Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MENDES COELHO | ||
| Descritores: | CONTRATO DE GARANTIA AUTÓNOMA AUTONOMIA DO CONTRATO CESSAÇÃO DA GARANTIA | ||
| Nº do Documento: | RP202511101589/22.9T8FLG.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/10/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 5ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I – O contrato de garantia autónoma insere-se numa estrutura negocial onde se distinguem três relações contratuais entre sujeitos diversos: - o contrato principal, ou seja, aquele donde decorre a obrigação garantida e que é concluído entre o credor garantido e o devedor/ordenante; - o contrato entre o devedor e o garante, em regra um banco, pelo qual este último se vincula, mediante uma remuneração, a celebrar com o credor o contrato de garantia; este contrato tem como conteúdo a obrigação do garante de celebrar em determinados termos, aí fixados, o contrato de garantia autónoma com o credor; - e, por fim, o contrato de garantia autónoma em si, celebrado entre o banco/garante e o credor/garantido, do qual decorre a obrigação autónoma, a qual tem por objeto uma determinada quantia pecuniária. II – A autonomia do contrato de garantia significa que a obrigação do garante, além de não se moldar na obrigação garantida, é independente desta, e que, encontrando-se desta desligada, não é atingida pelas diversas vicissitudes que possam atingir esta última; como tal, o garante não pode opor ao credor/beneficiário qualquer meio de defesa decorrente da relação base donde emerge a obrigação garantida, assim como não é possível ao garante recorrer a um meio de defesa decorrente da relação entre ele e o devedor/ordenante. Os únicos meios de defesa a que o garante pode recorrer são os decorrentes do próprio contrato de garantia. III – Podendo a cessação da garantia estar dependente do que acontece com o contrato principal – aquele de onde decorre a obrigação garantida, celebrado entre o credor/beneficiário e o devedor/ordenante –, só as partes neste contrato, entre si, é que lhe podem pôr termo e/ou fazer cessar os seus efeitos em relação à garantia prestada. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo: 1589/22.9T8FLG.P1
Relator: António Mendes Coelho 1º Adjunto: Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha 2º Adjunto: Ana Paula Amorim
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório[1]
Banco 1..., CRL. Intentou ação declarativa comum contra Câmara Municipal ..., pedindo a condenação desta nos seguintes termos: “- a entregar à Autora a documentação original referente à Garantia Bancária n.º..., constituída a 21 de janeiro de 2011; - na sanção compulsória a que alude o artigo 829.º-A do Código Civil, que não deverá ser inferior a 50,00€ (cinquenta euros) por cada dia de incumprimento da douta sentença que vier a ser proferida nos presentes autos”. Para tanto, em síntese, alegou: que, a pedido de AA, prestou a favor da ré a garantia bancária n. º ..., até ao valor de € 35.500,00, destinada a caucionar a execução de obras de urbanização de um loteamento; que aquele veio a ser declarado insolvente sem que a garantia tivesse sido acionada; que, por mera cautela de patrocínio, reclamou créditos no processo de insolvência, quanto ao valor garantido, o que veio a ser reconhecido sob condição suspensiva; que com a referida declaração de insolvência a indicada garantia caducou, e caducou igualmente por via de denúncia contratualmente prevista e por si efetuada, sendo que a ré, mesmo depois de interpelada, recusa-se a entregar-lhe a mesma, o que lhe causa prejuízos por a garantia continuar no tráfego jurídico. A ré deduziu contestação, apresentando defesa por exceção, em que alega a incompetência absoluta do Tribunal e, por impugnação, defende que a relação entre a autora e o ordenante lhe é alheia e que não pode devolver a garantia sem a colaboração do ordenante, por este estar em parte incerta. A autora, notificada da contestação, invocando o disposto no art. 3º do CPC, apresentou requerimento a defender a improcedência da exceção de incompetência deduzida pela ré. Teve lugar audiência prévia e, no âmbito da mesma, foi proferido despacho saneador – em sede do qual se decidiu pela improcedência da exceção de incompetência deduzida pela ré – e subsequente despacho em que, invocando-se o disposto no art. 547º do CPC, se dispensou a elaboração do despacho a que alude o art. 596º do CPC. Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu julgar totalmente improcedente a ação, absolvendo-se a ré dos pedidos contra ela formulados. De tal sentença veio a autora interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1. A Recorrente Banco 1..., Crl., notificada da sentença proferida nos autos e com o teor da mesma não se conformando, dela interpor recurso. 2. Pelo tribunal recorrido foi proferida sentença, que determinou a improcedência da demanda instaurada pela Recorrente, tendo a Recorrida Câmara Municipal ... sido absolvida de todos os pedidos contra si formulados, com fundamento na tese de que a garantia bancária de que é beneficiária a Recorrida se mantém plenamente válida e eficaz na ordem jurídica, não podendo nem devendo a beneficiária, unilateralmente proceder à sua devolução à Recorrente, sob pena de vir a ser responsabilizada pelo ordenante, não estando preenchidos os pressupostos da caducidade. 3. A sentença proferida pelo tribunal a quo, apesar de dar como provada a factualidade invocada na petição inicial, desconsidera totalmente tudo quanto vai alegado pela Recorrente sobre a caducidade por via da comunicação remetida pela Recorrida e sobre a denúncia do contrato de garantia, através de comunicação validamente remetida à Recorrida, tendo a mesma observado todos os requisitos constantes do contrato de garantia. 4. Andou mal o tribunal a quo quando estando obrigando a pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar – designadamente sobre a caducidade nos termos referidos e sobre denúncia operada pela Recorrente e os seus respetivos efeitos – não o fez, circunstância que torna nula a sentença proferida, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil. 5. A decisão recorrida proferida pelo tribunal a quo merece sindicância pelo tribunal ad quem, uma vez que, tendo a Recorrente suscitado questões de extrema relevância que fundamentam a sua pretensão, tendo exposto o concreto modo como se operou a caducidade, a denúncia e os respetivos efeitos, o tribunal a quo estava obrigado a emitir pronúncia sobre tal questão, o que não fez. 6. A Recorrente procurou por via da presente demanda judicial obter a condenação da Recorrida na entrega da documentação original relativa à garantia bancária, fundamentando a sua pretensão em dois pilares basilares: a) a caducidade da garantia prestada; e b) a denúncia do contrato de garantia operada pela Recorrente através comunicação remetida à Recorrida. 7. Relativamente à Nulidade da Sentença por Omissão de Pronúncia, quanto à invocada questão da Caducidade da Garantia, a Recorrente traz a juízo, em sede de articulado inicial, a tese por si defendida de que a garantia bancária autónoma se encontra já caducada, em virtude de ter decorrido o prazo estipulado pela Recorrida na sua comunicação, tendo colocado à disposição do tribunal a documentação adequada para justificar a sua pretensão, designadamente a carta remetida pela Recorrida de onde constava o referido prazo para a verificação da condição de caducidade da garantia. 8. Perante isto, o tribunal a quo olvidou-se de emitir a devida pronúncia quanto ao teor da carta remetida pela Recorrida, em resposta à Notificação Judicial Avulsa apresentada pela Recorrente, designadamente no que respeita ao prazo fixado para a resposta do ordenador da garantia e a respetiva consequência de caducidade, em caso de ausência de resposta – factos que foram considerados como provados sob os números 8 e 9. 9. É certo que, relativamente aos efeitos da insolvência na garantia bancária autónoma e quanto à verificação da caducidade nesses termos, o douto tribunal a quo pronunciou-se no sentido de não se encontrar caducada a garantia, mantendo-se esta plenamente válida e eficaz na ordem jurídica, mesmo após a declaração de insolvência do ordenador da garantia. 10. No entanto, o tribunal a quo não proferiu qualquer juízo sobre a alegação da Recorrente, no que respeita à comunicação remetida pela Recorrida em resposta à Notificação Judicial Avulsa apresentada pela primeira. 11. Procurou a Recorrente expor junto do douto tribunal que do teor da comunicação remetida pela Recorrida Câmara Municipal ..., resulta a fixação de um prazo suplementar de 15 (quinze) dias para o ordenante da garantia AA, se pronunciar sobre a situação in casu. 12. Mais resulta da referida comunicação que, findo o respetivo prazo, sem que nenhuma informação fosse prestada pelo Sr. AA, haveria de se considerar caducada a garantia. Ora, tal factualidade não foi alvo do respetivo escrutínio por parte do julgador do tribunal a quo, sendo a sentença proferida omissa quanto a este particular. 13. Entende a Recorrente que a pronúncia por parte do tribunal recorrido sobre a matéria alegada por si alegada no seu articulado inicial, supra exposta, era obrigatória porquanto a verificação de caducidade da garantia, na sequência do decurso do prazo fixado, obrigaria a que fosse declarada judicialmente a caducidade da garantia e, em sequência, que fosse declarada a obrigatoriedade de entrega da documentação original da garantia à ora Recorrente, conforme peticionado por esta. A verificação ou não da condição corresponde a matéria de extrema relevância para a decisão de mérito, sobre a qual se olvidou o tribunal a quo de emitir o devido parecer. 14. É possível concluir que, tendo decorrido o prazo fixado pela Recorrida, sem que o ordenador da garantia, ou através de interposta pessoa, se houvesse pronunciado, a garantia bancária autónoma caducou. 15. Concretamente no que respeita à caducidade no contrato de garantia bancária autónoma, ainda que o regime deste contrato esteja fortemente alicerçado nos princípios da autonomia privada e da liberdade contratual, nos termos previstos no artigo 405.º do Código Civil, aquilo que podemos concluir é que esta constitui uma das exceções que permitem ao garante obstaculizar o cumprimento das suas obrigações. 16. Uma vez lida e relida a sentença recorrida, não é possível localizar uma única linha sobre a questão levantada pela Recorrente, suportada pela prova documental junta e que agora de novo se levanta em sede de apelação. 17. Entende a Recorrente que o tribunal a quo incumpriu o seu dever de pronúncia sobre a verificação da caducidade por via do incumprimento de um prazo fixado suplementarmente, matéria que se nos afigura de tal forma importante, que a sua análise poderá fundamentar a alteração do sentido decisão proferida. 18. Por ser omissa a sentença quanto a esta factualidade, e por consubstanciar esta elevada importância na resolução da presente dissidência, entende a Recorrente que, salvo melhor entendimento, a sentença proferida pelo tribunal a quo é nula por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil. 19. Perante tal nulidade, deverá a sentença recorrida ser corrigida e ser substituída por outra de onde resulte uma tomada de posição clara quanto à caducidade da garantia por via do prazo fixado pela Recorrida Câmara Municipal ..., em sede de resposta à Notificação Judicial Avulsa apresentada pela Recorrente. Sem prescindir,
20. Relativamente à Nulidade da Sentença por Omissão de Pronúncia, quanto à invocada Denúncia Contratual, ignorou o tribunal a quo que a garantia autónoma pudesse ser legitimamente denunciada pela aqui Recorrente, como, em boa verdade, veio a suceder-se. 21. A Recorrente comunicou a denúncia da garantia tanto por cartas registadas como pela Notificação Judicial Avulsa por si apresentada, argumentando que a garantia não pode ser transformada num contrato de duração indeterminada, especialmente quando tal não está previsto no contrato. 22. A apreciação do tópico da denúncia contratual comunicada à Recorrida, releva-se como uma questão extremamente importante na decisão final de mérito, pois contende com a validade da garantia e com a eficácia dos efeitos produzidos. 23. Olvidou-se o tribunal a quo de, sobre tal matéria, emitir uma pronúncia clara, circunstância que, salvo melhor entendimento, ocasiona a nulidade da sentença proferida por via da omissão de pronúncia, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil. 24. Relativamente à denúncia contratual da garantia bancária autónoma em discussão nos presentes autos, cumpre esclarecer que as partes têm liberdade contratual para acordar as condições de conteúdo do contrato, inclusive em relação à possibilidade de denúncia unilateral do mesmo; E é pelas cláusulas contratuais inseridas no texto da convenção negocial e sua interpretação e das correspondentes declarações de vontade e contexto em que foram proferidas que será possível definir a específica caracterização do contrato de garantia. 25. Desta forma, as condições da garantia, perante o beneficiário, são fixadas no próprio contrato, em concreto, no seu texto e, por isso, mostra-se necessário interpretar e entender o que, realmente, se encontra estipulado no Contrato de Garantia Bancária celebrado entre a aqui Recorrente Banco 1..., Crl. E a Recorrida Câmara Municipal .... 26. Conforme consta das condições gerais do contrato de garantia bancária, ficou estipulado no ponto 5.º, alínea b) que “a garantia pode ser denunciada pela Banco 1…, com efeitos a partir do fim do prazo ou de renovação, por registo postal endereçado aos interessados com uma antecedência mínima de 30 dias.”; a referida cláusula confere à Recorrente o direito de denunciar unilateralmente a garantia, respeitando o prazo mínimo de 30 (trinta) dias para a comunicação por Carta Registada, o que tal se sucedeu; Posto isto, resulta do próprio contrato de garantia bancária n.º ..., uma condição expressa de cessação da garantia, por via da denúncia. 27. A Recorrente fez uso da faculdade de denúncia da garantia bancária, mediante comunicação formal, nos termos seguintes: - Carta registada enviada em 11-09-2018, dando conta da cessação da garantia e das razões subjacentes; - Notificação Judicial Avulsa realizada em 21-12-2018, reforçando a posição da Recorrente e consolidando a presente denúncia - conforme factos dados como provados sob número 6 e 8. 28. Assim, mesmo que se entenda que a garantia não estava já caducada à data da propositura da presente ação, o que não se concede, mas por mera cautela de patrocínio se equaciona, a verdade é que a mesma foi regularmente denunciada pela Recorrente, tendo a denúncia sido comunicada à Recorrida, nos termos e para os efeitos contratualmente previstos, não podendo subsistir indefinidamente contra a vontade daquela. 29. Isto posto, entende a Recorrente que o tribunal a quo estava obrigado a pronunciar-se sobre a aduzida denúncia do contrato de garantia bancária autónoma, emitindo um parecer sobre o efeito atribuído às cartas dirigidas à Recorrida Câmara Municipal ..., nos termos e para os efeitos melhor previsto no contrato celebrado. 30. Não tendo o tribunal recorrido emitido pronúncia sobre a referida matéria e atendendo à relevância da mesma por consubstanciar uma exceção à manutenção do cumprimento do contrato de garantia, entende a Recorrente que deverá a sentença proferida ser considerada nula por omissão de pronúncia, produzindo-se a final os seus devidos e legais efeitos.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, devendo a sentença recorrida ser considerada nula por omissão de pronúncia e, substituída por outra que aprecie a caducidade por via do prazo fixado pela Recorrida, em sede de resposta à Notificação Judicial Avulsa e, por efeito de denúncia da Recorrente, produzindo-se a final os seus devidos e legais efeitos.”
A recorrida apresentou contra-alegações, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida.
Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.
Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são as seguintes as questões a tratar: a) – da conformação da matéria de facto a ter em conta para análise do recurso; b) – da nulidade imputada à sentença recorrida; c) – da caducidade da garantia prestada pela autora. ** II – Fundamentação
A primeira questão enunciada prende-se com a competência oficiosa deste tribunal para, constando do processo os elementos necessários, proceder à ampliação da matéria de facto, como previsto no art. 662º nº2 c) do CPC. A nosso ver, tal mostra-se pertinente em relação aos seguintes itens factuais, todos provados por documentos juntos aos autos: - teor dos documentos intitulados “Garantia Bancária” e “Condições Gerais” constantes do doc. nº1 junto com a petição inicial; - teor da carta enviada pela autora à ré e referida sob o nº6 dos factos provados, a qual integra o doc. nº4 junto com a p.i.; - teor da resposta da ré à notificação judicial avulsa que lhe foi enviada pela autora, a qual integra o documento nº7 junto com a petição inicial; - encerramento do processo de insolvência do devedor, que decorre do doc. nº9 junto com a petição inicial (integrado por cópia de anúncio do respetivo processo, anúncio esse datado de 7/7/2022). Procedendo à ampliação da matéria de facto quanto a tais itens, decide-se introduzir na factualidade provada da sentença os seguintes segmentos factuais: - no âmbito da factualidade dada como provada sob o nº1, dar como reproduzido o conteúdo dos documentos intitulados “Garantia Bancária” e atinentes “Condições Gerais”; - no âmbito da factualidade dada como provada sob o nº6, dar como reproduzida tal carta; - no âmbito da factualidade dada como provada sob o nº9, transcrever o conteúdo integral daquela resposta da ré; - acrescentar um novo ponto aos factos provados, como o nº12, a referir o encerramento do processo de insolvência identificado sob o nº3 daqueles mesmos factos e sua publicitação por anúncio com data de 7/7/2022. Na sequência das alterações ora decididas, é a seguinte a matéria de facto a ter em conta (só factos provados, pois não foram elencados na sentença recorrida quaisquer factos não provados e não foi deduzida qualquer impugnação à matéria de facto ali constante): Factos provados 1. A autora, em nome e a pedido de AA, prestou a favor da Ré, a 21 de janeiro de 2011, uma Garantia Bancária até ao valor de 35.500,00€ (trinta e cinco mil e quinhentos euros), com o n.º ..., dando-se aqui por reproduzido o conteúdo do documento que a integra, intitulado de “Garantia Bancária”, e o documento que integra as atinentes “Condições Gerais”, ambos juntos com a p.i. sob o doc. nº1. 2. A mencionada Garantia destinou-se a caucionar a boa e regular execução das obras de urbanização do loteamento localizado em ... – Vizela (...), com o processo n.º.... 3. O ordenador da garantia, AA, foi declarado insolvente no âmbito do processo n.º ..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Secção de Comércio, em 11 de fevereiro de 2015. 4. À data da declaração da sua insolvência a garantia bancária supra melhor identificada ainda não tinha sido acionada; 5. A autora reclamou créditos no identificado processo de insolvência, quanto ao valor garantido, o que veio a ser reconhecido sob condição suspensiva. 6. A autora interpelou a Ré no sentido de proceder à devolução da documentação relativa ao original da garantia bancária por carta datada de 11/9/2018, junta como doc. nº4 com a p.i. e que aqui se dá por reproduzida. 7. A ré não acedeu ao peticionado. 8. A Autora promoveu Notificação Judicial Avulsa, tendo em vista a entrega, por parte da Ré, da documentação original relativa à garantia bancária n.º .... 9. Notificada judicialmente, veio a Ré, por missiva datada de 30/1/2019, informar a Autora nos seguintes termos: 10. A não entrega do referido original da garantia bancária gera encargos à aqui Autora, na exata medida em que, nunca tendo sido acionada e mantendo-se no tráfego jurídico, continua a gerar a cobrança das comissões devidas. 11. Para poder extinguir a cobrança de comissões é necessário que o original da garantia bancária cancelada seja entregue na instituição bancária/creditícia emitente, a autora, a fim de poder declarar e atestar a sua inexistência no mercado.
12. No processo de insolvência identificado sob o nº3 ocorreu o seu encerramento, tendo a publicitação deste sido publicitada por anúncio com data de 7/7/2022. * Passemos para a segunda questão enunciada. A recorrente imputa à sentença recorrida a nulidade prevista na alínea d) do nº1 do art. 615º do CPC, por, no seu entender, o tribunal não se ter pronunciado sobre a caducidade da garantia que entende ocorrer por via da comunicação que a si foi remetida pela ré/recorrida em resposta à notificação judicial avulsa conjugada com o decurso do prazo naquela referido (comunicação essa referida sob o nº9 dos factos provados) e também por via da denúncia do contrato de garantia que entendeu ter efetuado junto daquela ré por carta de 11/9/2018 (referida sob o nº6 dos factos provados) e pela notificação judicial avulsa referida nos autos. Mas não tem razão. Como se vê da sentença recorrida, nela aborda-se a caducidade da garantia e conclui-se pela sua não verificação. Desde logo, a caducidade ali conhecida é exatamente a que a ora recorrente invoca nos artigos 7º e 8º da sua petição inicial e na carta referida sob o nº6 dos factos provados: a que, no seu entender, como decorre do teor de tal missiva, decorreria da declaração de insolvência do devedor e que, como se viu, foi julgada improcedente. Quando muito, do argumentado no recurso pela recorrente sobraria conhecer do que esta considera ser a denúncia do contrato de garantia que, no seu entender, também decorrerá da carta enviada à ré referida sob o nº6 e da subsequente notificação judicial avulsa desta e da caducidade que, no seu entender, decorre da conjugação daquela mesma notificação judicial avulsa e do decurso do prazo de 15 dias mencionado na resposta dada a esta pela ré. Note-se, porém, o que se passa a expor. Por um lado, esta “caducidade” que agora, em sede de recurso, a recorrente entende resultar do decurso do prazo de 15 dias mencionado na resposta da ré, não consta alegada na petição inicial (artigos 39 a 49) de forma minimamente clara, pois, como dali se vê, o que consta defendido é a caducidade decorrente da declaração de insolvência do devedor e de no seu âmbito não ter a ré reclamado qualquer crédito decorrente do negócio de onde emerge a garantia. E esta, como já se referiu, foi conhecida e julgada improcedente. Por outro lado, aquela alegada “denúncia” enquanto forma de cessação da garantia, também só agora, em sede de recurso, é equacionada como tal. Efetivamente, como bem se vê do alegado no artigo 40º da petição inicial, neste apenas se invoca o conteúdo de cláusula das condições gerais do contrato de garantia (cláusula 5ª, alínea b)] onde consta a expressão “A garantia pode ser denunciada pela Banco 1……” para depois, na sequência de argumentação tecida sob os artigos seguintes e norteada pela declaração de insolvência, se concluir, sob o artigo 49º, pela caducidade da garantia. Isto é, a denúncia, apenas ali indiretamente referida, foi também alegada em articulação com a declaração de insolvência para também se defender a caducidade da garantia que se entendia decorrer de tal insolvência. E esta caducidade, repetimos, foi a analisada e julgada improcedente. Pode haver, como há, discordância quanto ao mérito do decidido – a analisar no âmbito da próxima questão –, mas não há omissão de pronúncia. Assim, improcede a nulidade em apreço.
Passemos para a terceira questão enunciada. Na estrutura negocial em que se insere o contrato de garantia autónoma referido nos autos, distinguem-se três relações contratuais entre sujeitos diversos[2]: - o contrato principal, ou seja, aquele donde decorre a obrigação garantida – no caso, a boa e regular execução das obras de urbanização do loteamento localizado em ... – Vizela (...), com o processo n.º... (nº2 dos factos provados) – e que é concluído entre o credor garantido (no caso, a ré Câmara Municipal ...) e o devedor/ordenante (no caso, AA); - o contrato entre o devedor e o garante, em regra um banco, que no caso é a autora, pelo qual este último se vincula, mediante uma remuneração (comissão do banco), a celebrar com o credor o contrato de garantia; este contrato tem como conteúdo a obrigação do garante de celebrar em determinados termos, aí fixados, o contrato de garantia autónoma com o credor; - e, por fim, o contrato de garantia autónoma em si, celebrado entre o banco/garante e o credor/garantido, do qual decorre a obrigação autónoma; este é o contrato de que emerge aquela obrigação, a qual tem por objeto uma determinada quantia pecuniária, e no qual são fixadas as condições de tal garantia, nomeadamente saber se se trata de uma garantia autónoma simples ou à primeira solicitação, quais os documentos a apresentar com o pedido por parte do garantido, o prazo decorrido o qual, sem ter sido executada, a garantia cessa, etc…. Cumpre ainda notar, conforme autor e obra citados na nota anterior (pág. 146), que a autonomia do contrato de garantia “significa que a obrigação do garante, além de não se moldar na obrigação garantida, é independente desta”, e que, encontrando-se desta desligada, “ela não é atingida pelas diversas vicissitudes que possam atingir esta última”. Como tal, “o garante não pode, está impedido, de opor ao credor/beneficiário qualquer meio de defesa decorrente da relação base donde emerge a obrigação garantida: sua nulidade, anulação, resolução, ou qualquer outra exceção daí decorrente”, assim como “[n]ão é possível igualmente ao garante recorrer a um meio de defesa decorrente da relação entre ele e o devedor/ordenante”. Isto é, “[o]s únicos meios de defesa que o garante pode recorrer são aqueles decorrentes do próprio contrato de garantia”. No caso vertente, a recorrente conformou-se com a improcedência da caducidade da garantia por referência à declaração da insolvência do devedor/ordenante decidida na sentença recorrida. Está pois em causa nesta sede de recurso apenas apurar da caducidade da garantia sob a veste que a recorrente, em sede de questionamento do mérito do decidido, entende que decorre da “denúncia” que defende ter feito junto da ré e entende que também decorre do decurso do prazo de 15 dias mencionado na resposta a si dada pela ré à notificação judicial avulsa que lhe enviou (factos provados sob os nºs 6 a 9). Vejamos então. Desde logo, quanto àquela “denúncia”, cumpre precisar que a mesma, estando contemplada nas “Condições Gerais” atinentes à garantia autónoma, não está prevista no clausulado desta. O documento que integra tal garantia, com o título “Garantia Bancária” (nº1 dos factos provados), e que constitui o terceiro contrato a que nos referimos supra, ainda que não assinado pela ré (como dele se vê), foi a esta entregue pela autora e, naturalmente, foi por esta aceite (se assim não fosse não o tinha na sua posse e a autora não lhe estava a pedir a sua entrega por via da ação), do que decorre que os termos contratuais nele exarados foram por si aceites. Mas já com aquelas “Condições Gerais” tal não acontece: estas integram o segundo contrato a que nos referimos supra e, como tal, não vinculam a ré. Aliás, como se vê do documento que as integra, este só se mostra assinado pela autora e por quem nele figuram como garantidos – no caso, o devedor que veio a ser declarado insolvente referido sob o nº1 dos factos provados e a sua esposa –, mas não pela ré. Como tal, a denúncia ali prevista sob as alíneas a) e b) da cláusula 5ª – na primeira, por parte do garantido, na segunda, pela Banco 1…/autora – é invocável entre tais partes naquele contrato, de uma para a outra, mas não é invocável, a prevista na alínea b), pela autora/banco garante perante o credor/beneficiário. É o que decorre da autonomia do contrato de garantia e da sua independência relativamente às relações entre o garante e o devedor/ordenante. E tanto bastaria para afastar o funcionamento da denúncia prevista sob aquela alínea b). No entanto, ainda que, por hipótese, se entendesse que a denúncia prevista naquela alínea b) era suscetível de ser acionada pela autora contra a ré/credor beneficiário – o que só se equaciona para efeito do raciocínio que se vai passar a expor –, também facilmente se conclui pela sua ineficácia. Como se dispõe naquela alínea, “A garantia pode ser denunciada pela Banco 1…, com efeitos a partir do fim do prazo ou de renovação, por registo postal endereçado aos interessados com uma antecedência mínima de 30 dias…”. De tal disposição decorre que a denúncia ali prevista, sendo acionada, só tem efeitos a partir do fim do prazo da garantia ou da renovação de tal prazo (caso tal renovação tenha ocorrido). Como consta do documento que integra a garantia autónoma, esta, como se dispõe no seu nº1, foi subscrita em 21 de janeiro de 2011 “mantendo-se válida até à receção definitiva das obras de urbanização”, prevendo-se depois sob o seu nº2 [onde se dispõe que “O valor total da presente garantia, é, pois, de 35.500,00 euros (…), ficando entendido que logo que a mesma deixe de surtir efeito, esse facto será imediatamente comunicado por escrito à BENEFICIÁRIA”] que verificado entendimento no sentido de que a mesma deixou de surtir efeito, seria este facto imediatamente comunicado à beneficiária/ré. Isto é, o fim do prazo da garantia não está ali referenciado a data certa mas apenas por referência à receção definitiva das obras que o devedor/ordenante se terá obrigado a efetuar no âmbito do contrato que celebrou com a ré (nº1) e também quando ocorresse entendimento no sentido de a mesma ter deixado de surtir efeito (nº2), sendo que esta última previsão podia ocorrer por via da receção das obras referida sob o nº1 ou, eventualmente, por via de qualquer outra forma de cessação da relação contratual de onde emerge a obrigação garantida e que assim tivesse sido entendida pelas respetivas partes (devedor/ordenante e ré). Ora, por um lado, nada se apurou, nem foi alegado, sobre aquela receção definitiva das obras. Sabe-se que o devedor foi declarado insolvente por decisão proferida a 11 de fevereiro de 2015, não se sabe o que aconteceu àquele contrato em curso – nomeadamente por via da disciplina prevista nos nºs 1 e 2 do art. 102º do CIRE – e, por outro lado, sabe-se que o processo de insolvência foi entretanto encerrado (nº12 dos factos provados), do que decorre, como previsto no art. 233º nº1 do CIRE, que por via de tal encerramento o devedor recupera o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios e cessa a inibição dos seus credores de exercerem os seus direitos contra ele. Por outro lado, resulta da resposta da ré à notificação judicial avulsa da autora que o contrato que aquela celebrou com o devedor/ordenante ainda se mantém vigente entre ambos, não podendo pois ter ocorrido algo que se subsuma àquela receção definitiva das obras nem a qualquer outra forma de cessação daquele contrato para a qual tenha havido entendimento entre as suas partes. Assim, aquela denúncia, por força do próprio fim do prazo da garantia aposto no contrato, não pode produzir qualquer efeito, pois nem sequer se apurou ter ocorrido o momento por referência ao qual a mesma se poderia acionar. Além disso, não ocorreu qualquer outra forma de cessação daquele contrato para a qual tenha havido entendimento entre as suas partes e que tivesse sido comunicada à ré de modo a poder pôr termo à garantia autónoma nos termos previstos no nº2 do documento que a integra. Como tal, não ocorre, por qualquer das vias referidas, a pretendida “denúncia” da garantia.
Passemos agora à “caducidade” da garantia que, no entender da autora, decorre da conjugação da notificação judicial avulsa por si enviada à ré e do decurso do prazo de 15 dias mencionado na resposta dada pela ré (nºs 8 e 9 dos factos provados). Como claramente resulta desta resposta da ré à autora, “a caducidade da deliberação de deferimento datada de 16 de dezembro de 2009” cuja declaração ali se alude tem a ver com o processo de obras ali também identificado e de que o insolvente foi requerente, e não, como nos parece óbvio, com a caducidade da garantia. Aliás, nem a ré podia, por si, declarar a caducidade da prestação da garantia, pois o contrato de garantia de que é beneficiária é, como se viu, autónomo do contrato celebrado entre o devedor e o banco/garante e só em sede deste é que as partes nele contratantes podem dispor sobre os termos da sua cessação. Por outro lado, podendo esta cessação estar dependente do que acontece com o contrato principal – aquele de onde decorre a obrigação garantida, no caso celebrado entre a ré e o devedor/ordenante –, só as partes neste contrato, entre si, é que lhe podem pôr termo e/ou fazer cessar os seus efeitos em relação à garantia prestada. E terá sido na consideração deste circunstancialismo que, tanto quanto nos parece, a ré, na sequência da notificação judicial avulsa a si enviada pela autora, notificou o devedor para, por via de mecanismo decorrente de tal notificação, poder vir a declarar a caducidade da deliberação camarária proferida no âmbito do processo de obras e, por essa via, pôr termo ao contrato celebrado entre si e aquele. De qualquer modo, a declaração de caducidade ali aludida – a ocorrer no âmbito do processo de obras – só compete à ré, como entidade administrativa que tem o domínio e direção daquele processo administrativo, e não tem nada a ver, como se viu, com a caducidade da própria garantia autónoma. Esta caducidade ou extinção da garantia pode vir a ocorrer por via da cessação do negócio principal que está na sua base, mas esta cessação só pode ser decidida ou acordada pelas partes em tal contrato e não pelo banco garante. Ora, além do informado pela ré naquela notificação judicial avulsa, nada mais resulta apurado nos autos, designadamente no sentido de se saber se aquela ali referida caducidade do processo de obras foi ou não declarada ou até se, por qualquer outra forma, ocorreu a cessação da relação contratual de onde emerge a obrigação garantida. Assim sendo, continua a vigorar o contrato principal, continua a vigorar o contrato entre o devedor/ordenante e a autora/garante (pois não ocorreu a receção das obras de urbanização nem foi, por uma qualquer outra forma, posto termo ao contrato principal) e também continua a vigorar o contrato de garantia, pois este é autónomo, no sentido anteriormente referido, de qualquer dos contratos anteriores. Como tal, há que concluir pela improcedência dos pedidos formulados pela autora.
Em conformidade com tudo quanto se veio de expor, há que julgar improcedente o recurso e, pelas razões referidas e que acrescem à fundamentação da mesma, confirmar a decisão recorrida.
As custas do recurso ficam a cargo da recorrente, que nele decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC). * Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC): ……………………………… ……………………………… ……………………………… ** III – Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida. Custas pela recorrente. *** Mendes Coelho Eugénia Cunha Ana Paula Amorim _______________ [1] Segue-se, com pequenas alterações, o relatório da decisão recorrida. [2] Vide, sobre a matéria, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito das Garantias”, 3ª edição, Almedina, 2020, págs. 139 a 141. |