Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5199/23.3T8VNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
CÁLCULO
Nº do Documento: RP202401165199/23.3T8VNG-B.P1
Data do Acordão: 01/16/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No âmbito da decisão do deferimento liminar da exoneração do passivo restante estão dois direitos distintos em tensão: o direito dos credores a verem satisfeitos os respetivos créditos sobre a insolvente; e o direito desta última a ter uma existência minimamente digna, sob o ponto de vista material.
II - Desde há muito que constitui jurisprudência largamente maioritária que o salário mínimo nacional é a referência básica para assegurar essa dignidade.
III - O salário mínimo nacional a considerar para os efeitos previstos no artigo 239.º, n.º 3, b), i), do CIRE, é o mensal e não qualquer outro ou com qualquer outro acréscimo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5199/23.5T8VNG-B.P1
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Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntos: João Proença;
Fernando Vilares Ferreira.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I- Relatório
1- AA, apresentou-se à insolvência no dia 21/06/2023 e, em simultâneo, requereu a exoneração do passivo restante.
2- A declaração da sua insolvência teve lugar por sentença datada de 29/06/2023 e, por despacho proferido no dia 13/09/2023, foi decidido admitir liminarmente o seu pedido de exoneração do passivo restante e determinado que a Insolvente entregue à Fiduciária os montantes que anualmente receba e que excedam 12 vezes o salário mínimo nacional.
3- Inconformada com esta decisão, dela interpõe recurso a Insolvente, rematando-o com as seguintes conclusões:
“A- A Apelante foi declarada Insolvente a 29-06-2023.
B- O presente Recurso tem por objecto o despacho inicial de exoneração do passivo restante, que fixou 1 (um) salário mínimo nacional, como montante necessário ao sustento digno da Insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.º 2 e 3, al. b) e i) do art. 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (adiante abreviado de C.I.R.E).
C- Assim, no referido despacho, consignou-se expressamente que a devedora tem a obrigação de entregar à Sr.ª Fiduciária os montantes que anualmente receba e que excedam 12 vezes o valor acima fixado (itálico e negrito nosso), durante os 3 (três) anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, sendo o rendimento disponível que a devedora venha a auferir cedido à Fiduciária ora nomeada.
D- Estatui o n.º 3 do art. 239.º do C.I.R.E que “integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão a) dos créditos a que se refere o art. 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) de que seja razoavelmente necessário para: (i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; (ii) o exercício pelo devedor da sua actividade profissional; (iii) outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”
E- O rendimento excluído da cessão, igualmente denominado de “rendimento indisponível” é caracterizado como a parte suficiente e indispensável para suportar economicamente a existência do devedor.
F- Assim, o mínimo legal concretiza-se na ideia de sustento minimamente condigno e um máximo legal correspondente a 3 vezes o salário mínimo nacional.
G- Consagra-se, assim, uma cláusula aberta de “sustento digno”, com a fixação prévia de um tecto máximo.
H- Tem-se entendido que o “sustento minimamente digno” convoca a ideia de “dignidade da pessoa humana” consagrada, entre outros afloramentos, nos artigos 1.º, 2.º, 13.º, n.º 1, 59.º, e n.º 1, 67.º da nossa Constituição da República Portuguesa, normas que esta, relativamente a direitos fundamentais, manda interpretar e integrar de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em cujo art. 25.º se proclama “Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários”.
I- O valor do rendimento indisponível terá de ser fixado, assegurando o sustento mínimo indispensável para uma sobrevivência com dignidade e atendendo às circunstâncias de cada caso concreto, encargos e despesas do devedor, passivo e bens apreendidos, mas sempre sem perder de vista que se trata de um período de contenção e sacrifício, a fim de se atingir o referido equilíbrio com os interesses dos credores.
J- No caso sub iudice, o valor fixado como indisponível para o período de cessão é, s.m.o, inferior ao razoavelmente necessário para a dignidade a Insolvente.
K- Dos factos considerados relevantes, pelo tribunal “a quo” para fixar o rendimento indisponível da Insolvente, por um lado, ficaram por concretizar todas as suas despesas, devidamente comprovadas nos autos e que adiante escortinar-se-á e por outro ficaram mesmo omitidas a idade da Insolvente, o seu estado de saúde e despesa mensal com telecomunicações.
L- Devem prevalecer e ser garantidas previamente as necessidades de sobrevivência do devedor com dignidade sobre a possibilidade de ressarcimento dos credores.
M- Refira-se, que a Insolvente tem um passivo que ascende a € 11.799,00, relativo unicamente a um crédito automóvel (aquisição de um veículo automóvel por contrato de compra e venda a prestações).
N- Vive só, é viúva, reformada, necessitando de toma diária de medicação e de acompanhamento médico mensal.
O- Recebe pensão de velhice na quantia de € 417,77 e pensão de sobrevivência, pelo falecimento do seu marido, no valor de € 401,48.
P- Sucede que, a Insolvente paga mensalmente renda social no valor de € 121,79, quota de condomínio no valor de € 8,00, suporta ainda, despesas médicas e medicamentosas no valor mensal de € 80,00, passe mensal no valor de€ 30,00, columbário onde se encontra a urna do marido, no valor de € 30,00.
Q- Porém, o despacho é omisso na seguinte factualidade, igualmente relevante e que deverá dar-se por provada, atenta a toda a prova junta aos autos.
R- A saber, a Insolvente tem 70 anos de idade (nascida a .../.../1953), conforme certidão de nascimento junto ao requerimento inicial, sob Doc. 1;
S- Apresentou prova documental das despesas com água, luz, gás e telecomunicações.
T- Assim, a Insolvente despende mensalmente aproximadamente € 60,00 na fatura de energia, € 25,00 em água, € 30,00 em gás de botija e € 57,13 pelo serviço de TV, telefone e internet, o montante global de € 172,13, conforme resulta demonstrado pelas faturas juntas aos autos sob Doc. 15 a 17, no requerimento inicial da Insolvente.
U- Sem prescindir, mal andou o tribunal “a quo” em desconsiderar o facto igualmente relevante da Insolvente sofrer de cardiopatia isquémica e arrítmica, hipertensão e glaucoma que a obrigam a toma diária de medicação e acompanhamento médico frequente, conforme Relatório Médico junto sob Doc. 6 ao requerimento inicial da Insolvente.
V- A Insolvente, como proprietária de um veículo automóvel, cuja aquisição em 2006 originou o único crédito da presente insolvência, acarreta custos anuais, desde seguro de responsabilidade civil obrigatório e Imposto Único de Circulação.
W- Os documentos sem força probatória plena ficam sujeitos à livre apreciação – todos os documentos que não sejam documentos autênticos ou particulares cuja autoria seja reconhecida (aqueles e estes têm força probatória plena - arts. 371º e e 376º do CC, respectivamente), desde que impugnados pela parte contra quem são apresentados, vêem a sua eficácia probatória dependente da livre apreciação do juiz.
X- Salvo o devido respeito, a Meritíssimo juiz omitiu qualquer pronúncia quanto à supra mencionada factualidade que se considera relevante e com força probatória bastante.
Y- A retribuição mínima nacional garantida (doravante RMMG) consiste na remuneração básica estritamente indispensável àsatisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e, concebida como um patamar mínimo, não pode ser, reduzido seja qual for o motivo.
Z- Trata-se de um conceito indeterminado, pelo que o montante a definir a casa caso concreto, depende da avaliação jurisprudencial das circunstâncias do devedor.
AA- Ora, determinando o douto despacho do tribunal “a quo” que todos os montantes, que excedessem 12 vezes o valor de 1 (uma) RMMG ao ano, teriam que ser cedidos à Sr.ª Fiduciária, durante o período de cessão de rendimentos, violou o disposto na al. a) do n.º 2 do art. 59.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o ponto i), da al. b) do n.º 3 do art. 239.º do C.I.R.E.
BB- Isto porque, salvo o devido respeito pela douta decisão judicial em análise, a Apelante defende que o rendimento disponibilizado é constituído pela RMMG, multiplicada por 14.
CC- Nos termos e para os efeitos dos art. 263.º e n.º 1 do art. 264.º do Código do Trabalho, a RMMG é recebida 14 vezes no ano, ou seja, o seu valor anual é composto pelo montante mensal, multiplicado por 14, logo, o mínimo necessário ao sustento digno da insolvente, aqui Apelante, não deverá ser inferior à remuneração mínima anual.
DD- No mesma senda, pretendeu o legislador integrar todos os rendimentos auferidos pelos trabalhadores, como valores de relevantes e imprescindíveis, através da criação do conceito de Retribuição Mínima Nacional Anual, a que alude o art. 3.º do Decreto-lei 158/2008 de 8 de Agosto, definindo-o como “o valor da retribuição mínima mensal garantida, a que se refere o n.º 1 do art. 266.º do Código do Trabalho, multiplicado por 14 meses”.
EE- Os subsídios de férias e de Natal são parcelas de retribuição do trabalho relevantes e imprescindíveis, não são extras para umas férias ou um Natal melhorados.
FF- Ademais não podemos ignorar que actualmente atravessamos graves problemas, a nível nacional, inerentes à inflação e custo de vida.
GG- A retribuição mínima nacional anual é constituída pela RMMG multiplicada por 14, pelo que a RMMG mensalmente disponibilizada corresponde aquela, multiplicada por 14 e dividida por 12.
HH- É este o valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento e que o Estado fixou como o mínimo necessário ao sustento de qualquer trabalhador.
II- Do aduzido, mal andou oTribunal “a quo” desconsiderando os subsídios auferidos pela Apelante, enquanto pensionista, em total desrespeito pelo conceito de Retribuição Mínima Nacional Anual (RMNA).
JJ- Assim, o valor do rendimento necessário ao sustento minimamente digno da Insolvente – Apelante – terá que ser sempre a RMMG retida 14 vezes ao ano ou, em alternativa, cada uma das parcelas mensais nunca poderá ser inferior À RMMG multiplicada por 14, cujo produto é dividido por 12.
KK- Bem sabemos que, a questão de direito sub iudice já foi proficientemente analisada, em diversos acórdãos que acolhem o mesmo entendimento, designadamente, no Acórdão desta Relação, de 27.02.2018, de Higina Castelo, Processo n.º 1809/17.1T8BRR.L1, ainda desta Relação, datado de 22.05.2019, Processo n.º 1756/16.4T8STS-D.P1.
LL- No mesmo sentido, foram proferidos outros Acórdãos semelhantes: Acórdão da Relação de Lisboa de 11.10.2016, Processo n.º 1855/14.7CLRS-7, Acórdãos proferidos nos processo n.º 3036/16.6T8BRR de 07.03.2017, 5820/17.4T8LSB-C.L1, de 23.1.2018.
MM- Perfilha-se e por esse motivo se transcreve o douto Acórdão desta Relação, no âmbito do Processo n.º 206/17.3T8AMT.P1, datado de 22.10.2019, com o seguinte Sumário “a retribuição mínima nacional anual é constituída pela RMMG multiplicada por 14, pelo que a RMMG garantida mensalmente corresponde àquela RMMG multiplicada por 14 e dividida por 12. O mesmo é dizer que este valor médio mensal que o trabalhador dispõe para o seu sustento corresponde àquele que o Estado fixa como o mínimo necessário ao sustento minimamente digno do trabalhador. Fazendo uma adequação principiológica ao valor do rendimento necessário ao sustento minimamente digno do insolvente, há que concluir que esse valor é retido 14 vezes ao ano ou então cada uma das parcelas mensais não deverá ser inferir à RMMG multiplicada por 14 cujo produto é dividido por 12”.
NN- Face ao exposto, entende-se ser de fixar como rendimento indisponível, no caso concreto dos presentes autos, em que não foram apuradas todas as circunstâncias excecionais (como a idade avançada, as doenças e todas as despesas da Insolvente) que justifiquem a fixação de valor superior, o montante correspondente ao valor da RMMG, multiplicado por 14 meses num ano”.
Termina, assim, pedindo que se julgue procedente o presente recurso e que se revogue o despacho recorrido.
4- Não consta que tivesse havido resposta
5- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito do recurso
A- Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto deste recurso, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações da recorrente, cinge-se a saber se deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto e ainda se deve ser excluído da cessão à fidúcia o rendimento concreto que a Apelante reputa de necessário para o seu sustento minimamente digno.
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B- Fundamentação
B.1- Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1) A insolvente é viúva e reside em casa arrendada pela qual paga, mensalmente, renda no valor de 121,79€ e quota de condomínio no valor de 8,00€.
2) A insolvente está reformada e recebe pensão de velhice no valor de 417,77€ e desde o falecimento do seu marido, recebe ainda, a pensão de sobrevivência no valor de 401,48€.
3) A insolvente suporta mensalmente as despesas essenciais necessárias à sua sobrevivência, designadamente com alimentação, água, luz, gás, vestuário e calçado, suportando ainda 30,00€ com passe e despesas médicas e medicamentosas no valor mensal de, aproximadamente, 80,00€ e o columbário onde se encontra a urna do marido, no valor de 30,00€.
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B.2- Análise dos fundamentos do recurso
1- Como vimos, começa por nele estar em causa a questão de saber se deve haver lugar à modificação da matéria de facto, estabelecida na sentença recorrida. Isto porque a Apelante pugna para que seja julgado demonstrada a sua idade, os valores que despende mensalmente, em média, em eletricidade, água, gás e serviço de TV, telefone e internet. Além disso, alega ainda que “mal andou o tribunal “a quo” em desconsiderar o facto igualmente relevante da Insolvente sofrer de cardiopatia isquémica e arrítmica, hipertensão e glaucoma que a obrigam a toma diária de medicação e acompanhamento médico frequente (…)”.
Ora, que a Apelante toma medicação regular e tem também acompanhamento médico habitual, já resulta do afirmado no ponto 3 dos Factos Provados, nos quais se refere, entre o mais, que mesma suporta “despesas médicas e medicamentosas no valor mensal de, aproximadamente, 80,00€”, o que tem implícita a necessidade regular de ambos. Já quanto à especificação das doenças concretas de que alegadamente padece a Apelante não se vê necessidade de introduzir maior detalhe, pois que neste incidente não estão em causa propriamente essas doenças, mas as respetivas implicações financeiras, o que já foi julgado demonstrado. Neste aspeto, portanto, nada mais há a acrescentar.
Diversamente, quanto aos demais, entendemos que devem ser introduzidas algumas modificações. Referimo-nos à idade da Insolvente, que ajuda a compreender o seu contexto sócio económico em articulação com a restante factualidade provada, bem como às despesas concretas que a Apelante suportou, nos meses específicos em que as faturas as confirmam (e não por regra, pois que se ignora se assim sucede), com eletricidade, água e serviço de televisão e comunicações. Já quanto ao gás, não há documentação que comprove o respetivo custo.
Assim, tendo em conta os documentos n.ºs 1, 15, 16 e 17, juntos com a petição inicial (que não foram impugnados), aditam-se à matéria de facto provada os seguintes factos:
“4- A Insolvente nasceu no dia .../.../1953.
5- De 16/01/2023 a 15/02/2023, a Insolvente gastou 57,25€, em eletricidade; de 04/04/2023 a 02/05/2023, gastou 25,95€, em água; e, em março de 2023, gastou 57,13€, no serviço de televisão e telefone”.
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2- Estabelecida, em definitivo, a matéria de facto, é altura de decidir se deve ser excluído da cessão à fidúcia do rendimento concreto que a Apelante reputa de necessário para o seu sustento minimamente digno, isto é, o montante correspondente ao valor da remuneração mínima mensal garantida multiplicada por 14 meses, durante um ano, ou se, diversamente, essa remuneração deve ser cingida a 12 meses, também durante cada ano, como se decidiu na sentença recorrida.
Pois bem, como é sabido, estão, neste âmbito, dois direitos distintos em tensão: o direito dos credores a verem satisfeitos os respetivos créditos sobre a insolvente; e o direito desta última a ter uma existência minimamente digna, sob o ponto de vista material.
O processo de insolvência, de facto, visa, como decorre do disposto no artigo 1.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores. Mas, não a qualquer custo. Esses interesses não podem pôr em causa a sobrevivência do devedor. É um imperativo ético e jurídico, que se sobrepõe àqueles interesses.
E, assim, como resulta do disposto no artigo 239.º, n.º 3, al. b, (i), do CIRE, estão excluídos da obrigação de cessão à fidúcia os rendimentos que sejam razoavelmente necessários para “o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”; rendimentos que, todavia, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, não devem exceder o triplo do salário mínimo nacional. Ou seja, no âmbito da exoneração do passivo restante, o devedor (pessoa singular) tem a possibilidade de se liberar, de forma definitiva, da totalidade do seu passivo, decorrido que seja o período legalmente estipulado para o efeito (atualmente, 3 anos após o encerramento do processo de insolvência – artigo 235.º do CIRE), mas está sujeito a algumas condições. Condições que, por regra, passam pelo ajustamento do seu modo de vida a este circunstancialismo específico.
Nessa medida, o insolvente não tem direito a levar uma vida, sob o ponto de vista económico e financeiro, como se os interesses dos seus credores não existissem. Bem pelo contrário, esses interesses devem sobrepor-se, só cedendo perante a necessidade de não afetar a dignidade humana do devedor naquilo que ela tem de mais básico e essencial. Isto é, de forma a assegurar-lhe o sustento minimamente digno e também àqueles que deles dependem, sob o ponto de vista económico.
Ora, desde há muito que constitui jurisprudência largamente maioritária que o salário mínimo nacional é a referência básica para assegurar essa dignidade. Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 96/04[1] - transcrevendo os fundamentos constantes do Acórdão n.º 318/99, do mesmo Tribunal -, confrontando os dois direitos constitucionais em colisão nas situações de escassez de recursos do devedor “(…) o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o “mínimo dos mínimos” não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo”. E no mesmo sentido se pronunciou o mesmo Tribunal no Acórdão n.º 177/02[2], onde, no confronto dos direitos consagrados nos artigos 62.º, n.º 1 (garantia do credor, integradora da garantia constitucional da propriedade privada) e 63.º (direito constitucional à segurança social) da CRP, se entendeu como essencial a realização de um balanceamento, na utilização de uma adequada proporção na repartição dos “custos do conflito”[3]. Em consequência, será constitucionalmente aceitável o sacrifício do direito do credor, se o mesmo for necessário e adequado à garantia do direito à existência do devedor e do respetivo agregado familiar com um mínimo de dignidade. E é esta mesma ideia, de resto, que subjaz ao disposto no já citado artigo 239.º, n.º 3, b), i), do CIRE.
Tem-se discutido, porém, na jurisprudência qual o critério a adotar para determinar o valor do referido salário: se a remuneração mínima mensal legalmente prevista como garantida ou se, diversamente, o duodécimo do conjunto da remuneração anual, posto que esta última, para os trabalhadores por conta de outrem e beneficiários de pensões de reforma ou invalidez, engloba os subsídios de férias e de Natal.
Ora, sem prejuízo do ora relator já ter entendido o contrário, considera-se hoje, face à valia dos argumentos esgrimidos pela tese contrária, que a primeira é a posição a seguir; ou seja, neste âmbito, o salário mínimo nacional a considerar para os efeitos previstos no artigo 239.º, n.º 3, b), i), do CIRE, é o mensal e não qualquer outro ou com qualquer outro acréscimo.
E isto, por duas razões fundamentais:
Em primeiro lugar, porque os subsídios de férias e de Natal (previstos, por exemplo, nos artigos 263.º e 264.º, do Código do Trabalho) são complementos remuneratórios que se destinam a fazer face a acréscimos de despesas associadas a épocas de descanso ou festivas, e que, por isso mesmo, têm em vista assegurar mais do que o limiar mínimo de subsistência[4].
E, depois, porque há outras regras, em contextos semelhantes, das quais se retira identica noção. Referimo-nos, por exemplo, ao disposto no artigo 738.º, do CPC, no qual se estabelece, com interesse para esta matéria, o seguinte:
“1- São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.
3- A impenhorabilidade prescrita no n.º 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.
5- Na penhora de dinheiro ou de saldo bancário, é impenhorável o valor global correspondente ao salário mínimo nacional ou, tratando-se de obrigação de alimentos, o previsto no número anterior.
6- Ponderados o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar, pode o juiz, excecionalmente e a requerimento do executado, reduzir, por período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e mesmo, por período não superior a um ano, isentá-los de penhora.
7- Não são cumuláveis as impenhorabilidades previstas nos n.ºs 1 e 5.
8- Aos rendimentos auferidos no âmbito das atividades especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º do Código do IRS, aplica-se o disposto nos n.ºs 1 a 4 deste artigo, com as seguintes adaptações:
[…]
b) O limite máximo e mínimo da impenhorabilidade é apurado globalmente, para cada mês, pela entidade que os deva pagar;
c) A entidade pagadora dos rendimentos deve comunicar ao agente de execução, previamente a qualquer pagamento ao executado, o montante total a pagar, o valor impenhorável apurado e o montante do valor a penhorar, determinado de acordo com o presente artigo;
f) A impenhorabilidade prevista neste número é aplicável apenas aos executados que não aufiram, no mês a que se refere a apreensão, vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia ou prestações de qualquer natureza que assegurem a sua subsistência;
(…)”.
Como se refere no recente Acórdão desta Relação, de 12/01/2023 ([5]), “[é] impossível não descortinar nesta norma uma enorme proximidade em relação ao problema encarado no artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e uma identidade entre as respectivas soluções e equilíbrios subjacentes”.
Daí que, também na fixação do rendimento disponível em sede de incidente da exoneração do passivo restante, se deva tomar como referencial, quanto ao valor mínimo, o montante mensal da remuneração mensal mínima garantida.
Não ignoramos, com isto, que esse montante é reduzido, mesmo no nosso contexto sócio económico, e que só é apto, quando muito, a proporcionar uma vida humilde. Mas, como já dissemos, não estão em causa apenas os interesses do devedor. Estão em causa também os interesses dos credores que se viram despojados (pelo menos, temporariamente) dos seus créditos e podem vir a ficar definitivamente sem os ver satisfeitos, enquanto o devedor, por seu turno, passado o período legalmente determinado, recupera a sua plena reintegração na vida económica.
Como tal e em suma, adota-se o critério já referido, pelo que tendo sido ele o seguido na decisão recorrida, a mesma é de confirmar.
E não se diga, como alega a Apelante, que o referido critério é inconstitucional, por pretensa violação do disposto no artigo 59.º, n.º 2, al. a), da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Na verdade, no caso em apreço, não estamos perante nenhuma discriminação salarial, como é proibida naquele preceito. Nem perante nenhuma outra discriminação. A Apelante tem, obviamente, direito a auferir, como aufere, as mesmas subvenções dos demais cidadãos que estão em idênticas circunstâncias, mas, em contrapartida, também está obrigada a honrar os seus compromissos financeiros perante os respetivos credores. Evidentemente que, como decorre do já exposto, o valor da remuneração mínima garantida não permite à Apelante levar uma vida folgada, sob o ponto de vista financeiro. Tanto mais que, como se provou, a mesma tem alguns problemas de saúde que a levam a necessitar de assistência médica e medicamentosa, na qual despende mensalmente cerca de 80,00€. Mas, tendo em conta os montantes que aufere a título de pensão por velhice (417,77€) e de pensão de sobrevivência (401,48€), ou seja, ao todo, 819,25€, cremos que, levando em conta a soma de todas as demais despesas apuradas (410,12€), não fica posta em causa a sua subsistência. Até porque algumas dessas despesas, como por exemplo, as relativas ao pacote que contratou para a televisão, internet e telecomunicações, não são essenciais para a garantir.
Donde só se pode concluir que a medida encontrada na sentença recorrida é de manter, improcedendo, assim, este recurso.
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III- Dispositivo
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se o decidido no despacho recorrido.
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- Em função deste resultado, as custas do presente recurso serão pagas pela Apelante – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Porto, 16/1/2023
João Diogo Rodrigues
João Proença
Fernando Vilares Ferreira
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[1] Proferido no Processo n.º 423/03, 1ª Secção, consultável em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/.
[2] Proferido no Processo nº 546/01, Plenário, consultável em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020177.html.
[3] Expressão utilizada por J.C.Vieira de Andrade, citado no referido Acórdão – in Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 1987, pág. 233.
[4] Neste sentido, por exemplo, Ac. RP de 28/10/2021, Processo n.º 2161/18.3T8STS.P1, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Processo n.º 800/20.0T8AMT-C.P1, consultável em www.dgsi.pt.