Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2339/20.0T8STS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
DOAÇÕES REMUNERATÓRIAS
LIBERALIDADES
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Nº do Documento: RP202306262339/20.0T8STS-A.P1
Data do Acordão: 06/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO SOCIAL
Área Temática: .
Sumário: I - A desconformidade ou insuficiência da prova indicada para sustentar a alteração da decisão de facto, não justifica a rejeição da reapreciação, pois apenas a omissão de prova nas conclusões ou na motivação do recurso, têm como consequência a rejeição do recurso.
II - Guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
III - As deslocações patrimoniais efetuadas com o dinheiro do inventariado para o património do filho com vista a realizar obras de adaptação da sua casa para permitir acolher os pais, constituem doações remuneratórias, por não existir qualquer vínculo jurídico que justificasse tal atribuição, subsistindo em tais deslocações o espirito de liberalidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Inventário - Relação de Bens - 2339/20.0T8STS-A.P1
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SUMÁRIO[1] ( art. 663º/7 CPC ):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto ( 5ª secção judicial – 3ª Secção Cível )

I. Relatório

AA, NIF ..., residente na Casa de Repouso ..., sito na Rua ..., ..., Santo Tirso veio requerer inventário para partilha dos bens por óbito do seu marido BB, que faleceu em .../.../2020, onde vivia na Casa de Repouso ..., ..., Santo Tirso.
Alegou em síntese que casou com o inventariado no regime de separação de bens e à herança concorrem a requerente e três filhos do casal.
Mais referiu que a herança é composta por metade indivisa de um imóvel, um veículo automóvel e uma sepultura perpétua e que o inventariado fez uma doação em dinheiro no montante de €50.000,00 a um dos filhos.
Juntou declaração de compromisso de honra do fiel exercício das funções de cabeça de casal.
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Proferiu-se despacho que nomeou a requerente cabeça-de-casal e determinou a notificação para juntar a relação de bens.
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A cabeça-de-casal veio juntar a relação de bens.
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Citados os interessados vieram apresentar reclamação à relação de bens.
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A interessada CC apresentou reclamação na qual acusa a falta de relacionação dos seguintes valores pertencentes à herança e não relacionados:
1 – a quantia de €10.000,00 (dez mil euros) que o inventariado doou ao interessado, DD em data que não pode precisar mas que situa entre 2003 e 2004; e
2 – a quantia de €8.000,00 (oito mil euros) correspondente à quantia ainda em divida do empréstimo de 15.000,00 que o inventariado fez ao interessado, DD em 02/01/2008.
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A interessada EE veio de igual modo apresentar reclamação, na qual acusa a falta de relacionação dos seguintes bens:
a) a quantia de €10.000,00 (dez mil euros) que o inventariado doou ao também interessado, DD entre janeiro de 2005 e finais de 2007.
b) – a quantia de €8000,00 (oito mil euros) correspondente à quantia ainda em divida do empréstimo de 15.000,00 que o inventariado fez ao interessado, DD em 02/01/2008.
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O interessado DD e mulher FF, vieram deduzir oposição, impugnação e reclamação à relação.
Impugna o valor atribuído à ação, porque na relação de bens foi atribuído o valor global de €91.986,62, devendo ser esse, então, o valor a atribuir aos presentes autos, encontrando-se em falta a autoliquidação correspondente.
Mais alega que nas declarações prestadas se omitiu a existência, também desse casamento, de um outro filho, a saber, GG, nascido em .../.../1961, na ..., Província Ultramarina de Moçambique, pré-falecido em .../.../1975, requerendo a inclusão desse outro herdeiro legitimário.
Refere, ainda, que não se faz menção à existência, ou não, de testamento.
Quanto à relação de bens impugnaram o valor atribuído à sepultura perpétua, requerendo a respetiva avaliação e o valor atribuído ao veículo automóvel de matrícula “ ..-..-BR”, porquanto o mesmo não tem qualquer valor comercial, encontrando-se, em avançado estado de degradação, há cerca de 2 anos, depositado numa rua anexa à morada dos oponentes, o qual só foi retirado recentemente para fim desconhecido, devendo ser dado para abate e relacionado o valor obtido com tal procedimento.
Impugna a doação de €50.000,00, alegando para o efeito que em 16 de Novembro de 2006, o inventariado não estava capaz de, por si, efetuar um tal ato como era do conhecimento dos familiares e amigos e foi confirmado com a instauração do processo de interdição por anomalia psíquica, cuja sentença que reconheceu tal situação de incapacidade proferida em 04 de novembro de 2013, transitou em julgado em 09 de dezembro de 2013.
Desde o ano de 1999, que o inventariado fora, sucessivamente, internado na unidade … ... da Casa de Saúde do ..., dedicada a doenças do foro psiquiátrico do foro agudo, propriedade da Ordem hospital de … e mulher sofria de doenças várias, sendo-lhe diagnosticada doença do foro oncológico.
Em reunião com os demais familiares acordaram que o inventariado e mulher passariam residir na casa de habitação dos reclamantes. Carecendo a casa de obras de restauro, de ampliação e adaptação para nela poderem residir com a dignidade e a privacidade possíveis – 5 menores, um casal e outro casal idoso, dos quais o inventariado pai apresentava constantes manifestações de demência progressiva, nomeadamente ao nível da higiene pessoal e do controlo dos esfíncteres, sendo o oponente o único titular de rendimento enquanto professor no Instituto ... ( vulgo, ...), não dispondo de reservas financeiras, é pedida uma ajuda económica á mãe para viabilizar o acolhimento e o cuidado continuado dos pais.
Aceite a proposta a cabeça-de-casal entrega ao oponente o valor em causa, €50.000,00, bem como posteriormente, outra tranche de €10.000,00. Parte desse valor foi integrado nas obras de adaptação da casa do oponente para receção dos pais para ali viverem; parte desse montante foi entregue ao oponente como pagamento das responsabilidades que passaram a ter com a cabeça-de-casal e os cuidados que lhe prestariam, nomeadamente, com habitação e acompanhamento na saúde.
Para fazer face à parte significativa do investimento necessário, o opoente teve que renegociar o seu crédito á habitação, com forte acréscimo da amortização mensal e a perda dos privilégios associados ao crédito bonificado, que lhes havia sido concedido no crédito inicial.
Ainda, a realização de tais obras implicou a mudança do agregado para uma casa arrendada, sita na freguesia ..., pelo valor de €400,00 mensais, suportado pelo oponente, durante o período de dois anos.
Em finais de Agosto de 2009, o inventariado e a cabeça-de-casal, sua esposa, passaram a estar alojados na casa do opoente, aí permanecendo durante 7 anos.
Em 8 de outubro de 2010, sujeito a arquivamento, no Cartório de Santo Tirso, a cabeça-de-casal emitiu documento designada do “ dação em cumprimento” do seguinte teor: “…Declaro que para cumprimento das responsabilidades que o meu filho , DD tem para comigo e me presta, a mim a meu marido, nomeadamente habitação vitalícia e acompanhamento na saúde, faço dação ao meu filho, do valor de sessenta mil euros ( valor este que ele investiu para proporcionar melhores condições e bem estar a seus pais). Que, em consequência dessa dação, ficam regularizadas as minhas responsabilidades e do meu marido para com o meu filho, no montante acordado de sessenta mil euros. Que este valor foi dado em cumprimento de todos os serviços prestados e a ainda prestar por meu filho.”
Em 07 de Janeiro de 2015, a cabeça-de casal, documentou em declaração por si subscrita que:” … considero esgotada a verba que entreguei ao meu filho DD, no montante de sessenta mil euros, face ao valor por ele investido para proporcionar as melhores condições e bem estar aos seus pais e face ao cumprimento de todos os serviços por ele prestados até à data, no acompanhamento aos pais em todos os aspetos do quotidiano e, em particular, no acompanhamento prestado na saúde dos pais, cujo estado sofreu um manifesto e rápido agravamento no decurso dos últimos quatro anos: da parte do pai, uma acentuação grave do seu estado demencial e consequente dependência completa de terceiros para locomoção, alimentação e higiene, da minha parte a deterioração severa da condição cardíaca, pulmonar e óssea. Considero assim estarem regularizadas as responsabilidades do meu filho para comigo e para com o meu marido face ao montante dado de sessenta mil euros, desvinculando-o dos serviços assumidos, com efeito a partir da presente data”.
No dia posterior a emitir tal declaração, a declarante efetuou cirurgia cardíaca, no Hospital ..., conforme relatório de alta médica que se junta, com implantação de cardioversor-desfibrilhador implantável para prevenção primária. Seguiu-se-lhe a convalescença em casa do oponente, com a necessária ajuda deste e demais família.
Durante o tempo que mediou a dita prestação de apoio aos seus pais, o oponente concretizou, em benefício daqueles, as seguintes tarefas:
a) administração direta do restauro e adaptação da casa para acolhimento dos pais (aquecimento, lareira, mudança do pavimento, adaptação da casa de banho por forma a permitir que o inventariado nela usasse a cadeira de rodas e demais intervenções);
b) acompanhamento da gestão do condomínio do apartamento de Oeiras;
c) acompanhamento a consultas médicas da cabeça-de-casal (ginecologia, ortopedia, cardiologia, oftalmologia, pneumologia, centro de saúde, deslocações a urgências/internamentos; procedimento para obtenção do médico de família que não possuía, o dr. HH);
d) acompanhamento ás consultas médicas do seu pai (neurologia, psiquiatria, urgências /internamentos);
e) procedimento de integração do inventariado e esposa na assistência social e médica local, ao nível da obtenção de médico de família e apoio do Centro Social;
f) procedimento para obtenção do atestado multiusos do pai (realização das burocracias e pedido de realização da junta médica);
g) acompanhamento dos pais a juntas médicas;
h) processo de obtenção da subvenção de reforma da mãe (bem como do complemento por dependência);
i) processo de inventariação, catalogação e orçamentação das obras de arte do pai (contratação de serviço de fotografia, catalogação e avaliação das mesmas);
j) despoletar e acompanhamento do processo de tutoria do pai, durante dois anos (com contactos e deslocações, quer ao tribunal, quer ao mandatário forense constituído, consultas médicas para obtenção de relatórios, redacção de documentos, tratamento da documentação, incómodos graves com as irmãs);
l) processo de negociações extrajudiciais com os primos herdeiros intervenientes na venda da casa de Oeiras;
m) procedimento de resolução das questões laborais e na ATC relacionadas coma empregada que prestava serviços de limpeza da mesma casa;
n) impulsionar e acompanhar do processo judicial de interdição do pai, até à sua desvinculação em 06.09.2016 ( identificado, supra, a artº 19º, motivada em tríplice razão: alteração significativa das suas condições profissionais; necessidade de maior acompanhamento do estado de saúde grave acometido à filha II, obrigando-a a internamento involuntário e, por último, grande incómodo resultante do diferente entendimento relativamente à progenitora e cabeça de casal, á data protutora do pai, do que fossem as funções de tutor do seu pai);
o) assistência quotidiana ao pai e mãe de acordo com o seu grau de dependência que se foi acentuando (controlo da toma da medicação de manhã; muda das fraldas, à noite; levantes e transferências para a cadeira e cama);
p) assistência na higiene diária, medicação, alimentação;
q) realização de compras a pedido, acompanhamento semanal ao cabeleireiro (a partir de 2013, a cabeça-de-casal deixou de conduzir);
r) processo de negociação do contrato de residência com a instituição Casa ..., Lar diferenciado, conseguindo-se negociar uma mensalidade vitalícia de €500,00 por pessoa.
Termina por pedir a condenação da cabeça-de-casal como litigante de má-fé, nos termos do art. 542/2 d) CPC no pagamento de uma indemnização e ainda, a exclusão do valor identificado a verba nº 4 de €50.000,00, como integrando o acervo do inventariado, que o não transferiu, nem o doou.
Considera, por fim, que se omitiram na relação de bens a relacionação das quantias de €6.500,00, em 03.02.2020 e €7.000,00, até 31.03.2020, recebidas a título de sinal, na projetada venda do imóvel sito na região de Lisboa, conforme contrato-promessa celebrado em 03 de fevereiro de 2020.
Como sobreveio a morte de seu marido, salvo melhor opinião, deverá metade de tal sinal recebido ser incluso no acervo hereditário daquele, aditando-se uma verba no valor de €6.750,00.
Em 17 de Agosto de 2011, a ora cabeça-de-casal e o ora oponente deslocaram-se a Oeiras, à casa da Quinta ..., trazendo a coleção de quadros e estátuas do inventariado para .... Em 20 de maio de 2017, foram entregues à cabeça-de casal, que, por sua vez, na mesma data, os confiou às filhas, CC e EE, que os transportaram para destino desconhecido.
Omitiu-se na relação de bens a relacionação de tais bens, que indicou e descreveu.
Mais alegaram que se omitiu na relação de bens a coleção de música clássica, de compositores vários, em formato C.D.´s , composta de 520 albuns, identificada em catálogo, pela cabeça-de-casal.
Termina por pedir que seja atendido o conteúdo da oposição, excluindo-se as verbas correspondentes ao veículo relacionado, bem como, o valor de €50.000,00 e incluindo-se os bens móveis indicados na reclamação.
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Os interessados DD e mulher vieram responder às reclamações alegando em síntese ser falso existirem dívidas a favor da herança, tal como consta da reclamação apresentada pelas herdeiras CC e EE e bem assim , a doação das quantias que ali indicam.
Admitiu, apenas que ocorreu um empréstimo por parte da cabeça de casal, a pedido do filho DD, do valor de €15.000,00, para pagamento de um cheque emitido a um empreiteiro, que executou as obras de adaptação da casa, para acolhimento do casal.
Este empréstimo foi pago em 28.03.2008 – a primeira tranche de €7.000, 00, para a conta Banco 1... do casal (NIB ...73) -, e, em 01.07.2008, por depósito, em numerário, de €8.000,00, na mesma conta.
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A cabeça-de-casal veio de igual forma pronunciar-se sobre as reclamações alegando, em síntese, que não existem outros interessados para além dos indicados e tem legitimidade para exercer as funções de cabeça.de casal.
Alega que o valor indicado pela cabeça de casal para a sepultura, foi baseado no valor praticado na localidade onde se situa a sepultura.
Quanto ao veículo automóvel de matrícula ..-..-BR, refere que o veículo se encontrava estacionado junto da residência do interessado, e como a cabeça de casal não o podia conduzir, assim como o falecido, a cabeça de casal incumbiu o interessado DD de remover o veículo e proceder ao seu abate, o que nunca fez. A cabeça de casal pagou o IUC referente ao veículo durante anos pela inércia do interessado. Não pode ser atribuída qualquer responsabilidade à cabeça de casal pelo abate do veículo só ter sido efetuado em Dez. de 2020. dado o estado de degradação em que se encontrava não recebeu qualquer valor pelo abate do veículo.
Mais alegou que em 16/11/2006, o inventariado e a cabeça de casal fizeram uma doação no valor de 50.000,00 euros ao interessado DD. A referida doação foi exigida pelo interessado DD para que os seus pais, passassem a residir com ele até ao fim dos seus dias, o que não aconteceu.
A doação deste montante não tem qualquer relação com eventuais serviços que o filho terá prestado a seus pais, até porque, a cabeça de casal contratou uma empregada doméstica para lhe prestar todos os serviços necessários, quer respeitantes à higiene pessoal, limpeza e alimentação, o que aconteceu durante o primeiro ano de residência da cabeça de casal e do inventariado, na casa do ora reclamante. Após esse ano, a cabeça de casal contratou o Centro Social ... para lhe prestar esses serviços, que incluíam a higiene diária a seu marido, fornecimento de refeições e limpeza ao quarto. Todas as despesas daí resultantes, assim como as despesas de saúde de ambos, eram suportadas pela cabeça de casal e pelo inventariado.
O valor da doação agora confessado pelo interessado DD de 60.000,00 e não 50.000,00 como estava convencida a cabeça de casal corresponde a uma doação pura e simples com a única condição de ficarem a residir com o interessado até ao fim das suas vidas.
O documento junto na oposição, intitulado “Dação em cumprimento”, mais não é do que uma tentativa de esconder a referida doação, sendo certo que esta “dação em cumprimento” foi efetuada em Outubro de 2010, cerca de 4 anos após a doação daquele montante.
Mais afirma não ter memória de ter assinado esse documento e também não tem memória de lhe terem explicado o teor do mesmo. Recorda-se a cabeça de casal de ter outorgado um testamento a favor do interessado DD, e em Outubro de 2015 se ter dirigido ao cartório notarial para proceder à sua revogação. Constatando agora pelo aqui doc. junto sob o n.º 2, este sim, que estava em seu poder, que o referido testamento foi outorgado na mesma data da referida “dação em cumprimento”.
O mesmo acontece com o documento intitulado “Declaração“, datado de 07/01/2015, ou seja, não tem qualquer memória de o ter assinado e de lhe terem explicado o conteúdo do mesmo, sendo certo que, ao verificar a data aposta na declaração, tem memória, e aliás é referido no item 46 da oposição, que no dia seguinte foi submetida a uma cirurgia cardíaca.
Reafirmou que a doação efetuada ao interessado foi para que a cabeça de casal e o inventariado passassem a residir com o filho, até ao fim das suas vidas, independentemente do estado de saúde de cada um deles.
Alega, ainda, que a doação de 60.000,00 foi efetuada em 2006 e a cabeça de casal e o inventariado só foram residir com o interessado em finais de Agosto de 2009, tal como referido no item 42 da oposição.
A habitação vitalícia não se verificou, assim como o acompanhamento na saúde, pelo que a declaração de dação em cumprimento não tem os efeitos pretendidos pelo interessado.
Considera que a verba n.º 4 não deve ser excluída da relação de bens.
Em relação ao sinal recebido do promitente comprador, e como previsto no contrato promessa de compra e venda sob condição de obtenção de autorização judicial para a venda do apartamento, foi devolvido na integra ao promitente comprador, não sendo de relacionar qualquer quantia a título de sinal recebido pela promessa de compra e venda do referido apartamento.
Quanto à coleção de quadros e de música, as mesmas não são pertença da herança, como foi reconhecido pelo interessado DD, que na qualidade de tutor nomeado no processo de interdição de seu pai, ora inventariado, que correu seus termos com o n.º 3211/11.0TJVNF no então 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de V. N. de Famalicão, quando juntou a relação de bens que compunha o património do interdito, ora inventariado, não fazendo referência à existência da referida coleção de quadros e música ora reclamadas.
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Procedeu-se à produção de prova, com inquirição das testemunhas e tomada de declarações aos interessados.
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Proferiu-se despacho com a decisão que se transcreve:
“Pelo supra exposto:
A) Determina-se a retificação da verba atinente à doação em dinheiro ao interessado DD, consignando-se o montante de 35.000,00€ doado pelo inventariado ao mesmo, para que o antedito efetivasse obras na sua habitação sita na Rua ..., ..., com a finalidade do
inventariado e da cabeça de casal residirem na predita, o que ocorreu entre 2009 e janeiro de 2016;
B) Defere-se o relacionamento da coleção de música em formato C.D.´s , composta de 520 álbuns e do valor de 3.133,96€ (três mil, cento e trinta e três euros e noventa e seis cêntimos) como saldo da conta bancária aberta em nome do inventariado na Banco 1... com o n.º ...00;
C) Indefere-se o demais peticionado.
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Custas imputadas aos reclamantes e à cabeça de casal em função do respetivo decaimento, com as quotas respetivas de 4/5 e 1/5, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (art.º 527.º/1 e 2, do Código de Processo Civil e art.º 7.º/4 e tabela II, do Regulamento das Custas Processuais)”.
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O interessado DD veio interpor recurso do despacho.
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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:
A – A sentença recorrida deve ser parcialmente revogada, corrigindo-se tal ato decisório.
B- Há erro na apreciação e contradição entre a matéria probatória testemunhal e documental existente nos autos, quanto à prova da matéria dada como não provada a ponto nº 12 da decisão recorrida – entendendo a instância recorrida, mal, que as declarações a tal respeito foram claudicantes e minguada a outra prova existente.
C- Foi mal valorada, criando uma convicção errónea da instância a favor da não prova, a prestação da cabeça-de-casal, quanto à propriedade e atualidade da existência dos quadros, conjugada com o termo de entrega que se compõe de documento nº 42, junto na reclamação, ainda conjugado com as fotografias de fls…, juntas nos autos, que atestam a retirada dos quadros de casa do interessado DD e as posicionam, ainda, na data atual, em parte na posse das interessadas CC e EE, localizando-as em Oeiras.
D- Pelo que se impõe a inserção de tal património no acervo do de cujus a partilhar, ao invés da decisão pela sua exclusão.
E- Quanto às deslocações patrimoniais da cabeça-de-casal para o interessado DD, errou a instância ao considerá-las doações remuneratórias, logo a comporem a legítima do interessado, porquanto não corresponderam a uma doação remuneratória, nos termos e para os efeitos do artº 941 do C. Civil, por visarem, da parte da doadora, aquando da sua génese, a prestação de serviços futuros, ao invés de serviços prestados preteritamente, como a doação remuneratória impunha.
F- Acresce, só muito posteriormente à constituição dos atos de liberalidade, só em sede de julgamento, é avançado pela doadora que tais atos se consubstanciaram em património em parte alheio, bem como pela lavra do inventariado- o que se não concedeu, nem ficou provado fosse do anterior conhecimento do donatário.
G- A instância recorrida errou, assim, no normativo aplicável à situação sub judice.
H- E , isto, porque na doação modal, ao contrário da doação pura, o donatário fica adstrito ao cumprimento de uma ou mais prestações (tenham ou não conteúdo patrimonial) que, porém, não correspondem a prestação correspetiva da atribuição do doador. Por isso que a responsabilidade do donatário pelo cumprimento do encargo tem como limites o valor da coisa ou do direito doados (C.Civil, artº 963º, nº 2).
I- O modo, ao contrário do ónus, é um verdadeiro dever jurídico; o que nele há de típico é o vínculo externo que o prende ao ato de liberalidade, é a função que ele exerce junto da doação ou da disposição testamentária. Ele funciona como uma limitação ou restrição da liberalidade e não como um correspetivo ou contraprestação da atribuição patrimonial proveniente da outra parte (António Varela, Obrigações, pág. 35) .
J- Em sede probatória, resultou apurado com suficiência, que o donatário filho cumpriu os encargos a que se obrigou, os quais foram cumpridos posteriormente à tradição dos valores, não sendo a posterior decisão de alteração de habitação da cabeça-de-casal um incumprimento desse encargo, porque decisão da lavra da mesma cabeça-de-casal, a qual, para concretizar tal alteração, nisso até foi coadjuvada pelo mesmo donatário.
L- Mesmo que, por mera hipótese de raciocínio, se se considerasse a alteração da residência do donatário e terceiro um incumprimento da doação modal, sempre se imporia que tal motivo de incumprimento, para ser motivo de direito de resolução tivesse sido formalmente previsto, para arguível- direito de resolução que se não salvaguardou.
M- Acresce, em documento autenticado e por sua vontade arquivado notarialmente, à data de 07 de Janeiro de 2015, a doadora veio formalmente eximir o donatário das responsabilidades, até ao limite do montante que lhe doara, fazendo-se prova nos autos de que até persistiram os atos de assistência do filho donatário após tal data - consubstanciados, desde logo, na deslocação às instituições que a mesma pretendeu ver para formar e tomar a sua decisão de mudar de residência, bem como ajudando-a na parte contratual, de que o mandatara.
N- Exonerado, pela doadora, dos encargos que se lhe impuseram e que cumprira, mal se compreendia que os mesmos, declarados extintos por tal pessoa, fossem repristinados, existentes e a serem mensuráveis e computados, em sede de cálculo de legítima, ao invés de legitimamente excluídos, porque extintos pelo cumprimento e, assim, excluídos do acervo hereditário em apreço.
O- Por último, o decisor, sem que para tal motivasse a sua convicção, não decidiu, omitindo, o pedido formulado de litigância de má-fé da cabeça-de-casal – apenas, genericamente afirmando na decisão “decaindo o demais impetrado pelos reclamantes”- , em face da pretensão daquela, desta feita em juízo, de uma posição processual e peticional que ia ao arrepio da desoneração das responsabilidades do interessado DD, por si formal e anteriormente mente declaradas, bem como pelo facto de ter sonegado a informação bancária da posição do inventariado, o que lhe era exigível e lhe foi formal e repetidamente exigido, quer pelo interessado DD, quer pelo tribunal, no decurso das várias sessões de julgamento(Vide ata de 27.01.2022 e requerimento de reclamação do recorrente).
P- Atua como litigante de má fé, a cabeça-de-casal que, no articulado de requerimento inicial alega uma realidade que se provou inexistir – a capacidade física do inventariado e deste se decidir por uma doação a favor do identificado interessado e cuja impossibilidade e inexistência forçosamente conhecia, o que significa ter ela alterado a verdade dos factos a fim de deduzir intencionalmente, portanto, com dolo, pretensão, cuja falta de fundamento não podia deixar de conhecer.
Q- Bem como sonegando informação bancária que, obtida pelo interessado, veio a consubstanciar património, o qual, só mais tarde conhecido, a integrar o acervo partilhável do de cujus (C.P.C., artº542º).
R- Decisão de sonegação que se impunha a instância formulasse, ao invés de omitir, sem fundamento, em face do pedido do interessado DD, para ser informado de tal património financeiro.
Termina por pedir que seja concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida corrigindo o seu teor.
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A cabeça de casal veio apresentar resposta ao recurso, concluindo que deve ser rejeitado quanto à reapreciação da decisão de facto, por não estarem reunidos os respetivos pressupostos, bem como, considera que não merece censura o julgamento de facto e de direito.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- reapreciação da decisão de facto;
- inclusão dos quadros na relação de bens;
- se as atribuições patrimoniais foram realizadas pela doadora e revestem a natureza de doação modal;
- da omissão de pronúncia sobre o incidente de litigância de má-fé.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal de primeira instância:
1. Em 01 de outubro de 1960, BB e AA declararam celebrar casamento civil entre si na Conservatória do Registo Civil da Beira, Moçambique, no regime de separação de bens.
2. Pela ap. 1 de 1979/01/24, afigura-se registada a aquisição a favor de BB e AA da fração autónoma designada pela letra “S” integrante do prédio urbano constituído sob o regime de propriedade horizontal sito na União das Freguesias ..., ..., ... e ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º ...26... e inscrita na matriz sob o artigo ...85.
3. No dia .../.../2020, faleceu BB.
4. Entre os anos de 2003 e 2004, a cabeça de casal AA transferiu para uma conta bancária aberta em nome do filho DD a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) proveniente dos rendimentos do trabalho efetivado pelo inventariado BB.
5. No circunstancialismo mencionado em 4), a cabeça de casal AA declarou dar a referida quantia ao filho DD, para que o mesmo efetivasse obras na sua habitação sita na Rua ..., ..., com a finalidade da mesma e do inventariado residirem na antedita até ao fim das suas vidas.
6. Em 16/11/2006, a cabeça de casal AA transferiu para uma conta bancária aberta em nome do filho DD a quantia de 50.000,00€ (cinquenta mil euros) proveniente da venda de um apartamento pertencente à mesma e ao inventariado BB.
7. No circunstancialismo mencionado em 6), a cabeça de casal AA declarou dar a referida quantia ao filho DD, para que o mesmo efetivasse obras na sua habitação sita em Santo Tirso, com a finalidade da mesma e do inventariado residirem na antedita até ao fim das suas vidas.
8. Em 2009, o inventariado e a cabeça de casal foram residir na habitação do filho DD, sita na Rua ..., ..., na qual permaneceram até janeiro de 2016.
9. À data indicada em 3), o inventariado detinha uma coleção de música em formato C.D.´s , composta de 520 álbuns.
10. À data enunciada em 3), a conta bancária aberta em nome do inventariado na Banco 1... com o n.º ...00 apresenta um saldo de 3.133,96€ (três mil, cento e trinta e três euros e noventa e seis cêntimos).
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- Factos não provados
11. Em 02/01/2008, o inventariado entregou a título de empréstimo a quantia de 15.000,00€ ao interessado, DD, sendo que o mesmo restituiu o valor de 7.000,00 (sete mil euros).
12. À data indicada em 3), o inventariado detinha 30 obras de arte.
13. Em 03/02/2020 e 31/03/2020, o inventariado e a cabeça-de-casal receberam as quantias respetivas 6.500,00€ e 7.000,00€ a título de sinal referente a contrato promessa de venda da fração, relacionada, as quais, à data mencionada em 3), eram detidas pelos mesmos.
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3. O direito
- Reapreciação da decisão de facto -
Nas conclusões de recurso, sob as alíneas A) a C), o apelante impugna a decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova.
A apelada defende a rejeição do recurso, quanto a tal questão, por entender que não se mostram reunidos os pressupostos de ordem formal, previsto nas alíneas a) e b) do nº 2 do art. 640º CPC. Considera que nas conclusões de recurso o apelante omitiu a indicação precisa dos factos e a concretização dos meios de prova que justificam a pretendida alteração da decisão de facto.
Passando à apreciação da verificação dos pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.
O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova[2].
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso com indicação dos meios de prova que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto – fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
Ponderando os critérios adiantados pelo Supremo Tribunal de Justiça na interpretação dos ónus de impugnação, podemos alinhar as seguintes conclusões.
A cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b) e c) do n.º 1, não funciona, automaticamente, devendo o Tribunal convidar o recorrente, desde logo, a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (Ac. STJ 26 de maio de 2015, Proc. 1426/08.7TCSNT.L1.S1, www.dgsi.pt ).
O ónus de impugnação não “pode ser exponenciado a um nível tal que praticamente determine a reprodução, ainda que sintética, nas conclusões do recurso, de tudo quanto a esse respeito já tenha sido alegado. Nem o cumprimento desse ónus pode redundar na adoção de entendimentos formais do processo por parte dos Tribunais da Relação, e que, na prática, se traduzem na recusa de reapreciação da matéria de facto, maxime da audição dos depoimentos prestados em audiência, coartando à parte Recorrente o direito de ver apreciada e, quiçá, modificada a decisão da matéria de facto, com a eventual alteração da subsunção jurídica (Ac. STJ 03.03.2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1 www.dgsi.pt )
Por outro lado, as conclusões visam delimitar o objeto do recurso e por isso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso ( STJ 03.03.2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1 ( www.dgsi.pt ).
Fundando-se a impugnação da decisão da matéria de facto na prova gravada a lei prevê como ónus do impugnante, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, que indique com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Considera-se que a indicação do início e termo dos depoimentos gravados não viola o comando legal que impõe que o recorrente indique com exatidão as passagens da gravação onde constam os meios de prova aí registados ( Ac. STJ 08.11.2016, Proc. 2002/12.5TBBCL.G1.S1, www.dgsi.pt ).
De igual modo se considera preenchido o ónus de impugnação quando nas alegações e nas conclusões, se identifica os concretos pontos de facto que se têm como mal julgados, se indica os meios de prova que deveriam ter conduzido a um resultado probatório diverso e se transcreve parte dos depoimentos (Ac. STJ 01.10.2015 Proc. 6626/09.0TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt )
Considera, por sua vez, ABRANTES GERALDES, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, que a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se, em alguma das seguintes situações:
“a) falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (art. 635º/4 e 641º/1 b));
b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º/1 a) CPC);
c) falta de especificação na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito);
d) falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrentes se funda;
e) falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”[3].
Está subjacente a esta interpretação, que tem sido adotada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[4], a ideia que uma interpretação restritiva dos pressupostos pode constituir uma violação ao princípio da proporcionalidade com a consequente denegação da reapreciação da decisão de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou espirito do legislador.
No caso concreto, procedeu-se à produção de prova com gravação dos depoimentos prestados e o apelante veio impugnar a decisão da matéria de facto, com indicação nas conclusões de recurso dos pontos de facto impugnados – o ponto 12 (alínea B) das conclusões de recurso). As conclusões visam delimitar o objeto do recurso e por isso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, o que foi cumprido.
Na motivação do recurso o apelante indicou a prova a reapreciar – declarações de parte, prova testemunhal e documental. Transcreveu na motivação os excertos das declarações e depoimentos que em seu entender justificam a alteração da decisão, fazendo uma apreciação crítica da prova.
Na motivação do recurso e nas conclusões indicou a decisão que sugere.
Desta forma, contrariamente ao defendido pela apelada, não tinha que indicar as provas em relação a cada facto impugnado, porque apenas impugna um único facto e o facto de não indicar nas conclusões de recurso a prova a reapreciar, tal circunstância não determina a rejeição do recurso quanto à reapreciação da decisão de facto, porque nas conclusões indicou os factos impugnados, delimitando desta forma o objeto do recurso e na motivação do recurso indicou a prova a reapreciar e a decisão que sugere.
A questão que a apelada coloca prende-se com a apreciação do mérito, ou seja, da efetiva relevância dos depoimentos na parte que se mostra transcrita, para a alteração da decisão. A desconformidade ou insuficiência da prova indicada não justifica a rejeição da reapreciação, pois apenas a omissão de prova nas conclusões ou na motivação do recurso, têm como consequência a rejeição do recurso e tal situação não se verifica no caso concreto.
Nos termos do art. 640º/1/2 do CPC consideram-se reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.
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Nos termos do art. 662º/1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:
“[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar, como refere ABRANTES GERALDES, que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”. Isto significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão, de acordo especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador[5].
Nessa apreciação, cumpre ainda, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[6].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º CC e art. 607º/5, 1ª parte CPC.
Como bem ensinou ALBERTO DOS REIS: “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”[7].
Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto – factos provados e factos não provados (art. 607º/4 CPC ).
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do despacho em que se respondeu à matéria da base instrutória que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância[8].
Por outro lado, porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[9].
Atenta a posição expressa na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[10].
Ponderando estes aspetos e procedendo à audição dos registos gravados no sistema Citius, face aos argumentos apresentados pela apelante, tendo presente o segmento da sentença que se pronunciou sobre a fundamentação da matéria de facto, não se justifica alterar a decisão de facto pelos motivos que se passam a expor.
O apelante impugna a decisão do seguinte facto julgado não provado:
- Ponto 12: À data indicada em 3), o inventariado detinha 30 obras de arte.
Em sede de fundamentação, ponderou-se:
“Ademais, a depoente [AA] admitiu a existência da coleção de CD do falecido marido e mencionou encadeadamente que a coleção de quadros teria sido vendido numa galeria, inexistindo contraprovas fundadas.
[…]
Sublinhe-se, igualmente, que o depoente [DD] se prefigurou incapaz de dimanar circunstâncias fundamentantes da existência do “sinal” e das obras de arte propugnadas na reclamação, atascando-se num manto de insubsistência,
[…]
No que se refere aos factos 11) a 13), ante as declarações marcadamente claudicantes dos interessados DD, CC, EE nesta sede fática e à míngua de outras provas, naufragou ostensivamente a demonstração dos mesmos”.
Está em causa apurar se à data do óbito o inventariado possuía ainda em seu poder uma coleção de quadros e estatuetas.
Sustenta o apelante, com base no depoimento prestado pela testemunha JJ e declarações da cabeça de casal AA, que o facto julgado não provado deve passar a constar como facto provado.
Ouvida a prova gravada (com particular dificuldade o depoimento de DD devido ao ruído de fundo permanente) não se consegue obter uma conclusão segura sobre a existência dos referidos quadros e quanto às estatuetas, nenhuma testemunha falou em coleção de estatuetas.
A cabeça-de-casal explicou que marido, o inventariado, comprou um conjunto de quadros, que estão no apartamento que não venderam, situado em Oeiras. Entre janeiro de 2016 e 20 de maio de 2017 o filho munido da procuração que a cabeça-de-casal outorgou a seu favor, encarregou uma galeria de arte em Lisboa de proceder à venda e levaram um “x” número de quadros para serem vendidos. O valor atribuído era irrisório e não venderam. A galeria não vendeu e os quadros foram para a casa de Oeiras e ficaram ao seu cuidado e das filhas. O filho DD não queria os quadros. Quando veio viver com o marido para a casa do filho trouxe os quadros consigo, os quais ficaram armazenados num armário num vão de escada na casa do filho. O filho não queria os quadros nas paredes. A cabeça-de-casal referiu, ainda, que existia uma pasta com documentos na qual o apelante, o interessado DD, guardava o comprovativo das despesas e rendimentos obtidos nas vendas que “fazíamos”, mas que desconhece onde se encontra, por não ter sido facultada pelo filho.
A testemunha JJ, neta da cabeça de casal e filha do apelante, o interessado DD, confirmou que os quadros foram transportados para a casa dos pais, quando os avós se mudaram para o norte e ficaram depositados num armário num vão de escada. Posteriormente, saíram da casa dos pais desconhecendo o local onde se encontram. Referiu não conhecer os autores das pinturas e disse, ainda, que quando esteve a estudar em Lisboa, ficou a residir na casa de Oeiras, propriedade dos avós e nessa casa não existiam quadros.
Nenhuma outra testemunha ou interessado se pronunciou sobre a matéria, relacionada com o destino dos quadros.
Resulta admitido entre os interessados que o inventariado terá adquirido um conjunto de quadros.
Quanto aos quadros que foram transportados para a região de Lisboa ( Lisboa ou Oeiras, não se apurou ), a prova mostra-se muito frágil, porque não se apurou o concreto destino, nomeadamente, se chegaram a ser comercializados ainda em vida do inventariado, já que a cabeça-de-casal se reporta a um transporte realizado entre 2016 e 2017, ainda em vida do inventariado e quando já estava a viver na Casa de Repouso ...”. Acresce que não foi feita qualquer referência aos quadros que alegadamente estarão na casa de Oeiras – nome do pintor, tipo de pintura, cores, nome do quadro, data de aquisição ou local onde foram adquiridos -, o que impede que se possa fazer um juízo exato sobre os objetos em causa e a sua existência.
Conclui-se que a decisão não merece censura e como tal deve manter-se.
Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso.
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- Inclusão dos quadros na relação de bens -
Nas conclusões de recurso, sob a alínea D), pretende o apelante que na relação de bens se incluam os quadros, no pressuposto de se alterar a decisão de facto.
Mantendo-se inalterada a decisão e não se insurgindo o apelante contra a solução de direito, nada cumpre determinar quanto a esta questão.
Improcedem, desta forma, as conclusões de recurso.
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- Das atribuições patrimoniais realizadas pela doadora e se revestem a natureza de doação modal -
Nas alíneas E) a N) das conclusões de recurso o apelante insurge-se contra o segmento da decisão que indeferiu a reclamação à relação de bens e reconheceu a doação efetuada pelo inventariado ao apelante e a sua qualificação como doação remuneratória.
Observa-se no despacho, a este respeito, o que passa a transcrever:
“ In casu, atesta-se que, em 01 de outubro de 1960, BB e AA declararam celebrar casamento civil entre si na Conservatória do Registo Civil da Beira, Moçambique, no regime de separação de bens, i.e., cada um dos cônjuges conservou o domínio de tudo quanto lhe pertenceu, nos termos consignados no art.º 1127.º, do Código Civil aprovado pela Carta de Lei de 01 de julho de 1967.
Ademais, compulsando-se a factualidade provada, afere-se que:
(i) Entre os anos de 2003 e 2004, a cabeça de casal AA transferiu para uma conta bancária aberta em nome do filho DD a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) proveniente dos rendimentos do trabalho efetivado pelo inventariado BB;
(ii) No circunstancialismo mencionado em 4), a cabeça de casal AA declarou dar a referida quantia ao filho DD, para que o mesmo efetivasse obras na sua habitação sita na Rua ..., ..., com a finalidade da mesma e do inventariado residirem na antedita até ao fim das suas vidas;
(iii) Em 16/11/2006, a cabeça de casal AA transferiu para uma conta bancária aberta em nome do filho DD a quantia de 50.000,00€ (cinquenta mil euros) proveniente da venda de um apartamento pertencente à mesma e ao inventariado BB;
(iv) No circunstancialismo mencionado em 6), a cabeça de casal AA declarou dar a referida quantia ao filho DD, para que o mesmo efetivasse obras na sua habitação sita em Santo Tirso, com a finalidade da mesma e do inventariado residirem na antedita até ao fim das suas vidas;
(v) Em 2009, o inventariado e a cabeça de casal foram residir na habitação do filho DD, sita na Rua ..., ..., na qual permaneceram até janeiro de 2016.
Sopesando-se o exposto, infere-se que o “ato de acolhimento” prestado pelo interessado DD aos pais não tinha a natureza de dívida exigível, pelo que a entrega dos 60.000,00€ não consubstanciou o cumprimento de um dever jurídico, pelo que o respetivo ato de deslocação patrimonial não é uma solutio nem uma dação em cumprimento, é uma doação remuneratória, nos termos e para os efeitos consignados no art.º 941.º, do Código Civil, i.e., um ato jurídico de sucessão em vida, que se divisa de uma doação cum moriar e de uma doação praemoriar (vd. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª edição, Coimbra Editora, p. 242 e F.M. Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Coimbra, 1992, p. 24-34).
Acresce que as doações remuneratórias presumem-se dispensadas de colação, porém, devem ser relacionadas para efeitos de cálculo da legítima (vd. Acórdão do TRP de 27/01/2015, proc. n.º 2727/09.2TBVCD-A.P1, in www.dgsi.pt ).
Em decorrência, ante o regime de separação de bens intercorrente entre o de cujus e a cônjuge sobreviva, postula-se a retificação da verba atinente à doação em dinheiro ao interessado DD, devendo consignar-se o montante de 35.000,00€ como integrante do acervo hereditário (10.000,00€ como bem próprio e 25.000,00€ na qualidade de metade presumida do valor de 50.000,00€ - produto da venda de um bem em compropriedade) na veste de doação remuneratória.[…]”
Defende o apelante que as deslocações patrimoniais foram realizadas pela doadora e visavam a prestação de serviços futuros, revestindo a natureza de uma doação modal.
Considera, ainda, que só em sede de julgamento foi avançado pela doadora que tais atos de liberalidade se consubstanciaram em património em parte alheio, bem como pela lavra do inventariado.
Argumenta, ainda, que em sede probatória, resultou apurado com suficiência, que o donatário filho cumpriu os encargos a que se obrigou, os quais foram cumpridos posteriormente à tradição dos valores, não sendo a posterior decisão de alteração de habitação da cabeça-de-casal um incumprimento desse encargo, porque decisão da lavra da mesma cabeça-de-casal, a qual, para concretizar tal alteração, nisso até foi coadjuvada pelo mesmo donatário.
Refere, ainda, que mesmo que, por mera hipótese de raciocínio, se se considerasse a alteração da residência do donatário e terceiro um incumprimento da doação modal, sempre se imporia que tal motivo de incumprimento, para ser motivo de direito de resolução tivesse sido formalmente previsto, para arguível- direito de resolução que se não salvaguardou.
Em documento autenticado e por sua vontade arquivado notarialmente, à data de 07 de Janeiro de 2015, a doadora veio formalmente eximir o donatário das responsabilidades, até ao limite do montante que lhe doara, fazendo-se prova nos autos de que até persistiram os atos de assistência do filho donatário após tal data - consubstanciados, desde logo, na deslocação ás instituições que a mesma pretendeu ver para formar e tomar a sua decisão de mudar de residência, bem como ajudando-a na parte contratual, de que o mandatara.
Exonerado, pela doadora, dos encargos que se lhe impuseram e que cumprira, mal se compreendia que os mesmos, declarados extintos por tal pessoa, fossem repristinados, existentes e a serem mensuráveis e computados, em sede de cálculo de legítima, ao invés de legitimamente excluídos, porque extintos pelo cumprimento e, assim, excluídos do acervo hereditário em apreço.

Ponderando tais argumentos, entendemos, que a decisão não merece censura no confronto com os factos provados, procedendo a um correto enquadramento jurídico dos factos.
Na relação de bens a cabeça de casal incluiu a seguinte verba:
BENS DOADOS
VERBA 4
Doação em dinheiro, no montante de €50.000,00, a seu filho/herdeiro DD”.
Cumpre ter presente desde logo que o apelante veio reclamar contra a relação de bens, pretendendo a exclusão da verba nº 4 de €50.000,00, como integrando o acervo do inventariado, por entender que o inventariado não o transferiu, nem o doou.
Contudo, é o próprio interessado a afirmar que recebeu pela mão da cabeça-de-casal o montante de €10.000,00 e mais tarde, a quantia de €50.000,00.
Resulta, assim, admitido pelo próprio apelante/ interessado reclamante que se operou uma transferência patrimonial do património dos pais para o seu património no montante global de €60.000,00.
Veio a provar-se, sem que tal matéria tenha sido objeto de impugnação por parte do apelante:
3. No dia .../.../2020, faleceu BB.
4. Entre os anos de 2003 e 2004, a cabeça de casal AA transferiu para uma conta bancária aberta em nome do filho DD a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros) proveniente dos rendimentos do trabalho efetivado pelo inventariado BB.
5. No circunstancialismo mencionado em 4), a cabeça de casal AA declarou dar a referida quantia ao filho DD, para que o mesmo efetivasse obras na sua habitação sita na Rua ..., ..., com a finalidade da mesma e do inventariado residirem na antedita até ao fim das suas vidas.
6. Em 16/11/2006, a cabeça de casal AA transferiu para uma conta bancária aberta em nome do filho DD a quantia de 50.000,00€ (cinquenta mil euros) proveniente da venda de um apartamento pertencente à mesma e ao inventariado BB.
7. No circunstancialismo mencionado em 6), a cabeça de casal AA declarou dar a referida quantia ao filho DD, para que o mesmo efetivasse obras na sua habitação sita em Santo Tirso, com a finalidade da mesma e do inventariado residirem na antedita até ao fim das suas vidas.
Estando em causa a partilha por óbito de BB apenas se pode considerar a doação efetuada pelo inventariado com dinheiro que lhe pertencia em propriedade.
O apelante pretende que se considere que a doação foi efetuada apenas pela cabeça-de-casal, o que não se provou.
Como se prevê no art. 941º CC: “é considerada doação a liberalidade remuneratória de serviços recebidos pelos doador, que não tenham a natureza de divida exigível”.
Como referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA em anotação ao art. 941ºCC: “[o] que carateriza as doações remuneratórias é a circunstância de não terem os serviços que se pretende remunerar a natureza de divida exigível; não há uma obrigação por parte do doador em relação ao donatário. Sobressai, pois, nos dizeres da lei, o princípio de que há doação sempre que haja liberdade e espontaneidade”[11].
Também RUTE TEIXEIRA PEDRO observa:”[…]o autor da atribuição patrimonial pretende remunerar os serviços prestados por outra pessoa, apesar de essa remuneração não ser devida a nenhum título e, por isso, não constituir objeto nem de uma obrigação – civil ou natural -, nem de qualquer outro dever jurídico ou social.[…]Por consequência, a atribuição patrimonial feita ao enriquecido à custa do património do atribuinte é, espontaneamente, realizada com o animus donandi que carateriza as doações”[12].
Resulta dos factos provados que as deslocações patrimoniais efetuadas com o dinheiro do inventariado ocorreram para o filho DD realizar obras de adaptação da sua casa para permitir acolher os pais, o que revela o traço que caracteriza a doação remuneratória, pois não se provou existir qualquer vínculo jurídico que justificasse tal atribuição, subsistindo em tais deslocações o espirito de liberalidade.
Desta forma, é de todo irrelevante apurar as circunstâncias em que a cabeça-de-casal efetuou as transferências patrimoniais do seu dinheiro para o seu filho, porque na partilha apenas se considera a doação realizada pelo inventariado e quanto a esta apenas se apurou o referido espírito de liberalidade. Acresce que em defesa da sua posição o apelante considera um conjunto de factos relacionados com a atitude da doadora, que não se apuraram.
Conclui-se, assim, que não merece censura a decisão que manteve na relação de bens a verba nº 4, como bem doado, reduzindo apenas o seu montante ao valor que o inventariado transferiu para o património do apelante.
Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso sob as alíneas E) a N).
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- Da litigância de má-fé -
Nas alíneas O) a R) das conclusões de recurso considera o apelante que o despacho não apreciou o pedido formulado de litigância de má-fé deduzido pelo apelante, afirmando apenas genericamente “decaindo o demais impetrado pelos reclamantes”.
A omissão dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão constitui um dos fundamentos de nulidade da sentença / despacho (art. 615º/1 b) CPC).
Porém, o apelante não veio suscitar a nulidade do despacho, vício que não é de conhecimento oficioso, o que desde logo conduz à improcedência da questão suscitada (art. 615º/4 CPC).
Por outro lado, sempre se dirá, que o apelante não formulou qualquer pedido de condenação da cabeça-de-casal como litigante de má-fé, o que obsta à apreciação de tal pretensão pelo juiz.
Na oposição deduzida suscitou diversas questões, algumas das quais com a natureza de incidente. Suscitou a oposição ao inventário, o incidente de valor da causa e a reclamação à relação de bens. Quanto à reclamação apresentada à relação de bens requer a exclusão de bens e a inclusão de verbas omitidas.
Termina a oposição com o seguinte pedido:
“NESTES TERMOS, E NOS DEMAIS DE DIREITO, QUE V. EXA. DOUTAMENTE SUPRIRÁ, DEVERÁ SER ATENDIDO O CONTEÚDO DA PRESENTE OPOSIÇAO, EXCLUINDO-SE AS VERBAS CORRESPONDENTES AO VEÍCULO RELACIONADO, BEM COMO O VALOR DE € 50.000,00, DITO DOADO PELO INVENTARIADO AO OPONENTE, MAIS SE INCLUINDO OS BENS MÓVEIS IDENTIFICADOS SUPRA A ARTºS 56º a 66º, AINDA NOTIFICANDO OS DEMAIS INTERESSADOS PARA, EM PRAZO, SE PRONUNCIAREM QUANTO AO PRESENTE ARTICULADO”.
Como se prevê no art. 3º/1 CPC o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes.
O pedido é formulado na petição e constitui a conclusão do que vem alegado (art. 552º/1 e) CPC).
A sentença/despacho não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, tal como determina o art. 609º/1 CPC. A não observância de tal regra constitui um dos fundamentos de nulidade da sentença (art. 615º1/e) CPC).
Constata-se, porém, que no meio do articulado oposição, sob o art. 54º, o reclamante alega:
“- Pelo exposto, nessa parte, requer-se a condenação da litigante em indemnização a favor dos oponentes, em quantum que V. Exa. se dignar fixar adequado à conduta processual despendida pela mesma”.
Porém, não extrai de tal alegação qualquer efeito na pretensão que veio a formular a final, na medida em que não requer a condenação da cabeça-de-casal como litigante de má-fé.
Conclui-se, também por este motivo, pela improcedência das conclusões.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e nessa conformidade:
- improcedente a reapreciação da decisão de facto;
- confirmar o despacho.
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Custas a cargo do apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
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Porto, 26 de junho de 2023
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, Julho, 2013, pag. 126.
[3] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil-Recursos nos Processos Especiais e Recursos no Processo do Trabalho, 7ª Edição Atualizada, Almedina, Coimbra, 2022, pag. 200-201
[4] Cfr. Ac. STJ 29 de outubro de 2015, Proc. 233/09 e Ac. STJ 19 de fevereiro de 2015, Proc. 299/05, ambos acessíveis em www.dgsi.pt
[5] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil, 7ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2022, pag. 334-335
[6] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Almedina, Janeiro 2000, 3ª ed. revista e ampliada pag.272.
[7] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol IV, Coimbra Editora, Coimbra, pag. 569.
[8] Ac. Rel. Guimarães 20.04.2005 - www.dgsi.pt.
[9] Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[10] ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Coimbra, Almedina, Setembro 2008, 2ª ed. revista e atualizada pag. 299 e Ac. STJ 20.09.2007 CJSTJ, XV, III, 58, Ac STJ 28.02.2008 CJSTJXVI, I, 126, Ac. STJ 03.11.2009 – Proc. 3931/03.2TVPRT.S1; Ac. STJ 01.07.2010 – Proc. 4740/04.7 TBVFX-A.L1.S1 ( ambos em www.dgsi.pt ).
[11] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA CÓDIGO CIVIL ANOTADO, vol. II, 4ª edição revista e atualizada, reimpressão, Coimbra Editora Wolters Kluwer Portugal, abril 2010, pag. 242
[12] ANA PRATA ( Coord.) Código Civil Anotado, vol. I, 2ª edição revista e atualizada, Almedina, Coimbra, 2019, pag. 1197