Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ANA OLÍVIA LOUREIRO | ||
Descritores: | INVENTÁRIO RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS FALTA DE NOTIFICAÇÃO DA RECLAMAÇÃO | ||
Nº do Documento: | RP202404086305/12.0TBMAI-B.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/08/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - Deve extrair-se da falta de resposta/oposição à reclamação à relação de bens efeito cominatório semipleno. II - A nulidade decorrente de falta de notificação da reclamação à relação de bens tem que ser arguida no prazo de dez dias contados desde o conhecimento dessa omissão, perante o tribunal recorrido. (da responsabilidade da relatora) | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo número 6305/12.0TBMAI-B. P1, Juízo de Execução da Maia, Juiz1 Relatora: Ana Olívia Loureiro Primeira adjunta: Eugénia Cunha Segundo adjunto: Manuel Fernandes Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I – Relatório:
II - O recurso: É da decisão de 06-12-2023 que recorre o cabeça de casal, pretendendo a sua revogação. Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões do recurso a que deu entrada em 23-01-2024: “1ª Reduz-se o presente recurso à discussão de duas questões centrais: a) Se a notificação da reclamação contra a relação de bens tem de ser efetuada oficiosamente pela secretaria, independentemente de os interessados terem ou não constituído advogado, não o podendo ser pela mandatária da interessada reclamante à mandatária do cabeça de casal; b) Se a falta de resposta do cabeça de casal à reclamação apresentada contra a relação de bens não tem efeito cominatório (admissão dos factos alegados na reclamação). Reduz-se o presente recurso à discussão de duas questões centrais: a de saber se da prova produzida resulta provada a existência de danos patrimoniais mensais suportados pela Autora e se houve erro na apreciação da prova produzida e na aplicação do direito. 2ª Salvo o devido respeito por mais douto entendimento, o Tribunal a quo não andou bem na sua interpretação quanto ao artigo 1105º do C.P.C., quando considerou notificada a mandatária do cabeça de casal da reclamação à relação de bens com a notificação eletrónica que lhe foi dirigida pela ilustre mandatária da requerente nos termos do artigo 221º do C.P.C. 3ª Na verdade, da leitura e análise do artigo 1105º do C.P.C. depreende-se que os interessados têm de ser notificados da oposição/impugnação/reclamação que tenha sido deduzida, devendo tal notificação ser levada a cabo pela secretaria de forma oficiosa. 4ª Até porque, a resposta à reclamação deve ocorrer sob a cominação, conteúdo e advertências previstas no artigo 1105º, n.º 1 e 2 do C.P.C, efeito que só resulta da dita notificação oficiosa ou em cumprimento de despachos judiciais e não são prerrogativas das partes e, portanto, não consta das notificações realizadas entre mandatários. 5ª Além disso, se o espírito do legislador fosse nesta situação em concreto de aplicar o artigo 221º do C.P.C., jamais o legislador escreveria e, portanto, resultaria da própria letra da lei “são notificados os interessados”, pois bastava-se com a indicação do direito de resposta, à semelhança do que fez o legislador em tantas outras normais processuais. 6ª Acresce ainda que, o artigo 220º, n.º 2 do C.P.C. dispõe sob a epígrafe “Notificações Oficiosas: “cumpre ainda à secretaria notificar oficiosamente as partes quando, por virtude da disposição legal, possam responder a requerimentos, oferecer provas, ou, de um modo geral, exercer algum direito processual que não dependa de prazo a fixar pelo juiz nem prévia citação”, pelo que, a secretaria, em face da reclamação apresentada, tinha e tem de oficiosamente notificar a mandatária do cabeça de casal nos termos e para os efeitos dos artigos 1105º C.P.C., o que não fez, omitindo, assim, um ato previsto na lei. 7ª Acresce ainda que, as notificações entre mandatários estão previstas no processo declarativo comum para os atos que se pratiquem posteriormente à notificação da contestação (Cfr. artigo 221º, nº 1 do C.P.C.), o que não é o caso nos presentes autos. E mesmo que assim se entendesse, o que não se concede, sempre se diga que, a resposta à reclamação de bens equivale a uma contestação. Vejamos: 8ª A reclamação à relação de bens, como incidente que é, corresponderia a uma petição inicial e a resposta a esta reclamação a uma contestação, pelo que o artigo 221º, do CPC, só a partir daqui é que teria aplicação e, portanto, mesmo que a mandatária da requerente tenha notificado a mandatária do cabeça de casal da reclamação à relação de bens, sempre a secretaria teria de proceder à notificação dessa reclamação à mandatária do cabeça de casal, já que notificação realizada nos termos do artigo 221º, do CPC era inócua, o que também não sucedeu in casu. 9ª Ora, a omissão da secretaria de um ato que está previsto na lei – artigo 1105º C.P.C.- violou o princípio da certeza e segurança jurídica e ainda o princípio de igualdade de armas previsto no artigo 4º do C.P.C., sendo que é jurisprudência unânime dos tribunais de primeira instância que a notificação aqui em causa no presente recurso seja levada a cabo pela secretaria. 10ª O douto despacho viola, ao absorver a omissão de um ato legalmente devido, o disposto nos artigos 1105º, nº 1 e 220º, n.º 2 do C.P.C., e constitui excesso de pronúncia nos termos do artigo 615º, nº 1, al. d), in fine, do C.P.C. que desde já se invoca. 11ª Na verdade, quer se entenda como uma omissão, quer se entenda que lhe incumbe receber primeiramente a reclamação contra a relação de bens, ao decidir considerar-se notificada a mandatária do cabeça de casal nos termos do artigo 221º e 255º, do CPC, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, aplicando erradamente o direito, designadamente o trâmite legal. 12ª Assim, e face ao supra exposto, deve ser revogado e, portanto, anular-se o douto despacho ora posto em crise, e ser ordenada a notificação da mandatária do cabeça de casal nos termos do artigo 1105º do C.P.C., ato este a realizar pela secretaria. 13ª O tribunal a quo considerou ainda confessados/admitidos os factos constantes da reclamação à relação de bens, por apenas faltar resposta à reclamação por parte do cabeça de casal. 14ª Ora, como já supra se deixou exposto, a resposta à reclamação deve ocorrer sob cominação, conteúdo e advertências previstas no artigo 1105º, nº 1 e n.º 2, do C.P.C.: efeito que só resulta da notificação oficiosa (entenda-se da secretaria) ou em cumprimento de despachos judiciais e não são prerrogativas das partes, o que não sucedeu in casu. 15ª Pelo que não tendo a notificação cumprido as formalidades legais, jamais a não resposta à reclamação da relação de bens pode ter o efeito cominatório da confissão. 16ª Acresce ainda que, nos termos do artigo 1105º, n.º 3 do C.P.C. “a questão só é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados e determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092º e 1093º.” 17ª Assim o Tribunal perante a relação de bens apresentada e a reclamação à mesma tem de realizar as diligências probatórias conforme prevê o artigo 1105º nº 3 do C.P.C., o que também não sucedeu in casu. 18ª Ou seja, a reclamação contra a relação de bens tem natureza impugnatória, pelo que nunca poderiam ser considerados assentes aquela matéria sem a necessária produção de prova. 19ª Ao não assim considerar incorreu-se no douto despacho em erro de julgamento que desde já se reclama. 20ª Pelo que deve ser revogado o douto despacho e substituindo-o por um que ordene a produção de prova que foi requerida na reclamação à relação de bens e não dê como provados/admitidos/assente a matéria/factos constantes da referida reclamação”. * Não foram apresentadas contra-alegações.
III – Questões a resolver:
IV – Fundamentação: Os factos relevantes para a decisão são os que se encontram sumariados no relatório e resultam do histórico do processo. Impõe-se uma breve análise da tramitação do processo especial de inventário no que tange ao incidente de reclamação à relação de bens que nele pode ter lugar. Teremos, então, que atentar nas normas que regulam o processo especial de inventário e nas normas do processo comum que supletivamente se lhe aplicam. São as seguintes a normas legais, todas do Código de Processo Civil, que importa convocar com vista à apreciação da primeira questão enunciada: Artigo 549º: “Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum.”. Artigo 574º: “1- Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor. 2 - Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior”. Artigo 587º, número 1: “A falta de apresentação da réplica ou a falta de impugnação dos novos factos alegados pelo réu tem o efeito previsto no artigo 574”. Artigo 1084º: “1 - Ao inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária aplica-se o disposto no capítulo II. 2 - Ao inventário destinado à realização dos demais fins previstos no artigo 1082.º aplica-se o disposto no capítulo III, e, em tudo o que não estiver especificamente regulado, o regime definido para o inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária”. Artigo 1090º: “É obrigatória a constituição de advogado: a) Para suscitar ou discutir qualquer questão de direito; b) Para interpor recurso.”; Artigo 1091º, número 1: “Aos incidentes do processo aplica-se, salvo indicação em contrário, o disposto nos artigos 292.º a 295.º”. Artigo 1099º: “Quando ao requerente não competir o exercício de funções de cabeça de casal, deve o mesmo, no requerimento inicial: a) Identificar o autor da herança, o lugar da sua última residência habitual e a data e o lugar em que haja falecido; b) Indicar quem deve exercer o cargo de cabeça de casal; c) Na medida do seu conhecimento, cumprir o disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1097.º; Artigo 1102º, número 1: “1 - Se o requerimento inicial não tiver sido entregue pelo cabeça de casal, este é advertido, no ato da sua citação, de que, no prazo de 30 dias, deve: a) Confirmar, corrigir ou completar, de acordo com o estabelecido no artigo 1097.º, o que consta do requerimento inicial e juntar os documentos que se mostrem necessários; b) Apresentar ou completar a relação de bens nos termos da alínea c) do n.º 2 artigo 1097.º e do artigo 1098.º; c) Apresentar o compromisso de honra do fiel exercício das suas funções nos termos da alínea e) do n.º 2 e do n.º 3 do artigo 1097º”. Artigo 1104º, números 1 e 2: “1. Os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem, no prazo de 30 dias a contar da sua citação: a) Deduzir oposição ao inventário; b) Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros; c) Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações; d) Apresentar reclamação à relação de bens; e) Impugnar os créditos e as dívidas da herança. 2 - As faculdades previstas no número anterior também podem ser exercidas, com as necessárias adaptações, pelo requerente do inventário ou pelo cabeça de casal, contando-se o prazo, quanto ao requerente, da notificação referida no n.º 3 do artigo 1100.º e, quanto ao cabeça de casal, da citação efetuada nos termos da alínea b) do n.º 2 do mesmo artigo.” Artigo 1105º, números 1 a 3:”1- Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada. 2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas. 3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º” Em face deste elenco legal há que recordar que no caso dos autos se está perante um inventário para separação de bens motivado por penhora de bem comum em ação executiva, como está previsto no artigo 1135º do Código de Processo Civil, preceito que remete para o regime do processo especial de inventário consequente a divórcio sendo que este, por via do artigo 1084º, número 2 acima transcrito, é regulado pelas normas que regulam o inventário destinado a fazer cessar a comunhão hereditária. Por sua vez, o artigo 549º também acima referido, manda aplicar as regras de processo comum a todos os processos especiais no que neles não esteja prevenido. Convocadas as normas legais cuja interpretação deve ser feita com vista a decidir a questão enunciada, há, ainda, que recordar que no anterior regime do processo especial de inventário a regra quanto à tramitação da reclamação à relação de bens era diversa da que foi introduzida pela Lei 117/2019 de 13 de setembro. Previa o artigo 35º da Lei 23/2013 de 5 de março que: “1 - Quando seja deduzida reclamação contra a relação de bens, é o cabeça de casal notificado para, no prazo de 10 dias, relacionar os bens em falta ou dizer o que lhe oferecer sobre a matéria da reclamação. 2 - Se confessar a existência dos bens cuja falta foi invocada, o cabeça de casal procede imediatamente, ou no prazo que lhe for concedido, ao aditamento da relação de bens inicialmente apresentada, notificando-se os restantes interessados da modificação efetuada. 3 - Não se verificando a situação prevista no número anterior, são notificados os restantes interessados com legitimidade para se pronunciarem, no prazo de 15 dias, aplicando-se o disposto no n.º 2 do artigo 31.º e decidindo o notário da existência de bens e da pertinência da sua relacionação, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.” O regime legal instituído pela Lei 117/2019 de 13 de setembro passou a consagrar no processo especial de insolvência uma fase de saneamento, em que o juiz deve resolver todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar (cfr. artigo 111ºº, número 1 a) do Código de Processo Civil). Nem por isso, todavia, se pode afirmar que a reclamação à relação de bens tenha deixado de ser um incidente do processo especial de inventário, muito embora a respetiva decisão seja proferida em sede de saneamento do processo, em conjunto com as demais elencadas no artigo 1104º e todas as que são “suscetíveis de influir na partilha”, como consta da redação do artigo 1110º, número 1 do Código de Processo Civil.[1] Sendo importante elemento da hermenêutica legal a reconstituição do pensamento do legislador, será útil, no cumprimento desse desiderato previsto no artigo 9º, número 1 do Código Civil, ter presente o que o referido legislador deixou expresso na exposição de motivos da proposta de lei 202/XIII que veio a dar lugar à atual redação legal do processo especial de inventário. Ora, ali se pode ler, no que aqui releva, que: “A transferência da competência quanto ao tratamento dos processos de inventário para os cartórios notariais, instrumentalizada através da Lei n.º 23/2013, de 5 de março, que aprovou o regime jurídico do processo de inventário, teve por finalidades agilizar aquele tratamento e descongestionar o sistema judicial. A implementação desta solução, além de nunca ter obtido o consenso da comunidade jurídica e dos operadores judiciários e não judiciários, enfrentou desafios inultrapassáveis (…) pela constatação de tempos desrazoáveis de resolução, com prejuízos, tanto para a situação jurídica dos cidadãos, como para o interesse coletivo (…) Para a superação destes constrangimentos, considera-se adequado, por assegurar a concordância prática de todos os interesses em presença, o estabelecimento de um princípio de competência concorrente, permitindo ao utente do serviço de justiça, em regra, a opção pelo recurso ao tribunal ou ao cartório notarial, conforme o juízo que faça, no caso concreto, sobre a qualidade, a eficiência e celeridade daquele serviço prestado pelo juiz ou pelo notário. (…) O processo de inventário judicial é recodificado no Código de Processo Civil, com o mínimo de perturbação para a sua sistemática. A tramitação do processo – que é largamente simplificada, à luz dos princípios orientadores da celeridade do procedimento e da equidade da partilha – obedece ao princípio da unidade, sendo essencialmente homótropa, quer o inventário corra perante o juiz ou perante o notário (…). (sublinhado nosso). Um dos responsáveis pelo texto da nova Lei, Pinheiro Torres[2] salienta que mesmo o anterior regime legal do processo especial de insolvência (o previsto no Código de Processo Civil de 1961), tinha uma “tramitação excessivamente “sinuosa” (ou pouco linear)”. Segundo o mesmo Autor, a explicação para o fenómeno, que comportava inúmeras oportunidades de entorpecimento do seu andamento, decorria “(…) da inexistência generalizada de preclusões, que tornavam o processo, a todo o tempo, permeável a incidentes e ao surgimento de “velhas” questões, como se de novas questões se tratasse. Impôs-se, assim, ponderar a necessidade de alterar o paradigma do processo, tornando-o uma verdadeira acção, valorizando os articulados, cometendo a sua direcção mais efectiva ao Juiz, reforçando a responsabilidade das partes na prática dos actos processuais”[3]. Esta intenção de fazer cessar a “inexistência geral de preclusões”, assim explicada por um dos autores do novo texto, encontra-se claramente expressa nas normas legais do processo especial de inventário acima transcritas e na sua relação com as normas de processo comum, subsidiariamente aplicáveis. São vários os autores que defendem a existência de um efeito cominatório a retirar da falta de resposta à reclamação à relação de bens, bem como, na mesma linha, os que afirmam a preclusão do direito dos interessados de reclamar da mesma, no prazo legalmente previsto. Neste sentido podem citar-se: - Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[4] que afirmam que “A não ser que a lei disponha de modo diverso, por aplicação supletiva das regras gerais, a falta de oposição determina a aplicação do efeito cominatório semipleno, nos termos da conjugação dos artigos 549º, número 1 e 574º.”; - Lopes do Rego[5] que defende que: “(…) do regime estabelecido no art. 1104.º CPC decorre obviamente um princípio de concentração no momento da oposição de todas as impugnações, reclamações e meios de defesa que os citados entendam dever deduzir perante a abertura da sucessão e os elementos adquiridos na fase inicial do processo, em consequência do conteúdo da petição de inventário, eventualmente complementada pelas declarações de cabeça de casal; e isto quer tais impugnações respeitem à tradicional oposição ao inventário e à impugnação da legitimidade dos citados ou da competência do cabeça de casal, quer quanto às reclamações contra a relação de bens e à impugnação dos créditos e dívidas da herança (instituindo-se aqui explicitamente um efeito cominatório, conduzindo a revelia ao reconhecimento das dívidas não impugnadas, salvo se se verificarem as circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 574.º CPC) . Ou seja, adota-se, na fase de oposição, um princípio de concentração na invocação de todos os meios de defesa idêntico ao que vigora no art. 573.º do CPC: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, ativo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes(…)”; - Miguel Teixeira de Sousa, Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro torres[6] afirmam, ainda, que: “importa salientar que, no novo regime do inventário, foi introduzido um ónus de contestação do requerimento inicial (arts. 1104.º e 1106.º) e um ónus de resposta à contestação (art. 1105.º, n.º 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta ao requerimento inicial ou à oposição, a aceitação dos termos desse requerimento inicial ou dessa oposição. Passa, assim, a vigorar um verdadeiro sistema de preclusões, até agora inexistente, no processo de inventário (…) em regra – nada se prevendo sobre esta matéria no âmbito do processo de inventário, com exceção do que se estabelece para o reconhecimento do passivo (art. 1106.º, n.º 1) – vigora o efeito cominatório semipleno, considerando-se, no caso de revelia, confessados os factos alegados no requerimento de inventário (art. 567.º, n.º 1) e, no caso de falta de impugnação, admitidos por acordo os factos que não hajam sido objeto dessa impugnação (art. 574.º, n.º 1)”. Também a jurisprudência tem vindo a afirmar as consequências, respetivamente preclusiva e cominatória semiplena, da falta de oposição à relação de bens e da falta de resposta a tal reclamação, respetivamente. Neste sentido encontram-se nomeadamente os seguintes Acórdãos: - do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2023[7]; - do Tribunal da Relação de Guimarães de 23-03-2023[8] em cujo sumário se pode ler: “Relativamente à relação de bens, o efeito cominatório da falta de reclamação contra a mesma ou da apresentação de uma reclamação restrita (o interessado só impugna algumas verbas daquela relação ou alega a existência de bens ou dívidas não relacionados) é o que decorre do regime contido, para o processo declarativo comum, nos artigos 566º e 567º, nº 1, do CPC, para a situação de revelia, e no artigo 574º, nº 1, para o incumprimento do ónus de impugnação, sem prejuízo do disposto no nº 1 do artigo 1106º quanto ao reconhecimento do passivo. É um efeito cominatório semipleno: no caso de revelia, consideram-se confessados os factos alegados na relação de bens (art. 567º, nº 1) e, no caso de falta de impugnação, admitidos por acordo os factos que não hajam sido objeto dessa impugnação (art. 574º, nº 1), com as exceções à produção de tal efeito estabelecidas nos artigos 568º e 574º, nºs 2 a 4. 4 – A falta de resposta à reclamação contra a relação de bens produz o efeito estabelecido no artigo 574º, por aplicação do disposto no artigo 587º, nº 1, ambos do CPC. Há um ónus de resposta à reclamação (art. 1105º, nº 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta, a aceitação dos termos dessa reclamação, sempre com a ressalva relativa ao reconhecimento do passivo (art. 1106º, nº 1, do CPC) e das exceções previstas nos artigos 568º e 574º, nºs 2 a 4.”; - da Relação de Lisboa de 09-02-2023[9] em que se conclui: “Não se descortina qualquer razão plausível ou ponderosa que justifique, para o processo de inventário, o afastamento do efeito cominatório estabelecido no Código de Processo Civil para os processos e incidentes em geral, pelo que, por aplicação das regras supletivas, a falta de impugnação determina a aplicação do efeito cominatório semipleno, nos termos conjugados dos artigos 549º nº 1 e 574º do Código de Processo Civil.”; - da Relação de Évora de 13-10-2022[10] em cujo sumário se pode ler: “Estando em causa a falta de resposta pelo cabeça de casal à reclamação quanto à relação de bens, o efeito cominatório semipleno estabelecido nos artigos 574.º e 587.º, n.º 1, aplicáveis por força do artigo 549.º, n.º 1, todos do CPC, circunscreve-se à factualidade nova alegada na reclamação deduzida, desde que não se mostre antecipadamente impugnada em função da posição assumida pelo cabeça de casal no requerimento inicial ou na relação de bens apresentada”; - da Relação de Guimarães de 16-11-2023[11] em que se sumaria: “Não tendo sido apresentada resposta pelo cabeça de casal à discriminação dos bens efetuada pela Interessada que reclamou contra a relação de bens, quanto aos bens que integram a verba 6 - genericamente relacionada pelo cabeça de casal como «Recheio do imóvel sito na Rua (…)» -, têm-se por admitidos os factos da reclamação nos termos gerais dos artigos 549.º e 574.º do CPC, com a consequente obrigação de relacionar os bens indicados pela reclamante”; Concordamos com a citada doutrina e jurisprudência, no seguimento da análise que cima se fez das atuais normas reguladoras do processo especial de inventário, da sua comparação com os regimes legais anteriores e do propósito anunciado pelo legislador com reforma do seu regime legal, em 2019. Dúvidas não há que - não estando afastado por qualquer forma tal efeito nem havendo qualquer razão para o afastar -, se deve aplicar ao inventário o princípio geral que resulta do processo comum. Ora, neste está previsto o efeito cominatório (semipleno) da falta de impugnação, na contestação, dos factos alegados na petição inicial (artigo 574º, número 2 do Código de Processo Civil), igual efeito tendo a falta de impugnação pelo autor dos novos factos alegados pelo réu na contestação. Assim, é de concluir que deve extrair-se da falta de resposta/oposição à reclamação à relação de bens efeito cominatório que, contudo, se reflete apenas ao nível dos factos que se devem considerar admitidos por falta de impugnação não sendo automática a procedência da reclamação por via da referida falta de oposição. Desde logo porque, como previsto no número 1 do artigo 574º do Código de Processo Civil, a falta de impugnação apenas acarreta que se considerem “admitidos por acordo os factos que não forem impugnados” se não “estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito”. Trata-se, assim, de um efeito cominatório semipleno de que decorrerá a prova de factos por decorrência da confissão ficta prevista no referido preceito. * Afirmado tal efeito cominatório da falta de resposta à reclamação à relação de bens caberia apreciar se tem que se reconhecer razão ao Recorrente quando defende que tal reclamação lhe deveria ter sido notificada pela secção para o efeito de lhe responder em trinta dias como previsto no artigo 1105º, número 1 do Código de Processo Civil. Recorde-se que o Apelante foi notificado da reclamação por via da notificação eletrónica entre mandatários, não estando, assim em causa a absoluta falta de conhecimento pelo mesmo da existência da reclamação à relação de bens. O que o mesmo reclama, em sede de recurso, é que tal notificação tinha que ter sido feita pela secretaria, do que decorre, segundo ele, a nulidade da decisão na parte em que o considerou (implicitamente) devidamente notificado, pedindo que se ordene a sua notificação, pela secretaria, da reclamação à relação de bens. Argui, pois, invalidade processual decorrente da sua notificação por considerar que a que foi feita, entre mandatários, não é aqui aplicável. As nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, na omissão de um ato prescrito ou na realização de um ato imposto ou permitido por lei sem o formalismo requerido. Face ao previsto no artigo 195º do Código de Processo Civil a omissão da notificação da reclamação à relação de bens ao cabeça de casal corresponderia a ato processual imposto pela lei adjetiva, que seria suscetível de influir no exame e na decisão da causa (em consequência do efeito cominatório semipleno acima reconhecido), pelo que a sua omissão determinaria a nulidade do processado. Não se tratando, todavia, de nulidade de conhecimento oficioso, teria de ser arguida pela parte, no prazo de 10 dias desde o seu conhecimento, como previsto no artigo 199º do Código de Processo Civil. Apenas se o processo fosse expedido em recurso antes de findar o prazo referido podia a arguição da nulidade ser feita perante o tribunal superior, como previsto no artigo 199º, número 4 do Código de Processo Civil. Ora, a decisão recorrida foi notificada por ofício de 07-12-2023 e o recurso foi interposto em 23-01-2023, tendo, entretanto, a 15-01-2024, sido proferido despacho a facultar às partes prazo para proporem forma a partilha. Presume-se que o Apelante teve conhecimento da falta de notificação da reclamação pela secretaria, pelo menos, em 11-12-2023, nos termos do previsto no artigo 248º do Código de Processo Civil, pelo que o prazo de 10 dias para arguição do referido vício terminou a 21 de dezembro de 2023. Depois do fim do prazo de arguição da referida nulidade foi ainda o Apelante notificado de novo despacho judicial, de 15-01-2024. Em nenhum momento arguiu perante o tribunal recorrido o ora apontado vício decorrente da omissão da sua notificação pela secretaria. Apenas veio arguir a indevida notificação da reclamação à relação de bens que lhe foi dirigida pela contraparte em sede de recurso. Se dúvidas houvesse sobre a natureza da invalidade que arguiu – do processado e não da decisão-, as mesmas ficariam dissipadas pela consequência que haveria que retirar no caso de afirmação da nulidade arguida: seria, nesse caso, anulado o processado devendo repetir-se a notificação do cabeça de casal pela secretaria. A este propósito veja-se o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-02-2024 em cujo sumário se afirma: “I- A decisão proferida sem observância do princípio do contraditório é nula por aplicação do n.º 1 do artigo 195.º do CPC.II - O meio processual próprio para arguir a nulidade é a reclamação para o tribunal onde ela foi cometida, salvo na hipótese prevista no n.º 3 do artigo 199.º do Código de Processo Civil”.[12]. Concorda-se com a fundamentação (e sentido da decisão) de tal aresto quando ali se afirma: “(…) o n.º 2 do artigo 630.º do CPC, na parte em que dispõe que não é admissível recurso das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, aponta no sentido de que o legislador configura a omissão de formalidades que contendam com o princípio do contraditório como nulidade prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC. Esta nulidade está sujeita a reclamação dos interessados perante o tribunal onde ela foi cometida (2.ª parte do artigo 196.º e n.º 1 do 197.º, ambos do CPC), salvo na hipótese prevista no n.º 3 do artigo 199.º do CPC, que não se coloca no caso”. Tal decisão do Supremo Tribunal de Justiça e respetiva fundamentação têm aqui inteiro cabimento. Está, pois, precludido o conhecimento da arguida invalidade da notificação da reclamação da relação de bens ao cabeça de casal, por decurso do prazo da respetiva arguição, pelo que não se conhecerá da mesma.
V – Decisão: Nestes termos, improcede o recurso, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.
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