Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MENDES COELHO | ||
| Descritores: | ABUSO DO DIREITO "VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM" "SUPRESSIO" | ||
| Nº do Documento: | RP20250127438/22.2T8PVZ.P1 | ||
| Data do Acordão: | 01/27/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMAÇÃO | ||
| Indicações Eventuais: | 5. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Tendo a autora e réu vivido em união de facto entre 1992 e 2016, intentando aquela contra o réu ação para restituição de dinheiro por si emprestado a este cerca de 6 anos depois de ter findado aquela união de facto e não se provando qualquer conduta daquela que tenha tido lugar depois da ocorrência do empréstimo no sentido de não exigir àquele o respetivo dinheiro ou de considerar não ter direito a ele, nomeadamente entre o fim da sua vivência conjunta e a propositura da ação, a restituição do dinheiro pedida ao réu por via da ação não está em contradição com conduta antes por si assumida ou proclamada, não ocorrendo por isso abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium. II – A simples inação da autora na propositura da ação por um longo período mas ainda longe do completamento do prazo prescricional ordinário de vinte anos é manifestamente insuficiente para concluir pelo preenchimento da modalidade de abuso do direito constituída pela “supressio”, pois dela, só por si, não ressalta uma situação de confiança derivada do não exercício do direito de restituição da quantia mutuada por parte da autora, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança àquela. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº438/22.2T8PVZ.P1 (Comarca do Porto – Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 3) Relator: António Mendes Coelho 1º Adjunto: Ana Paula Amorim 2º Adjunto: Carlos Gil Acordam no Tribunal da Relação do Porto: I – Relatório AA intentou ação declarativa comum contra BB pedindo o seguinte: “A. Ser reconhecido a existência do contrato de mútuo da Autora ao Réu sem forma escrita e, em consequência, ser declarada a Autora como mutante e o Réu como mutuário no supra identificado contrato de mútuo, no valor de Eur. 76.799,60 (setenta e seis mil, setecentos e noventa e nove euros e sessenta cêntimos), nos termos do artigo 1142.º do Código Civil; B. Ser declarado nulo, por inobservância da forma legal, o contrato de mútuo celebrado entre a Autora e o Réu, melhor identificado supra, nos termos dos artigos 1143.º, 220.º e 286.º do Código Civil; C. Ser o Réu condenado a restituir à Autora a quantia total de Eur. 76.799,60 (setenta e seis mil, setecentos e noventa e nove euros e sessenta cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, nos termos do artigo 289.º, n.º 1 do Código Civil; Sem prescindir e subsidiariamente, D. Ser o Réu condenado a pagar à Autora a quantia total de Eur. 767.799,60 (setenta e seis mil, setecentos e noventa e nove euros e sessenta cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, a título de enriquecimento sem causa, na força do peticionado supra.” Alegou para tal, em síntese, ter, sob a forma verbal, emprestado aquela quantia ao réu – que obteve por via da venda de um imóvel seu – com vista a ser utilizada por este, nomeadamente, na liquidação de obrigações próprias. O réu apresentou contestação. Nesta invocou a exceção da prescrição do crédito invocado pela autora, impugnou os factos por esta alegados no sentido da sua pretensão e deduziu reconvenção na qual pediu a condenação da autora a pagar-lhe as quantias de €98.518,26 [proveniente de créditos por si invocados sobre a autora, sendo um decorrente da mobília posta num apartamento (artigos 108º a 119º), outro decorrente de despesas comuns que foram pagas por si (artigos 120º e 121º), outro relacionado com a venda de um cavalo (artigos 122º e 123º) e ainda outro relacionado com a liquidação de produtos financeiros e com a utilização do produto exclusivamente pela autora (artigos 124º a 137º)] e de €375.000,00 [relacionado com uma alegada compra de uma quinta em ... e de um alegado mútuo nesse âmbito celebrado com a autora (artigos 72º a 100º)], ambas acrescidas de juros a contar da data de notificação da contestação-reconvenção. A autora apresentou réplica, na qual pugnou pela não admissibilidade de reconvenção e, sem prescindir, pela sua improcedência. Pediu ainda a condenação do réu por litigância de má-fé nos termos que o tribunal entender fixar, “mas nunca em montante inferior ao suficiente para pagamento de todas as despesas, custas e honorários do mandatário da Autora/Reconvinda”. Por despachos proferidos a 25/11/2022, foi decidido julgar improcedente a exceção de prescrição invocada pelo réu (no respetivo despacho disse-se: “Não existe qualquer prescrição do direito da autora uma vez que o disposto no artigo 482º do Código Civil não tem aplicabilidade no caso concreto. A autora estriba o seu direito na responsabilidade contratual cujo prazo de prescrição é de 20 anos – artigo 309º do Código Civil. Face ao exposto, julgo improcedente a excepção de prescrição invocada pelo réu.”) e foi decidido não admitir o pedido reconvencional na sua totalidade. Transitados tais despachos, foi depois proferido despacho a dispensar a audiência prévia, despacho saneador e despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos: “Pelo exposto decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência: A) Declarar nulo o contrato de mútuo celebrado oralmente entre autora e ré, nos termos descritos na alínea f) dos factos provados; B) Condenar o réu a pagar à autora sessenta e sete mil e quinhentos euros (€67.500,00), acrescidos de juros, contados desde a citação até integral pagamento, à taxa legal para juros civis; C) Julgar a presente acção improcedente no restante e, em consequência, absolver o réu do pedido nessa parte; D) Julgar improcedente a pretendida condenação do réu como litigante de má-fé em multa e indemnização a favor da autora.” De tal sentença veio o réu interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões: (…) A autora apresentou contra-alegações, defendendo que deve ser julgado totalmente improcedente o recurso e confirmada a sentença recorrida. Nelas defende também que as conclusões do recurso são uma reprodução praticamente integral da motivação das alegações e, nesse seguimento, que o recurso deve ser rejeitado ao abrigo do disposto no art. 641º nº2 b) do CPC por não conter conclusões na conceção exigida pelo nº1 do art. 639º do mesmo diploma. Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir. Considerando a rejeição do recurso invocada pela recorrida (art. 638º nº6 do CPC) e a delimitação do objeto do recurso pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes as questões a tratar: a) – da rejeição do recurso por falta de conclusões; b) – da alegada nulidade da sentença por violação do princípio do dispositivo; c) – da impugnação da matéria de facto da decisão recorrida; d) – da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso, ou se, independentemente da alteração da matéria de facto, a decisão recorrida deve ser revogada, sendo nesta sede de apurar do crédito invocado pela autora e se ocorre abuso do direito da sua parte. ** II – Fundamentação Vamos à questão enunciada sob a alínea a). A recorrida defende que o recurso interposto pelo réu deve ser rejeitado, por, no seu entender, não conter conclusões na conceção exigida pelo nº1 do art. 639º do CPC, já que as conclusões do mesmo são uma reprodução praticamente integral do texto da motivação que as precede. Analisemos. Como se diz no acórdão do STJ de 16/12/2020 (proc. nº2817/18.0T8PNF.P1.S1, relator Tomé Gomes, disponível em www.dgsi.pt), “a falta de conclusões a que se refere a alínea b), parte final, do nº2 do artigo 641º do CPC, como fundamento de rejeição do recurso, deve ser interpretada num sentido essencialmente formal e objetivo, independentemente do conteúdo das conclusões formuladas, sob pena de se abrir caminho a interpretações de pendor subjetivo”, devendo ocorrer “uma aferição casuística em ordem a ponderar, à luz do princípio da proporcionalidade, a repercussão que uma reprodução mais ou menos integral nas conclusões do corpo das alegações possa acarretar, em termos da inteligibilidade das questões suscitadas, em sede do exercício do contraditório e da delimitação do objeto do recurso por parte do tribunal”. No caso vertente, não obstante as conclusões repetirem, quase de forma integral, texto utilizado no corpo das alegações, as mesmas cumprem perfeitamente a sua função de delimitação do objeto do recurso (como previsto nos arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), já que, independentemente de qualquer juízo de procedência ou improcedência sobre o seu conteúdo, enunciam de forma clara as questões suscitadas pelo recorrente (a nulidade imputada à sentença recorrida, as alterações à matéria de facto por si pretendidas e a sua discordância com o decidido em termos de mérito da ação) e, como se vê das contra-alegações da recorrida, foram perfeitamente percecionadas por esta, que exerceu o seu contraditório pronunciando-se detalhadamente sobre cada uma delas. Como tal, improcede esta questão recursória. Passemos para a questão enunciada sob a alínea b). O recorrente imputa à sentença recorrida nulidade, que ocorre, segundo argumenta, porque “Em conclusão, não existiam factos essenciais alegados na P.I. que permitissem a conclusão dos factos considerados provados sob as alíneas f) e g), o que implica que a Sentença a quo é NULA por ter violado o princípio do Dispositivo, o que deverá ser declarado” (nº27 da motivação e conclusão VIII). Não se percebe qual a nulidade concreta imputada, pois não se identifica qualquer das previstas nas várias alíneas do nº1 do art. 615º do CPC, sua sede normativa, nem se vislumbra que qualquer destas exista. De qualquer modo, os factos referidos sob as alíneas f) e g) dos factos provados da sentença recorrida [cujo conteúdo, considerando o despacho de retificação das alíneas d) e f) proferido a 16/2/2024, é: “f) Autora e réu acordaram verbalmente que a autora disponibilizava ao réu o crédito de saldo bancário formado pelos depósitos descritos em c) e e) para utilização no pagamento de dívidas por si contraídas, devendo o réu restituir tal valor em momento posterior; (art. 12.º da petição inicial)”; “g) Em execução do assim acordado, o réu utilizou um valor total de €67.500,00; (arts. 13.º e 14.º da petição inicial)], ainda que com redação dada pelo tribunal, decorrem e estão conformes ao alegado na petição inicial sob os artigos 11 a 14 e primeira parte do artigo 15 (alegação do empréstimo de quantias e sua disponibilização ao réu), sob a segunda parte do artigo 15 até ao artigo 23 (utilização de tais quantias pelo réu) e sob o artigo 24 (acordo de devolução da quantia mutuada). Como tal, improcede esta questão recursória. Passemos para a questão enunciada sob a alínea c). O recorrente pretende a alteração do julgamento da matéria de facto efetuado pelo tribunal recorrido nos seguintes termos: - defende que os dois itens dos factos não provados [cujo conteúdo é: “Que o réu tivesse pago o mútuo para aquisição pela autora da fracção autónoma descrita em a) (arts. 48.º a 50.º da contestação)”; “Que autora e réu acordassem entre si que, não obstante a autora fosse titular da inscrição de aquisição de propriedade junto da Conservatória do Registo Predial da fracção autónoma descrita em a), tal fracção pertencia a ambos em compropriedade (arts. 54.º e 71.º da contestação)”] devem ser dados como provados (nºs 51 e 63 da motivação e conclusão XXI do recurso); - defende que devem ser aditados à factualidade provada a matéria dos artigos 52 e 53 da contestação [cujo conteúdo é: “52) e cuja conta bancária afeta ao pagamento das prestações desse crédito habitação da Autora era justamente a conta conjunta dela com o Réu, sedeada no Banco 1... com o n.º ...06”; “53) conta conjunta a partir da qual, portanto, as prestações desse crédito hipotecário foram pagas”] (nº63 da motivação e conclusão XXI do recurso); - defende que os factos provados sob as alíneas f) e g) – com o conteúdo já referido aquando do tratamento da questão anterior – devem ser dados como não provados. Cumpre notar que, nos termos do art. 607º nº5 do CPC, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (essa livre apreciação só não abrange as situações referidas na segunda parte de tal preceito), não se podendo esquecer que o tribunal, nos termos do art. 413º do CPC, “deve tomar em consideração todas as provas produzidas”. Ou seja, a prova deve ser apreciada globalmente, sendo de evidenciar em sede de recurso o disposto no art. 662º nºs 1 e 2, alíneas a) e b), do CPC, de onde se conclui que a Relação “tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (como refere António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, 2018, pág. 287). De referir também que além da sua autonomia decisória relativamente à apreciação da matéria de facto nos termos que supra se referiu, a Relação não está limitada à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, devendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (conforme refere aquele autor naquela mesma obra, a págs. 293). Além disso, cumpre ainda dar conta de que se a factualidade objeto de impugnação for irrelevante para a apreciação do mérito da causa, e a fim de não se praticar atos inúteis no processo (o que sob o art. 130º do CPC até se proíbe), não há que conhecer da impugnação deduzida sobre a mesma [neste sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, Almedina, 2008, págs. 285 e 286; no mesmo sentido, vide, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 5/11/2018 (proc. nº 3737/13.0TBSTS.P1), disponível em www.dgsi.pt, o Acórdão do STJ de 23/1/2020 (proc. 4172/16.4TFNC.L1.S1), in CJ, Acórdãos do STJ, ano XXVII, tomo I/2020, págs. 13/16, e ainda o Acórdão do STJ de 22.06.2022 (proc. n.º 2239/20.3T8LRA.C1.S1), também disponível em www.dgsi.pt]. Tendo presente o que se veio de referir, analisemos as pretensões probatórias do recorrente. Comecemos por cada um dos itens dos factos não provados. O primeiro item – “Que o réu tivesse pago o mútuo para aquisição pela autora da fracção autónoma descrita em a)” –, só lograria algum possível relevo se da prova de tal facto decorresse para o réu a partilha do direito de propriedade sobre o imóvel ali referido com a autora, pois então o dinheiro obtido com a sua venda e com o qual a autora alegou ter efetuado o empréstimo ao réu seria também, pelo menos em parte, pertença deste, ou se tivesse sido formulado nos autos pelo réu o reconhecimento de um qualquer seu concreto crédito sobre a autora proveniente daquele pagamento. Como se sabe, o direito de propriedade sobre o imóvel, para existir, tem que ter na sua base uma das formas da sua aquisição, nomeadamente o contrato ou uma das outras formas de aquisição previstas, a par daquele, no art. 1316º do C. Civil, sendo que dos autos não consta qualquer contrato de aquisição de tal imóvel em que figure o réu como adquirente (apenas temos, integrado no doc. nº5 junto aos autos pela autora a 11/1/2023, a escritura pública do contrato de compra e venda mediante o qual a autora, e apenas ela, adquiriu a propriedade de tal imóvel) nem este alega ou pede o reconhecimento de qualquer outra das formas de aquisição do direito de propriedade previstas na lei. Ora, do pagamento referido no item em análise, só por si, não decorreria o direito de propriedade a favor do réu, pois tal pagamento não se reconduz a nenhuma daquelas formas de aquisição deste direito. Por outro lado, não está em discussão na ação o reconhecimento de qualquer concreto crédito do réu sobre a autora quanto a eventual montante que aquele possa ter despendido com o pagamento do mútuo ali referido. Assim, é de concluir que o item em causa é irrelevante ou inútil para a apreciação do mérito da causa. Como tal, não se conhece da impugnação da matéria de facto quanto a tal ponto. O segundo item – “Que autora e réu acordassem entre si que, não obstante a autora fosse titular da inscrição de aquisição de propriedade junto da Conservatória do Registo Predial da fracção autónoma descrita em a), tal fracção pertencia a ambos em compropriedade” – só lograria algum relevo se a compropriedade sobre o prédio pudesse resultar do acordo ali referido, pois assim, como se referiu na análise do item anterior, o dinheiro obtido com a sua venda e com o qual a autora alegou ter efetuado o empréstimo ao réu seria também, pelo menos em parte, pertença deste. Ora, o direito de propriedade sobre o imóvel não se prova com a simples existência de acordo quanto a ele, pois, como se referiu anteriormente, para existir, tem que ter na sua base uma das formas da aquisição de tal direito previstas no art. 1316º do C. Civil e o acordo ali referido, só por si, não se reconduz a qualquer delas. Assim, é de concluir que também este item é irrelevante para a apreciação do mérito da causa. Como tal, também não se conhece da impugnação da matéria de facto quanto a tal ponto. Vamos agora aos factos que o recorrente defende que devem ser aditados à factualidade provada (artigos 52 e 53 da contestação, cujo conteúdo anteriormente se transcreveu). A matéria alegada sob estes artigos é também irrelevante para a apreciação do mérito da causa, exatamente pelos mesmos motivos referidos anteriormente na análise do primeiro item dos factos não provados. Como tal, improcede tal pretensão do recorrente. Passemos agora aos factos provados sob as alíneas f) e g), que o recorrente defende deverem ser dados como não provados. O tribunal motivou a decisão sobre a factualidade daquelas alíneas com base no seguinte: na análise do extrato da conta bancária co-titulada por autora e réu referida na alínea b) dos factos provados, junto com a p.i. como documento nº2; na análise do extrato bancário da conta bancária titulada apenas pelo réu referida em d) dos factos provados e junto aos autos a 8/1/2023 (conta essa em que o réu reconheceu ter sido depositada a quantia de 22.500 euros - artigo 42 da sua contestação); na cobrança junto daquela primeira conta dos cheques de 15.000 euros referidos nos artigos 16º, 18º e 20º da petição inicial e juntos com a p.i. como documentos nºs 3, 4 e 5 (todos sacados à ordem da sociedade “A..., Lda.”), tendo concluído que o dinheiro que serviu para os pagar foi o ali depositado na sequência da venda do imóvel nos termos referidos na alínea c) dos factos provados; e tudo isto conjugado com os depoimentos das testemunhas CC e DD, ambos primos da autora e sobrinhos do réu, que se considerou terem sustentado a existência do empréstimo dos autos. O recorrente não impugna a análise probatória referente aos depósitos de quantias efetuados nas duas contas referidas nem a cobrança na primeira daquelas contas daqueles cheques na sequência da venda do imóvel pela autora. Impugna é que tal movimentação de dinheiro integre um empréstimo, com base na descredibilização dos depoimentos prestados por aquelas testemunhas CC e DD. Quanto a estas testemunhas, disseram elas o que se passa a referir. A testemunha CC referiu que tinha uma relação muito próxima com a autora e com o réu, quase como filho deles. Ia com frequência a casa deles e estava muitas vezes com eles aos fins de semana, em férias e em jantares. Em 2003, ano em que tal testemunha tinha 25 anos de idade (como ela própria esclareceu), a autora e o réu viviam no apartamento T1 pertencente à autora (que integra o imóvel referido nos autos) e o réu estava em dificuldades com os negócios que tinha. Recorda-se que no dia de Natal desse ano, em conversa que teve lugar depois do almoço e em que estavam presentes ele, o seu irmão DD, a autora, a sua tia EE, irmã do réu, e o réu, este disse que a autora iria vender o apartamento em que viviam à sua irmã EE, com o objetivo de lhe ser emprestado o dinheiro da venda para colmatar questões financeiras que ele tinha na altura, e que a autora e aquela irmã do réu aceitavam esse negócio. Que tal dinheiro seria para devolver e na altura até foi referido que o seria num prazo máximo de dois anos. Que tal operação – a venda do apartamento àquela irmã do autor – chegou a concretizar-se em 2004 e a autora veio a emprestar o dinheiro ao réu. A irmã do réu chegou a fazer um crédito bancário para aquela compra, do que resultou que foi desse crédito que foi emprestado o dinheiro ao réu. A autora e o réu continuaram a viver naquele imóvel, de onde apenas saíram em 2006, pois a venda, como qualificou, foi “fictícia”, pois só tinha como objetivo obter dinheiro para emprestar ao réu. Disse ainda que, em vista de vir depor, e porque já se passaram 20 anos, teve de confirmar com o seu irmão DD a data em que ocorreu aquela conversa, pois sabia que foi num dia de Natal mas não se recordava se foi no de 2002, ou de 2004, ou de 2003. A testemunha DD apresentou um depoimento coincidente com o daquele seu irmão, quer quanto à conversa referida, data da mesma (Natal de 2003, que referiu também por referência a ter-se casado no mês de Janeiro seguinte) e pessoas presentes, quer quanto ao empréstimo que na sua sequência veio depois a ocorrer em 2004, depois da venda do imóvel, e justificação para o mesmo. Referiu também que o réu, na altura, disse que tinha de devolver depois o dinheiro à autora e que o faria num prazo de dois/três anos para depois a autora reaver o apartamento, tendo neste âmbito dito que a venda do imóvel era uma operação financeira feita com a autora pois o réu precisava de realizar dinheiro. Referiu ainda que a autora não queria fazer aquele empréstimo pessoal ou financiar tal situação, sentia-se um bocado desconfortável com isso, e, porque o réu sempre teve uma relação forte com o seu irmão CC e com a autora, acha até que aquela conversa surgiu exatamente para que a autora, de certa forma, perdesse aquele desconforto e aceitasse efetivamente fazer o empréstimo. Referiu ainda que falou com o seu irmão sobre os factos sobre que estava a depor. Estes depoimentos, de pessoas bem adultas à data dos factos, parecem-nos perfeitamente seguros, denunciadores de conhecimento sobre a factualidade em causa e, por isso, credíveis. De notar que tendo o alegado empréstimo do dinheiro ocorrido sem ter por base qualquer documentação por escrito do acordo nesse sentido, é óbvio que só pelo depoimento de pessoas que possam a ele ter assistido ou ter assistido a factos denunciadores do mesmo (por exemplo, conversas entre os intervenientes sobre o assunto) é que se pode lograr prova do mesmo. O facto de a testemunha FF, sobrinho do réu que, segundo disse, também costumava estar presente nas conversas pós almoço de Natal em que estavam presentes o autor e a ré, ter referido que não assistiu a nenhuma conversa do seu tio no sentido de este se confessar devedor à autora de dinheiro que esta lhe emprestara, não contradiz aqueles depoimentos: por um lado, aquela testemunha não foi segura no sentido de a sua participação naquelas conversas pós almoço de Natal ocorrer já em 2003 (disse “não tenho a certeza”, “se calhar sim” e “possivelmente”, o que traduz clara incerteza); por outro lado, na conversa do dia de Natal de 2003 referida por aquelas testemunhas apenas se terá anunciado o propósito do empréstimo e não a sua ocorrência já àquela data (logo, àquela data, nunca o réu se podia confessar devedor, pois ainda o não era); depois ainda, aquelas testemunhas CC e DD foram claras em referir que na conversa que referiram apenas estavam na altura presentes elas próprias, a autora, a tia EE e o réu, não tendo se tendo referido à presença daquela testemunha. Também não obsta à credibilidade daqueles depoimentos o facto de aquelas próprias testemunhas terem reconhecido que falaram uma com a outra relativamente aos factos sobre que depuseram, pois seria natural que a sua indicação como testemunhas as levasse a falar entre si, nomeadamente para, devido aos quase 20 anos passados, rememorarem o que aconteceu. Por outro lado, os depoimentos das testemunhas GG, HH, II, FF, JJ, KK – cujos excertos que considera pertinentes o recorrente identificou por referência aos minutos da respetiva gravação e transcreveu e em que é referido o modo de vida que a autora e o réu, enquanto unidos de facto, denunciavam ter, nomeadamente quanto à partilha de despesas com bens da titularidade de ambos – também não infirmam os depoimentos daquelas testemunhas CC e DD, que além da credibilidade que se lhes assinalou têm ainda a dar-lhes sequência os elementos documentais e sua análise que se referiram no início do nosso texto sobre a pretensão probatória em epígrafe, análise documental essa que se subscreve e que, enquanto tal, não se mostra sequer questionada no recurso. E também não serve para contrariar o conteúdo probatório daqueles depoimentos a consideração tecida sob a conclusão XLVI do recurso, no sentido de que “Não choca nada que o Réu/Recorrente tivesse usado estes montantes elevados para aplicar no pagamento das suas dívidas em nome individual porque foi em nome individual que igualmente pagou todos os investimentos feitos no património comum dele e da Autora”. Tais alegados investimentos e seus termos não estão em discussão nestes autos e, no plano do acontecer factual, podem perfeitamente coexistir com o empréstimo aqui alegado como causa de pedir. Cada caso é um caso. Aliás, porque assim é, não faz qualquer sentido argumentar-se nestes autos com a argumentação probatória tecida no processo, também existente entre as partes, referida sob a conclusão XLVIII, pois, tanto quanto se alcança, ali estava em causa dinheiro proveniente de empréstimos contraídos conjuntamente por autora e réu e nos presentes autos está em causa dinheiro proveniente de venda de imóvel da autora, portanto, só dinheiro seu. Por quanto se vem de expor, são de manter como provados os factos constantes daquelas alíneas f) e g) dos factos provados. Passemos agora às questões enunciadas sob a alínea d). É a seguinte a matéria de facto a ter em conta [a da sentença recorrida, que, como se viu, se mantém na íntegra, e tendo-se em conta o despacho de retificação das alíneas d) e f) proferido a 16/2/2024]: Factos provados a) Por escritura pública de 14 de maio de 2004, celebrada na Secretaria Notarial da Póvoa de Varzim, junta como documento n.º 1 com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a autora declarou nomeadamente vender uma fração autónoma identificada pelas letras AZ de um prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., assim descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...48..., pelo preço de €90.000,00, a EE que no mesmo ato declarou nomeadamente comprar tal fração nessas condições; b) Por acordo de vontades anterior, autora e réu são co-titulares, da conta bancária de depósitos à ordem n.º ...06, junto de Banco 2..., S.A.; c) Do preço acordado em a), €60.000,00 foram depositados na conta descrita em b) em 17/05/2004; d) Por acordo de vontades anterior, o réu é exclusivo titular da conta bancária de depósitos à ordem n.º ...02, junto de Banco 2..., S.A.; e) Do preço acordado em a), €22.500,00 foram depositados na conta descrita em d) em 17/05/2004; f) Autora e réu acordaram verbalmente que a autora disponibilizava ao réu o crédito de saldo bancário formado pelos depósitos descritos em c) e e) para utilização no pagamento de dívidas por si contraídas, devendo o réu restituir tal valor em momento posterior; g) Em execução do assim acordado, o réu utilizou um valor total de €67.500,00; h) Entre 1992 e 2016 autora e réu mantiveram comunhão de mesa, leito e habitação. * Factos não provados - Que o réu tivesse pago o mútuo para aquisição pela autora da fração autónoma descrita em a); - Que autora e réu acordassem entre si que, não obstante a autora fosse titular da inscrição de aquisição de propriedade junto da Conservatória do Registo Predial da fração autónoma descrita em a), tal fração pertencia a ambos em compropriedade. * Como resulta do tratamento da questão anterior, a factualidade da sentença mantém-se nos seus precisos termos. Mantendo-se tal factualidade e não tendo sido posta em causa no recurso a construção jurídica com base nela efetuada na sentença recorrida no sentido da existência do mútuo e do crédito dele decorrente para a autora sobre o réu, não há, nesta sede, que alterar o decidido quanto a tal. De tal decorre também a inutilidade do questionamento do instituto do enriquecimento sem causa efetuado sob as conclusões LX a LXIII, pois, como do ali decidido resulta, a solução jurídica decorre do regime de nulidade do mútuo e não foi sequer abordado aquele instituto. No entanto, uma vez que o recorrente o alegou no recurso, há que ponderar se ocorre abuso do direito por parte da autora na exigência do crédito dos autos ao réu (conclusões LXIV a LXVII). Tal questão só nesta sede de recurso é levantada, o que levou inclusivamente a recorrida a defender que a mesma, porque questão nova, não pode ser nesta sede apreciada. Mas não se lhe pode reconhecer razão quanto a tal. Efetivamente, sendo o abuso de direito considerado de conhecimento oficioso [neste sentido, entre outros, Acórdãos do STJ de 4/4/2002 (proc. nº849/01), 29/11/2001 (proc. nº3248/01), 11/12/12 (proc. nº116/07.2TBMCN.P1.S1) e 28/11/2013 (proc. nº161/09.3), todos disponíveis em www.dgsi.pt; na doutrina, vide António Menezes Cordeiro, in Código Civil Comentado I – Parte Geral”, coordenação de António Menezes Cordeiro, CIDP, Almedina 2020, anotação 41 ao art. 334º do C.Civil, págs. 941 e 942], cumpre dele conhecer, ainda que só alegado em sede de recurso [como refere António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, 2018, pág. 120, «Sendo admissível recurso da “parte dispositiva da sentença”, é legítimo à parte confrontar o tribunal com questões de conhecimento oficioso, mesmo que estas não tenham sido anteriormente suscitadas, desde que a sua decisão não esteja coberta pelo caso julgado. Do mesmo modo, para a decisão do recurso, pode o tribunal apreciar tais questões ex officio, ainda que sobre as mesmas não tenha existido anterior pronúncia ou que não tenham sido suscitadas pelo recorrente ou recorrido»]. Entremos então no seu tratamento. Como se preceitua no art. 334º do C. Civil, “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” A boa fé, referida naquele preceito como limite para a atuação do titular do direito, integra um princípio de atuação e significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto e leal, nomeadamente no exercício de direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros (citamos o acórdão do STJ de 17/5/2017, proferido no proc. nº309/07.2TBMLG.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt). O recorrente defende que, no caso, se verifica abuso do direito não só na modalidade de venire contra factum proprium como igualmente na modalidade de supressio. Vertendo à factualidade dos autos, verifica-se que autora e réu viveram em união de facto – em comunhão de mesa, leito e habitação – entre 1992 e 2016 [alínea h) dos factos provados], que o empréstimo ocorreu em maio de 2004 [alíneas c), e) e f) dos factos provados] e que a presente ação foi intentada pela autora em 21 de março de 2022, portanto cerca de 6 anos depois de ter findado aquela união de facto. Não se provou qualquer conduta da autora que tenha tido lugar depois da ocorrência do empréstimo ao réu no sentido de não lhe exigir o respetivo dinheiro ou de considerar não ter direito a ele, nomeadamente entre o fim da sua vivência conjunta e a propositura da ação. Assim, a restituição do dinheiro pedida pela autora ao réu por via da ação não está em contradição com conduta antes por si assumida ou proclamada, não ocorrendo por isso qualquer venire contra factum proprium. Resta agora apurar da modalidade de abuso do direito constituída pela supressio. Como refere Menezes Cordeiro [in «Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”», 3ª edição aumentada e atualizada à luz do Código de Processo Civil de 2013, Almedina 2014, página 114, e também in Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, Exercício Jurídico, 2ª edição revista e atualizada, Almedina 2015, página 355], são os seguintes os pressupostos de tal modalidade: - um não exercício prolongado do direito, embora necessariamente inferior ao prazo de prescrição, sob pena de inutilidade; - uma situação de confiança derivada desse não exercício; - uma justificação para essa confiança; - um investimento de confiança; - a imputação da confiança àquele que não exerce o direito. No caso dos autos, como já se referiu, resulta que o empréstimo ocorreu em maio de 2004 e no quadro da união de facto aludida, e a autora apenas vem peticionar o crédito decorrente daquele empréstimo em março de 2022. Faz todo o sentido que a autora apenas venha peticionar em tribunal o seu crédito depois de finda a união de facto, pois enquanto esta se mantinha seria natural que não viesse a demandar judicialmente a pessoa com quem vivia. Tendo procedido a tal demanda já decorridos cerca de 6 anos sobre o fim da união de facto e quase 18 anos depois do empréstimo, será que é de concluir pelo preenchimento daquela figura de abuso do direito? A resposta, a nosso ver, é negativa. Como já se referiu, não se provou qualquer conduta da autora que tenha tido lugar depois da ocorrência do empréstimo ao réu no sentido de não lhe vir a exigir o respetivo dinheiro ou de considerar não ter direito a ele, pois nada se provou (nem o alegou o réu) no sentido de que a mesma, antes da propositura da ação, algo tenha dito, comunicado ou feito em contrário da pretensão que exerce com a ação. Apenas temos a sua inação quanto à exigência ou restituição de tal dinheiro ao réu durante aquele período decorrido sobre o empréstimo, que sendo longo ainda está perfeitamente dentro do prazo prescricional ordinário de 20 anos (art. 309º do C. Civil). Ora, no quadro factual descrito, aquela simples inação da autora na propositura da ação por aquele longo período mas ainda longe do completamento do prazo prescricional ordinário de vinte anos é manifestamente insuficiente para concluir pelo preenchimento da “supressio”, pois dela, só por si, não ressalta uma situação de confiança derivada do não exercício do direito de restituição da quantia mutuada por parte da autora, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança àquela [neste sentido, vide o Acórdão desta mesma Relação de 9/11/2020, proferido no proc. nº 320/18.8T8CPV.P1 e disponível em www.dgsi.pt, em que é relator o Desembargador Carlos Gil e em que o subscritor do presente acórdão figura como primeiro adjunto]. Assim, também não se verifica abuso do direito na modalidade em análise. Por tudo quanto se veio de referir, há que julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida. As custas do recurso ficam a cargo do recorrente, que nele decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC). * Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC): …………………………………………………………………………… …………………………………………………………………………… …………………………………………………………………………… ** III – Decisão Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida. Custas pelo recorrente. *** Porto, 2025/01/27. Mendes Coelho Ana Paula Amorim Carlos Gil |