Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA | ||
| Descritores: | CONTRATO DE SEGURO DE VIDA RISCO DE MORTE RISCOS EXCLUÍDOS INTERPRETAÇÃO DA CLÁUSULA DO CONTRATO | ||
| Nº do Documento: | RP202511132925/23.6T8PNF.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/13/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3. ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | A cláusula do contrato de seguro que exclui da respectiva cobertura as indemnizações por morte, em caso de doenças que sobrevenham à pessoa segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas, compreende as situações em que o segurado falece em virtude de doença causada pelo consumo patológico de álcool, onde se incluem os casos em que tal doença é, ela mesma, só por si, a causa imediata da morte, mas também os casos em que a morte ocorre por uma causa imediata que foi desencadeada ou potenciada pela doença causada pelo consumo de álcool, ao ponto de criar um quadro clínico irreversível. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2025:2925.23.6T8PNF.P1 * SUMÁRIO: …………………………………………………………………………… …………………………………………………………………………… ……………………………………………………………………………
ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
I. Relatório: AA, viúva, contribuinte fiscal n.º ...50, na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito do seu marido BB, residente em ..., Penafiel, instaurou acção judicial contra A..., Companhia de Seguros de Vida, S.A., sociedade comercial com número de identificação de pessoa colectiva ...13 e sede em Lisboa, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 146.054,67, e juros de mora vincendos até integral pagamento. Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, ter celebrado com a ré, conjuntamente com o marido, seguros de vida com a cobertura do risco de morte de qualquer deles, tendo entretanto o marido falecido no hospital em resultado de doença natural, evento que obriga a ré a pagar o valor previsto naquele contrato. A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e alegando para o efeito que o falecimento do marido da autora não está abrangido pela cobertura do seguro por ter ocorrido em circunstâncias que excluem aquela cobertura. Foi requerida e admitida a intervenção principal das restantes herdeiras do falecido. Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada improcedente e o réu absolvido do pedido. Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões: 1. O presente recurso visa a impugnação da matéria de facto julgada provada e, ainda, o erro na aplicação do direito. 2. Quanto à matéria de facto considerada provada, entende a recorrente que os pontos 26, 29 e 31 da mui douta sentença, foram erroneamente julgados, ou seja: 26. À data do internamento, BB padecia de hipertensão, diabetes, obesidade, alcoolismo e doença hepática crónica. 29. As comorbilidades a que se aludem no ponto 26 contribuíram para o agravamento da condição clínica do paciente e consequente morte. 31. No âmbito dos contratos supra referenciados, relativos às apólices ...26, ...83, mais propriamente do clausulado no ponto 4.2.1.3 do artigo 4º, resulta que são exclusões e limitações de cobertura, “…Doenças ou acidentes que sobrevenham à Pessoa Segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas ou de consumo de qualquer tipo de drogas e/ou medicamentos não prescritos pelo médico…”, assim como, resultam igualmente do mesmo teor esses factos, como exclusões e limitações de cobertura, no contrato relativo à apólice ...71, mais propriamente do clausulado no ponto 4.3 do artigo 4º. 3. Isto porque, conclui-se que o tribunal a quo não valorou devidamente os depoimentos das testemunhas, concluindo pela improcedência total da acção e, em consequência a absolvição da ré, do pedido formulado pela ora recorrente. 4. A prova produzida em audiência de julgamento impõe uma decisão oposta à proferida nos presentes autos. 5. Ao arrepio dos depoimentos das testemunhas inquiridas e da prova documental junta, dado que inexiste nexo de causalidade adequada entre a cirrose hepática crónica descompensada, entre outras comorbilidades e a morte do segurado, não é de permitir ao mui douto tribunal a quo dar como provados os pontos 26, 29 e 31. 6. A interpretação do mui douto tribunal a quo, quanto aos factos dados como provados, foi de todo “generalista”. 7. No depoimento transcrito da testemunha Dra. CC, médica de medicina interna em funções no Hospital ..., que efectuou o registo clínico junto aos autos e procedeu à análise do mesmo é referido peremptoriamente, que a causa principal da morte é falência multiorgânica, choque séptico e pneumonia associada a cuidados de saúde. 8. As concausas que constam do mesmo certificado são as comorbilidades que o doente padece, mas não consegue estabelecer um nexo causal entre os problemas hepáticos provocados pelo consumo excessivo de álcool e a morte – sublinhado nosso. 9. Mais referiu que, o motivo do internamento foi provocado pelos rins, nunca afirmando que estaria relacionado com o fígado, daí ter obedecido ao protocolo, mas não conseguindo estabelecer um nexo causal destas doenças, com a morte. 10. Pela médica intensivista, Dra. DD, do seu depoimento transcrito e tendo subscrito o certificado de óbito, foi referido que o doente nos cuidados intensivos fez uma pneumonia com falência multiorgânica, choque séptico, tendo sido esta a causa final da morte. 11. Referiu igualmente, que sendo as comorbidades constantes do ponto 2 do certificado de óbito, factores que podem condicionar a gravidade da doença, são por isso elencados no atestado de óbito, no entanto, referiu também que é possível uma pessoa saudável morrer de pneumonia associada a cuidados de saúde. 12. Dessa forma, pelos depoimentos prestados pelas testemunhas, foi possível apurar, que a causa de morte do segurado, verificou-se por uma pneumonia com falência multiorgânica e choque séptico, pois no que se refere às comorbilidades associadas, apenas são equacionadas probabilidades e não certezas. 13. Além disso, de todos os documentos médicos juntos aos autos, em momento algum se conclui que cirrose hepática tivesse sido a causa de morte do segurado. 14. O mui douto tribunal a quo, relevou as declarações do médico especialista em medicina interna que presta serviços há ré, há mais de 20 anos, porquanto, este de forma genérica e não se referindo ao caso concreto, conclui que um médico quando preenche um certificado de óbito preocupa-se com o evento final – falência multiorgânica, choque séptico e pneumonia associada a cuidados de saúde. 15. Além disso, referiu o mesmo, que o certificado de óbito tem a parte II, onde estão elencadas as comorbilidades. 16. Além disso, esclareceu o mesmo que se o doente morre nos cuidados intensivos, os médicos no relatório de autópsia valorizam mais a doença final, se morre na medicina interna, os médicos valorizam mais a doença que levou à causa final da morte, tratando-se de um esquema de pensamento e não um erro de pensamento [..] 17. Ora, temos que atender, que o segurado não foi alvo de perícia médico-legal, nomeadamente, autópsia, para os médicos em questão, terem assente como causa de morte, a pneumonia associada a cuidados de saúde, falência multiorgânica e choque séptico, tal foi reportado no relatório de óbito. 18. No entanto, o paciente foi sido assistido por uma médica de medicina interna, que prestou depoimento nos presentes autos e por uma médica intensivista, que igualmente prestou o seu depoimento nos mesmos, diga-se, que ambas concluem pela inexistência de um nexo de causalidade entre a cirrose hepática e a causa de morte do segurado. 19. Além disso, conjugado o facto de à data do internamento o paciente BB, padecer de um conjunto de comorbilidades, tais como a hipertensão, diabetes, obesidade, alcoolismo e doença hepática crónica e ter vindo a falecer, não pode permitir, que se conclua que são as mesmas causas indirectas da morte e, pelo facto, de constarem da parte II do certificado de óbito, não ser por mero acaso, que do mesmo constam e tendo contribuído para a falência multiorgânica, o choque séptico e a pneumonia associada a cuidados de saúde. 20. Resulta da prova testemunhal, que não se pode dizer que o paciente morreu de doença hepática descompensada, isolada, ou conjuntamente com outra comorbilidade, antes sim, de uma pneumonia e a pneumonia evoluiu para um choque séptico, independentemente do paciente ter uma cirrose, ou não ter, tal situação clínica, mata, ao ponto do paciente poder, ou não ter cirrose e morrer na mesma. 21. Assim sendo, considerou o mui douto tribunal a quo, erroneamente, que as comorbilidades a que se aludem no ponto 26, contribuíram para o agravamento da condição clínica do paciente e consequente morte. 22. Em audiência de julgamento não resultou provado, que alguma destas comorbilidades estivessem relacionadas como causa da morte do segurado, mais referenciado que uma pessoa completamente saudável, não tendo qualquer comorbilidade, pode morrer com uma pneumonia associada a cuidados de saúde. 23. Isto porque, tal situação tem que ver com a resposta imunológica das defesas de cada indivíduo à doença, ao ponto de existirem doentes previamente saudáveis e que acabam por morrer de infecções graves, por uma má resposta do organismo a uma infecção e que apesar de não terem comorbilidades, acabam à mesma por falecer. 24. Não resultou igualmente do depoimento da mesma que o segurado só morreu porque tinha uma cirrose hepática. 25. No que diz respeito à factualidade dada como provada no ponto 31, importa dizer que tal, não poderá ser aceite como tal, uma vez que, a acontecer, estar-se-ia a aceitar que o factor morte, ou melhor, a causa de morte do segurado, sobreveio em resultado do consumo de bebidas alcoólicas, o que não se provou. 26. Perante os factos então invocados supra, e, em consequência, deverá ser obrigada a seguradora / recorrida ao pagamento das quantias peticionadas em sede de petição inicial, impondo-se, desde logo, a alteração da sentença proferida pelo tribunal a quo, no sentido de na procedência do presente recurso ver-se igualmente, julgada procedente por provada a acção. 27. Uma vez que, é de aferir da questão da responsabilidade civil contratual da ré derivada dos contratos de seguros de vida com as apólices n.º ...83 e ...26, em virtude do falecimento do tomador de seguro BB, tendo como beneficiário irrevogável o Banco 1... S.A., aqui Interveniente, entidade à qual só poderá ser liquidado exclusivamente o capital seguro para pagamento do capital em dívida, e só o remanescente, a existir, será liquidado aos demais beneficiários (recorrente e demais herdeiros do falecido, aqui intervenientes) e o seguro de vida denominado de “Plano Vida – Seguro Vida Individual”, titulado pela apólice n.º ...71, que só poderá ser pago aos herdeiros do falecido. 28. À data da morte do paciente, encontravam-se segurados os seguintes capitais seguros: a apólice n.º ...26 garantia à data do óbito o capital seguro de € 103.339,40; a apólice n.º ...83 garantia à data do óbito o capital Seguro de € 36.409,24; a apólice n.º ...71 garantia à data do óbito o capital seguro de € 50.000,00. 29. São exclusões e limitações de cobertura, “…doenças ou acidentes que sobrevenham à pessoa segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas ou de consumo de qualquer tipo de drogas e/ou medicamentos não prescritos pelo médico …”, o que não se aplica ao caso dos autos. 30. Não resultou provado que a morte do segurado, dos contratos de Seguro Vida e Plano Vida – Seguro Vida Individual, associados ao mútuo, tivesse acontecido num contexto provocado pela cirrose hepática, por não ser certo, um nexo de causalidade entre os hábitos etílicos e a morte. 31. Assim, não poder excluir-se a responsabilidade da seguradora, ora recorrida, ao abrigo das condições gerais do contrato de seguro, nomeadamente, pelas exclusões e limitações de cobertura, previstas no ponto 4.2.1.3 e 4.3 do artigo 4º. 32. Essa premissa não se encontra preenchida pela matéria de facto, devendo ser da responsabilidade da seguradora o valor correspondente às indemnizações peticionadas na presente acção. 33. Neste sentido, decidiu o Tribunal do STJ por Acórdão de 18 de Junho de 2024, no âmbito do processo 4155/18.0T8VFR.P1.S1 cujo sumário se elenca: “…Tendo ficado provado apenas que a morte do segurado dos contratos de seguros de vida associados a dois mútuos pode ter sido devida a alterações cardíacas num contexto de cardiomiopatia arritmogénica associada a intoxicação alcoólica aguda, não se pode estabelecer, por não ser certo, um nexo de causalidade entre a intoxicação alcoólica e a morte e, dessa forma, excluir a responsabilidade da seguradora, ao abrigo de cláusula das condições gerais do contrato de seguro, do seguinte teor:“Não se considera coberto por este contrato o risco de morte resultante (…) de factos que sejam consequência de (…) embriaguez e abuso de álcool, ou de estupefacientes fora da prescrição médica”. 34. Pelo que, não se pode aceitar a decisão do mui douto tribunal a quo, em nome da segurança e certeza jurídica, pretendendo-se, deste modo, que a douta sentença seja revogada, condenando-se a ré, ora recorrida, no pagamento do pedido formulado pelo autor na petição inicial e, consequentemente, dando-se provimento ao presente recurso. Neste termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, deve ser alterada a matéria de facto provada nos termos supra alegados e, bem assim, revogada a douta sentença absolutória proferida pelo tribunal recorrido. A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado. Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir: As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões: i. Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto. ii. Se a morte do marido da autora está excluída da cobertura do seguro em virtude da cláusula do contrato que exclui as indemnizações por morte em caso de «doenças que sobrevenham à pessoa segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas».
III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto: A recorrente impugnou a decisão de julgar provados os factos dos pontos 26, 29 e 31, defendendo que os respectivos factos sejam julgados não provados e cumprindo, de modo satisfatório, os requisitos específicos desta impugnação, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil. A leitura da impugnação logo revela a sua falta de fundamento. A recorrente parece querer ler nos referidos pontos o que não é afirmado nos mesmos, olvidando os factos que realmente os compõem e que foram julgados provados. Os pontos em causa são os seguintes: «26. À data do internamento, BB padecia de hipertensão, diabetes, obesidade, alcoolismo e doença hepática crónica. 29. As comorbilidades a que se aludem no ponto 26 contribuíram para o agravamento da condição clínica do paciente e consequente morte. 31. No âmbito dos contratos supra referenciados, relativos às apólices ...26, ...83, mais propriamente do clausulado no ponto 4.2.1.3 do artigo 4º, resulta que são exclusões e limitações de cobertura, “…Doenças ou acidentes que sobrevenham à Pessoa Segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas ou de consumo de qualquer tipo de drogas e/ou medicamentos não prescritos pelo médico…”, assim como, resultam igualmente do mesmo teor esses factos, como exclusões e limitações de cobertura, no contrato relativo à apólice ...71, mais propriamente do clausulado no ponto 4.3 do artigo 4º.» No primeiro ponto está em causa saber se à data do internamento o ora falecido padecia de determinadas doenças, mais especificamente hipertensão, diabetes, obesidade, alcoolismo e doença hepática crónica. Ora, a prova documental deste facto, composta por relatórios e informações médicas, é abundante nos autos e impõe em absoluto que o facto seja julgado como foi, tal qual se explica na motivação da decisão. Aliás, a recorrente não refuta essa afirmação e tudo o que argumenta é que essas comorbilidades não foram causa directa da morte. Por exemplo, no corpo das alegações de recurso é afirmado (pág. 26 do ficheiro pdf) que «não resultou concretamente provado, que para a morte de BB, as comorbilidades a que aludem o ponto 26, tenham contribuído para o agravamento da condição clínica do paciente e consequente morte» e logo na página seguinte afirmado que «o paciente, BB, apesar de padecer de hipertensão, diabetes, obesidade e doença hepática crónica, de acordo com o depoimento e esclarecimentos prestados pelas profissionais de saúde que o acompanharam …». Uma vez que o que se afirma no ponto 26 não é minimamente posto em causa por esta fundamentação – e, como vimos, até é expressamente aceite pela recorrente – e a fundamentação procura reverter um facto completamente diferente que não consta daquele ponto, é fácil concluir que a decisão de julgar provado o facto do ponto 26 só pode mesmo ser mantida. A situação repete-se em relação ao ponto 31. Também aqui o facto que se afirma é o que está escrito na apólice de seguro e não outra coisa qualquer. Logo essa estipulação contratual ou está ou não está escrita em tal documento, e é manifesto que está. Novamente a recorrente confunde a estipulação contratual com a correspondência da situação de vida ocorrida a essa estipulação, ou seja, se a situação está ou não excluída da cobertura contratual por via dessa estipulação. A recorrente afirma a dado trecho (pág. 50 do ficheiro pdf) das suas alegações que «nas condições especiais relativas às apólices consta, que são riscos excluídos do clausulado no ponto 4.2.1.3 do artigo 4º, nomeadamente, que são Exclusões e Limitações de Cobertura, “…Doenças ou acidentes que sobrevenham à Pessoa Segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas ou de consumo de qualquer tipo de drogas e/ou medicamentos não prescritos pelo médico…”, assim como, resultam igualmente do mesmo teor esses factos, como Exclusões e Limitações de Cobertura, no contrato relativo à apólice ...71, mais propriamente do clausulado no ponto 4.3 do artigo 4º». É precisamente isso que foi julgado provado. A seguir acrescenta que «salvo o devido respeito por melhor opinião, não se verifica, no caso, aquela exclusão». Trata-se não apenas de algo totalmente diferente do que consta do ponto 31, como de algo que se há-de concluir ou não, fazendo a comparação entre a previsão contratual e a situação de vida que constitui o risco participado à seguradora, isto é, de uma conclusão que em nada é impedida pelo facto referido ponto 31 (pelo contrário, é ele que motiva a discussão sobre essa conclusão). Eis porque o ponto 31 também não pode deixar de ser julgado como foi. No que tange ao outro facto que se pretende seja julgado provado, a recorrente incorre de novo, com todo o devido respeito, nalguma confusão. O facto que se afirma no ponto 29 é o de que as comorbilidades que o marido da autora apresentava quando foi internado «contribuíram para o agravamento da condição clínica do paciente e consequente morte». Não é dito que essas doenças foram a causa directa da morte, nem podia dizer-se isso porque os elementos clínicos juntos e os depoimentos médicos produzidos dão como causa directa a pneumonia associada a cuidados de saúde, a falência multiorgânica e o choque séptico. Logo tudo quanto se argumenta no sentido de excluir que as comorbilidades hajam sido a causa directa da morte é desprovido de valor para conduzir à não prova do ponto 29 (isto é, da contribuição para o agravamento da situação clínica que veio a desembocar na morte). Auditada a prova produzida, é manifesto que aquele facto deve continuar no elenco dos factos provados porquanto quer os documentos clínicos e médicos juntos quer os depoimentos dos médicos ouvidos em audiência são perfeitamente suficientes para afirmar que essas comorbilidades degradaram o estado de saúde do marido da autora a tal ponto que a partir do momento em que este sofreu uma infecção não foi mais possível revertê-la com tratamentos médicos hospitalares, vindo a sobrevir uma pneumonia e a falência multiorgânica. O facto foi, pois, bem decidido.
IV. Fundamentação de facto: Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos: 1. Em 21-09-2009, BB subscreveu a proposta de seguro de vida, junta na petição inicial como documento 3, que aqui se dá por reproduzida. 2. Esta proposta de seguro determinou a celebração do contrato de seguro denominado “Crédito à Habitação – Habitação Plus Prémio Único, Seguro de Vida Individual 2 Cabeças”, titulado pela apólice n.º ...33, com início de vigência em 29-10-2009, pelo período de cinco anos. 3. Neste contrato de seguro constavam como pessoas seguras BB e a Autora e beneficiário irrevogável o Banco 1..., S.A.. 4. O referido contrato de seguro de vida previa as coberturas obrigatórias de morte e invalidez definitiva para a profissão ou actividade compatível. 5. Tendo sido contratadas, ainda, as coberturas facultativas de “plano desemprego habitação”, para ambas as pessoas. 6. O referido contrato de seguro encontrava-se associado ao empréstimo ...90, com capital seguro para as coberturas obrigatórias igual ao valor do empréstimo em dívida, ou seja, €150.000,00. 7. BB subscreveu um segundo contrato de seguro de vida também denominado “Crédito à Habitação – Habitação Plus Prémio Único, Seguro de Vida Individual 2 Cabeças”, no qual consta como tomador e pessoa segura, juntamente com a autora. 8. Este contrato de seguro de vida era titulado pela apólice n.º ...82 e teve início em 28-12-2009, por um período de cinco anos, pretendendo garantir o empréstimo ...60 contraído junto do Banco 1... S.A., pelo que esta entidade financeira constava ali como beneficiária irrevogável, sendo o capital seguro inicial igual ao valor do empréstimo em dívida. 9. As coberturas obrigatórias de morte e invalidez definitiva para a profissão ou actividade compatível previam um capital seguro de €50.000,00. 10. Adicionalmente o tomador de seguro contratou a cobertura facultativa “plano desemprego habitação”, para ambas as pessoas seguras. 11. Os dois contratos de seguro com as apólices n.º ...33 e ...82 têm cláusulas de coberturas e exclusões iguais, tratando-se de contratos distintos por garantirem empréstimos distintos com capitais únicos a cada um. 12. Os capitais seguros em ambas as apólices, pretendendo garantir o capital mutuado nos empréstimos associados a cada uma delas, eram revistos mensalmente por forma a corresponder ao capital mutuado em dívida. 13. Ambos os contratos de seguro previam uma duração de cinco anos de vigência para as coberturas contratadas, sendo, após este período, automática e sucessivamente renovada por idênticos períodos para a mesma modalidade, “Vida Habitação Plus Prémio Único” tendo como prazo máximo o ano em que a 1ª pessoa segura complete 80 anos de idade. 14. A modalidade contratada previa a duração daquelas apólices pelo período de cinco anos, com o pagamento de um prémio único. 15. Transcorrido aquele período, os contratos de seguro foram transformados, conforme se previa nas condições particulares de cada um, e conforme foi devidamente comunicado ao tomador de seguro BB, por carta datada de 19-08-2014, junta na contestação como documento 5, que qui se dá por reproduzido. 16. O contrato de seguro inicialmente titulado pela apólice n.º ...33 foi substituído pela n.º 15.424926, a qual previa as mesmas coberturas obrigatórias de morte e invalidez definitiva para trabalho ou actividade compatível, bem como a cobertura de desemprego habitação, com iguais especificidades. 17. O contrato de seguro inicialmente titulado pela apólice n.º ...82 foi substituído pela n.º 15.428083, a qual previa as mesmas coberturas obrigatórias de morte e invalidez definitiva para trabalho ou actividade compatível, bem como a cobertura de desemprego habitação, com iguais especificidades. 18. O tomador do seguro teve conhecimento destas alterações, tendo solicitado à ré seguradora o cancelamento da cobertura facultativa de “plano desemprego habitação” naquelas novas apólices, em ambos os contratos de seguro, o que foi admitido. 19. O tomador do seguro/pessoa segura BB, contratou um terceiro seguro de vida denominado de “Plano Vida – Seguro Vida Individual” titulado pela apólice n.º ...71. 20. Este contrato de seguro teve início da sua vigência em 22-06-2009, pelo período de um ano, podendo ser renovado pelo mesmo período, estando contratadas as coberturas obrigatórias de morte e de invalidez absoluta e definitiva por doença, com o capital seguro de € 50.000,00 cada. 21. Este contrato de seguro não estava associado a qualquer crédito à habitação, figurando o tomador BB como única pessoa segura. 22. Em caso de morte da pessoa segura, são beneficiários deste contrato de seguro e do capital seguro ali previsto de €50.000,00, os herdeiros legais, em conjunto, na proporção do respectivo título sucessório. 23. BB devido ao abuso crónico de álcool iniciou em 2018 quadro de distensão abdominal acentuada, tendo evoluído posteriormente para anemia ferropénica e cirrose hepática. 24. Em 11-02-2021, BB sofria de “Doença hepática (cirrose hepática) crónica alcoólica”, tendo sido seguido em consulta por período superior a 1 ano, sem cumprir abstinência, tendo sido informado do risco de descompensação hepática e desenvolvimento de hepatocarcinoma, mas decidiu manter hábitos etílicos, razão pela qual, teve alta da consulta. 25. BB foi internado no Centro Hospitalar Tâmega e Sousa EPE no dia 27-11-2021, por lesão renal aguda, não sendo possível excluir síndrome hepatorrenal, cirrose hepática descompensada e encefalopatia hepática. 26. À data do internamento, BB padecia de hipertensão, diabetes, obesidade, alcoolismo e doença hepática crónica. 27. Os doentes cirróticos têm susceptibilidade aumentada de infecções. 28. BB faleceu em ../../2021 no Centro Hospitalar Tâmega e Sousa EPE, na sequência de falência multiorgânica, choque séptico e pneumonia associada a cuidados de saúde. 29. As comorbilidades a que se aludem no ponto 26 contribuíram para o agravamento da condição clínica do paciente e consequente morte. 30. À data da morte da pessoa segura encontravam-se segurados os seguintes capitais seguros: a apólice n.º ...26 garantia à data do óbito o capital seguro de € 103.339,40; a apólice n.º ...83 garantia à data do óbito o capital Seguro de € 36.409,24; a apólice n.º ...71 garantia à data do óbito o capital seguro de € 50.000,00. 31. No âmbito dos contratos supra referenciados, relativos às apólices ...26, ...83, mais propriamente do clausulado no ponto 4.2.1.3 do artigo 4º, resulta que são Exclusões e Limitações de Cobertura, “…Doenças ou acidentes que sobrevenham à Pessoa Segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas ou de consumo de qualquer tipo de drogas e/ou medicamentos não prescritos pelo médico…”, assim como, resultam igualmente do mesmo teor esses factos, como Exclusões e Limitações de Cobertura, no contrato relativo à apólice ...71, mais propriamente do clausulado no ponto 4.3 do artigo 4º. 32. A autora participou à ré o falecimento de BB em ../../2022 através do Balcão .... 33. A ré seguradora remeteu carta de recusa do sinistro datada de 31-08-2022 para a autora, junta como documento 10, que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais, por considerar que o evento se encontrava excluído das apólices.
V. Matéria de Direito: Conforme já se anotou, a questão que cabe decidir consiste em saber se a morte do marido da autora ocorreu em circunstâncias que preenchem a previsão da cláusula dos contratos de seguro segundo a qual são excluídas da cobertura do seguro as indemnizações por morte em caso de «doenças que sobrevenham à pessoa segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas». Verdadeiramente está em causa saber se essa cláusula apenas contempla as situações em que é a doença resultante do consumo de bebidas alcoólicas a causar a morte ou contempla igualmente as situações em que a morte é causada por um quadro clínico no qual a doença resultante do consumo de bebidas alcoólicas está presente e funciona como factor de potenciação do risco de surgimento da doença que vem a causar a morte. No fundo se a cláusula se refere apenas às situações em que aquela doença é causa exclusiva e/ou imediata da morte ou também às situações em que ela é concausa e/ou causa mediata. Deve dizer-se que a redacção da cláusula não é a mais feliz. Estando em causa uma exclusão relacionada com a cobertura «Morte», em vez de se afirmar que ficam excluídas as «indemnizações decorrentes de: […] doenças … que sobrevenham à Pessoa Segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas ou de consumo de qualquer tipo de drogas e/ou medicamentos não prescritos pelo médico», o que se devia afirmar é que ficam excluídas as «indemnizações decorrentes da morte em caso de …». É conhecido que o artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, consagra como critério de interpretação a chamada teoria da impressão do destinatário, dispondo que «a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele». Segundo Vaz Serra, in Revista Legislação e Jurisprudência, ano 103º, página 287, esta teoria significa que « … a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário, a interpretaria, como o que se procura, num conflito entre o interesse do declarante no sentido que atribuiu a sua declaração e o interesse do declaratário no sentido que podia razoavelmente atribuir-se a esta, dar preferência a este, que se julga merecedor de maior protecção, não só porque era mais fácil ao declarante evitar uma declaração não coincidente com a sua vontade do que ao declaratário aperceber-se da vontade real do declarante, mas também porque assim se defendem melhor os interesses gerais do tráfico ou comércio jurídico. Mostra isto que a interpretação das declarações negociais não se dirige (salvo o caso no nº.2 do artigo 236º do Código Civil) a fixar a um simples facto o sentido que o declarante quis imprimir à sua declaração, mas a fixar o sentido jurídico, normativo da declaração». De acordo com Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, páginas 309 e 310, «trata-se daquele sentido com que a declaração seria interpretada por um declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário efectivo. Toma-se portanto este declaratário, nas condições reais em que ele se encontrava, e finge-se depois ser ele uma pessoa razoável, isto é, medianamente instruída, diligente e sagaz, quer no tocante à pesquisa das circunstâncias atendíveis, quer relativamente ao critério a utilizar na apreciação dessas circunstâncias. Por outras palavras: parte-se do princípio de que o declaratário teve conhecimento das circunstâncias que na verdade conheceu, e ainda de todas aquelas outras que uma pessoa razoável, posta na sua situação, teria conhecido; e figura-se também que ele ajuizou dessas circunstâncias, para entender a declaração, tal como teria ajuizado uma pessoa razoável». Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, volume I, 3ª edição, página 223, defendem que «a normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante». Convém também referir que o Decreto-Lei nº 446/85, de 25/10, de Outubro, estabelece o princípio geral de que «as cláusulas gerais são interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular, em que se incluam», o que significa que remete para o disposto nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil mas sem prejuízo da consideração devida ao contexto de cada contrato singular de modo a fazer prevalecer uma justiça individualizadora. Acresce que o artigo 11.º do mesmo diploma determina que «as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contraente indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real» (n.º 1), prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente (nº 2). Aplicando esta tese à interpretação da referida cláusula do contrato de seguro, parece dever entender-se que quando nela se alude às indemnizações por (morte decorrente de) «doenças que sobrevenham à pessoa segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas», as palavras pretendem referir as situações em que a pessoa vem a falecer em virtude de doença causada pelo consumo patológico de álcool, não propriamente apenas uma doença que seja, ela mesma, só por si, a causa imediata da morte, mas também as situações em que a morte ocorre por uma causa imediata que foi espoletada, desencadeada ou potenciada pela doença causada pelo consumo patológico de álcool, ao ponto de criar um quadro clínico irreversível. Cremos que qualquer declaratário razoável, colocado na posição concreta do declaratário, a interpretaria desse modo, porquanto faz todo o sentido que o seguro exclua a cobertura de riscos criados voluntaria e conscientemente pelo próprio segurado e para cujos resultados trágicos qualquer pessoa está informada. O consumo de álcool é sempre um acto voluntário que a pessoa pode e deve evitar, ainda que quando se transforma numa dependência seja necessário recorrer a tratamento, e provoca doenças que podem assumir gravidade e colocar em sério risco a vida da pessoa, v.g. quando, como aqui ocorre, gera uma cirrose hepática e cria condições para o surgimento e agravamento de infecções, da falência de órgãos internos, de septicémias. Acresce que a exigência de que a pessoa segura não adopte comportamentos errados do ponto de vista da sua saúde e geradores de riscos evitáveis não só não é abusiva, como se ajusta perfeitamente à natureza do contrato de seguro que é a de cobrir riscos imprevisíveis, incontroláveis, riscos cujo surgimento é totalmente alheio e independente da vontade e da actuação humana. A recorrente cita em seu apoio o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2024, proferido no processo n.º 4155/18.0T8VFR.P1.S1, in https://juris.stj.pt/..., no qual se afirma que «tendo ficado provado apenas que a morte do segurado dos contratos de seguros de vida associados a dois mútuos pode ter sido devida a alterações cardíacas num contexto de cardiomiopatia arritmogénica associada a intoxicação alcoólica aguda, não se pode estabelecer, por não ser certo, um nexo de causalidade entre a intoxicação alcoólica e a morte e, dessa forma, excluir a responsabilidade da seguradora, ao abrigo de cláusula das condições gerais do contrato de seguro, do seguinte teor:“Não se considera coberto por este contrato o risco de morte resultante (…) de factos que sejam consequência de (…) embriaguez e abuso de álcool, ou de estupefacientes fora da prescrição médica”. É manifesto que o caso tratado no aludido aresto não coincide com o dos autos. Com efeito, no caso decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça não se apurou a causa da morte. Na respectiva fundamentação o Supremo Tribunal de Justiça assinalou que apenas se provou que «a morte de DD pode ter sido devida às alterações cardíacas atrás descritas num contexto de cardiomiopatia arritmogénica associada a intoxicação alcoólica aguda (destaques nossos). Isto é: não é certo que a morte de DD se tenha ficado a dever alterações cardíacas ocorridas num contexto de cardiomiopatia arritmogénica associada a intoxicação alcoólica aguda. Não se pode estabelecer, assim, um nexo de causalidade directa entre a intoxicação alcoólica e a morte (facto que ficou não provado) nem indirecta (através de alterações cardíacas motivadas por intoxicação alcoólica).» No caso dos autos a situação é diferente porque a causa da morte foi estabelecida, tal como foi estabelecida uma ligação entre o consumo patológico de álcool e o quadro clínico no qual sobreveio a causa imediata da morte. O caso dos autos aproxima-se sim do caso decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 26-11-2019, proferido no processo n.º 18079/16.1T8LSB.L1.S1, in https://juris.stj.pt/.... Nesse caso, o contrato de seguro continha uma cláusula com o seguinte teor: «a seguradora não garante o pagamento das importâncias seguras caso o falecimento da pessoa segura seja devido a (...) doenças ou acidentes que sobrevenham à pessoa segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas ou de consumo de qualquer tipo de drogas e/ou medicamentos não prescritos pelo médico». Na fundamentação de facto desse caso, consta que a pessoa segura «foi admitido no Serviço de Medicina Intensiva dos HUC por efeito adverso da toma de metformina (medicação anti-diabética), associado a choque séptico decorrente de ferida no couro cabeludo»; que a sua morte «deveu-se a choque séptico decorrente de uma ferida no couro cabeludo e por deterioração da função cardiovascular». Consta ainda que «as complicações que surgiram do internamento, nomeadamente a infecção generalizada … e a consequente septicémia, decorreram directamente da cirrose hepática grave de que [a pessoa segura] padecia» e ainda que esta faleceu «devido ao agravamento da sua cirrose hepática que limitou os seus mecanismos de defesa, não impedindo que a infecção do seu quisto sebáceo se propagasse e conduzisse a uma septicémia e ao seu falecimento». O nosso caso é muito parecido, uma vez que está igualmente em causa um doente com cirrose hepática que vinha sendo acompanhado há mais de um ano a essa doença tendo-se recusado a abandonar o consumo do álcool apesar de advertido dos riscos, que depois desenvolve uma infecção que exige o seu internamento hospitalar, e que em resultado de as terapêuticas aplicadas não conseguirem reverter o seu quadro clínico designadamente ao nível respiratório desenvolve uma pneumonia que conduz a uma falência multiorgânica que constitui a causa imediata da morte. Resulta da matéria de facto que em 2018 o marido da autora iniciou uma quadro de distensão abdominal acentuada, tendo evoluído posteriormente para anemia ferropénica e cirrose hepática devido ao abuso crónico de álcool. Resulta ainda que em 11-02-2021, ele sofria de «doença hepática (cirrose hepática) crónica alcoólica», tendo sido seguido em consulta por período superior a 1 ano, sem cumprir abstinência, tendo sido informado do risco de descompensação hepática e desenvolvimento de hepatocarcinoma, mas decidiu manter hábitos etílicos, razão pela qual, teve alta da consulta. Posteriormente, em 27-11-2021, foi internado no Hospitalar «por lesão renal aguda, não sendo possível excluir síndrome hepatorrenal, cirrose hepática descompensada e encefalopatia hepática», sendo que nessa data «padecia de hipertensão, diabetes, obesidade, alcoolismo e doença hepática crónica». Provou-se também que «os doentes cirróticos têm susceptibilidade aumentada de infecções», que o falecimento ocorreu em ../../2021 no Hospital «na sequência de falência multiorgânica, choque séptico e pneumonia associada a cuidados de saúde», e que «as comorbilidades a que se aludem no ponto 26 contribuíram para o agravamento da condição clínica do paciente e consequente morte». Por outras palavras, temos uma pessoa que padecia de cirrose hepática causada pelo consumo patológico e voluntário de álcool, que foi internado com um quadro clínico de cirrose hepática descompensada que já tinha afectado a função renal e os rins, que no decurso das terapêuticas aplicadas no hospital não só não viu revertido o seu quadro clinico como viu este avançar para um quadro de infecção por pneumonia, risco esse que estava aumentado pela cirrose, vindo a pneumonia a gerar a falência dos vários órgãos em resultado do que sobreveio a morte (quando, como consta do relatório clínico, foi decidido desligar os meios de suporte de vida por a situação ser irreversível). Efectivamente a causa imediata ou próxima da morte do marido da autora não foi a cirrose mas sim a falência multiorgânica decorrente da pneumonia, mas a doença hepática de que ele padecia desde há vários anos em resultado do consumo patológico de álcool foi a causa imediata do internamento hospitalar e potenciou o risco de surgimento de infecções como a pneumonia que, apesar dos cuidados médicos e hospitalares, veio a ocorrer e a desencadear a morte. Nesse contexto, a cobertura do seguro está excluída? No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado por último afirma-se o seguinte: «[…] a “jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça[..] tem assumido que o nexo de causalidade é analisado segundo a teoria da causalidade adequada, na sua vertente negativa, a qual é tida como mais criteriosa e que se considera inscrita no art.º 563.º do Código Civil. De acordo com tal formulação, o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza, se mostrar indiferente para a verificação do mesmo, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto[..]. […] Este Tribunal apenas dispõe da medida de jurisdição necessária para averiguar se, em relação ao nexo de causalidade, ocorre o correspondente nexo de adequação, por tal constituir matéria de direito. Mas tal pressupõe a definição dos factos provados. É, com base neles, que pode averiguar se esse nexo existe. No caso em apreço, compete-lhe apenas apurar se, com base nos factos provados, está verificada a previsão da dita cláusula de exclusão. […] Tendo a morte decorrido da cirrose hepática alcoólica grave de que a pessoa segura padecia, acabando por falecer devido ao seu agravamento e a consequente limitação dos mecanismos de defesa e septicémia, afigura-se-nos não haver dúvidas de que se verifica o nexo bastante para o preenchimento da previsão da cláusula de exclusão a que se alude no n.º 5 dos factos provados, onde se prevê, repete-se, que a “Seguradora não garante o pagamento das importâncias seguras caso o falecimento da pessoa segura seja devido a (...) doenças … que sobrevenham à pessoa segura em resultado do consumo de bebidas alcoólicas…”.» Cremos dever acompanhar o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça e decidir da mesma forma. O recurso é pois improcedente.
VI. Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida. Custas do recurso pela recorrente, a qual as não paga por ter sido dispensada do seu pagamento, cabendo ao IGFEJ reembolsar a recorrida, a título de custas de parte, do valor da taxa de justiça que suportou com o recurso. *
Porto, 13 de Novembro de 2025. *
Os Juízes Desembargadores Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 912) 1.º Adjunto: Carlos Cunha Carvalho 2.º Adjunto: Francisca Micaela Mota Vieira [a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas] |