Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11/19,2GEVFR-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: RECURSO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
INADMISSIBILIDADE
APREENSÃO DE BENS
MEIO DE OBTENÇÃO DE PROVA
PERDA DE BENS
Nº do Documento: RP2021121511/19.2GEVFR-F.P1
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: DETERMINAR O DESENTRANHAMENTO DOS DOCUMENTOS APRESENTADOS COM O REQUERIMENTO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO E A SUA DEVOLUÇÃO AO APRESENTANTE E, NO MAIS NEGAR TOTAL PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO REQUERIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Não está legalmente prevista a junção de documentos em fase de recurso, devendo a sua apresentação nesta sede dar origem à condenação em custas do incidente;
II – A apreensão tem uma dupla função, como meio de obtenção de prova, que pode terminar a todo o tempo, desde que deixe de se tornar necessária (art. 186.º, n.º 1, do CPPenal), entre a apreensão e a sentença final (aqui operando a restituição com o trânsito em julgado da decisão que determinar a devolução), e como salvaguarda da declaração final de perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime, terminando com a sentença, embora a restituição deva aguardar o trânsito em julgado da decisão que determinar a devolução, sendo caso disso.
III - O art. 347.º-A do CPPenal prevê um mecanismo, introduzido pela Lei 30/2017, de 30-05, e a ser usado no decurso da audiência de julgamento, destinado ao exercício do contraditório e a apurar o contexto de utilização de bens de terceiro susceptíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 11/19.2GEVFR-F.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Inquérito n.º 11/19.2GEVFR, a correr termos na 1.ª Secção do DIAP de Santa Maria da Feira, no dia 24-05-2021, foi apreendido o veículo automóvel de matrícula ..-HP-.., marca Fiat, modelo … …. .., registado em nome de B…, e que se encontrava na posse de C….
Por requerimento entrado em juízo a 16-06-2021, veio B… invocar que a viatura é sua propriedade, juntando dois documentos respeitantes a inspecção periódica.
Mais alega que em Abril de 2021 havia emprestado a viatura a C…, com vista à aquisição da mesma por esta, pessoa a quem anteriormente já tinha vendido outros veículos, tendo entregue na mesma data o documento único automóvel respeitante à viatura em causa, podendo ser comprovado na Conservatória do Registo Automóvel que a viatura está registada a seu favor.
Pede, ao abrigo do disposto no art. 186.º, n.º1, do CPPenal, a restituição do veículo, por ser o legítimo dono e proprietário, apelando ainda à circunstância de se tratar de bem cuja depreciação económica ocorre pelo decurso do tempo, acarretando a sua paralisação danos.
Foi criado o apenso a que se refere o art. 178.º, n.º 1, do CPPenal, tendo o Ministério Público tomado posição no sentido do indeferimento do requerido.
Em diligência presidida por Juiz de Instrução Criminal, procedeu-se à audição do requerente, em cumprimento do disposto no art. 178.º, n.º 9, do CPPenal.
Por despacho de 15-07-2021, a Senhora Juiz de Instrução do Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 2, decidiu manter a apreensão do veículo, o que fez nos seguintes termos (transcrição):
«B… veio suscitar o presente incidente de revogação de apreensão nos termos do disposto no art.º 178.º, n.º 6 do C.P.Penal requerendo a restituição da viatura automóvel com a matrícula ..-HP-.. (e não 82, como por lapso é referido) que se encontra apreendida nos autos. Alega para tal que é o seu proprietário e que apenas o emprestou à arguida C…, pessoa a quem já havia vendido veículos no passado.
Cumprido o contraditório o Ministério Público pugnou pelo indeferimento da pretensão deduzida.
Nos termos do disposto no artigo 178º, nº 9, do CPP, foi a ouvida o interessado, a qual referiu que, de facto, “emprestou” o veículo ..-HP-.. à arguida C…, em fins de Março, por um período de 15 dias, para a mesma o experimentar; que abordaram o preço de venda de €3.000,00; que o veículo entretanto teve uma avaria, tendo sido a C… a assumir o pagamento do arranjo de €500,00, que ainda se encontra a liquidar e foi a mesma quem fez o seguro da viatura.
Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida. O requerimento a que se refere o número anterior é autuado por apenso, notificando-se o Ministério Público para, em 10 dias, deduzir oposição - cfr. artigo 178.º, n.º 7 e n.º 8 do C.P.Penal.
Cumpre apreciar.
A apreensão constitui um meio de obtenção de prova, regulado no artigo 178.º e seguintes do Código de Processo Penal, determinando o n.º 1, daquele preceito que «são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova».
Enquanto meio de obtenção de prova, a apreensão «tutela a necessidade de recolha e conservação de prova para efeitos de instrução do processo», «mas tem igualmente aplicação nas situações em que importa, única e exclusivamente, a segurança dos bens apreendidos, tendo em vista a sua disponibilização para efeitos de confisco, ou seja, é um meio ao serviço da eventualidade da declaração de perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime» - acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25-10-2017, processo n.º 586/15.5TDLSB-H.L1-3; neste sentido também Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, Verbo, página 289.
Isto significa que a apreensão pode ter uma de duas finalidades (ou, eventualmente, ambas): a recolha de prova, ou a salvaguarda da declaração, a final, da perda de instrumentos, produtos e vantagens.
Esta dualidade no escopo na apreensão traduz-se na necessidade de destrinçar os objectos que servem para a prova em processo penal dos objectos que constituem instrumento, produto ou vantagem do crime.
O artigo 186.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, suporta esta diferenciação, pois enquanto o n.º 1 cuida da restituição dos objectos com relevância probatória quando a mesma cesse (a todo o tempo, portanto), o n.º 2 estabelece que aqueles que constituem instrumento, produto ou vantagem do crime apenas vêm o seu destino decidido no final do processo, mais concretamente na sentença, podendo ou não, ser declarados perdidos a favor do Estado, nos termos dos artigos 109.º e 110.º, do Código Penal.
Explicado o escopo da apreensão, interessa-nos a segunda das finalidades apontadas, isto é, a manutenção de objectos que potencialmente serão declarados perdidos a favor do Estado, por constituírem instrumento, produto ou vantagem do crime. E que se atentarmos na promoção do Ministério Público, no que respeita à manutenção da apreensão da viatura automóvel em causa, verificamos que esta se prende com a existência de elementos que indiciam que tal veículo automóvel foi utilizado pela arguida C… em seu benefício, nomeadamente para proceder a entregas de produto estupefaciente a consumidores nos locais combinados com esta, sendo assim considerado objecto que se destinou a servir à prática de crime, tendo assim a virtualidade de ser promovida a sua perda a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 35º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22.01.
Ora, ao ser esta a razão indicada, percebe-se que a utilidade da sua apreensão nesta fase do processo já não está na instrução dos autos, mas antes na manutenção na esfera estadual daquilo que terá servido para a prática do crime - artigo 178.º, n.º 1, 1.a parte, do Código de Processo Penal, em vista da futura declaração de perda a favor do Estado.
Tal como decorre dos autos, à arguida é imputada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do DL nº 15/93, de 22.01. Tal como se referiu supra, quando os objectos são instrumento, produto ou vantagem do crime, a apreensão responde a exigências cautelares de prevenção da continuação da actividade criminosa, acautelando a eventual declaração de perda a favor do Estado.
Pelo exposto, mantenho a apreensão veículo automóvel de matrícula ..-HP-.. cuja revogação da medida de apreensão foi requerida.
Notifique.»
*
Inconformado com o assim decidido, veio o requerente B… interpor recurso desta decisão e requerer a final a revogação da decisão recorrida, substituindo-se por outra que determine lhe seja restituída a viatura apreendida, apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1ª – O Recorrente veio solicitar a revogação da apreensão e a restituição da viatura automóvel, com a matrícula ..-HP-.., nos termos e ao abrigo do artigo 178º, nº 6 do C. P. Penal.
2ª – Tal viatura automóvel é de sua propriedade, sendo o Recorrente o seu único e exclusivo proprietário,
3ª – presunção esta que não foi ilidida pelo Ministério Publico, quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, e que decorre, igualmente, dos documentos juntos aos autos, nomeadamente a fatura de compra desta viatura por parte do Recorrente e documento de “Requerimento de Registo Automóvel” (documentos agora juntos), dos documentos referentes à inspeção periódica da referida viatura juntos com o requerimento, bem como do DUC (Documento Único Automóvel), o qual se encontra na posse do Tribunal a quo, dentro desta viatura, que se encontra apreendida e à guarda do Tribunal, não tendo, por isso, o Recorrente acesso ao mesmo.
4ª – O Tribunal a quo manteve a apreensão do veículo automóvel com a matricula ..-HP-.., indeferindo a pretensão do Recorrente.
5ª – O Recorrente não é arguido nos presentes autos, é o proprietário da viatura cuja restituição solicitou, é terceiro de boa fé, e é a pessoa a quem de direito deverá ser entregue esta viatura, nos termos do artigo 186º do C. P. Penal.
6º - A apreensão da viatura HP causa manifesto prejuízo económico ao Recorrente, que não pode vender a mesma, como pretende.
7ª – Apesar de decorrer da lei que é ao Recorrente quem incumbe o ónus de provar que esta viatura é sua propriedade, tal não obsta a que o tribunal pondere os elementos que estão ao seu alcance (nomeadamente a verificação junto da competente Conservatória em nome de quem é que esta viatura se encontra registada), e que possam contribuir para aferir sobre a verificação ou não dos pressupostos legais da revogação da apreensão desta viatura e a sua restituição ao aqui Recorrente, para além de também lhe ser permitido facultar ao Recorrente a possibilidade de completar ou aperfeiçoar o seu requerimento com a indicação de prova do alegado.
8ª - Assim sendo, impunha-se ao tribunal a quo a avaliação dos factos alegados e da existência ou não de prova dos mesmos nos autos, sem prejuízo de ser ponderada a possibilidade de formular convite ao Recorrente para, nos termos indicados, completar e/ou aperfeiçoar o requerimento apresentado,
9ª - e isto, sem o prejuízo de, no entender do aqui Recorrente, haver nos autos prova plena e suficiente de que este é o dono e proprietário da viatura aqui em causa.
10ª - In casu, trata-se de um veículo automóvel que está registado a favor do Recorrente e, como tal, devidamente legalizado, razão pela qual não podia o tribunal a quo manter a decisão de apreensão desta viatura nos presentes autos, devendo ter revogado tal medida e restituído esta viatura ao aqui Recorrente, o que não fez na decisão recorrida.
11ª – A decisão ora recorrida violou, entre outros, os princípios da falta de fundamentação da decisão, previsto no artigo 97º, nº 5 do C. P. Penal; da imediação e do contraditório previstos no artigo 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa; e os artigos 186º, nºs 1 e 6 e 178º, nº 6 do C. P. Penal.
12ª – Sem prescindir, o Recorrente conseguiu, apenas nesta data, obter cópia da fatura/recibo nº 2019/1 de compra da viatura automóvel com a matricula ..-HP-.., ocorrida no passado dia 10 de Julho de 2019, que efetuou à sociedade D…, NIPC ………, e cujo preço aquisitivo pagou, bem como os custos da sua reparação,
13ª – e cópia do Requerimento de Registo Automóvel, com data de 05 de Setembro de 2019, documentos estes que provam (prova plena), sem qualquer dúvida, a propriedade desta viatura, conforme documentos que junta, e cujo teor reproduz.
14ª - Nos termos do artigo 165º do Código de Processo Penal, o Recorrente, requer desde já, a junção destes dois documentos, por serem essenciais à descoberta da verdade material.»
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, considerando que o mesmo não merece provimento e que a decisão recorrida deve ser mantida.
Apresenta em apoio da sua posição as seguintes conclusões (transcrição):
«1. Não foram violados os princípios da imediação e do contraditório com a falta de notificação da promoção do Ministério Público de fls. 13, pois teve lugar a audição do requerente, tendo sido conferida a palavra ao Ministério Público, o qual reintegrou na sua posição a já aludida promoção. De igual modo, os elementos de prova considerados no despacho recorrido foram aqueles a que teve acesso o requerente, após ter tido a oportunidade de ser ouvido e de alegar perante o Tribunal a quo.
2. O despacho recorrido encontra-se fundamentado, de facto e de Direito, em termos genéricos e abstractos, de mero enquadramento prévio, mas também em termos concretos e perfeitamente compreensíveis, pelo que não ocorreu qualquer violação do dever de fundamentação.
3. Ao entender que a manutenção da decisão de apreensão violou o disposto pelos arts. 186.º, nºs 1 e 6 e 178.º, nº 6 do CPP, o recorrente equivoca-se, salvo o devido respeito, na fundamentação jurídica da sua pretensão, pois o que verdadeiramente pretendeu com o seu requerimento improcedente foi que se determinasse o levantamento da apreensão, não estando em causa qualquer uma das normas indicadas.
4. Como o sublinhou o Tribunal a quo, fundamenta-se a manutenção da apreensão na utilização do veículo para factos ilícitos típicos, e nos termos do disposto pelos arts. 178.º, n.º 1 primeira parte do Código Penal e 35.º, n.º 1 do Dec.-Lei n.º 15/93, de 22/01, sendo o veículo susceptível de vir a ser declarado perdido a favor do Estado, sem prejuízo de, nesse momento, e não sendo até então determinado o levantamento da apreensão, se aplicar o art. 111.º do CP.
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Termos em que, improcedendo na íntegra o recurso em apreço, V. Exas. farão a já costumada JUSTIÇA.»
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde acompanhou a posição do Ministério Público junto do tribunal recorrido, pugnando igualmente pela improcedência do recurso.
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Notificado nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o recorrente nada disse.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que os recorrentes suscitam são:
- Ausência de fundamento para ser mantida a apreensão, já que o recorrente não é arguido nos autos, é proprietário da viatura cuja restituição solicitou e é terceiro de boa fé, estando a coberto da restituição de objectos apreendidos prevista no art. 186.º do CPPenal; e
- Violação dos princípios da fundamentação, da imediação e do contraditório.
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Apreciando.
Antes da apreciação da matéria do recurso, importa tratar uma questão prévia, respeitante à junção de dois documentos que o recorrente efectuou e que acompanharam o seu requerimento de interposição de recurso.
A este propósito determina o art. 165.º do CPPenal, sob a epígrafe “Quando podem juntar-se documentos”, que:
«1 - O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.
2 - Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a pareceres de advogados, de jurisconsultos ou de técnicos, os quais podem sempre ser juntos até ao encerramento da audiência.»

O recorrente junta os apontados documentos para comprovar a propriedade da viatura apreendida.
O sentido da norma citada é o de que os documentos são juntos em regra durante o inquérito ou a instrução e excepcionalmente até ao encerramento da audiência, estando claramente pensado para a tramitação em 1.ª Instância e não em fase de recurso, onde o Tribunal superior apenas apura se a decisão recorrida foi correcta ou incorrectamente proferida.
Ora, «[p]retender juntar um documento em fase de recurso e extrair dele consequências a nível probatório viola o espírito e a letra da lei. É fora de toda a lógica pretender que o tribunal de recurso vá sindicar a forma como se formou a convicção do tribunal recorrido utilizando prova que não foi acessível a este.»[2]
A tramitação desencadeada pelo recorrente com a junção de documentos em sede de recurso é anómala, estranha ao normal desenrolar do processo, devendo ser taxada como incidente de acordo com o disposto no art. 7.º, n.º 4, do RCP e respectiva tabela II anexa.
Como tal, por total inamissibilidade legal, deve ser determinado o desentranhamento de tais documentos e a sua devolução ao apresentante, que ficará responsável pelas custas do incidente, sendo de fixar no mínimo a taxa de justiça devida.

No que concerne aos fundamentos do recurso, comecemos por analisar as questões de validade formal da decisão.
Assim, alega o recorrente que foram violados os princípios da fundamentação, da imediação e do contraditório.
Refere o recorrente que o despacho recorrido é omisso quanto à fundamentação de direito, uma vez que nada diz quanto às razões jurídicas que foram expendidas pelo recorrente no seu requerimento de revogação de apreensão, nomeadamente, o disposto no art. 186.º, n.º 1, do CPPenal, o facto de ser ele o único e exclusivo proprietário da viatura aqui apreendida e de se encontrar desapossado e privado, quer da posse, quer da fruição, quer da propriedade da mesma.
Esta alegação é totalmente infundada, pois na decisão recorrida afirma-se expressamente que «a apreensão pode ter uma de duas finalidades (ou, eventualmente, ambas): a recolha de prova, ou a salvaguarda da declaração, a final, da perda de instrumentos, produtos e vantagens.
Esta dualidade no escopo na apreensão traduz-se na necessidade de destrinçar os objectos que servem para a prova em processo penal dos objectos que constituem instrumento, produto ou vantagem do crime.
O artigo 186.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, suporta esta diferenciação, pois enquanto o n.º 1 cuida da restituição dos objectos com relevância probatória quando a mesma cesse (a todo o tempo, portanto), o n.º 2 estabelece que aqueles que constituem instrumento, produto ou vantagem do crime apenas vêm o seu destino decidido no final do processo, mais concretamente na sentença, podendo ou não, ser declarados perdidos a favor do Estado, nos termos dos artigos 109.º e 110.º, do Código Penal.»
E concluindo que está em causa esta segunda finalidade, afirma-se: «[o]ra, ao ser esta a razão indicada, percebe-se que a utilidade da sua apreensão nesta fase do processo já não está na instrução dos autos, mas antes na manutenção na esfera estadual daquilo que terá servido para a prática do crime - artigo 178.º, n.º 1, 1.a parte, do Código de Processo Penal, em vista da futura declaração de perda a favor do Estado.»

A decisão está fundamentada em termos jurídicos, rebatendo a argumentação do recorrente.
De todo o modo, não estando em causa uma sentença, no sentido do acto decisório que conhece a final do objecto do processo (arts. 97.º, n.º 1, al. a), e 379.º, n.º 1, al. a), do CPPenal), a falta de fundamentação não gera qualquer nulidade.
No que concerne aos despachos, como é o caso da decisão recorrida, a falta de fundamentação apenas acarreta a irregularidade da decisão, atento o princípio da tipicidade legal em matéria de nulidades consagrado no art. 118.º, n.ºs 1 e 2, do CPPenal.
Com efeito, no caso em apreço não estamos perante uma nulidade insanável, que é oficiosamente declarada (art. 119.º do CPPenal), nem tão-pouco uma nulidade sanável dependente de arguição, posto que não se mostra prevista quer no art. 120.º do CPPenal quer em qualquer outro preceito.
Como tal, a existir alguma falta de fundamentação ela apenas constituiria mera irregularidade no termos do art. 123.º do CPPenal, a ser arguida nos três dias seguintes à notificação do acto, conforme decorre do n.º 1 do preceito, o que não aconteceu.

Sustenta ainda o recorrente que foi violado o princípio da imediação e do contraditório, uma vez que desconhece, por nunca ter sido notificado, as razões que levaram o Ministério Público a pugnar pelo indeferimento do requerimento de revogação da apreensão.
Como salienta o Digno Magistrado o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, «[c]onforme decorre de fls. 24, posteriormente a essa promoção, ocorreu audição do requerente, tendo sido conferida a palavra ao Ministério Público, o qual reintegrou na sua posição a já aludida promoção. Não ocorreu por isso qualquer violação do princípio do contraditório.
Ademais, os elementos de prova considerados no despacho recorrido foram aqueles a que teve acesso o requerente, após ter tido a oportunidade de ser ouvido e alegar perante o Tribunal a quo. Não ocorreu assim qualquer violação do princípio da imediação, e tanto assim é, que não indica em que dimensão concreta entende violado esse princípio.»

Concordamos em absoluto com esta perspectiva, sendo certo que, a existir qualquer inobservância das regras processuais penais, a invocação realizada mostra-se tardia.
Com efeito, a falta de notificação da posição expressa no processo pelo Ministério Público previamente à audição do recorrente apenas geraria a irregularidade do processado, pelas razões supra-expostas, atento o princípio da tipicidade legal em sede de nulidades, não tendo sido tempestivamente invocada.

Quanto ao mérito da decisão propriamente dito, nenhuma censura ocorre formular.
Com efeito, o recorrente centra a sua argumentação na circunstância de ser proprietário e terceiro de boa fé.
Ora, o que a decisão recorrida explica é que a apreensão tem uma dupla função, como meio de obtenção de prova e como salvaguarda do confisco a ser declarado a final com a perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime.
Esta dupla função é, quanto a nós pacífica. Neste sentido, João Conde Correia in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, 3.ª Edição, anotação ao art. 186.º, págs. 725 a 734, e Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime?, RPCC 25 (2015), págs. 505 a 543, afirmando-se neste último artigo que «a apreensão tem uma dupla natureza: é um inquestionável meio de lograr a prova (desenvolvendo uma função processual penal probatória); e, em paralelo, uma incontornável garantia processual penal da perda (desempenhando uma função processual penal conservatória)[3]. As duas funções foram, no sistema legal português, confiadas à apreensão. Como diz José Manuel Damião da Cunha, «no âmbito do CP (mas também do CPP) existe uma direta ligação entre a figura da apreensão (enquanto medida processual) e a declaração de perda; existe uma dupla função quanto aos bens “apreendidos": eles são meios de prova do facto cometido e devem ser declarados perdidos em direta ligação ao facto ilícito praticado»[4]. Na mesma linha, segundo o testemunho privilegiado do Tribunal Constitucional, «a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos apreendidos à ordem do processo até à decisão final»[5]. Isto mesmo decorre expressis verbis do próprio Código de Processo Penal, quando refere que «se os objetos apreendidos (não pertencerem ao visado e) forem suscetíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado» a autoridade judiciária deverá, ex officio, fazer comparecer e ouvir o visado, permitindo-lhe exercer o contraditório e defender a sua plena in re potestas (art. 178.º, n.º 4)[6]. O legislador fundiu estas duas finalidades processuais distintas numa única norma.
O mecanismo processual penal da apreensão de bens tem, portanto, uma função de segurança processual (impedir dificuldades ou, até, a completa perda da prova) e também uma função de garantia patrimonial (acautelar a sua perda posterior). Ela procura prevenir a demonstração futura do facto e, ao mesmo tempo, quando chegar o momento oportuno, a cabal execução da decisão final[7]. Mesmo assim, embora unificadas na mesma norma, estas duas finalidades processuais são independentes: uma pode existir sem a outra. A apreensão pode ser indispensável para a prova do facto e irrelevante para efeitos de confisco e vice-versa imprescindível para este e inútil para aquela.
Em síntese, o mecanismo da apreensão (consagrado no artigo 178.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) para além de inquestionáveis funções probatórias, pode, de facto, ser usado como garantia processual penal do futuro enforcement da decisão que vier a decretar o confisco. Na própria fórmula legal: «são apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova»[8]
Apenas o segmento final da norma escapa a esta lógica dualista»

Sustentando o despacho recorrido a existência de elementos que indiciam que o veículo automóvel em questão foi utilizado pela arguida C… na prática do crime investigado nos autos, realidade que o recorrente nem questiona, e que a apreensão se destina a garantir a eventual declaração de perda nos termos disposto no art. 35.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-10, declaração que pode recair sobre bens dos arguidos ou de terceiros, salvo quando estiverem de boa-fé, mostra-se correcto manter a apreensão até cabal esclarecimento da propriedade e função do veículo apreendido no âmbito da criminalidade investigada, a realizar em julgamento e a decidir na sentença/acórdão final.
Com efeito, «o legislador fixou dois momentos relevantes para a restituição dos animais, coisas ou objectos apreendidos: logo que se tomar desnecessário manter a apreensão para efeitos de prova [v.g. ac. RP, 29.09.2010 (Vítor Teixeira)] e logo que transitar em julgado a sentença (neste caso, apenas, se aí não tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado). Significa isto que a restituição pode ocorrer a todo tempo, até â sentença final, data em que os bens são declarados perdidos ou são devolvidos. Embora não exista nenhum termo inicial (a obrigação de restituir começa com a própria apreensão), existe um termo final: a sentença. E, por isso, que ela termina com o dispositivo, que, inter alia, contêm a indicação do destino a dar aos animais, às coisas ou aos objetos relacionados com o crime, com expressa menção das disposições aplicáveis (art. 374.º/3/c). Sem essa indicação adicional, o veredictum ficará incompleto.»[9]

Aliás, o art. 347.º-A do CPPenal prevê um mecanismo, introduzido pela Lei 30/2017, de 30-05, e a ser usado no decurso da audiência de julgamento, destinado ao exercício do contraditório e a apurar o contexto de utilização de bens de terceiro susceptíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado.
O despacho recorrido mostra-se fundamentado e através dele fez-se uma estrita e correcta aplicação da lei, nenhuma censura devendo, assim, recair sobre o mesmo.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
a) - Determinar, com fundamento na inadmissibilidade legal da respectiva junção em sede de recurso, o desentranhamento dos documentos apresentados com o requerimento de interposição de recurso e a sua devolução ao apresentante, que ficará responsável pelas custas do incidente, fixando-se no mínimo a taxa de justiça devida (art. 7.º, n.º 4, do RCP e respectiva tabela II anexa);
b) - Negar total provimento ao recurso interposto pelo requerido B… e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida (art. 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).
Notifique e comunique à 1.ª Instância.

Porto, 15 de Dezembro de 2021
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cf. acórdão do STJ de 24-10-2012, Proc. n.º 2965/06.0TBLLE.E1, acessível in www.dgsi.pt.
[3] Correia, João Conde, Da proibição do confisco à perda alargada. Lisboa, INCM (2012), p. 154.
[4] Perda de bens a favor do Estado, AA.VV. Medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, Coimbra, Coimbra Editora (2004), p. 139; no mesmo sentido; cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo (1994), II, p. 169; Valente, Manuel Monteiro Guedes, Processo Penal, Coimbra, Almedina (2004), p. 375. Em sentido contrário, indiferentes à letra da lei, parecem caminhar, Manuel Simas Santos, Manuel Leal-Henriques e João Simas Santos (Noções de processo penal, Lisboa, Rei dos Livros [2011], p. 230/1), que omitem completamente esta segunda vertente legal da apreensão, destacando apenas a primeira.
[5] Ac. n.º 294/2008, de 29 de maio, onde também se pode ler que «a apreensão ... como logo se depreende da inserção sistemática dessa disposição no Título III do Livro III desse diploma, é um meio de obtenção prova, mas que poderá simultaneamente funcionar como meio de prova e como medida cautelar destinada a assegurar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão associados à prática do ilícito penal, como seja a perda desses valores a favor do Estado» e que «a apreensão tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado».
[6] Interpolado nosso.
[7] Correia, João Conde, Da proibição do confisco..., p. 155.
[8] Estas duas finalidades, embora distintas, têm ambas uma indesmentível natureza processual. A apreensão não prossegue quaisquer intuitos substantivos, como a perda antecipada da coisa. Em causa, está apenas garantir essa possibilidade futura, bem como a demonstração do próprio facto. A apreensão não se confunde com a perda.
[9] João Conde Correia in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, 3.ª Edição, anotações ao art. 186.º, § 3, pág. 726.