neste sentido, entre outros, vide acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 17/12/2018, sob o processo 3428/16.0T8GMR.G1, referindo o seu sumário que “1.Não há imposição legal para que a cada prédio urbano constituído em propriedade horizontal corresponda um condomínio; podem ser constituídos condomínios autónomos dentro de cada prédio sempre que estes correspondam a edifícios ou estruturas independentes. 2.Assim, é de reconhecer a legitimidade passiva de um condomínio constituído relativo às partes comuns de um bloco de um prédio constituído em propriedade horizontal, quando aquele se molda a um bloco do edifício com estruturas independentes, autónomo, que se administra há mais de vinte anos e quando estão em causa interesses que apenas dizem respeito às partes comuns que fazem parte desse bloco.”
XXI. No caso aqui em discussão, é indiscutível que estamos perante um espaço perfeitamente delimitado, com funcionalidade própria, com frações autónomas e partes comuns próprias, pelo que não há fundamento legal para que a globalidade dos condóminos não possa deliberar a constituição de autónomos órgãos de administração, sendo que, a legalidade da constituição de um condomínio autónomo não depende de uma precisa especificação das fracções e respectivas áreas comuns, no título constitutivo, bastando que tal resulte da própria materialidade descritiva do edifício
XXII. Por isso, no nosso entendimento, temos de concluir pela legalidade da estrutura do condomínio e da administração das partes comuns em causa, tanto mais que o título constitutivo da propriedade horizontal não exclui o funcionamento de mais de um condomínio, nomeadamente do que se mostra constituído, há muito.
XXIII. Assim, no vertente caso, a unidade do título constitutivo da propriedade horizontal não exclui o funcionamento de mais de um condomínio. Como entender o Ac. do STJ supra referido, de 16.10.2008, “ O princípio da unidade da constituição da propriedade horizontal não invalida a existência jurídica de situações de duplo condomínio com órgãos de administração próprios, desde que ocorra autonomia de blocos que integram o edifício incluindo as partes comuns que servem as respetivas frações prediais, independentemente de as suas características constarem do concernente título constitutivo”
XXIV. No vertente caso não ocorre a situação de inexistência jurídica ou falta de personalidade judiciária das recorrentes.
XXV. Pelo exposto, deverá revogar-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que considere as recorrentes partes legítimas, nos presentes autos por gozarem de personalidade judiciária, seguindo-se os ulteriores termos do processo, com as legais consequências.

Em contra-alegações de recurso, a exequente pugna pela manutenção do despacho recorrido.
Os autos correram vistos.

Objeto do recurso: da personalidade judiciária e dos condomínios relativos a conjuntos imobiliários.
FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
Com relevo para a decisão e compulsando os autos verificamos os seguintes factos com interesse:
1 – Na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sito na Av. ..., acha-se descrito o prédio aí indicado como composto de rés do chão comercial e dois corpos, poente e nascente, de ..., seis andares e sótão aproveitado ao qual correspondem as frações autónomas de A a Z e AA, ..., AC, ..., ..., ..., ..., ..., AI (doc. de fls. 16).
2 – De acordo com a escritura de propriedade horizontal de 30.3.83, o prédio tem as frações autónomas distribuídas desta forma: no ... comercial, as frações ... a ...; no corpo do lado poente, a frações ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... T e U; no corpo do lado nascente, as frações ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ... (doc. de fls. 35 e ss.).
3- De acordo com a escritura de constituição da propriedade horizontal, são zonas comuns, na cave do lado direito, junto à estrema nascente, um compartimento com a área aproximada de 50 m2 onde se mostram instalados a bomba de água e o poço de escoamento de água que também são comuns ao prédio confinante; o corredor central de acesso às várias dependências aí existentes; no rés do chão – a galeria rectangular aí existente de acesso às frações respetivas; as portarias principais das entradas de cada um dos corpos (fls. 39).
4 – Ainda de acordo com a mesma escritura, também sob o título zonas comuns, consignou-se “Nos demais pisos, as escadarias e os elevadores e casas das máquinas respectivos, obviamente, são também comuns todos os demais requisitos a que se refere” o art. 1421.º do CC (fls. 39 e v.º).
5 – De acordo com o auto de penhora cuja cópia se acha a fls. 30 e 31, na execução apensa foram penhorados dois depósitos à ordem na Banco..., no valor de, respetivamente, €6.087, 33, e €1437, 67, “a favor do executado AA na Avenida ...”.
Fundamentos de Direito
O despacho recorrido não apreciou a questão de saber se foram constituídos vários condomínios e se as contas bancárias pertencem a algum deles ou a todos.
Também não apreciou se o incidente suscitado – que parece ser de oposição à penhora – é o correto, ou se deveria tratar-se de embargos de terceiro, posto que, no dizer das requerentes, tratou-se de ato – penhora – que afetou a posse e a propriedade de entidade (os dois condomínios que alegadamente detêm autonomia relativamente ao executado) que não é o executado dos autos.
Tendo-se o despacho recorrido limitado a considerar que existindo um prédio constituído em propriedade horizontal, mesmo que composto por mais de um bloco de frações, trata-se apenas de uma descentralização de gestão e não da constituição de entidades distintas com personalidade judiciaria própria, decidiu da questão em abstrato – não apurou, nem descreveu factos provados – e não que isso tenha acontecido efetivamente in casu, pelo que também em abstrato se decidirá no presente recurso.
Dispõe o art.º 11.º, n.º 1, do CPC que a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte.
E acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo que tem personalidade judiciária quem tiver personalidade jurídica.
Daqui resulta que a personalidade judiciária se traduz na possibilidade de demandar ou ser demandado em qualquer providência de tutela jurisdicional.
O critério geral fixado na lei adjectiva civil para se apurar da personalidade judiciária é o da coincidência, correspondência ou equiparação, segundo o qual a personalidade judiciária é concedida a quem tenha personalidade jurídica.
Assim, todo o ente juridicamente personalizado tem igualmente personalidade judiciária, ativa ou passiva.
Todavia, a lei contempla critérios de atribuição da personalidade judiciária tendentes à sua extensão a quem não goza de personalidade jurídica, ou seja, segundo Antunes Varela, “uma forma expedita de acautelar a defesa judiciária de legítimos interesses em crise, nos casos em que haja qualquer situação de carência em relação à titularidade dos respectivos direitos (ou dos deveres correlativos)[1].
Deste modo, a regra é a de que qualquer indivíduo, independentemente da sua nacionalidade, capacidade ou incapacidade, tem personalidade judiciária, visto poder ser sujeito de relações jurídicas (cfr. arts. 14.º, n.º 1 e 67.º, ambos do Código Civil).
Esta regra é extensível às associações, às fundações e às sociedades a quem a lei reconheça personalidade jurídica, embora só possam estar em juízo através dos seus representantes indicados nos respectivos estatutos (cfr. arts. 157.º, 158.º do Código Civil e 5.º do Código das Sociedades Comerciais).

Deste modo, para lá do enunciado critério sustentado na correspondência, coincidência ou equiparação entre a capacidade de gozo de direitos e a personalidade judiciária, o nosso ordenamento jurídico consagra o critério da diferenciação patrimonial e o critério da afectação do acto[2], estendendo a personalidade judiciária a determinados patrimónios autónomos, designadamente, ao condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador [artigo 12.º al. e) do CPC].
Na verdade, excecionalmente, a lei atribui personalidade judiciária a entidades que não têm personalidade jurídica.

Entre esses casos, conta-se “o condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador”.
Entre nós, a doutrina[3] considerando que a propriedade horizontal se traduz (artigos 1420.º e 1421.º do Código Civil) na coexistência de um direito real de propriedade singular, que tem por objeto fração autónoma do edifício, com um direito de compropriedade que tem por objeto as partes comuns mencionadas no artigo 1421.º do Código Civil (conjunto de direitos que é incindível –n.º 2 do citado artigo 1420.º do mesmo diploma legal), entende que o condomínio “é a figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários titulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial-daí a expressão condomínio-sobre fracções determinadas” e, nesta medida, dever-se-á estender a personalidade judiciária a este determinado património autónomo.
O conceito de condomínio consubstanciado no nosso ordenamento jurídico resulta, pois, do desiderato de diferenciar as situações de propriedade horizontal das de simples contitularidade ou comunhão sobre a coisa indivisa.
O condomínio tem personalidade judiciária, nos termos consignados no aludido artigo 12.º al. e) do CPC, relativamente às ações que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, isto é, tem o condomínio a suscetibilidade de ser parte em juízo, quer do lado ativo, quer do lado passivo, em todas as demandas que se inserem no âmbito dos poderes do administrador (as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal são administradas pela assembleia de condóminos e por um administrador [art. 1430º nº. 1 do Código Civil]).
Já o art. 1437.º CC, resultante da redação operada pela Lei n.º 8/2022, de 10.1 (em vigor nesta parte, cfr. art. 9.º quanto à entrada em vigor) dispõe que:
1 - O condomínio é sempre representado em juízo pelo seu administrador, devendo demandar e ser demandado em nome daquele.
2 - O administrador age em juízo no exercício das funções que lhe competem, como representante da universalidade dos condóminos ou quando expressamente mandatado pela assembleia de condóminos.
3 - A apresentação pelo administrador de queixas-crime relacionadas com as partes comuns não carece de autorização da assembleia de condóminos.»
Este artigo prevê uma forma de suprimento da incapacidade judiciária do condomínio assente que está que o condomínio, enquanto tal, tem personalidade judiciária.
Cumpre aferir se, no caso dos autos, pressupondo que existem três condomínios – o que ainda não foi apurado – correspondentes a uma parte comercial do edifício e a cada um dos dois corpos do mesmo – os três têm personalidade judiciária.
Importa, todavia, para melhor enquadramento jurídico da questão em apreço, tecer umas pequenas notas sobre a estrutura básica do regime da propriedade horizontal.
Nos termos do artigo 1417.º do Código Civil, a propriedade horizontal “pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial, proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário.”
A propriedade horizontal é uma figura típica dos direitos reais em que cada condómino é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício. O conjunto dos dois direitos é incindível, ou seja, nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem é lícito renunciar à parte comum como meio do condómino se desonerar das despesas necessárias à sua conservação ou fruição, como decorre inequivocamente da lei.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “
O que verdadeiramente caracteriza a propriedade horizontal é, pois, a fruição de um edifício por parcelas ou fracções independentes, mediante a utilização de partes ou elementos afectados ao serviço do todo. Trata-se, em suma, da coexistência, num mesmo edifício, de propriedades distintas perfeitamente individualizadas, ao lado da compropriedade de certos elementos, forçadamente comuns”.
Sobre a natureza jurídica da propriedade horizontal, Refere José Oliveira Ascensão tratar-se de “um novo direito real, caracterizado por resultar de um complexo incindível de propriedade e compropriedade das partes comuns”. Outrossim, caracteriza a propriedade horizontal como uma propriedade especial: “Entre a propriedade e a compropriedade, a propriedade é o fundamental, sendo a compropriedade meramente instrumental. Escopo da propriedade horizontal não é criar situação de comunhão: é permitir propriedades separadas, embora em prédios colectivos. Sendo assim, há nuclearmente uma propriedade, mas que é especializada pelo facto de recair sobre parte da coisa e de envolver acessoriamente uma comunhão sobre outras partes do prédio”[4].
Por outro lado, só podem ser objeto de propriedade horizontal as frações autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública (artigo 1415.º do Código Civil).
No título constitutivo deverão estar especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma a que estas fiquem devidamente individualizadas e fixado o valor relativo de cada fração, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio, sob pena de acarretar a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do artigo 1418.º do Código Civil ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção (artigos 1415.º a 1418.º do Código Civil).

O artigo 1421.º do Código Civil, estabelece, por seu turno, e de forma imperativa quais as partes consideradas comuns do edifício e aquelas que o possam vir a ser, ou seja, possam entrar na comunhão, de acordo com o título constitutivo, podendo ainda neste ser afectado o uso exclusivo a um dos condóminos de certas zonas das partes comuns.
Assim, são obrigatoriamente comuns a todos os condóminos: o solo, bem como os alicerces, colunas, pilares, paredes-mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio; o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fracção; as entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos; as instalações gerais de água, electricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes. E presumem-se ainda comuns: os pátios e jardins anexos ao edifício; os ascensores; as dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro; as garagens e outros lugares de estacionamento; em geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos.
Antes da alteração do regime da propriedade horizontal por via do Decreto-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1995, ao direito de propriedade horizontal derivado do título constitutivo relativo à unidade de edifício correspondia unidade de regime.
Todavia, aquele diploma inseriu no CC o artigo 1438.º-A, segundo o qual, o regime da propriedade horizontal pode ser aplicado, com as necessárias adaptações, a conjuntos de edifícios contíguos funcionalmente ligados entre si pela existência de partes comuns afetadas ao uso de todas ou de algumas unidades ou frações que os compõem.
Conforme resulta do preâmbulo do mencionado diploma, o escopo desta alteração visou a integração no regime da propriedade horizontal do conjunto de edifícios em quadro de interdependência das frações ou edifícios e da sua dependência funcional das partes comuns, estas por envolverem as essenciais caraterísticas do condomínio.
Trata-se de situações consubstanciadas em conjuntos imobiliários afetados a determinados fins, cuja realização depende da existência de partes comuns a cada um deles, como é o caso, por exemplo, das garagens ou de outros locais de estacionamento e das piscinas.
Temos, assim, uma dualidade de regimes da propriedade horizontal, um relativo ao conjunto de edifícios com as referidas características, e o outro concernente a edifícios não integrados em conjuntos, ou seja, os ditos fraccionados.

Conforme refere Rui Pinto[5], este normativo é um exemplo da força expansiva do modelo de regulação da propriedade horizontal.
Como referem José António França Pitão e Gustavo França Pitão[6], não tendo sido pacífica a solução dada à questão de saber da legalidade da constituição de mais de um condomínio, com administração própria, sendo que na doutrina há quem admita que para os edifícios divididos em zonas ou torres dispondo cada uma delas de partes comuns do edifício em que se integram, como sejam entradas próprias para cada uma dessa zonas, possa existir possibilidade de formação de condomínio diferentes, sob condição – como aqui sucede – que o título de constituição da propriedade horizontal especifique essas zonas ou torres, as frações autónomas e partes comuns.
Também existem duas correntes jurisprudenciais a este propósito. Uma delas que prevê a possibilidade de organização de vários condomínios para um mesmo prédio, desde que se trate de partes desse prédio que estão devidamente delimitadas e definidas fisicamente, com entradas próprias, com zonas comuns próprias, sejam torres, blocos ou conjuntos de fracções[7]. Outra, faz depender a possibilidade de formação de condomínios diferentes, da previsão expressa das respetivas especificidades no título constitutivo da propriedade horizontal[8].
Na situação que nos ocupa, verificamos que o título de constituição da propriedade horizontal enuncia de forma específica quais as partes do conjunto imobiliário que integram os três corpos que autonomizou: rés-do-chão comercial, corpo do lado poente e corpo do lado nascente.
Não pode, por isso, afirmar-se, como se fez no despacho recorrido que, a terem-se constituído condomínios por cada uma das três partes autonomizadas, se trata apenas de uma questão de gestão, mas não de três condomínios autónomos.
A terem-se assim constituído – como tudo parece indicar e independentemente da questão de saber se as contas bancárias pertencem ao condomínio executado e se o incidente de que se lançou mão é o meio correto para promover o levantamento das penhoras – não pode colocar-se termo ao mesmo incidente com o argumento da ausência de personalidade destes condomínios.
Como se viu, ainda que se trate de um só edifício, mas cuja configuração integre uma estrutura que se possa autonomizar em relação às demais estruturas, é possível constituírem-se condomínios autónomos, tendo cada uma deles personalidade judiciária para intervir nos assuntos que respeitam às partes comuns das frações que os integram.
O recurso tem, assim, de proceder.
Dispositivo
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o despacho recorrido.
Custas pela recorrida.

21.2.2022
Fernanda Almeida
Maria José Simões
Abílio Costa
______________
[1] Manual de Processo Civil, 2ª ed., págs. 110 e 111.
[2] Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2ª ed., 1997, págs. 136 e ss.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado” Vol. III, 2ª ed., págs. 397 e 398.
[4] Direitos Reais, 4.ª ed., pág. 408.
[5] Código Civil Anotado, 2017, Vol. II, Coord. Ana Prata, p. 294.
[6] Condomínio e Propriedade Horizontal, 2.ª E., p. 288.
[7] Ac. RG, de 17.12.2018, Proc. 3428/16.0T8GMR.G1: Não há imposição legal para que a cada prédio urbano constituído em propriedade horizontal corresponde um condomínio; podem ser constituídos condomínios autónomos dentro de cada prédio sempre que estes correspondam a edifícios ou estruturas independentes. Assim, é de reconhecer legitimidade passiva de um condomínio constituído relativo às partes comuns de um bloco de um prédio constituído em propriedade horizontal, quando aquele se molda a um bloco do edifício com estruturas independentes, autónomo, que se administra há mais de vinte anos e quando estão em causa interesses que apenas dizem respeito às partes comuns que fazem parte desse bloco.
[8] Cfr. Ac. RP, de 24.2.2005, CJ, 2005, I, p. 196: Só pode haver um condomínio relativamente a todos os blocos – integrantes de um só prédio – cuja separação não resulta com nitidez do título de constituição da propriedade horizontal.