Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | JOSÉ MANUEL CORREIA | ||
| Descritores: | RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO REGRAS DE CONVIVÊNCIA E DE RELACIONAMENTO SOCIAL UTILIZAÇÃO IMPRUDENTE DO LOCADO REALIZAÇÃO DE OBRAS NO LOCADO | ||
| Nº do Documento: | RP202410241764/21.3T8VNG.P1 | ||
| Data do Acordão: | 10/24/2024 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | REVOGAÇÃO | ||
| Indicações Eventuais: | 3.ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Ao senhorio é facultada a resolução do contrato de arrendamento escudado na verificação das circunstâncias previstas nas alíneas do n.º 2 do art.º 1083.º do C.C. ou fora delas, isto é, em comportamentos do arrendatário que representem violação de outra(s) disposição(ões) legal(is) ou estipulação(ões) contratual(is). II - Quer num caso, quer noutro, contudo, a resolução do contrato pelo senhorio pressuporá sempre a verificação da cláusula geral da inexigibilidade da manutenção do arrendamento prevista no corpo daquele normativo. III - As circunstâncias previstas na alínea a) do n.º 2 - violação de regras de higiene, de sossego ou de boa vizinhança ou de normas constantes de regulamento de condomínio - compreendem situações de incumprimento de regras de ‘convivência’ e de ‘relacionamento social’, pelo que só relevam como causa de resolução se houver repercussão no espaço exterior ao locado e se atinja ou possa atingir a esfera pessoal ou jurídica de terceiros. IV - Circunstâncias que representem falta de higiene, mas circunscritas ao interior do locado, a relevar, relevarão, sim, enquanto violação da obrigação do arrendatário de não fazer do locado uma utilização imprudente, atento o disposto na alínea d) do art.º 1038.º do Código Civil. V - Uma cláusula em que se estipula que “dada a necessidade de realização de obras no locado” e em que se comete a obrigação da sua realização ao arrendatário, descontando este o seu custo nas 360 rendas que terá de pagar ao longo dos trinta anos de arrendamento, significa, interpretada nos termos dos art.ºs 236.º e 238.º do C.C., não só a constituição da obrigação, como que a mesma deve ser cumprida no período inicial da execução do contrato. VI - Apesar de, não sendo as obras, pela sua natureza, de realização imediata e não tendo as partes previsto um período concreto e delimitado no tempo para a sua execução, não é de questionar a necessidade de fixação judicial de prazo (através do processo especial previsto nos art.ºs 1026.º e 1027.º do C.P.C.) quando, de acordo com as circunstâncias, decorreu já, desde a constituição da obrigação, um período mais do que suficiente para a realização das obras. VII - Nesses casos, por força do princípio da boa fé (art.º 762.º, n.º 2 do CC), não é lícito ao obrigado à realização das obras servir-se do ‘puro pretexto’ do não estabelecimento de um prazo concreto e delimitado no tempo para ‘retardar o cumprimento da obrigação’. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 1764/21.3T8VNG.P1 - Recurso de apelação Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, Juiz 2 Recorrente: AA Recorrida: A..., Lda. * Sumário ……………………………. ……………………………. ……………………………. * * * - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, I.- Relatório .- AA instaurou a presente ação declarativa constitutiva, sob a forma de processo comum, contra A..., Lda., que, entretanto, alterou a sua designação social para B..., Lda., pedindo que, pela sua procedência, seja: a.- reconhecida ou decretada a cessação jurídica do contrato de arrendamento, por resolução, por violação das obrigações contratuais e legais invocadas na petição inicial; b.- condenada a Ré na entrega do locado, imediatamente, livre de bens e pessoas. Para tanto, e em síntese, alegou o seguinte. É proprietário da fração autónoma correspondente ao andar sito na Rua ..., ..., letra “AP”, Vila Nova de Gaia, desde maio de 2018, data em que a adquiriu em ‘hasta pública’. Tal fração autónoma, por contrato de arrendamento habitacional celebrado em 5 de agosto de 2005, fora dada de arrendamento pelo seu então proprietário à Ré, pelo prazo de 30 anos. A renda mensal acordada foi a de € 200,00; todavia, por acordo entre senhorio e inquilina, expresso no contrato, esta, dada a necessidade de obras no locado, assumiu a obrigação de realizá-las, sendo o seu valor, de € 50.000,00, descontado nos 360 períodos mensais do contrato ao valor da renda mensal, isto é, descontando-se € 138,88 ao valor acordado para a renda mensal. Sucedeu que, contrariamente ao acordado, não foram realizadas quaisquer obras pela Ré, apesar de a inquilina continuar a pagar de renda a quantia mensal de € 61,12. Acresce que o locado, conforme pode (o Autor) constatar em visitas que fez no exercício do seu direito de inspeção, encontra-se num estado de total falta de higiene, limpeza e asseio, em termos que concretiza. Os factos assim relatados constituem incumprimento contratual da inquilina que, pela sua gravidade e reiteração, torna inexigível a manutenção do contrato de arrendamento, tendo, por isso, justa causa de resolução do mesmo. Neste pressuposto, por carta expedida em 21 de dezembro de 2018, comunicou à inquilina a resolução do contrato, tendo por base os fundamentos acima enunciados e o disposto no art.º 1083.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) do Código Civil. Conclui, pelo exposto, que o contrato de arrendamento dos autos deve ser resolvido, nos termos peticionados. * Válida e regularmente citada, apresentou a Ré a sua contestação, defendendo-se por exceção e por impugnação.Por exceção, começou por invocar a exceção dilatória de nulidade de todo o processo fundada em ineptidão da petição inicial, argumentando com o facto de o Autor cumular na petição inicial causas de pedir substancialmente incompatíveis. Também por exceção, desta feita perentória, invocou a exceção de renúncia do Autor ao direito de indemnização decorrente de atraso no pagamento das rendas devidas. Segundo a Ré, o Autor, além de não emitir os competentes recibos, apesar de por ela solicitados, recebeu as rendas sem fazer ressalva ou contradeclaração, pelo que a sua demanda (da Ré) nestes autos constitui violação da legítima confiança que lhe foi criada de que tal não iria ocorrer. Ainda por exceção perentória, invocou a prescrição do direito do Autor quanto às rendas vencidas há mais de 5 anos, isto é, até março de 2016 e, bem assim, a de caducidade do direito de pedir a resolução do contrato de arrendamento, no pressuposto, quanto à caducidade, de o Autor já ter conhecimento há mais de um ano do facto que, na presente ação, invoca como fundamento de resolução. Por impugnação, além de precisar que o contrato de arrendamento foi celebrado em 2015 e não em 2005, como referido na petição inicial, referiu que, contrariamente ao alegado neste articulado, foram efetivamente realizadas obras no locado, tal como previsto no contrato de arrendamento. Acrescentou que o locado, desde finais de setembro de 2018, vinha sendo afetado por abundantes infiltrações provenientes do andar superior e da fachada do prédio, facto do qual foi informado em 15 de outubro de 2019. Por decorrência de tais infiltrações, o locado apresentou sinais de deterioração, comprometedores, inclusive, da possibilidade de nele se residir. Tais vicissitudes, contudo, nunca foram resolvidas, pelo que o referido pelo Autor na petição inicial quanto ao estado de conservação do edifício é consequência das infiltrações, que perduraram desde setembro de 2018 até julho/agosto de 2019. Conclui, em face do exposto, que ao Autor não assiste o direito de que se arroga titular. * Juntamente com a contestação, deduziu a Ré reconvenção, pedindo que, em caso de procedência da ação, seja reconhecido o seu crédito no montante suportado a título de benfeitorias úteis ao locado e não amortizado nos termos do contrato, à razão de € 139,89, até perfazer os previstos 360 meses de duração contratual e sempre no montante mínimo de € 16.605,67, correspondente às benfeitorias comprovadas documentalmente.Para tanto, e em suma, invocou que, como acordado no contrato de arrendamento, realizou obras no locado, que descreve, no valor de, pelo menos, € 16.605,67, pelo que, consistindo tais obras em benfeitorias úteis, deve o Autor ser condenado a pagar-lhe o valor correspondente, caso se entenda que lhe assiste o direito de ver resolvido o contrato de arrendamento dos autos. * O Autor replicou, impugnando o alegado pela Ré em suporte da reconvenção deduzida e concluindo tal como fizera na petição inicial.* Dispensada a audiência prévia, foi proferido:.- despacho a admitir a reconvenção deduzida; .- despacho saneador, no qual, além de fixado o valor da causa em conformidade com o resultante da soma dos valores da ação e da reconvenção indicados pelas partes, se julgou improcedente a exceção de nulidade do processo fundada em ineptidão da petição inicial, aduzida pela Ré; .- despacho a dispensar a fixação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova. * Teve lugar a audiência de discussão e julgamento.* Foi proferida sentença, julgando improcedente a ação e absolvendo a Ré dos pedidos formulados.* Inconformada com esta decisão, dela veio o Autor interpor o presente recurso, pugnando pela revogação da sentença e pela sua substituição por outra que julgue a ação procedente e condene a Ré nos pedidos que lhe dirigiu.Para o efeito, formulou as seguintes conclusões, que assim se transcrevem: A.- Versa o presente recurso sobre a Decisão da matéria de Facto e de Direito, porquanto entende o Apelante que existe um facto concreto que o Mmo. Tribunal a quo deveria ter dado por provado e, tendo decidido em contrário, incorreu em erro de apreciação da prova; bem assim, incorreu em clamorosos erros de interpretação e decisão de Direito, conforme infra se exporá. B.- As pequeníssimas reparações que foram feitas no Apartamento em questão, não o foram feitas pela Ré e não o foram feitas na vigência do contrato de arrendamento. C.- Nunca poderia ter sido dado como provado o facto numerado como 15 na douta Sentença. D.- E dever-se-ia ter dado como provado o facto, correspectivo, na douta Sentença designado pela letra B, e que aí se declara como não provado. E.- Essas tais obras, na verdade pequeníssimos arranjos, pequenas reparações, no apartamento locado, são descritas, pelo próprio depoente – testemunhar nuclear a esse facto provado – como tendo acontecido num tempo anterior ao da celebração do contrato de arrendamento (Agosto de 2015). F.- Coerentemente, quem contratou o depoente para a realização de tal serviço foi, segundo o próprio, BB e o filho deste, CC, representantes da empresa C..., Lda., ou seja, representantes da empresa primeira contraente do Contrato de Arrendamento dado na Petição Inicial como documento n.º 2. G.- O depoente não conhece a 2ª contratante daquele contrato de arrendamento, ou seja, não conhece a obrigada a realizar obras no locado… H.- As pequenas reparações, ainda para mais não pagas, que menciona, dizem sempre respeito a serviços contratados pela 1.ª outorgante do arrendamento, a proprietária, e sempre num tempo que é anterior a 2015… I.- Pelo que, nunca poderia ter sido declarado provado terem-se realizado as obras, quando o tempo e o autor das “obras” que são descritas não corresponde ao obrigado e ao tempo da obrigação. J.- Por outro lado, o Tribunal a quo interpretou, erradamente, a cláusula 7ª do contrato de arrendamento em causa como não circunscrita a um período temporal ou mesmo ao período inicial da vigência do contrato, conjecturando assim um “prolongamento” da obrigação da Ré por um período de 30 anos… K.- A própria Ré não reconhece esse prolongamento, nem se sente obrigada, sendo que essa seria uma novidade absoluta na relação entre Autor e Ré. L.- A Ré declarou sempre que já cumpriu a obrigação em causa e que não pretende cumpri-la mais ou de novo, no todo ou em parte. M.- Ademais, o Autor interpelou a Ré sobre as obras que deveriam ter sido realizadas – interpelação também dada como provada na Sentença de que ora se recorre, nos seus pontos 7. e 8. –, e fê-lo logo no momento em que se apercebeu dos contornos do contrato em que sucedeu. N.- A interpretação que o Tribunal a quo faz sobre a natureza da obrigação em questão é absolutamente desligada do tipo de contrato subjacente e do contexto específico da sua celebração. O.- A referida obrigação é celebrada precisamente para ser cumprida de imediato, no período inicial de vigência de contrato. P.- A isso conduz, desde logo a letra do contrato. Q.- Pois que se se verifica uma necessidade de obras/“dada a necessidade”, tal realidade manifesta-se no tempo presente e tem de ser resolvida no imediato. R.- Bem como, o facto de não ser previsto contratualmente qualquer actualização ao valor das obras, com o passar dos anos. S.- Até porque, se as partes quisessem ter estipulado a obrigação que o Tribunal descortinou existir, teriam escrito simplesmente “até ao final do presente contrato”. T.- Acrescendo a tudo isto o facto de estarmos perante uma obrigação de obras de conservação assumida pelo locatário, no âmbito de uma relação locatícia onde normalmente incumbem essas obras ao proprietário/senhorio. U.- Pois que o apartamento tem condições mínimas de habitabilidade, como as duas peritagens efectuadas ao mesmo e cujo relatórios constam dos autos o demonstram, e por isso a renda nunca se cifraria em € 61/mês…, num apartamento no centro de Vila Nova de Gaia. V.- Nos termos do contrato, isso só assim foi acordado porque, à cabeça, haveria um específico, e avultado, investimento da inquilina no valor de € 50.000,00. X.- Por último, a ocorrência de falta de higiene no locado foi provada em diversíssimas visitas efetuadas ao mesmo – isso é dito inclusive (!) na Sentença de que ora se recorre, no ponto 11. dos factos provados. Z.- Foram várias as visitas onde isso se verificou; são variadas as testemunhas que assim depuseram; foram vários os dias de ocorrência e vários os anos em que se verificam situações anómalas. AA.- Houve ademais outra Sentença Judicial onde isso foi declarado, noutro processo judicial – providência cautelar n.º 8089/21 Juízo Central Cível de V. N. de Gaia – J2–, também essa declaração correspondente a outro momento temporal - vide track 15:41 – 15:56 – Mandatário: DD, min. 11:40 e ss. BB.- Ficando claramente demonstrado nos autos que o facto é continuado e gravoso; e que só sofreu uma modificação e rectificação no momento em que mudam os sublocatários do apartamento, embora isso ocorra num tempo em que já decorre o presente processo. CC.- É a esta última proposição em que estriba o Tribunal a quo o seu raciocínio, cremos que mal DD.- Pois que, está prevista legalmente a possibilidade de o arrendatário paralisar os efeitos da resolução de um arrendamento, cumprindo, apenas nas situações em que o senhorio fundamenta a resolução na falta de pagamento de renda (artigo 1084.º, n.º 3 CC). EE.- Fora deste caso, estar-se-á a interpretar contra legem. FF.- Os danos produzidos por tantas outras situações da vida que legitimam a resolução de um arrendamento não são sanados por mero acatamento posterior, e legitimam – se invocados no tempo certo – uma resolução contratual. GG.- Nem o posterior cumprimento – já na pendência da acção judicial! – tem a veleidade de apagar e retirar efeitos ao fundamento de resolução cuja existência a seu tempo adequadamente se provou. HH.- É essa a interpretação que leva o Tribunal a também não dar como provado esse fundamento de resolução do contrato, embora não fora essa errada interpretação forçoso seria – como é, atenta toda a matéria dada por provada – decidir pelo pleno provimento do petitório do Autor, pois que provados estão fundamentos de resolução do contrato de arrendamento. * A Ré respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da sentença proferida.Para o efeito, formulou as seguintes conclusões, que se transcrevem: A.- O Autor, no recurso, descontextualiza as declarações das testemunhas (socorrendo-se de partes desses depoimentos), valendo-se das suas declarações e das do próprio mandatário, apesar de não constituírem meios de prova. B.- Alega que a testemunha EE terá trabalhado para outra empresa, em outro tempo, mas olvida que, junto aos autos, como Doc 22, junto com a contestação, constam a tal factura, não paga, a qual vem emitida à Ré e não a outra qualquer entidade. C.- Na reapreciação da prova feita pela 2ª instância, não se procura obter uma nova convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável, atendendo aos elementos que constam dos autos, e aferir se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido. D.- O julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo. E.- A alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância. F.- Tendo em conta as regras do ónus da prova, e conjugando os depoimentos das testemunhas com os demais elementos probatórios não podem restar dúvidas que os factos constantes do ponto 15 da matéria de facto provada e alínea B) dos factos dados como não provados devem manter-se inalterados, confirmando-se a análise crítica efectuada pelo Tribunal de Primeira Instância quanto a essa factualidade. G.- Na falta de estipulação das partes ou de disposição especial da lei, a obrigação é pura, ou seja, o credor pode exigir a todo o tempo a sua realização, assim como o devedor pode apresentar-se a todo o tempo a cumprir. H.- Nos termos do disposto no artigo 779.º “O prazo tem-se por estabelecido a favor do devedor, quando se não mostre que o foi a favor do credor, ou do devedor e do credor conjuntamente.” I.- Tendo a obrigação um prazo para ser cumprida e estando o mesmo estabelecido a favor do devedor, a mesma só se vence no final do prazo, independentemente de interpelação do devedor. J.- Não havia para os então senhorios premência no que respeita quer ao momento do início, quer ao momento do termo das obras a realizar e houve o propósito de não firmar um contrato com estipulações rígidas no que respeita ao início e termo das obras. K.- Inexiste, pois, qualquer mora ou incumprimento da Ré que legitime a resolução pretendida pelo Autor. L.- No facto 11 escreveu-se “Nas visitas que o autor realizou ao locado, logo após a aquisição do mesmo…” e no facto 2 -“Tal qualidade adveio da aquisição do imóvel, em 3 de Maio de 2018, em processo de execução fiscal que correu contra o anterior proprietário. M.- Inexistindo factos dados como provados quanto a visitas posteriores e não apontando o recorrente onde a existência de prova em contrário, nenhum vício se pode apontar à douta sentença quando escreve “não se provou que a falta de higiene e desarrumação tenha perdurado no tempo,..” N.- Tendo alegado na petição inicial que o contrato de arrendamento se extinguiu por resolução e denúncia, que operou efeitos em certa data e ao mesmo tempo vir invocar causas legais para a resolução do mesmo, o que pressupõe a sua vigência atual, verifica-se uma acumulação de causas de pedir substancialmente incompatíveis, geradores da ineptidão da petição inicial e da nulidade de todo o processo, a impor a absolvição do réu da instância. O.- Tendo as visitas ao locado ocorrido em data anterior a 06 de Julho de 2018, data em que requereu a notificação judicial avulsa e sempre Janeiro de 2019, já que relatadas na petição inicial que apresentou e que deu origem ao processo n.º 965/19.9T8VNG que correu termos no Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia, juiz 3, junta pela Ré como Doc 2 com a sua contestação, onde expendeu as mesmas considerações e onde juntou as mesmas fotografias que juntou nestes autos, sobre factos ocorridos no decurso de 2018. P.- Tendo a presente acção dado entrada em 04/03/2021, há muito havia decorrido o prazo de um ano, a que alude o artigo 1085º do CC, pelo que manifesta a caducidade do direito de resolução, caducidade essa arguida pela Ré. Q.- Não tendo o Autor alegado factos posteriores ao ano de 2018, forçoso é concluir pela caducidade do seu direito e, como tal, pela manifesta improcedência da presente acção. R.- Juntos aos autos depósitos das rendas sub judice cabia ao Autor, não concordando com a existência dos pressupostos para a consignação e/ou valor, impugnar os mesmos, no prazo de 20 dias – artigo 21º da referida Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro. S.- Não o tendo feito, têm-se os mesmos por aceites, o que conduzia, também por essa via, à improcedência da acção. * O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.* Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.* * * II.- Das questões a decidir .- Previamente à delimitação das questões a decidir no presente recurso, importa dizer o seguinte. A Apelada, na sua resposta ao recurso interposto pelo Apelante, suscita, na conclusão N, a questão da ineptidão da petição inicial com que a presente ação foi introduzida em juízo. Trata-se, contudo, de questão cuja apreciação não tem cabimento no presente recurso. Com efeito, a exceção em causa foi, como resulta do relatório deste Acórdão, suscitada pela Apelada na contestação e efetivamente decidida pela 1.ª instância no despacho saneador proferido. O sentido da decisão proferida foi o da improcedência da exceção, com fundamento no disposto no art.º 186.º, n.º 3 do CPC, pelo que houve decaimento da Apelada no que diz respeito à questão que suscitara. Tendo decaído, incumbia à Apelante interpor recurso do despacho saneador proferido, a título independente, nos termos do disposto no art.º 644.º, n.º 3 do CPC, ou subordinado, nos termos do disposto no art.º 633.º, n.º 1 do mesmo código. A Apelada, contudo, não o fez, limitando-se agora a invocar a exceção em apreço na sua resposta ao recurso, como se de mero argumento de defesa se tratasse, não seguindo, assim, o mecanismo processualmente adequado para o efeito. De resto, ao não interpor recurso independente ou subordinado do despacho saneador proferido pelo tribunal a quo, este transitou em julgado, na parte em que nele se apreciou a exceção dilatória aqui em causa, tendo, consequentemente, força obrigatória dentro deste processo (art.º 620.º, n.º 1 do CPC). Não há, pois, em face do que acaba de ser dito, que conhecer de tal questão, o que se decide. Quanto à enunciação das questões a decidir propriamente ditas, cumpre referir que o âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente. Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC). Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes: 1.- saber se deve ser alterada a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida quanto ao facto provado n.º 15 e quanto ao facto não provado constante da alínea B, no sentido da consideração do primeiro como não provado e do segundo como provado; 2.- saber se há fundamento para a resolução do contrato de arrendamento dos autos, com base: 2.1.- na violação, pela Apelada, de regras de higiene no locado, o que, na afirmativa, coenvolverá a questão de saber se caducou o direito da Apelante de resolver o contrato de arrendamento com tal fundamento; 2.2.- na não realização das obras, pela Apelada, a que esta, no contrato, se comprometeu a realizar. * * * III.- Da Fundamentação III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos: 1. O A. é dono e legítimo proprietário da fração autónoma correspondente ao andar sito na Rua ..., ..., letra “AP”, Vila Nova de Gaia, desde Maio de 2018. 2. Tal qualidade adveio da aquisição do imóvel em 3 de maio de 2018, em processo de execução fiscal, que correu contra o anterior proprietário. 3. Por contrato de arrendamento habitacional, celebrado em 5 de agosto de 2015, o imóvel atrás indicado foi dado de arrendamento à Ré, pelo proprietário do imóvel da altura, a empresa “C..., Lda.” e pelo prazo de 30 anos, com início naquela data. 4. De acordo com a cláusula 7ª do contrato de arrendamento, “As partes acordam o pagamento da renda nos seguintes termos: a. Dada a necessidade de realização de obras no locado, as mesmas cifram-se no valor global de € 50.000,00, que serão realizadas pela sociedade arrendatária e descontadas nos 360 períodos do contrato no valor de € 138,88. b. A renda mensal fixa-se em € 200,00 por mês e, após o desconto mencionado na alínea anterior, haverá a pagar € 61,12.” 5. De acordo com a cláusula 10.ª do contrato de arrendamento, “As benfeitorias úteis ou voluptuárias realizadas pela arrendatária tornam-se parte integrante do locado, sem direito a qualquer indemnização por parte da arrendatária”. 6. De acordo com a cláusula 11.ª do contrato de arrendamento, “No termo do contrato, o local arrendado será entregue em perfeito estado de conservação e limpeza, e com todas as instalações intactas.” 7. Ficou estipulada a possibilidade de sublocação, nos termos da cláusula 9.º do contrato de arrendamento, o que veio a ocorrer. 8. O senhorio solicitou à inquilina informação sobre a realização das obras, a data em que ocorreram, a descrição dos trabalhos efetuados e a cópia da fatura ou faturas dos valores despendidos nessas obras. 9. Para o efeito, o aqui Autor procedeu à elaboração e envio de carta à inquilina, em 15 de junho de 2018. 10. Desde o início da vigência do contrato de arrendamento, a Ré procedeu ao pagamento mensal da renda pelo valor de € 61,12. 11. Nas visitas que o Autor realizou ao locado, logo após a aquisição do mesmo, observou lixo e cheiro nauseabundo assim como o seguinte: a. Na banca da cozinha do imóvel locado, encontravam-se restos de comida espalhados, louça e panos sujos; b. A banheira da casa-de-banho estava encardida; c. O chão estava sujo; d. As toalhas de banho e a cortina da casa de banho estavam amareladas. e. Existia roupa deixada ao acaso; f. O lavatório estava sujo; g. A sanita estava encardida; h. O bidé estava sujo; i. A toalha da mesa de refeições estava suja; j. Um dos quartos tinha mau cheiro, roupas de cama ao acaso, roupa suja sob a cama e presença de tabaco sobre a mesa e cheiro a tabaco; k. O outro quarto tinha mau cheiro, cheiro a tabaco e panos sujos junto à cama; l. A sala tinha cinzeiros sujos, cheiro a tabaco e roupa suja exposta; m. A mesa da sala de jantar continha panos sujos, roupa ao acaso, medicamentos, perfumes, uma bacia e papéis sujos; 12. Atenta a falta de higiene do locado, o Autor enviou, em 21 de dezembro de 2018, carta de resolução do contrato de arrendamento para a inquilina, que a recebeu a 27 de dezembro de 2018. 13. A 15 de outubro de 2018, a Ré comunicou por e-mail ao autor a existência de infiltrações no locado e pediu a resolução desse problema. 14. Por via dessas infiltrações, o locado apresentava bolor e escorrências, especialmente no hall de entrada. 15. A ré efetuou no locado reparações elétricas e de pichelaria, procedeu a pintura de paredes e colocou material sanitário. * Na mesma sentença não foi considerado provado que:A. O autor apenas tomou conhecimento da existência da infiltração cerca de quatro a cinco meses após a ocorrência da mesma. B. Não foram realizadas quaisquer obras no locado por parte da Ré. C. No locado existiu uma infiltração proveniente do piso superior que a ré não comunicou de imediato ao autor. D. A ré reparou no locado portas e piso flutuante e colocou mobiliário. E. Com as indicadas obras, a ré gastou, pelo menos, € 16.605,67. * * * III.II.- Do objeto do recurso 1.- Da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida O presente recurso versa, desde logo, sobre a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida. Os termos em que a Relação pode conhecer da matéria de facto impugnada em sede de recurso constam, no essencial, do art.º 662.º do Código de Processo Civil. De acordo com o disposto no n.º 1 deste preceito, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Por seu turno, nos termos do n.º 2, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a) ordenar a renovação da produção da prova quando houve dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c) anular a decisão proferida na 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. Da leitura de tais dispositivos legais resulta que à Relação é, em sede de recurso em que esteja em causa a impugnação da matéria de facto, conferido um grau de autonomia especialmente relevante. Na realidade, se, confrontada com a prova globalmente produzida, o seu juízo decisório for diverso do da 1.ª Instância, à Relação incumbe hoje, não a faculdade ou a simples possibilidade, mas um verdadeiro dever de introduzir as alterações que tenha por convenientes ou acertadas. Por outro lado, se, confrontada com essa mesma prova, reputá-la insuficiente ou mesmo inconsistente, deverá, mesmo sem impulso das partes nesse sentido, o mesmo é dizer oficiosamente, ordenar a renovação de prova já produzida ou mesmo a produção de novos meios de prova. Em sede de reapreciação da matéria de facto, cabe à Relação, por conseguinte, formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, convicção essa que, caso divirja da firmada em 1.ª instância, prevalecerá sobre esta. Ou seja, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, a Relação atua nesta sede com “autonomia decisória” e “como verdadeiro tribunal de instância”, ao qual compete “introduzir na decisão da matéria de facto impugnada as modificações que se justificarem, desde que, dentro dos poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal” (in Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, p. 334). A posição que a Relação deve adotar quando confrontada com um recurso em matéria de facto deve, pois, ser a mesma da da 1.ª Instância aquando da apreciação da prova após o julgamento, valendo para ambos o princípio da livre apreciação da prova, conforme resulta, aliás, do disposto nos art. ºs 607.º, n.º 5 e 663.º, n.º 2 do CPC. O mesmo é dizer, com Remédio Marques, que a “Relação tem o poder-dever de formar a sua convicção própria sobre a prova produzida e sobre a correção do julgamento da matéria de facto, não se devendo escusar a fazê-lo com base no princípio da livre convicção do julgador da 1.ª instância” (in Acção declarativa à luz do Código revisto, p. 637-638, apud José Lebre de Feitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, p. 172). Só assim se garantirá, de resto, a efetiva sindicância, por parte da Relação, do julgamento da matéria de facto levado a cabo em 1.ª instância e, com isso, o princípio fundamental do duplo grau de jurisdição (v., neste sentido, e entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24-09-2013, de 26-05-2021 e de 04-11-2021, todos disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt). * A autonomia decisória com que a Relação deve encarar a reapreciação da matéria de facto não pode implicar, contudo, a consideração genérica e indiscriminada de todos os factos e meios de prova já tidos em conta pela 1.ª Instância, como se aquela reapreciação impusesse a realização de um novo julgamento.Dispõe, com efeito, o art.º 640.º, n.º 1 do CPC que quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: .- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (alínea a); .- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida (alínea b); .- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c). Por outro lado, de acordo com a alínea a) do n.º 2, sempre que os meios de prova que, nos termos da alínea b) do n.º 1 devem ser especificados, tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. Resulta de tais normativos legais que sobre o recorrente que pretenda ver sindicado pela Relação o julgamento da matéria de facto feito em 1.ª instância recai o ónus de, não só circunscrever e delimitar a concreta matéria de facto de cujo julgamento discorda, como o de enunciar os meios de prova que deveriam ter conduzido a decisão diversa - apontando, neste caso, em se tratando de depoimentos gravados, as passagens da gravação ou procedendo à transcrição dos excertos relevantes - e, ainda, o de indicar o sentido da decisão que, na sua perspetiva, deve ser proferida. O sistema adotado pelo legislador quanto ao julgamento da matéria de facto pela Relação, ao invés de uma solução pautada pela simples “repetição dos julgamentos” e “pela admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto”, consiste, pois, num sistema caracterizado “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, como corolário do “princípio do dispositivo que se revela através da delimitação do objeto do recurso (da matéria de facto) através das alegações” (v., neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, in ob. cit., p. 195 e 341). Isto, aliás, com reflexos na aferição da própria admissibilidade do recurso em matéria de facto, já que, como decorre expressamente do corpo do preceito que acaba de ser transcrito, o ónus que recai sobre o recorrente deve ser cumprido sob pena de rejeição do próprio recurso. Do sistema assim concebido pelo legislador podemos entrever, em suma, e como se referiu no Acórdão do STJ de 29-10-2015, um “ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação”, bem como de “um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes” (sublinhados nossos; Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt). * Neste recurso, e como resulta das suas conclusões, a divergência do Autor quanto ao julgamento da matéria de facto feito pela 1.ª instância prende-se com o facto provado com o n.º 15 e com o facto não provado da alínea b).A este respeito, e levando-se em linha de conta as considerações acima expendidas sobre a admissibilidade do recurso em matéria de facto, há que dizer que o Autor cumpriu o duplo ónus primário e secundário acima referido. Na verdade, individualizou os concretos pontos de facto que reputou incorretamente julgados pela 1.ª instância e justificou a sua posição. Outrossim, indicou os meios de prova que, na sua perspetiva, impunham um julgamento diverso, precisando as passagens da gravação dos depoimentos de que se serviu e concluindo pela enunciação do sentido em que, na sua perspetiva, tais factos devem agora ser julgados. Ademais, como decorre do recente Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Plenário das Secções Cíveis do STJ de 17-10-2023, a ponderação sobre a admissão ou rejeição do recurso em matéria de facto deve ser feita no quadro dos “princípios da proporcionalidade e da razoabilidade”, pelo que, cumprido o essencial do ónus a cargo do recorrente, o princípio será o da admissão da impugnação em matéria de facto “se da conduta processual do recorrente resultar de forma clara e inequívoca o que o mesmo pretende com a interposição do recurso”. E é esse, quanto a nós, o caso dos autos, em que, como se viu, da leitura da peça recursória do Autor resulta evidenciado aquilo que visa com a impugnação da matéria de facto. Cumpriu o mesmo, em suma, o ónus que o acima citado art.º 640.º do CPC fazia recair sobre si, nada obstando ao conhecimento do recurso nesta parte. * .- Do facto provado n.º 15O facto em análise é do seguinte teor: “A ré efetuou no locado reparações elétricas e de pichelaria, procedeu a pintura de paredes e colocou material sanitário”. Segundo o Apelante, sobre tal facto não foi produzida qualquer prova, pelo que deveria ter sido julgado não provado. Analisada toda a prova documental constante dos autos e, bem assim, ouvidas integralmente as declarações prestadas em julgamento, concluímos, tudo conjugado, que lhe assiste razão. Na verdade, a única testemunha que depôs sobre a realização efetiva de obras no locado, a testemunha EE, afirmou que o que nele fez foi "pintura e pequenos remendos, colocou uma tampa de sanita e um cifão numa casa de banho e procedeu à limpeza das tubagens”. Acrescentou que “estava lá um eletricista”, chamado “FF”, que teria “substituído parte da instalação elétrica, interruptores e tomadas que não funcionavam” e que também houve “reparação de estores.” A testemunha foi clara, contudo, a dizer que fez as obras há cerca de 10/12 anos e que já não trabalha “há quase 7 anos”. Por outro lado, evidenciou que fez as obras para a empresa do anterior proprietário do locado, “BB”, tendo tido como interlocutor o filho deste, “CC”. Temos, assim, que a testemunha – cujo depoimento, como se vê da fundamentação da sentença recorrida, foi determinante para que o tribunal a quo julgasse provado o facto em apreço, com a redação que lhe deu – não só não asseverou que a Ré tenha realizado todos os trabalhos descritos no facto em análise (designadamente, os de pichelaria), como, e sobretudo, afastou que tivesse sido a Ré quem o contratara para o efeito. De resto, a testemunha identificou claramente as pessoas envolvidas, referiu que fez trabalhos em dois locais de Vila Nova de Gaia (“um quem vai para a ..., na zona de ...” e outro – o dos autos – junto ao “D...”) e descreveu as vicissitudes por que passou para tentar obter o pagamento do trabalho prestado (o que não logrou), nomeadamente, identificando o local onde se dirigiu para o efeito (“...”), sendo, por conseguinte, claro que sabia a quem se estava a referir. O facto em apreço surge, pois, contrariado pelo respetivo depoimento. À conclusão a que acaba de se chegar não obsta o teor dos documentos que a Ré fez juntar com a sua contestação sob os n.ºs 22, 23 e 24, documentos esses em que a mesma surge como supostamente beneficiária de trabalhos de construção civil realizados no locado. Na verdade, no que diz respeito ao documento n.º 22, constitui o mesmo uma fatura supostamente emitida pela empresa da referida testemunha EE, datada de “29-01-2016”, na qual é feita alusão a trabalhos de “reparação geral” do locado, relativos a “portas interiores, piso flutuante, eletricidade, pichelaria, colocação de móveis de cozinha e pintura interior”, no valor de “€ 10.086,00.” A testemunha, contudo, foi clara a negar que tenha feito tais trabalhos, bem como que o valor dos que realizou tenha sido o que consta do documento (segundo a testemunha, o serviço que prestou teria ascendido a € 4.100,00 e nem sequer lhe foi pago) e, quando confrontada com o facto de a fatura ter a data de 2016, respondeu que “é mentira”. Ou seja, a veracidade do teor documento foi expressamente posta em causa pela pessoa supostamente responsável pela realização dos trabalhos nele descritos. O documento n.º 23, por seu turno, consiste num “orçamento”, num “contrato de adjudicação” e numa “fatura”, em que são descritos trabalhos supostamente realizados no locado para a Ré. Os trabalhos em causa correspondem, contudo, e no essencial, a trabalhos de pichelaria supostamente realizados em maio de 2016, quando o documento n.º 22, cuja autoria fora imputada à empresa da testemunha EE, também alude a trabalhos de pichelaria realizados no início do mesmo ano, o que sugere duplicação de trabalhos da mesma arte (de “pichelaria”) num curto espaço de tempo e sem explicação para tal. Acresce que nenhuma das componentes do documento foi confirmada em julgamento por qualquer das testemunhas inquiridas ou por outro elemento de prova relevante (a testemunha EE, confrontada com o nome da empresa que supostamente prestou os serviços – a “E...” – não a reconheceu). Finalmente, o documento contém orçamento, contrato e fatura, mas não vem acompanhado de prova do pagamento eventualmente devido, o que seria determinante para se concluir que dizia respeito a transação real e efetiva. Tudo conjugado, não tem o documento, pois, qualquer relevo probatório para atestar a realização dos trabalhos em questão. Finalmente, quanto ao documento n.º 24, diz o mesmo respeito a uma fatura atinente, desde logo, ao fornecimento de “um telefone”, o que não materializa qualquer “obra” realizada e, bem assim, a prestação de serviços de “eletricidade” que nem sequer estão discriminados, sendo inviável, como tal, aferir que serviços foram esses. Acresce que, à semelhança do documento n.º 23, também o teor deste não foi confirmado em julgamento por qualquer das testemunhas inquiridas ou por outro elemento de prova relevante. Finalmente, os documentos em causa sugerem que o serviço teria sido prestado pela empresa de FF, o qual, de acordo com a testemunha EE, seria o eletricista que “estava lá” quando a testemunha prestou serviços no apartamento, o mesmo é dizer numa altura em que este ainda pertencia ao anterior proprietário. De resto, a testemunha referiu que o eletricista teria substituído parte da instalação elétrica, bem como interruptores e tomadas que não funcionavam e a natureza de tais serviços (que, relembre-se, não estão descritos no documento) não é consentânea com o suposto custo que consta da fatura, isto é, de € 59,50 líquidos. Em suma, os documentos em causa não atestam que a Ré tenha beneficiado dos supostos serviços neles descritos. Assim, e porque, relativamente aos trabalhos em questão, nenhum outro elemento de prova foi produzido em julgamento, forçoso é considerar não provado o facto em apreço, procedendo, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto do Apelante quanto a ele. * .- Do facto não provado constante da alínea b)O facto em apreço é do seguinte teor: “Não foram realizadas quaisquer obras no locado por parte da Ré.” Trata-se aqui do facto correspondente, pela negativa, ao facto anteriormente apreciado, pelo que considerá-lo, como pretende o Apelante, provado pressuporá a constatação efetiva de que a Ré não realizou quaisquer obras no locado. Devidamente conjugada a prova produzida, concluímos que assim foi, isto é, que a Ré não realizou quaisquer obras e que o facto em apreço deve ser considerado provado. Assim, e desde logo, a única testemunha que, como se disse já, se pronunciou sobre a realização efetiva de trabalhos no locado, a testemunha EE, descreveu trabalhos realizados a pedido de pessoa que não a Ré e testemunhou a realização de outros (de eletricista) em simultâneo dos que a própria realizou, o que evidencia, também, que se tratou de trabalhos alheios à Ré. Acresce que os supra aludidos documentos, que supostamente evidenciariam trabalhos efetuados a pedido da Ré, não só não têm qualquer relevo probatório pelas razões já acima expostas, como há elementos que permitem duvidar da sua própria veracidade, como é o caso do documento que retrata serviços prestados pela empresa da testemunha EE, que a própria negou expressamente. O quadro com que nos deparamos em face de tais elementos probatórios não é, por conseguinte, o de dúvida quanto à verificação ou não verificação do facto, mas de total descredibilização e consequente afastamento dessa mesma verificação. Acresce que, além da inexistência de prova efetiva de que a Ré tenha realizado obras no locado, a globalidade da prova produzida em julgamento evidenciou um cenário em que tal se revelou manifestamente inverosímil. Assim, a testemunha GG (administradora do condomínio) referiu que nunca lhe foi comunicada a realização de obras na fração. A testemunha HH (engenheiro civil, que, a pedido do Apelante, realizou uma vistoria ao apartamento) disse que o apartamento tinha “portas antigas ou originais”, que os azulejos apresentaram “sinais de desgaste e fissuras” e que os móveis de cozinha eram “antigos”, sendo que, de acordo com o que lhe foi dito pela pessoa que lá morava, fora esta quem fizera “pinturas de paredes, porque estavam sujas” e que “substituí[ra] as sanitas”. A testemunha II (que, durante 2 anos, integrou a administração do condomínio) desconhecia a realização de quaisquer obras e deu conta de que a imagem geral do apartamento, no qual entrara, era a de apartamento antigo - “os azulejos eram de origem”. A testemunha JJ (que trabalha na construção civil) referiu que, no apartamento, fez, a pedido da Ré, a reparação de um estore e procedeu à limpeza do apartamento. A testemunha KK (que reside no locado desde janeiro de 2022) referiu que, quando foi habitá-lo, procedeu (ela própria) à sua pintura e mudança de sanitas. Finalmente, o Apelante, nas declarações de parte que prestou, referiu que, em 2019, um trabalhador da construção civil (LL), a seu pedido, “lixou e pintou as paredes do hall”. Ou seja, pessoas responsáveis pela administração de assuntos do edifício onde se insere o apartamento não revelaram conhecimento de obras feitas pela Ré; a imagem geral do locado transmitida foi a de que se tratava de apartamento antigo (de “origem”); e os trabalhos (poucos) nele realizados foram da autoria e da responsabilidade de pessoas que não a Ré. Assim, e porque, reitere-se, nenhuma outra prova cabal foi produzida no sentido de sugerir sequer que a Ré tenha, efetivamente, realizado tais obras, convencemo-nos de que tal não ocorreu e que o facto em apreço deve, por isso, ser considerado provado. Procede, consequentemente, a impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida também quanto a este facto. * O elenco de factos provados e não provados que há-de servir de substrato de facto à apreciação jurídica do presente caso será, assim, aquele que, de seguida, se reproduz, com as alterações, inclusive de numeração, que, em face do acima exposto, se impõe fazer:.- Factos provados 1. O A. é dono e legítimo proprietário da fração autónoma correspondente ao andar sito na Rua ..., ..., letra “AP”, Vila Nova de Gaia, desde Maio de 2018. 2. Tal qualidade adveio da aquisição do imóvel em 3 de maio de 2018, em processo de execução fiscal, que correu contra o anterior proprietário. 3. Por contrato de arrendamento habitacional, celebrado em 5 de agosto de 2015, o imóvel atrás indicado foi dado de arrendamento à Ré, pelo proprietário do imóvel da altura, a empresa “C..., Lda.” e pelo prazo de 30 anos, com início naquela data. 4. De acordo com a cláusula 7ª do contrato de arrendamento, “As partes acordam o pagamento da renda nos seguintes termos: a. Dada a necessidade de realização de obras no locado, as mesmas cifram-se no valor global de € 50.000,00, que serão realizadas pela sociedade arrendatária e descontadas nos 360 períodos do contrato no valor de € 138,88. b. A renda mensal fixa-se em € 200,00 por mês e, após o desconto mencionado na alínea anterior, haverá a pagar € 61,12.” 5. De acordo com a cláusula 10.ª do contrato de arrendamento, “As benfeitorias úteis ou voluptuárias realizadas pela arrendatária tornam-se parte integrante do locado, sem direito a qualquer indemnização por parte da arrendatária”. 6. De acordo com a cláusula 11.ª do contrato de arrendamento, “No termo do contrato, o local arrendado será entregue em perfeito estado de conservação e limpeza, e com todas as instalações intactas.” 7. Ficou estipulada a possibilidade de sublocação, nos termos da cláusula 9.º do contrato de arrendamento, o que veio a ocorrer. 8. O senhorio solicitou à inquilina informação sobre a realização das obras, a data em que ocorreram, a descrição dos trabalhos efetuados e a cópia da fatura ou faturas dos valores despendidos nessas obras. 9. Para o efeito, o aqui Autor procedeu à elaboração e envio de carta à inquilina, em 15 de junho de 2018. 10. Desde o início da vigência do contrato de arrendamento, a Ré procedeu ao pagamento mensal da renda pelo valor de € 61,12. 11. Nas visitas que o Autor realizou ao locado, logo após a aquisição do mesmo, observou lixo e cheiro nauseabundo assim como o seguinte: a. Na banca da cozinha do imóvel locado, encontravam-se restos de comida espalhados, louça e panos sujos; b. A banheira da casa-de-banho estava encardida; c. O chão estava sujo; d. As toalhas de banho e a cortina da casa de banho estavam amareladas. e. Existia roupa deixada ao acaso; f. O lavatório estava sujo; g. A sanita estava encardida; h. O bidé estava sujo; i. A toalha da mesa de refeições estava suja; j. Um dos quartos tinha mau cheiro, roupas de cama ao acaso, roupa suja sob a cama e presença de tabaco sobre a mesa e cheiro a tabaco; k. O outro quarto tinha mau cheiro, cheiro a tabaco e panos sujos junto à cama; l. A sala tinha cinzeiros sujos, cheiro a tabaco e roupa suja exposta; m. A mesa da sala de jantar continha panos sujos, roupa ao acaso, medicamentos, perfumes, uma bacia e papéis sujos; 12. Atenta a falta de higiene do locado, o Autor enviou, em 21 de dezembro de 2018, carta de resolução do contrato de arrendamento para a inquilina, que a recebeu a 27 de dezembro de 2018. 13. A 15 de outubro de 2018, a Ré comunicou por e-mail ao autor a existência de infiltrações no locado e pediu a resolução desse problema. 14.- Por via dessas infiltrações, o locado apresentava bolor e escorrências, especialmente no hall de entrada. 15.- Não foram realizadas quaisquer obras no locado por parte da Ré. * .- Factos não provadosA.- O autor apenas tomou conhecimento da existência da infiltração cerca de quatro a cinco meses após a ocorrência da mesma. B.- A ré efetuou no locado reparações elétricas e de pichelaria, procedeu a pintura de paredes e colocou material sanitário. C.- No locado existiu uma infiltração proveniente do piso superior que a ré não comunicou de imediato ao autor. D.- A ré reparou no locado portas e piso flutuante e colocou mobiliário. E.- Com as indicadas obras, a ré gastou, pelo menos, € 16.605,67. * * * 2.- Da resolução do contrato de arrendamento que serve de fundamento à ação 2.1.- Da resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio em geral Entre o Autor/Recorrente e a Ré/Recorrida vigora, como não sofre contestação nos autos, um contrato de arrendamento, tendo por objeto uma fração autónoma – correspondente ao andar sito na Rua ..., ..., letra “AP”, Vila Nova de Gaia – de que o primeiro é proprietário, no qual este figura como senhorio e a segunda como inquilina. Este contrato de arrendamento foi celebrado em 5 de agosto de 2015 entre a anterior proprietária – sociedade comercial C..., Lda. – e a Ré/Recorrida, mas, pela aquisição do imóvel pelo Apelante – em 3 de maio de 2019, em processo de execução fiscal, instaurado à anterior proprietária – transmitiu-se para o Apelante a posição de locador (art.º 1057.º do Código Civil). O contrato de arrendamento é, nos termos clausulados, de natureza “habitacional”, foi celebrado pelo prazo de 30 anos e compreendia expressamente, na sua cláusula 9.ª, a possibilidade de sublocação pela arrendatária, o que, de resto, veio a ocorrer. Através desta ação, pretende o Autor/Recorrente obter a resolução de tal contrato de arrendamento por incumprimento da Ré/Recorrida, decorrente, de acordo com aquilo que está em causa neste recurso, de dois fundamentos: (i) não realização das obras, pela Apelada, a que, no contrato, se comprometera a realizar; (ii) violação, pela Apelada, de regras de higiene, nos termos da alínea a) do n.º 2 do art.º 1083.º do Código Civil. Apreciemos, pois, tal pretensão. A resolução é uma forma de cessação do arrendamento urbano (art.º 1079.º do Código Civil) e as normas que, no âmbito deste instituto jurídico, se lhe aplicam têm, salvo disposição em contrário, natureza imperativa (art.º 1080.º do Código Civil). Dispõe, a propósito dos fundamentos da resolução, o n.º 1 do art.º 1083.º do Código Civil que qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte. Por seu turno, prevê o n.º 2 do mesmo preceito que é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio, as circunstâncias elencadas nas alíneas que o integram, das quais cabe destacar aqui a da alínea a), que prevê, além do mais, a violação, pelo arrendatário, de regras de higiene. Da leitura conjugada de tais normativos resulta que qualquer das partes num contrato de arrendamento pode resolver o contrato de acordo com o regime geral da resolução previsto nos art.ºs 432.º e seguintes, fundado em incumprimento da parte contrária das obrigações que sobre cada uma recaem, em face dos art.ºs 1031.º (para o locador) e 1038.º (para o locatário) do Código Civil. No caso, contudo, da resolução do contrato pelo senhorio, não é qualquer incumprimento do arrendatário que funda a resolução, mas antes um incumprimento especialmente agravado: nos termos da cláusula geral prevista no corpo do n.º 2 do preceito, só um incumprimento cuja gravidade ou consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento é que legitima a sua resolução. Ou seja, como refere Albertina Maria Gomes Pedroso, o senhorio só pode resolver o contrato em caso de “incumprimento grave das obrigações emergentes do contrato” pelo arrendatário, incumprimento grave esse que que “há-de aferir-se quer pela própria natureza da infracção – actuação/omissão substancialmente grave – quer pelas consequências ou efeitos que provoca – e que tornam tal incumprimento grave – quer ainda pela reiteração da conduta violadora das obrigações assumidas – que, por essa via, também é qualificável como grave -, tudo de tal forma que não seja razoavelmente exigível à outra parte a manutenção do arrendamento” (in Julgar, n.º 19, 2013, p. 45). A par desta cláusula geral, prevê-se no n.º 2 do normativo em apreço, como já se viu, um conjunto de circunstâncias que, uma vez verificadas, constituem fundamento de resolução do contrato. Tais circunstâncias, diversamente do regime de pretérito, que previa um elenco exaustivo e taxativo de causas de resolução do contrato de arrendamento, integram agora um catálogo meramente exemplificativo de situações reveladoras de justa causa de resolução. O legislador adotou, assim, no preceito em apreço, e como mais uma vez refere Albertina Maria Gomes Pedroso, a “técnica dos exemplos padrão”, que compreende um “conjunto de circunstâncias exemplificativas [que] não são de funcionamento automático carecendo de ser enquadradas na cláusula geral” (ibidem, p. 46). Do sistema assim concebido, temos, por conseguinte, que ao senhorio é facultada a resolução do contrato de arrendamento escudado na verificação de tais circunstâncias, ou mesmo fora delas, isto é, em quaisquer comportamentos que, verificada a cláusula geral, representem, nos termos do n.º 1, violação de outra(s) disposição(ões) legal(is) ou estipulação(ões) contratual(is). Ainda assim, quando escudada na verificação de circunstâncias previstas no n.º 2, diverge a interpretação do preceito no sentido de saber se, sendo a sua enunciação precedida do emprego do advérbio designadamente, a sua simples verificação constitui fundamento automático de resolução do contrato, que operaria por si só, ou se, pelo contrário, sempre careceriam da demonstração, a par delas, da verificação da cláusula geral prevista no corpo do preceito. Seguindo de perto, a este respeito, a exposição feita no Acórdão do STJ de 09-12-2021 (Acórdão proferido no processo n.º 3069/19.0T8LSB.L1.S1), no primeiro sentido militam posições como a de Jorge Henrique Pinto Furtado, para o qual as circunstâncias previstas nas alíneas do n.º 2 constituem fundamentos de resolução do contrato em função da sua simples verificação. Para o Autor, verificada qualquer uma delas, “nenhum juízo de valor se tem de lhe acrescentar para se constituir ou afastar o direito à resolução por parte do senhorio”, designadamente, não é necessário que a verificação da circunstância passe pelo crivo da sua subsunção à cláusula geral da inexigibilidade, para o senhorio, da manutenção do contrato (in Manual de Arrendamento Urbano, Vol. II, 4.ª edição, p. 1001 e 1002, apud o citado Acórdão do STJ de 09-12-202). No segundo sentido milita aquela que é, segundo se nos afigura, a posição maioritária da doutrina e da jurisprudência, segundo a qual, face ao disposto no n.º 2 do art.º 1083.º do Código Civil, ao senhorio que pretenda resolver o contrato não basta alegar e provar os factos integradores de alguma das circunstâncias previstas nas alíneas que o integram, mas, também, que o incumprimento contratual por elas revelado preenche a cláusula geral constante da 1.ª parte do n.º 2 do preceito. É essa a posição, v.g., na doutrina, de Maria Olinda Garcia (in Arrendamento Urbano Anotado, Regime Substantivo e Processual, Coimbra, 2012, p. 30 e 31); de Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge (in Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, 2.ª edição, Quid Juris, 2007, p. 292); e de Maria João Vasconcelos (in Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Contratos em Especial, UCP Editora, p. 510). E é essa a posição, v.g., na jurisprudência, dos Acórdão do STJ de 13-02-2014, proferido no processo n.º 43/09.9TCFUN.L1.S1; da Relação do Porto de 11-03-2021, proferido no processo n.º 5761/19.0T8VNG.P1; da Relação de Coimbra de 05-02-2013, proferido no processo n.º 382/08.6TBLRA.C1; da Relação de Lisboa de 12-12-2013, proferido no processo n.º 3301/07.3TBFUN.L1.7; e da Relação de Évora de 13-03-2014, proferido no processo 138/12.1TBELV.E1 (todos eles disponíveis na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt). Levando em linha de conta, ainda, o referido Acórdão do STJ de 09-12-2021, uma terceira posição é passível de ser equacionada. A saber, a de que a verificação de alguma das circunstâncias previstas como fundamento de resolução constituem, em si mesmas, presunções de inexigibilidade da manutenção do vínculo contratual, mas presunções juris tantum, de modo que, uma vez provadas pelo senhorio, cometem ao arrendatário o ónus de as ilidir, alegando e provando factos que permitam que ainda é viável a subsistência do vínculo. É o caso, segundo aquele aresto, da posição defendida no Acórdão da Relação do Porto de 06-05-2010, proferido no processo n.º 451/09.5TJPRT.P1 (também disponível na internet, no mesmo sítio acima referenciado). No que nos diz respeito, não vemos razões para divergir da posição seguida maioritariamente pela doutrina e jurisprudência, acima explanada em segundo lugar. Na verdade, é, desde logo, a solução mais consentânea com o elemento literal da lei. Apesar do emprego do advérbio designadamente como introdução das circunstâncias que, nas alíneas, constituem causa de resolução, o certo é que a enunciação dessas circunstâncias surge a par da cláusula aposta no corpo do preceito, o que sugere uma relação biunívoca ou de dependência entre ambos os elementos. Acresce que a resolução do contrato de arrendamento, pelo senhorio, com fundamento em alguma das causas previstas no n.º 2 do art.º 1083.º do Código Civil pressupõe, nos termos do n.º 1 do art.º 1084.º, o recurso a uma ação judicial, diversamente do que sucede, de acordo com o n.º 2 deste último preceito, com a resolução fundada em falta de pagamento de renda. Uma tal exigência, contudo, como bem salienta Albertina Maria Gomes Pedroso, “só pode ter como justificação válida precisamente a indispensabilidade do preenchimento do conceito geral de justa causa”, a fazer necessariamente pelo tribunal, “até porque as causas resolutivas previstas nas diversas alíneas configuram níveis de gravidade de grau muito diferente entre si” ibidem, p. 47). De referir, ainda, que, independentemente do facto de cada uma das circunstâncias previstas nas alíneas do n.º 2 do preceito em apreço evidenciar situações que, por princípio, afetam a viabilidade da subsistência da relação jurídica locatícia, o certo é que a complexidade da vida e a natureza das concretas circunstâncias é sempre passível de assumir diferentes colorações que, em determinados contextos, alteram a sua significância. A exigência de que a verificação das circunstâncias só justifique a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio depois de passar pelo crivo da cláusula geral é, por conseguinte, a única passível, não só de abranger todas as situações possíveis, como, e sobretudo, de permitir a sua valoração à luz das especificidades de cada caso concreto. A solução assim preconizada é, por conseguinte, a que mais se coaduna com a ratio do preceito. Finalmente, a exigência de que o senhorio, pretendendo resolver o contrato de arrendamento, só o faça depois de alegar e provar factos que integrem as circunstâncias previstas no n.º 2, mas também a inexigibilidade da manutenção da relação locatícia, está em linha com o princípio geral de repartição do ónus da prova previsto no art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil. Se o desiderato do senhorio é o do exercício do direito de resolução contratual, a solução mais consentânea com aquele princípio é a de que sobre ele recaia o ónus de provar, quer alguma(s) circunstância(s), quer a cláusula geral, enquanto factos constitutivos do seu direito. Em suma, as circunstâncias exemplificativamente descritas nas alíneas do n.º 2 do art.º 1083.º do Código Civil só constituirão fundamento de resolução do contrato de arrendamento se integrarem, também, a cláusula geral prevista no corpo do preceito, isto é, se a sua gravidade ou consequências tornarem inexigível a manutenção do contrato pelo senhorio. Resta dizer que tal requisito de inexigibilidade da manutenção do contrato de arrendamento deve ser determinado, de acordo com o referido no acima citado Acórdão do STJ de 13-02-2014, “com base num juízo objetivo e concreto de ponderação e proporcionalidade entre a intensidade concreta e o grau de censurabilidade da violação contratual cometida e a gravidade objetiva do efeito que lhe corresponde”. O mesmo é dizer, de acordo com o Acórdão do STJ de 09-12-2021 também citado, que, na aferição da cláusula geral em apreço, deve o tribunal “formular um juízo de balanceamento ou ponderação, tendo em conta, por um lado, as concretas circunstâncias envolventes, quer do contrato e do fim que lhe subjaz, quer do incumprimento das obrigações do locatário e, por outro lado, a pretensão resolutiva do senhorio à luz dos princípios ou cláusulas gerais do abuso de direito e da boa fé contratual. * 2.2.- Da resolução do contrato de arrendamento por violação de regras de higiene no locadoPor facilidade de exposição, começaremos a análise da pretensão de resolução do contrato de arrendamento dos autos pelo Apelante com fundamento na violação, pela Apelada, de regras de higiene no locado, em conformidade com o previsto na alínea a) do n.º 2 do art.º 1083.º do Código Civil. À luz de tal normativo, é, de facto, fundamento de resolução do contrato de arrendamento a violação, pelo arrendatário, de regras de higiene. Isto, a par da violação, de acordo com a mesma alínea, de regras de sossego ou de boa vizinhança ou de normas constantes de regulamento de condomínio. Com tal preceito pretende o legislador, como referem José António de França Pitão e Gustavo França Pitão, “prevenir situações correntes relacionadas com a falta de cumprimento de regras de convivência social e entre vizinhos (sejam ou não condóminos)”. Na apreciação de tais situações, ainda segundo os mesmos Autores, deve ser feita uma análise “casuística” e “objectiva”, pelo que “[n]ão bastará, por exemplo, uma simples queixa de um vizinho, que mantém uma relação de pré-conflito com o arrendatário, porque este, por vezes, ‘ouve música’ no locado em tom mais elevado (muito embora, a horas “convenientes”) ou mantém um animal doméstico permitido aí permanecer por regulamento municipal” (in Arrendamento Urbano Anotado, Quid Juris, 3.ª edição, p. 324). Subjacente à alínea em apreço estão, assim, situações cujas consequências, contendendo com as boas regras de convivência e inter-relacionamento social, se repercutem no espaço exterior ao locado e atinjam ou sejam suscetíveis de atingir a esfera pessoal ou jurídica de terceiros, de acordo com uma apreciação objetiva e não em função do simples incómodo eventualmente sentido pelo terceiro. A violação de regras de higiene pressuposta no preceito consiste num dos ‘exemplos padrão’ previstos nas alíneas do n.º 2 do art.º 1083.º. O seu relevo enquanto justa causa de resolução contratual só se efetiva, por isso, se, de acordo com a cláusula geral do corpo do preceito, seja grave ou acarrete consequências que tornem inexigível a subsistência do arrendamento. In casu, aquilo que, com relevo para esta questão, resulta dos factos provados é o que consta do facto provado n.º 11, ou seja, que, nas visitas que fez ao locado, logo após a sua aquisição, o Apelante observou lixo e cheiro nauseabundo, assim como o seguinte: a.- na banca da cozinha, encontravam-se restos de comida espalhados, louça e panos sujos; b.- a banheira da casa-de-banho estava encardida; c.- o chão estava sujo; d.- as toalhas de banho e a cortina da casa de banho estavam amareladas; e.- existia roupa deixada ao acaso; f.- o lavatório estava sujo; g.- a sanita estava encardida; h.- o bidé estava sujo; i.- a toalha da mesa de refeições estava suja; j.- um dos quartos tinha mau cheiro, roupas de cama ao acaso, roupa suja sob a cama e presença de tabaco sobre a mesa e cheiro a tabaco; k.- o outro quarto tinha mau cheiro, cheiro a tabaco e panos sujos junto à cama; l.- a sala tinha cinzeiros sujos, cheiro a tabaco e roupa suja exposta; e m.- a mesa da sala de jantar continha panos sujos, roupa ao acaso, medicamentos, perfumes, uma bacia e papéis sujos. Esta é, sublinhe-se, a única matéria de facto que deve servir de suporte à apreciação da questão que nos ocupa e não qualquer outra, designadamente, a que consta do “relatório diagnóstico” e da “comunicação da Câmara Municipal ...” constantes dos autos (de que a 1.ª instância se serviu na sentença recorrida), bem como da decisão proferida no procedimento cautelar n.º 8089/21, proferida pelo Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia (como pretendido pelo Apelante nas conclusões de recurso). Tais elementos são meros elementos de prova de factos e não podem ter outra função que não essa, nomeadamente, a de servirem de veículo de introdução de novos factos em juízo. Sendo o facto provado n.º 11 o único facto a considerar aqui, há que começar por dizer que o mesmo não é subsumível, como pretendido pelo Apelante e consta da sentença recorrida, à previsão da alínea a) do n.º 2 do art.º 1083.º do Código Civil. Com efeito, todas as vicissitudes nele descritas dizem respeito ao interior do locado e nele não são descritas quaisquer consequências ou efeitos para o exterior. Subjacente à dita alínea estão, contudo, e como se viu, situações que se prendem com as regras da convivência social e que, por isso, se repercutem no exterior do locado e tal não é, como se vê, o caso dos autos. O estado do locado, tal como vem refletido no facto provado em apreço, a relevar, relevará, sim, enquanto violação da obrigação do arrendatário de não fazer do locado uma utilização imprudente, nos termos previstos na alínea d) do art.º 1038.º do Código Civil. É, na verdade, e como refere Ana Afonso, obrigação do locatário a de “fazer uma utilização diligente ou cuidadosa da coisa, de modo a prevenir que esta sofra outras deteriorações além das que correspondem à sua normal utilização”, sendo que, nestes casos, é de aplicar “o critério do ‘bom pai de família’ para apreciação da culpa”, além da consideração dos “deveres acessórios dimanados da boa fé” (in Comentário do Código Civil – Direito das Obrigações – Contratos em Especial, UCP Editora, p. 413). Ora, tudo o que vem descrito no facto provado n.º 11 revela um estado de total desarrumação e de ausência de limpeza do locado, com repercussão na imagem geral do apartamento e no estado de componentes do mesmo (v.g. banheira, chão, lavatório, sanita e bidé). Revela, também, falta de higiene, com a presença de utensílios e de objetos de uso doméstico sujos e em mau estado, além de cheiros nauseabundos. Há, pois, razões que evidenciam uma utilização que, do ponto de vista do critério do bom pai de família e da boa fé que deve nortear o uso da coisa pelo arrendatário, se pode qualificar de imprudente. Uma coisa é, contudo, a sua qualificação como imprudente e outra a conclusão de que o uso do locado, no quadro da apreciação concreta e casuística que aqui urge fazer, constitui justa causa de resolução do contrato de arrendamento dos autos por tornar inexigível a sua subsistência. E tal não é, segundo se entende, o caso. Na verdade, o estado do locado retratado no facto provado n.º 11 é aquele com que o Apelante se deparou nas visitas que fez após a sua aquisição. As datas das visitas não estão descritas no facto (nem, em bom rigor, foram alegadas pelo Apelante na petição inicial – v. art.ºs 22, 23, 25 a 28 e 77 de tal articulado), pelo que se desconhece se se trata de fenómeno circunscrito ou prolongado no tempo. Assim, e uma vez que, no essencial, o estado do locado em causa diz respeito a desarrumação generalizada e à presença de utensílios pessoais sujos e em mau estado, não vemos como possível concluir que a utilização que dele foi feita, ainda que imprudente, tenha sido de tal modo grave ou reiterada a ponto de, por si só, tornar inexigível a subsistência do vínculo contratual. Concorda-se com o que é dito na sentença recorrida a esse propósito, no sentido de que se trata de uma circunstância que se desconhece que “tenha perdurado no tempo”, que “tenha sido recorrente” e que “tenha tido consequências graves”. Acresce que o contrato de arrendamento dos autos, apesar da sua natureza “habitacional”, foi originariamente celebrado entre duas sociedades comerciais e com expressa estipulação da possibilidade de sublocação do locado pela arrendatária, tal como, de resto, veio a ocorrer. O mesmo é dizer que, no quadro da relação locatícia dos autos, estabelecida entre duas sociedades, a possibilidade de cedência do uso do locado era algo previsto e assumido. Do facto em apreço não é possível concluir, contudo, que o estado geral do locado com que o Apelante se deparou quando o visitou fosse da responsabilidade da Apelada ou de terceiro a quem o imóvel pudesse ter sido sublocado, ou, pelo menos, em que medida é que a Apelada possa ter contribuído para o mesmo. Finalmente, também resulta da factualidade apurada, designadamente, do facto provado n.º 13, que, a 15 de outubro de 2018 (antes, portanto, do envio pelo Apelante à Apelada, em 21 de dezembro de 2018, de uma carta comunicando-lhe a resolução do contrato de arrendamento, devido, precisamente, à falta de higiene do locado – v. facto provado n.º 12), foram comunicadas pela Apelada infiltrações no locado, por via das quais este, especialmente no hall de entrada, apresentava bolor e escorrências, o que permite a dúvida sobre se o estado geral do apartamento descrito no facto provado n.º 11 se deveu apenas à utilização que lhe foi dada ou se para ele contribuiu, também, o estado de conservação em que se encontrava. A factualidade apurada é, pois, equívoca e insuficiente para fundar a conclusão de que a Apelada fez do locado uma utilização de tal modo imprudente a ponto de ter tornado inexigível a manutenção do contrato de arrendamento. Ao Apelante não é possível, assim, reconhecer o direito de ver resolvido o contrato de arrendamento dos autos com o fundamento em apreço, com o que improcede a sua pretensão nesse sentido. Resta dizer que, em face de tal conclusão, prejudicada fica a apreciação da questão, suscitada pela Apelada, da caducidade do direito do Autor de resolver o contrato de arrendamento com o presente fundamento. * 2.3.- Da resolução do contrato de arrendamento por incumprimento da Apelada da obrigação de fazer obras no locadoEm vista da resolução do contrato de arrendamento dos autos, invocou o Apelante, também, o incumprimento contratual da Apelada, assente no facto de esta não ter realizado no locado as obras que, no contrato de arrendamento, se comprometera a realizar. Considerando tudo o que acima foi dito a propósito dos pressupostos de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, a pretensão do Apelante em apreço pressuporá a demonstração por este, não só do incumprimento contratual da Apelada, como, também, que tal incumprimento seja grave ou tenha acarretado consequências que tornaram inexigível a manutenção do vínculo contratual. O incumprimento contratual imputado pelo Apelante à Apelada traduz-se no facto de esta não ter realizado no locado as obras a que se comprometera, o que nos remete para a cláusula 7.ª do contrato celebrado. O teor de tal cláusula é o seguinte: “7.º As partes acordam o pagamento da renda nos seguintes termos: a) Dada a necessidade de realização de obras, no locado, as mesmas cifram-se no valor global de € 50.000,00 (…), que serão realizadas pela sociedade arrendatária e descontadas nos 360 períodos do contrato no valor de e 138,88. b) A renda mensal fixa-se em € 200,00 (…), por mês, e após o desconto mencionado na alínea anterior, haverá a pagar 61,12€.” Dela resulta, claramente, e tal como nunca sofreu discussão nos autos, a obrigação da Apelada de realizar obras no locado, obras essas de que este carecia e cujo valor global ascendia a € 50.000,00. Resulta da factualidade apurada, designadamente do facto provado n.º 15, com a redação decorrente da decisão da impugnação da matéria de facto contida neste Acórdão, que a Apelada nunca realizou quaisquer obras locado, pelo que não houve, da parte da mesma, cumprimento efetivo da obrigação a que contratualmente estava adstrita. A questão que se põe agora e que aqui importa decidir é a de saber se o cumprimento de tal obrigação lhe era exigível e se, por isso, na certeza de que não o fez, incorreu em incumprimento contratual, que sempre se presumiria culposo (art.º 799.º do Código Civil), ou se não era exigível e, por isso, não tendo incorrido sequer em mora, nenhum incumprimento contratual lhe pode ser assacado. Tal questão remete-nos para o regime jurídico do “tempo da prestação”, previsto, no que ao caso importa, nos n.ºs 1 e 2 do art.º 777.º do Código Civil. Dispõe o n.º 1 de tal preceito que, na falta de estipulação ou disposição especial da lei, tem o credor o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela. Determina, por seu turno, o n.º 2 que se, porém, se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordarem na sua determinação, a fixação dele é deferida ao tribunal. Determina-se no presente preceito, como resulta do seu teor literal, o momento a partir do qual o credor pode exigir a realização da prestação que lhe é devida. À luz do mesmo, há que distinguir, no essencial, e seguindo os ensinamentos de Antunes Varela (in Das Obrigações em Geral, Vol. II, Coimbra, 1992, p. 42), dois tipos de obrigações: as “obrigações a prazo ou a termo” e as “obrigações puras”. As primeiras são aquelas que devem ser cumpridas pelo devedor num determinado prazo estipulado no contrato, ou, de acordo com o referido Autor, “aquelas cujo cumprimento não pode ser exigido ou imposto à outra parte antes de decorrido certo período ou chegada certa data”. As segundas são aquelas para cujo cumprimento não foi estipulado qualquer prazo e que, por isso, se vencem quando constituídas, isto é, “logo que o credor, mediante interpelação, exija o seu cumprimento (…) ou o devedor pretenda realizar a prestação devida”. Dentro das primeiras, isto é, das obrigações a prazo, cabem, ainda, as obrigações previstas no n.º 2 do preceito, isto é, as “obrigações de prazo natural, circunstancial ou usual”, em que, apesar de, nos termos do contrato, já serem efetivas, carecem, contudo, de fixação de um prazo para o seu cumprimento, em função da sua natureza, das circunstâncias que as determinaram ou dos usos a que estão submetidas. In casu, interpretada a cláusula 7.ª do contrato de arrendamento dos autos supra transcrita, à luz dos critérios de interpretação da declaração negocial previstos nos art.ºs 236.º e 238.º do Código Civil, concluímos que a obrigação de realização das obras assumida pela Apelada é uma típica obrigação a prazo ou a termo e não uma obrigação pura. Na verdade, através dela previram as partes a realização das obras pela Apelada “dada a necessidade de realização de obras no locado”. Tal expressão evidencia que as partes constataram a necessidade, não só atual (porque contemporânea à celebração do negócio) como, também, efetiva de realização de obras e que, em virtude dessa constatação, previram essa mesma realização a cargo da Apelada. A cláusula em apreço, só por força do emprego da expressão em causa, não pode outro sentido, por conseguinte, que não o de que as obras a realizar tinham de o ser no período inicial do contrato e não posteriormente. Que sentido faria, com efeito, concluir-se que o locado carecia de obras e, depois, prever-se, como se concluiu na sentença recorrida, que as obras poderiam ser feitas dentro dos 30 anos estipulado pelas partes como período de duração do arrendamento?... Acresce que as partes previram a obrigação de realização das obras, mas, também, que, ascendendo o seu valor global a € 50.000,00 e sendo a sua realização da responsabilidade da arrendatária, esta poderia descontar o seu custo nas 360 rendas que teria de pagar ao longo dos 30 anos de duração do arrendamento. Ou seja, as partes previram o desconto do valor das obras a efetuar pela arrendatária, não nas rendas que esta teria de pagar a partir de determinada altura, coincidente com a efetiva realização das obras, mas ab initio, ou seja, a partir do pagamento da primeira renda. Tal cláusula não pode ter outro sentido, assim, que não o de que as partes previram que as obras fossem realizadas no momento inicial do contrato e não posteriormente. De outro modo, a não se entender assim, ficaria totalmente subvertido o próprio equilíbrio das posições contratuais de ambas as partes no quadro da relação jurídica locatícia em apreço nos autos. E isto, na certeza de que: quanto à proprietária, esta, enquanto senhoria, não só não recebia o valor por inteiro das rendas acordadas, como também não beneficiaria da conservação do prédio tida em vista com a obrigação da Ré de proceder à realização das obras; quanto à inquilina, esta ter-se-ia comprometido a realizar obras que, aquando do início do contrato, atingiam o valor de € 50.000,00, mas que, a poderem ser realizadas no futuro, poderiam ter um custo largamente superior, dada a tendencial desvalorização da moeda. Perante tais fatores, não vemos como é que um declaratário normal e minimamente diligente e sagaz, se colocado na posição dos verdadeiros declarantes no negócio dos autos, não conclua que, em face do teor da cláusula 7.ª do contrato de arrendamento dos autos, a obrigação de realização das obras a que a Apelada se obrigou devesse ser feita no período inicial do contrato e não posteriormente. De resto, essa sempre foi, como resulta da análise dos autos, a posição de ambas as partes no presente litígio, inclusive, da própria Apelante, que estruturou a sua defesa, não no sentido de a obrigação de realização das obras não lhe ser exigível, mas no facto (não provado e desmentido pelo facto contrário), de ter efetivamente realizado obras no locado, ainda que de valor inferior ao contratualmente previsto de € 50.000,00. Em suma, a obrigação em apreço constituiu-se no próprio contrato de arrendamento e devia ser cumprida no período inicial de execução do contrato, pelo que se trata, não de obrigação pura como defendido pela Apelada, mas de obrigação a prazo ou a termo, como defendido pela Apelante. Aqui chegados, uma outra questão se coloca que urge apreciar. A obrigação em apreço é a de realização de obras no locado pela Apelada. Aliás, não só de obrigação de realização de obras, como de obras avultadas no valor de € 50.000,00. Ora, obras de uma tal envergadura não são de realização imediata, carecendo, pelo contrário, de um período de tempo maior ou menor, consoante os meios utilizados, para esse efeito. E o certo é que as partes, no contrato celebrado, não previram um prazo concreto e delimitado no tempo em vista desse fim, nem muito menos estabeleceram critérios para a sua determinação. Seria de questionar, assim, se a obrigação da Apelada assume características que, pela sua natureza, imporia, a fixação de um prazo para o seu cumprimento, o que, a ocorrer, pressuporia, atento o estatuído no citado n.º 2 do art.º 777.º do Código Civil, uma outra ação adrede instaurada, visando precisamente a fixação judicial desse prazo, seguindo a forma de processo especial prevista nos art.ºs 1026.º e 1027.º do Código de processo Civil. Tal não é, contudo, o caso da concreta obrigação a cargo da Apelada e não o é pela seguinte razão. Nos casos em que a natureza da obrigação exige o recurso ao tribunal para a fixação de um prazo para o seu cumprimento deve ser tido em conta, como referem Pires de Lima e Antunes Varela, “o princípio da boa fé, genericamente proclamado no art.º 762.º, n.º 2 [do Código Civil]. Por conseguinte, o facto de, por exemplo, os usos imporem a existência ou estabelecimento de um prazo não há-de servir de puro pretexto ao devedor para retardar o cumprimento da obrigação, quando tenha decorrido já o tempo mais do que suficiente para preencher o prazo assente pelos usos” (sublinhado nosso; in Código Civil Anotado, Vol. II, Coimbra, 3.ª edição, p. 25). Ora, no caso em apreço, é exatamente essa a situação com que nos deparamos. Na verdade, o contrato de arrendamento dos autos foi celebrado em 5 de agosto de 2015 e o certo é que a Ré, até à entrada da presente ação em juízo, não realizou as obras a que estava contratualmente obrigada. Temos, assim, e porque, como se viu, se tratava de obrigação que a mesma devia ter cumprido na fase inicial do contrato, o protelamento de uma situação ao longo de quase 6 anos. Acresce que, como também se viu, a obrigação de realização de obras pela Apelada surge em face da constatação de que o estado de conservação do locado delas carecia. A inércia da Apelada no sentido da sua realização traduz, assim, o completo desprezo pelo cumprimento da sua obrigação e pela própria conservação do imóvel do qual deve fazer uma utilização diligente de modo a prevenir a sua deterioração. Finalmente, a obrigação de realização de obras pela Apelada teve como correspetivo a possibilidade de desconto no valor das rendas mensais a pagar pela mesma, enquanto inquilina, ao senhorio. A Apelada está, pois, numa situação em que, não só não realiza as obras a que se comprometeu, como beneficia do desconto no pagamento das rendas ao senhorio, o que vem ocorrendo, de resto, ao longo de vários anos. A conduta da Apelada representa, assim, em face de tudo quanto acaba de ser exposto, uma clamorosa violação do princípio da boa fé que, no cumprimento da sua obrigação, devia observar e não observou (art.º 762.º, n.º 2 do Código Civil). Ora, apesar de as partes não terem estipulado um prazo certo para a realização das obras, nem enunciado um critério para o determinar, o certo é que o período de quase 6 anos decorrido entre a data da celebração do negócio e a da propositura da ação seria, do ponto de vista do homem médio e das regras da experiência de vida, mais do que suficiente para o efeito. Seis anos é um prazo razoável para levar a cabo a construção de uma moradia individual e, por maioria de razão, também o é para levar a cabo obras de conservação de um apartamento. À Apelada não é lícito, por conseguinte, por força do princípio da boa fé, servir-se do ‘puro pretexto’ do não estabelecimento do prazo para ‘retardar o cumprimento da obrigação’ de realização das obras, na certeza de que ‘decorreu já o tempo mais do que suficiente para preencher o prazo’ necessário para o efeito. Há, pelo exposto, incumprimento contratual culposo da Apelada no cumprimento da sua obrigação. Havendo incumprimento da Apelada, resta aferir se o mesmo integra a cláusula geral prevista no corpo do n.º 2 do art.º 1083.º do Código Civil, que legitima a resolução do contrato pelo Apelante enquanto senhorio. E o certo é que, ponderando todos os fatores relevantes no caso e, de certo modo, já acima aflorados, se entende que sim. Na verdade, está em causa o incumprimento de uma obrigação que, como acaba de se ver, se prolongou já ao longo de vários anos, consistindo, assim, em incumprimento reiterado. Acresce que as obras se destinavam, não a valorização do locado, mas à sua conservação, pelo que o incumprimento da Apelada está a potenciar a deterioração ou, pelo menos, o agravamento do estado da fração autónoma, que a própria, aliás, tem o dever de utilizar e de preservar com a diligência devida. E isto, beneficiando com a situação, já que vê descontado todos os meses no valor da renda mensal que tem de pagar ao Apelante enquanto senhorio o valor das obras que deveria realizar e não realizou. Aliás, logrando pagar, por esse motivo, a título de renda, o valor de € 61,12, que, do ponto de vista dos valores médios atualmente praticados no mercado do arrendamento, é, para uma fração autónoma sita na área de Vila Nova de Gaia, e independentemente da sua antiguidade, manifestamente irrisório. Finalmente, a omissão de realização de obras pela Apelada potencia o risco de deterioração do locado e, com isso, o da necessidade de o Apelante ter de realizá-las ele próprio, em cumprimento do dever que, enquanto senhorio, sobre si recai à luz do art.º 1031.º, alínea b) do Código Civil. O incumprimento da obrigação pela Apelada, além de reiterado, é, assim, especialmente grave, afetando de modo sério o equilíbrio das posições de cada uma das partes na relação locatícia dos autos, de tal modo que torna inexigível ao Apelante manter o vínculo contratual que o une à Apelada. O Apelante detém, em face do exposto, justa causa de resolução do contrato de arrendamento dos autos, pelo que procederá a sua pretensão nesse sentido, com a consequente revogação da sentença recorrida. Resta dizer que a Apelada, nas conclusões R e S da sua resposta ao recurso, invoca que, tendo procedido à junção dos depósitos das rendas devidas ao Apelante enquanto senhorio, incumbia a este, nessa qualidade, impugná-los no prazo de 20 dias, em conformidade com o disposto no art.º 21.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, pelo que, não o tendo feito, têm-se os depósitos por aceites, o que conduziria à improcedência da ação. Nesta ação e neste recurso não se discute, contudo, quer a obrigação de pagamento das rendas pela Apelada enquanto arrendatária, quer o direito de resolução do contrato pelo Apelante enquanto senhorio fundado na omissão de pagamento de rendas (este limita a sua pretensão de ver resolvido o contrato de arrendamento dos autos à violação da obrigação da Apelada de realização de obras no locado e de violação de regras de higiene), pelo que a questão suscitada pela Apelada não tem cabimento no quadro do objeto do presente recurso. Em suma: procederá o recurso, com a consequente declaração de cessação do contrato de arrendamento dos autos por resolução e condenação da Apelada na entrega da fração locada ao Apelante, livre de pessoas e bens. * Porque vencida no recurso, suportará a Ré/Recorrida as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).* * * IV.- Decisão Pelo exposto, julga-se procedente o presente recurso e, revogando-se a sentença recorrida: i.- declara-se a cessação, por resolução, do contrato de arrendamento que serve de fundamento à ação; ii.- condena-se a Ré/Recorrida na entrega do locado ao Autor/Recorrente, livre de pessoas e bens. Custas da apelação pela Ré/Recorrida. Notifique. * * * Porto, 24 de outubro de 2024 José Manuel Correia Isabel Rebelo Ferreira Álvaro Monteiro (assinado eletronicamente) |