Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ANA LUCINDA CABRAL | ||
Descritores: | ARRENDAMENTO URBANO ABUSO DE DIREITO (INALEGABILIDADE) RESOLUÇÃO DO CONTRATO CADUCIDADE | ||
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Nº do Documento: | RP20220608377/20.1T8FLG.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/08/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA. | ||
Indicações Eventuais: | 2. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Abusa de direito, por inalegabilidade, o locatário que invoca a nulidade do contrato de arrendamento como reação ao pedido do locador de resolução contrato por falta de pagamento de rendas durante mais dois anos, depois de se ter conformado, desde a data da celebração do contrato, ao longo de vários anos, com todo o circunstancialismo contratual, designadamente a falta de licença de utilização do locado, nos casos em que a sua existência é condição do arrendamento. II - A mora superior a três meses na obrigação de pagamento de renda, encargos ou despesas, ou na oposição do arrendatário à realização de obra ordenada por entidade pública, opera ope legis para efeito de resolução contratual, não estando dependente do juízo de inexigibilidade da manutenção do contrato de arrendamento previsto no nº 2 do art.º 1083º do Código Civil. III - Cada renda vencida tem autonomia para a contagem do prazo de caducidade, aplicando-se a cada uma delas o disposto no art.º 1085º, nº 1, do Código Civil. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 377/20.1T8FLG.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este Juízo Local Cível de Felgueiras - Juiz 2 Acordam no tribunal da Relação do Porto I – Relatório AA, viúva, cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB, residente na Rua ..., ..., ... Felgueiras, veio propor a presente acção de processo comum contra CC, residente na Rua ..., ..., ... Felgueiras, pedindo que fosse decretada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre autora e réu, por falta do pagamento de rendas, sendo em consequência o réu condenado a entregar à autora o local arrendado, bem como no pagamento do valor de €4.200,00 a título de rendas vencidas e não pagas, bem como as vincendas e demais despesas necessárias com a reparação do locado. Para tanto, a autora alegou ser cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de BB, sendo, por conseguinte, legítima proprietária de um prédio rústico, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Felgueiras, inscrito na matriz sob o artigo ...; que, por contrato celebrado em 01/10/2013, foi dada de arrendamento uma parcela de terreno do aludido prédio para aparcamento de viaturas para venda; que a renda anual acordada ascende a €1.800,00, a pagar em duodécimos no montante de €150,00; que o réu não procedeu ao pagamento das rendas a partir de Fevereiro de 2018. Citado o réu, veio o mesmo apresentar contestação, pugnando pela ilegitimidade da autora, invocando a caducidade do direito à resolução do contrato por falta de pagamento de rendas. No mais, o réu salientou que deixou de utilizar a parcela arrendada porquanto a mesma exigia um licenciamento que a autora não realizou, tendo o réu sido alvo de uma fiscalização preventiva; que solicitou à autora e à sua filha a regularização da situação, o que estas não fizeram; que pagou as rendas até Agosto de 2018, deixando de o fazer a partir de tal data como forma de pressionar a autora a obter a licença; que abandonou o locado em Outubro de 2019; e que não entregou o locado porquanto gastou quantia significativa em obras de melhoramento. Peticionou, ainda, a condenação da autora como litigante de má-fé. Convidada a autora a responder às excepções invocadas, pugnou pela improcedência de todas. Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual foi elaborado despacho saneador, tendo sido fixado os termos do litígio e os temas de prova. Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, tendo a mesma decorrido sob a observância de todo o formalismo legal, como da respectiva acta consta, tendo a autora considerado efectivamente ter recebido a renda referente ao mês de Fevereiro de 2018, peticionando em consequência a redução do pedido em €200,00, o que foi deferido Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide: a) Declarar resolvido o contrato de arrendamento celebrado a 1 de Outubro de 2013, tendo por objecto uma parcela de terreno do prédio rústico, de cultura e ramada, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Felgueiras, inscrito na matriz sob o artigo ...; b) Condenar o Réu a entregar à Autora o prédio supra identificado, livre e desocupado de pessoas e bens; c) Condenar o Réu a pagar à Autora as rendas vencidas desde Março de 2018 a Maio de 2020, no valor global de €4.000,00, bem como as vencidas depois desta data e as vincendas até ao trânsito em julgado da presente sentença; d) Condenar o Réu a pagar à Autora os juros de mora vencidos sobre as aludidas rendas, que totalizavam, à data da propositura da acção, o valor de € 323,79, bem como os entretanto vencidos e os vincendos até efectivo e integral pagamento; e) Condenar o Réu no pagamento de uma multa no valor de duas UC’s, por litigância de má-fé; f) Condenar o Réu no pagamento de uma indemnização a favor da Autora, a liquidar em decisão ulterior, depois de ouvidas as partes; e g) Absolver a Autora do pedido de condenação como litigante de má-fé. CC veio interpor recurso, concluindo: I – A Autora AA (aqui recorrida) pediu a condenação do Réu, CC (aqui recorrente), no pagamento da quantia total de €4.200,00, relativas ao não pagamento das rendas, referentes ao contrato de “Arrendamento”, celebrado entre as partes, em Outubro de 2013, desde o mês de Fevereiro de 2018 até Maio de 2020, acrescidas de juros vencidos, a partir da citação, e vincendos até integral pagamento e entrega do local arrendado, calculados à taxa legal e legais acréscimos, bem como custas e procuradoria condigna. II – o Recorrente celebrou o referido contrato de “Arrendamento”, com a recorrida, de boa-fé e plenamente convencido que o terreno que arrendou estava devidamente licenciado para o exercício do comércio, em geral e para o exercício da sua actividade comercial de compra e venda de veículos. Fundamentando-se o convencimento do Réu, para além do mais, no teor da cláusula 4.ª, daquele contrato de arrendamento, onde se estabelece o seguinte: “O local arrendado destina-se ao exercício da actividade de venda de automóveis, não lhe podendo ser dado outro fim ou destino”. III - Todavia, em Janeiro de 2018, após uma fiscalização preventiva, por parte da Polícia Municipal de Felgueiras, o Réu tomou conhecimento que aquele contrato de arrendamento não lhe permitia o exercício do comércio, no terreno arrendado, ao contrário do que sempre foi informado pela Autora (e, pela filha da Autora). IV - Nesta matéria, segundo os referidos diplomas legais e a jurisprudência maioritária, compete ao senhorio obter a licença de utilização genérica do bem arrendado, in casu a obtenção da licença de utilização do terreno em causa para o exercício do comércio. V – Sendo que, quando exista licença de utilização para um determinado fim, mas o contrato seja celebrado para outro fim, a consequência é a nulidade do contrato. VI- Pelo que, inexistindo a referida licença de utilização do locado, para o exercício do comércio em geral, no ato de celebração do referido contrato de arrendamento, uma vez que o terreno em causa apenas está “licenciado” para o exercício de actividades agrícolas, estamos perante a nulidade, prevista no artigo 5º, n.º 8, do Dec-Lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto (alterado pelo Dec-Lei n.º 266-C/2012, de 31/12) verificando-se, assim, a excepção de não cumprimento contratual, e/ou, caso assim se não entenda, verifica-se a “ineficácia do citado contrato”, de conhecimento oficioso. VII – O recorrente deixou de pagar as rendas, do terreno arrendado, desde Fevereiro de 2018, pelo que, decorridos 3 meses sob tal prazo, começou a correr o prazo de caducidade, de um ano, relativo ao direito de resolução do contrato de arrendamento, objecto dos presentes autos, nos termos do disposto nos artigos 1083º, n.º 3 e 1085º, n.º 1, ambos do Código Civil. VIII - Ora, tendo em conta que, que o Recorrente deixou de pagar a renda, do local arrendado, em Fevereiro de 2018, o prazo de um ano, relativo ao direito de resolução do contrato de arrendamento, por parte da recorrida, caducou em Maio de 2019, nos termos do disposto no artigo 1085.º, n.º 1, do Código Civil, no qual se estatuí que: “Caducidade do direito de resolução. 1 - A resolução deve ser efetivada dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade”. IX - O Recorrente pagou as rendas relativas ao terreno locado, até ao mês de Julho de 2018, pelo que, tendo em conta tal data, o referido prazo de caducidade, de um ano, iniciou-se no mês de Agosto de 2018 e terminou no mês de Agosto de 2019. Nesta conformidade, o prazo de resolução do aludido contrato de arrendamento, objeto dos presentes autos, caducou em Agosto de 2019, nos termos do disposto no artigo 1085.º, n.º 1, do Código Civil. X - Por tal facto, deverá ser revogada a douta decisão a quo considerando caducado o direito à resolução pelo decurso do prazo, com as demais consequências legais daí decorrentes. XI – O aqui ora recorrido foi condenado na douta sentença enquanto litigante de má-fé, quando foi ele próprio que pugnou essa condenação contra a autora, aqui recorrida. Por tudo quanto foi alegado anteriormente, facilmente se poderá concluir que essa condenação, a ter lugar, deverá sê-lo contra a aqui ora recorrida e não contra o recorrente. XII - Também aqui, andou mal o tribunal ad quo ao condenar o recorrente como litigante de má-fé. Por tal facto, deverá ser revogada a douta decisão a quo considerando que não litiga de má fé, outrossim a autora recorrente, com as demais consequências legais daí decorrentes. É quanto deixamos à consideração dos Venerandos Senhores JuízesTermos em que, revogando V. Exas. a sentença impugnada, absolvendo-se o Réu dos pedidos e condenando a Autora como litigante de má fé farão V. Exas. JUSTIÇA, A autora AA, apresentou contra-alegações, pugnando no sentido de que ser julgado totalmente improcedente o recurso e integralmente confirmada a sentença. Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal. Assim, as questões a resolver consistem em saber se: - o contrato de arrendamento é nulo nos termos do disposto no artigo 5º, n.º 8, do Dec-Lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto; - caducou o direito à resolução do contrato; - o recorrente não deve ser condenado como litigante de má-fé. II – Fundamentação de facto O tribunal recorrido considerou: Matéria de facto provada 1. A Autora, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB, é legítima proprietária de um prédio rústico, de cultura e ramada, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Felgueiras, inscrito na matriz sob o artigo .... 2. A Autora celebrou com o Réu um contrato de arrendamento, denominado “Contrato de arrendamento rural”, tendo por objecto uma parcela de terreno do prédio acima descrito, para aparcamento de viaturas para venda, mais concretamente 300 m2, devidamente delimitada por vedação de arame e esteio, situado no lado direito, considerando o lado da estrada nacional. 3.Na cláusula 4.ª do aludido contrato consta que: “O local arrendado destina-se ao exercício da actividade de venda de automóveis, não lhe podendo ser dado outro fim ou destino”. 4. Por seu turno, na cláusula 8.ª do contrato resulta o seguinte: “Ao inquilino cabe a responsabilidade de obter, junto das entidades competentes, a licença de utilização, caso seja necessária, para o exercício da actividade de venda de viaturas no dito terreno”. 5. O contrato foi celebrado a 1 de Outubro de 2013, com a duração de dois anos, com início em 1 de Outubro de 2013 e termo em 1 de Outubro de 2015, considerando-se prorrogado por períodos iguais e sucessivos, enquanto não fosse denunciado pelas partes nos termos legais. 6. Contrato esse que à data da propositura da acção se mantinha em vigor, fruto das sucessivas renovações, tendo sido denunciado pela Autora, com efeitos a partir de 30 de Setembro de 2020. 7. A renda anual acordada foi de €1.800,00 (mil e oitocentos euros) anuais, devendo ser paga em duodécimos de €150,00 (cento e cinquenta euros), até ao primeiro dia útil do mês anterior a que respeitar, na morada da Autora. 8. Sucede que o Réu deixou de proceder ao pagamento das rendas a partir de Março de 2018 inclusive, mantendo em dívida tais quantias. 9. À data da propositura da acção, o Réu devia o valor das rendas desde Março de 2018 até Maio de 2020, no montante de €4.000,00. 10. O Réu abandonou o locado em Outubro de 2019, não o tendo, porém, devolvido à Autora. 11. O terreno arrendado não possuía qualquer licença genérica de utilização, nunca tendo a Autora diligenciado pela obtenção de qualquer licença. 12. O terreno, aquando do arrendamento ao Réu, encontrava-se já vedado e pavimentado, por aí ter previamente funcionado um outro stand. Matéria de facto não provada 1. Que o Réu, aquando da celebração do contrato de arrendamento, estivesse convencido que o terreno em causa se encontrava devidamente licenciado para o exercício do comércio. 2. Que em Janeiro de 2018, após uma fiscalização preventiva por parte da Polícia Municipal de Felgueiras, o Réu tenha tomado conhecimento que aquele contrato de arrendamento não lhe permitia o exercício do comércio, no terreno arrendado, ao contrário do que sempre havia sido informado pela Autora e pela sua filha. 3. Que o Réu tenha comunicado à Autora e à filha desta, desde Janeiro de 2018, a necessidade de obter o respectivo licenciamento. 4. Que a Autora e a filha, perante a comunicação do Réu, tenham referido que iriam resolver o problema. 5. Que o Réu tenha pago as rendas relativas aos meses de Março a Julho de 2018. 6. Que o Réu tenha procedido a obras de melhoramento do espaço. 7. Que a Autora soubesse que as rendas de Fevereiro a Julho de 2018 tinham sido pagas, bem como que a causa de abandono, pelo Réu, do locado se devesse à falta de licenciamento para o exercício de actividade comercial. III – Fundamentação de direito Alega o recorrente, em primeiro lugar, que quando existe licença de utilização para um determinado fim mas o contrato é celebrado para outro fim, a consequência é a nulidade do contrato. Que, inexistindo licença de utilização do locado para o exercício do comércio em geral, no acto de celebração do referido contrato de arrendamento, uma vez que o terreno em causa apenas está “licenciado” para o exercício de actividades agrícolas, estamos perante a nulidade, prevista no artigo 5º, n.º 8, do Dec-Lei n.º 160/2006, de 8 de Agosto (alterado pelo Dec-Lei n.º 266-C/2012, de 31/12), verificando-se, assim, a excepção de não cumprimento contratual, e/ou, caso assim se não entenda, verifica-se a “ineficácia do citado contrato”, de conhecimento oficioso. Atentemos. Quanto a esta questão registou-se na sentença:” No caso em apreço, não ficou demonstrado que o terreno tivesse uma qualquer construção, apenas se encontrando vedado e pavimentado. É manifesto que uma vedação e pavimentação é suficiente para a implementação de um stand básico, ao ar livre, com os carros meramente aí aparcados e, eventualmente, com preços anunciados. Não obstante, o espaço em causa é já utilizável para comércio. O já citado art.º 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 160/2006, determina que apenas os “edifícios” ou “fracções” exigem licença de utilização para ser objecto de arrendamento urbano. No caso, não existia no terreno qualquer edifício ou fracção pelo que não era exigível qualquer licença. Por outro lado, o próprio n.º 9 do referido art.º 5.º estipula que se excepciona na obrigatoriedade de licença de utilização os casos em que os locais se destinem a “afixação de publicidade ou outro fim limitado”. Ora, destinando-se o terreno em causa ao parqueamento de carros com anúncio de venda, sem deter quaisquer outras infra-estruturas de relevo, entende-se que o arrendamento sempre recairia no âmbito da excepção prevista no aludido n.º 9 do diploma em apreço. Por esse motivo, o Tribunal entende que o terreno arrendado tinha viabilidade para ser utilizado para os fins convencionados.” Portanto, enquadrou-se a situação em análise nas excepções que o diploma consente: não se tratar de “edifícios” ou “fracções” mas apenas de um terreno e, por outro lado, tratar-se de local destinado a fim limitado. Mas mesmo que assim não se entenda, teremos sempre será de observar o que se segue. O contrato de arrendamento foi celebrado entre o recorrente e a recorrida em 2013, tendo por objecto uma parcela de terreno para aparcamento de viaturas para venda, mais concretamente 300 m2, devidamente delimitada por vedação de arame e esteio. Na cláusula 4.ª ficou a constar que: “O local arrendado destina-se ao exercício da actividade de venda de automóveis, não lhe podendo ser dado outro fim ou destino”. E na cláusula 8.ª que: “Ao inquilino cabe a responsabilidade de obter, junto das entidades competentes, a licença de utilização, caso seja necessária, para o exercício da actividade de venda de viaturas no dito terreno”. Esta relação contratual manteve-se, operando-se as prorrogações nele estipuladas, até que o recorrente deixou de proceder ao pagamento das rendas a partir de Março de 2018 o que motivou a recorrida a pedir a resolução do contrato por falta do pagamento das rendas. Portanto, o recorrente conformou-se com todo o circunstancialismo deste contrato e só agora, quando a recorrida veio pedir a resolução do contrato, é que vem usar do direito de pedir a nulidade prevista no artigo 5º, n.º 8 do DL n.º 160/2006, de 8 de Agosto. De acordo com o disposto no artigo 334º, do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. A. Menezes Cordeiro, in Litigância de Má Fé Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, 2006, págs. 33 a 49, expressa que o abuso do direito constitui uma forma tradicional para exprimir a ideia do exercício disfuncional de posições jurídicas, isto é, do exercício concreto de posições jurídicas que, embora correctas em si, acabam por contundir com o sistema jurídico na sua globalidade. Este autor trata de várias regulações típicas deste instituto: a) exceptio doli; b) venire contra factum proprium; c) inalegabilidade de nulidades formais; d) supressio e surrectio; e) desequilíbrio no exercício jurídico, advertindo, no entanto, que não estamos exactamente perante uma classificação, mas antes em face de ordenações de características. A doutrina e a jurisprudência elegem a tutela da confiança, apoiada na boa-fé, como substrato deste tipo de regulação, o qual ocorre perante quatro proposições: 1.ª Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias; 2.ª Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível; 3.ª Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada; 4.ª A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à posição do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu. Não há, entre estas preposições, uma hierarquia e o modelo funciona mesmo na falta de alguma (ou algumas) delas: desde que a intensidade assumida pelas restantes seja tão impressiva que permita, valorativamente, compensar a falha. A inalegabilidade de nulidades formais acontece quando, num primeiro passo, o agente daria azo a uma nulidade formal, prevalecendo-se do negócio (nulo) assim mantido enquanto lhe conviesse e, numa segunda altura, quando lhe conviesse invocaria a nulidade. Haverá também aqui uma grosseira violação da confiança. A. Menezes Cordeiro lembra que nesta conjuntura a inalegabilidade exige, à partida, os quatro pressupostos da tutela da confiança que se delinearam a propósito do venire, havendo que introduzir ainda mais três requisitos: 1.º Devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; não, também, os de terceiros de boa-fé; 2.º A situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar; 3.º O investimento de confiança deve ser sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via. Ora, a conduta do recorrente integra-se precisamente na referida situação da inalegalidade. Na verdade, o recorrente prevaleceu-se do negócio (nulo), mantendo-o enquanto nele teve conveniência, sendo certo que a legislação invocada até lhe permitia resolver o contrato, como se referiu na sentença, e, quando deixou de pagar as rendas e ocasionou o pedido de resolução por parte da recorrida, veio invocar a nulidade, sem cuidar de que se se aproveitou da situação anos a fio. Acresce que no contrato ficou estipulado que cabia ao recorrente providenciar pela obtenção da licença de utilização. Assim, este direito invocado pelo recorrente é ilegítimo por abusivo, o que conduz à sua neutralização ou paralisação e equivale à sua inexistência, sendo certo que a figura do abuso de direito é de conhecimento oficioso, conforme entendimento unanime da doutrina e da jurisprudência. Mais advoga o recorrente que deixou de pagar as rendas de Fevereiro de 2018, pelo que, decorridos 3 meses sob tal prazo, começou a correr o prazo de caducidade, de um ano, relativo ao direito de resolução do contrato de arrendamento, nos termos do disposto nos artigos 1083º, n.º 3 e 1085º, n.º 1, ambos do Código Civil. Assim, diz, esse prazo de um ano caducou em Maio de 2019. Que pagou rendas até ao mês de Julho de 2018 pelo que o referido prazo de caducidade, de um ano, iniciou-se no mês de Agosto de 2018 e terminou no mês de Agosto de 2019. Que nesta conformidade o prazo de resolução do aludido contrato de arrendamento caducou em Agosto de 2019. Analisemos. O esquema do numerus clausus das causas de resolução, por iniciativa do senhorio adoptado no RAU (Regime do Arrendamento Urbano) – e antes dele no Código Civil de 1966 – foi substituído, no NRAU (Novo Regime do Arrendamento Urbano), por uma cláusula geral: o factor nuclear de resolução do contrato de arrendamento é o incumprimento de qualquer obrigação que, pela sua gravidade ou consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, portanto, que exclua qualquer possibilidade de a parte lesada adoptar outra conduta que não a extinção do contrato (artigo 1083 nº 2 do Código Civil). O NRAU seguiu a técnica de referenciar, em geral, o fundamento de resolução e de complementar, de seguida, essa definição através duma enumeração. Assim, após um número em que se insere a noção, seguem-se, em cinco alíneas, uma lista de comportamentos tipificados como fundamento de resolução. A sua leitura mostra que a lei seleccionou, por assim dizer, as violações contratuais mais graves e reconheceu-as como fundamento da resolução. É pacífico, em face do uso do advérbio designadamente, que tal enumeração é meramente exemplificativa e que, por isso, outras violações, ainda que menos graves, permitirão ao senhorio resolver o contrato. Além da ilicitude e da culpa, a violação de qualquer dever exige certas consequências gravosas na relação jurídica de arrendamento. Nas palavras da lei, a atitude do arrendatário, além de ilícita deve tornar inexigível ao senhorio normal a subsistência do contrato de arrendamento. Uma concreta causa de resolução deve, por isso, ser sempre submetida à ideia básica do corpo do artigo: a violação de um dever – legal ou contratual – qualquer que ele seja, só constitui causa de resolução do contrato de arrendamento se essa violação, pela sua gravidade ou reiteração, tornar inexigível a manutenção daquele contrato. Nesta perspectiva, nem toda a violação do contrato fundamenta o decretamento da resolução: para que o contrato possa ser resolvido é ainda necessário que dessa violação resulte comprometida a subsistência do contrato de arrendamento. Só não será assim no tocante à resolução do contrato com base na mora superior a três meses da obrigação de pagamento da renda, encargos ou despesas ou na oposição do arrendatário à realização de obra ordenada por entidade pública: quanto a estes fundamentos de resolução do contrato o juízo de inexigibilidade é feito pela própria lei, ou dito de outro modo, verifica-se uma situação ex lege de inexigibilidade para o senhorio na manutenção do contrato de arrendamento (artigo 1083º nº 3 do Código Civil). A mora de três meses – de uma só renda que seja – é auto-suficiente, enquanto fundamento de resolução do contrato: é a própria lei que proclama, nessa eventualidade, a inexigibilidade da manutenção do arrendamento, não havendo, por isso, lugar a uma autónoma ponderação sobre a sua gravidade e consequências. Quer dizer, a lei exige apenas, para que este fundamento de resolução do contrato de arrendamento se constitua, uma mora de três meses, não impondo nenhum número especial de rendas em mora: basta uma. Cada uma das rendas vencidas tem autonomia para a contagem do prazo de caducidade, pelo que em relação a cada uma delas se aplica o disposto no artigo 1085.º, nº 1 do C. Civil. Assim é assertivo e subscreve-se o seguinte segmento da sentença recorrida: ” Ora, conforme expressamente salienta o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 13 de Julho de 2016, proc. n.º 12399/15.0T8LSB. L1-2, também disponível in www.dgsi.pt, citando Fernando Baptista de Oliveira, in “A Resolução do Contrato no Novo Regime do Arrendamento Urbano”, Almedina, págs. 163 a 165, “cada uma das rendas vencidas tem autonomia para a contagem do prazo de caducidade, pelo que em relação a cada uma delas se aplica o disposto no art. 1085.º/1 CC..”. Assim, ainda que o direito à resolução do contrato já tenha caducado pela falta de pagamento das rendas relativas aos meses de Março, Abril e Maio de 2018, o mesmo não sucedeu no que concerne às rendas de Março, Abril e Maio de 2020, porquanto, quanto à resolução pela falta de pagamento de tais três rendas, a respectiva caducidade apenas operaria a partir de Julho de 2020. Entendimento diverso levaria a que um senhorio ficasse efectivamente impedido de resolver o contrato caso o inquilino sucessivamente incumprisse a obrigação de pagamento da renda, deixando de entregar qualquer valor, e o senhorio deixasse decorrer período superior a um ano desde o decurso do vencimento da terceira renda consecutiva por pagar. Em síntese, tal entendimento levaria a que o Réu pudesse manter-se, indefinidamente e sem possibilidade de despejo, num locado para o qual não pagava a renda.” Argumenta ainda o recorrente que foi condenado enquanto litigante de má-fé, quando foi ele próprio que pugnou essa condenação contra a autora, aqui recorrida. Tal condenação, a ter lugar, deverá sê-lo contra a aqui ora recorrida e não contra o recorrente. Consideremos. Refere PAULA COSTA E SILVA, in A litigância de má-fé, Almedina, 2008, pág. 620, que a ilicitude pressuposta pela litigância de má-fé distancia-se da ilicitude civil (artigo 483º CC), não apenas porque se apresenta como um ilícito típico (descrevendo analiticamente as condutas que o integram), mas também porque, ao contrário do que sucede com o ilícito civil, se encontra dependente da verificação de um elemento subjectivo, sem o qual o comportamento da parte não pode ser tido como típico e, consequentemente, como ilícito, aproximando-se nesta medida muito mais do ilícito penal. O litigante tem de actuar já imbuído de dolo ou culpa grave. O elemento subjectivo será então considerado não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade. O artigo 542 º do CPC (artigo 456.º CPC 1961) censura três tipos de actuação substancial e um de conduta processual. A actuação substancial sancionável pode consistir em: i) deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento se não deva ignorar (artigo 542.º, n.º 2, alínea a)); ii) alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a decisão da causa (artigo 542.º, n.º 2, alínea b)); iii) omitir gravemente o dever de cooperação (artigo 542º, n.º 2, alínea c)). No âmbito da actuação processual sanciona-se o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, por qualquer das partes, a fim de: i) conseguir um objectivo ilegal; ii) impedir a descoberta da verdade; iii) protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (artigo 542, n.º 2. alínea d)). No presente caso, concorda-se inteiramente com o que se assinalou na sentença nesta matéria relativamente à conduta do recorrente e da recorrida, reproduzindo-se aqui, relativamente àquele, este trecho:”…, referiu que pagou a renda relativa aos meses de Março a Julho de 2018 (o que se demonstrou não ter ocorrido) e que não procedeu ao pagamento das remanescentes rendas porquanto lhe foi referido que precisava de uma licença (o que não se provou e, na realidade, não era necessário; e, mesmo que fosse, apenas poderia o Réu resolver o contrato, em lugar de não pagar as rendas, desocupar posteriormente o locado mas não o entregar à Autora, como fez). Assim, quanto ao pagamento, trata-se de uma contradição entre o por si alegado e o demonstrado que, necessariamente, tinham que ser do conhecimento do Réu, pelo que é manifesto que o mesmo faltou à verdade quando declarou ter pago as rendas devidas entre Março e Julho de 2018, tendo em consequência agido de má-fé (cfr. art.º 542.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil). Por outro lado, o Réu igualmente agiu de má-fé, a título de lide temerária, quando fundamentou a ausência de pagamento das rendas na inexistência de licenciamento, quando confrontado com a possibilidade legal de resolução contratual que lhe é concedida. O Réu, mesmo após a citação, no decurso de todo o processo (que foi longo, atentas as suspensões advindas da pandemia de Covid-19 que ainda grassa no país), e apesar de legalmente representado por Ilustre Mandatário, não utilizou de tal faculdade.” O comportamento referido enquadra-se na alínea a) do nº 2 do artigo 542º do CPC. Decaem, pois, todas as razões fundantes do recurso em análise. Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida. Custas pelo recorrente. Porto, 8 de Junho de 2022 Ana Lucinda Cabral Maria do Carmo Domingues Rodrigues Pires (A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.) |