Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2756/20.5T8AGD-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: ABUSO DE DIREITO
SUPPESSIO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RP202201102756/20.5T8AGD-B.P1
Data do Acordão: 01/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - De acordo com o disposto na alínea c) do nº 2, do artigo 662º do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação, além do mais, pode, rectius, deve determinar a ampliação da matéria de facto quando isso seja indispensável, isto é, quando à luz das soluções plausíveis da ou das questões de direito decidendas a pronúncia sobre essa matéria de facto seja necessária para uma resposta cabal às referidas questões.
II - O instituto do abuso do direito constitui um instrumento destinado a combater o exercício de direitos ou faculdades jurídicas num quadro formalmente irrepreensível mas substancialmente infundado em virtude desse exercício exceder, ostensivamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito ou faculdades jurídica.
III - Uma das modalidades do abuso do direito que tem sido autonomizada é a supressio, figura que o Professor Menezes Cordeiro define como sendo a situação jurídica que não sendo exercida em determinadas circunstâncias e por certo tempo, deixa de poder ser exercida por contrariar a boa-fé.
IV - Uma vez que esta figura implica o não exercício de uma situação jurídica durante certo lapso de tempo, para que a mesma se integre harmoniosamente numa ordem jurídica que tem já ao seu dispor institutos especialmente vocacionados para regular os efeitos da simples passagem do tempo nas relações jurídicas, como sejam a prescrição e a caducidade, importa que tenha notas distintivas próprias, sob pena de gerar redundâncias normativas ou, ao invés, antinomias.
V - Os pressupostos da supressio são os seguintes:
a) um não exercício prolongado;
b) uma situação de confiança daí derivada, coadjuvada por elementos circundantes que a sustentem;
c) uma justificação para essa confiança;
d) um investimento de confiança;
e) a imputação da confiança ao não exercente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2756/20.5T8AGD-B.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 2756/20.5T8AGD-B.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório
Em 19 de abril de 2021, com o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, por apenso à ação executiva para pagamento de quantia certa instaurada contra si em 28 de dezembro de 2020 pela B…, S.A., C… veio deduzir oposição à execução mediante embargos de executado, alegando existir abuso do direito por parte da exequente, na modalidade de venire contra factum proprium, por em 02 de outubro de 2000, em anterior ação executiva, ter sido adjudicado à exequente o imóvel hipotecado para garantia do crédito exequendo por valor inferior àquele por que havia sido anteriormente avaliado pela exequente, valor superior ao da quantia reclamada e juros nessa altura e também na modalidade de supressio já que desde 02 de outubro de 2020 até ao presente nunca mais a embargante teve notícias da exequente, apenas tendo recebido desta uma carta em novembro de 2020, confiando a embargante que já nada devia à exequente, requerendo, em consequência, a extinção da ação executiva e, assim não se entendendo, reduzindo-se o valor da quantia exequenda à diferença entre o montante reclamado pela exequente na anterior ação executiva o montante máximo garantido pela hipoteca do imóvel adjudicado à exequente em 02 de outubro de 2020, ou seja, para o montante de € 737,23.
Os embargos foram liminarmente admitidos e notificada a B…, S.A. para, querendo, contestar, veio a mesma contestar, negando que houvesse da sua parte abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium em virtude de nenhum acto ter praticado que possa estar em oposição com a instauração da ação executiva, que o abuso do direito apenas pode ser invocado por quem tem um direito, não sendo o caso da embargante que não tem qualquer direito a não cumprir e que também não se verifica abuso do direito na modalidade da supressio em virtude de não ter existido da sua parte comportamentos concludentes que pudessem criar na embargante a expectativa de não exercer o seu direito de crédito e que o valor da hipoteca constante do registo predial apenas importa para a determinação do montante garantido e não para a determinação do montante do crédito garantido, concluindo assim pela total improcedência dos embargos de executado.
A embargante ofereceu resposta à contestação.
As partes foram notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre a dispensa de realização de audiência prévia e prolação de saneador sentença, tendo ambas declarado nada terem a opor.
Em 19 de julho de 2021 foi proferida decisão[1] que julgou os embargos procedentes com base na verificação de abuso do direito na modalidade de supressio e, consequentemente, extinta a ação executiva, fixando-se o valor da causa no montante de € 28.517,86.
Em 24 de setembro de 2021, inconformada com a decisão que precede, a B…, S.A. interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. O presente recurso de apelação tem por objeto a sentença proferida em 19JUL2021 que, julgando verificado o abuso de direito, na modalidade de suppressio, julgou procedentes os embargos de executado e, em consequência, determinou a extinção da execução;
II. Da cláusula 7ª alínea d) do documento complementar anexo ao contrato dado à execução, resulta que “à credora fica reconhecido o direito de considerar o empréstimo vencido se o imóvel hipotecado for alienado sem o seu consentimento ou se a parte devedora deixar de cumprir alguma das obrigações resultantes deste contrato”;
III. Factos estes que, por não terem sido impugnados pela Embargante, deveriam ter sido incluídos na matéria de facto provada, o que se impõe e expressamente se requer;
IV. O Tribunal a quo considerou ser aplicável ao caso em apreço o abuso de direito na modalidade de suppressio;
V. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo não aplicou corretamente o direito aos factos provados;
VI. O imóvel dado em garantia foi alienado, em 02/10/2000, no âmbito do processo de execução nº 269/97, que esteve pendente entre 28/11/1998 e 10/10/2001;
VII. Em face dos indicados factos, ficou a Embargada com o direito a considerar vencido o empréstimo e consequentemente exigível e em mora todo o seu crédito;
VIII. A Embargada pediu a cobrança coerciva do valor peticionado, invocado o vencimento antecipado de toda a divida;
IX. Conforme resulta do requerimento executivo, a Embargada procedeu à liquidação dos montantes em dívida em 28/12/2020;
X. A Embargada valeu-se do disposto no artigo 781º do Código Civil, o que significa que o prazo de pagamento escalonado das prestações anteriormente acordado deixa de estar em vigor;
XI. Desfeito o plano de amortização da dívida inicialmente acordado, os valores em dívida voltam a assumir a sua natureza original de capital e de juros;
XII. Assim, o crédito exequendo, exigido pela aqui Recorrente não é relativo a qualquer quota de amortização, mas sim à globalidade do capital em dívida, cujo pagamento a Recorrente pode exigir a qualquer momento, desde que não se encontre ultrapassado o prazo de prescrição, não se impondo que o exija em qualquer outro prazo;
XIII. O abuso de direito na modalidade de suppressio não poderá consumar-se pelo simples decurso do prazo, já que tal efeito já se encontra acautelado pelo instituto da prescrição;
XIV. Sendo, assim, exigível que o não exercício do direito seja acompanhado de comportamentos objetivos e concludentes, que criem na outra parte uma situação de confiança e expectativa de que o mesmo não virá a ser exercido;
XV. Factos estes que, nos autos, não se verificaram, nem sequer foram alegados pela embargante;
XVI. Deve, assim, a sentença proferida ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a exceção de abuso de direito invocada, determinando-se, em consequência, o prosseguimento da execução para cobrança coerciva da quantia exequenda”.
C… não respondeu ao recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, atenta a natureza essencialmente jurídica do objeto do recurso, sendo que a questão de facto suscitada pela recorrente não implica a reapreciação de prova gravada e o lastro jurisprudencial existente sobre a questão decidenda, com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensaram-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir de imediato.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da ampliação da decisão da matéria de facto com inclusão na factualidade provada do conteúdo da cláusula sétima do contrato de mútuo exequendo;
2.2 Do abuso do direito por parte da exequente na modalidade de supressio.
3. Fundamentos
3.1 Da ampliação da decisão da matéria de facto com inclusão na factualidade provada do conteúdo da cláusula sétima do contrato de mútuo exequendo
A recorrente pugna pela ampliação da decisão da matéria de facto com inclusão na factualidade provada do conteúdo da cláusula sétima do contrato de mútuo exequendo.
Cumpre apreciar e decidir.
De acordo com o disposto na alínea c) do nº 2, do artigo 662º do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação, além do mais, pode, rectius, deve determinar a ampliação da matéria de facto quando isso seja indispensável, isto é, quando à luz das soluções plausíveis da ou das questões de direito decidendas a pronúncia sobre essa matéria de facto seja necessária para uma resposta cabal às referidas questões.
Tal procedimento justifica-se porque, assim não agindo, a Relação deixará que a base factual provada e não provada se apresente incompleta e por isso insuficiente para permitir uma resposta factualmente fundada aos diversos problemas jurídicos suscitados no processo.
A recorrente invoca o conteúdo desta cláusula para justificar a exigibilidade imediata do capital mutuado e juros respetivos.
Porém, logo na precedente ação executiva para pagamento de quantia certa que correu termos, além do mais, contra a aqui embargante, a aqui recorrente deduziu reclamação de créditos fazendo valer a garantia hipotecária de que gozava e prevaleceu-se do vencimento antecipado dos créditos então reclamados.
Em consonância com tal pretensão, a agora recorrente foi paga integralmente de um dos dois mútuos reclamados, apenas ficando por liquidar o montante de 1.892.589$00, correspondente a € 9.440,21, de capital do mútuo que está a ser executado nestes autos.
Da liquidação efetuada nessa ação executiva e oferecida pela exequente como prova documental com a contestação dos embargos não consta que haja sido efetuado qualquer desconto em razão do benefício da antecipação no pagamento, tal como previsto atualmente no nº 3 do artigo 791º do Código de Processo Civil e, à data da liquidação, no nº 3 do artigo 868º do Código de Processo Civil que então vigorava.
Neste contexto, é inequívoco que o remanescente do capital do mútuo que está a ser executado nestes autos está desde há muito vencido, sendo por isso despicienda a inclusão na fundamentação de facto do conteúdo da cláusula contratual que prevê a faculdade de exigibilidade antecipada do crédito mutuado.
Pelo exposto, não se procederá à ampliação da decisão da matéria de facto como requereu a recorrente em virtude de estar em causa matéria impertinente.
Não obstante o indeferimento desta pretensão da recorrente de ampliação da decisão da matéria de facto, importa ajuizar se a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo deve ser oficiosamente alterada, ex vi artigo 662º, nº 1, 663º, nº 2 e 607º, nº 5, segunda parte, sendo todos os artigos do Código de Processo Civil.
Na verdade, na alínea E) dos factos provados deu-se como assente que a ora exequente reclamou ali o crédito emergente do contrato identificado em A) [3.2.1.1] pelo valor de € 51.542,60.
Porém, isso não corresponde ao que ambas as partes alegaram e ao que resulta da prova documental autêntica oferecida pela embargada com a sua contestação aos embargos.
Na realidade, o valor da reclamação respeitava a dois contratos de mútuo com os capitais de, respetivamente, € 28.836,28 e € 17.252,91[2], tendo o contrato de mútuo de valor mais elevado sido integralmente liquidado, ficando por liquidar do contrato de valor menos elevado a quantia de 1.892.589$00, correspondente a € 9.440,21[3].
Aliás, se acaso as coisas se tivessem passado como deu por assente o tribunal recorrido, o crédito reclamado teria sido integralmente pago e ainda teria ficado um remanescente para pagamento do crédito exequendo nesses autos.
Além disso, o valor de € 51.542,60 corresponde ao valor liquidado aquando da dedução da reclamação de créditos, sendo também formulado pedido de juros vincendos, naturalmente apenas liquidado em momento ulterior.
Deste modo, a matéria de facto vertida na alínea E) dos factos assente deve ser alterada passando a constar da mesma que a ora exequente reclamou ali o crédito emergente do contrato identificado em A) e o crédito emergente de um outro contrato de mútuo, tudo pelo valor de € 51.542,60, a que acresciam juros vincendos até efetivo e integral pagamento.
3.2 Fundamentos de facto exarados na decisão recorrida que não foram impugnados, com a alteração decorrente do exercício oficioso dos poderes desta instância de alteração da decisão da matéria de facto quando está em causa matéria plenamente provada
3.2.1 Factos provados
3.2.1.1
No dia 2 de julho de 1996, a exequente B…, S.A. celebrou com os executados D… e mulher C… um contrato de empréstimo com hipoteca (PT ……………..), mediante o qual os referidos executados constituíram a favor da ora exequente, que aceitou, hipoteca sobre a fração autónoma designada pela letra “D”[4], correspondente ao primeiro andar direito, destinada a habitação, com um arrumo no sótão designado pela mesma letra, do prédio urbano designado por Lote ., sito no …, da freguesia e concelho de Albergaria-a-Velha, inscrito na matriz sob o artigo 2932 e descrito na respetiva Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha sob o número 887.
3.2.1.2
A hipoteca em causa foi constituída para garantia do empréstimo que a exequente concedeu aos executados no montante de € 17.403,06, importância da qual se confessaram, desde logo, solidariamente devedores, dos respetivos juros até à taxa anual de 11,849%, acrescida, em caso de mora, de uma sobretaxa até 4%, ao ano, a título de cláusula penal e das despesas emergentes do referido contrato.
3.2.1.3
Ficou acordado que o empréstimo seria feito pelo prazo de 25 anos, a contar da data da sua celebração, sendo o mesmo amortizado em prestações mensais constantes de capital e juros, tendo-se vencido a primeira no dia 2 do mês seguinte ao último do trimestre.
3.2.1.4
O imóvel identificado em A) [3.2.1.1] foi objeto de venda no âmbito do processo de execução n.º 269/97, que correu termos no Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha, no qual foi reclamante a aqui exequente.
3.2.1.5
A ora exequente reclamou ali o crédito emergente do contrato identificado em A) [3.2.1.1] e o crédito emergente de um outro contrato de mútuo, tudo pelo valor de € 51.542,60, a que acresciam juros vincendos até efetivo e integral pagamento.
3.2.1.6
No âmbito do referido processo de execução, o aludido bem foi adjudicado à aqui exequente em 02/10/2000, por € 56.463,92.
3.2.1.7
Tal processo esteve pendente entre 28.11.1998 – data em que foi citada para reclamar créditos e 10.10.2001.
3.2.1.8
A exequente enviou carta registada com aviso de receção ao ora embargante[5], datada de 23.11.2020 com o seguinte teor:
“(…)
Conforme é do seu conhecimento, no dia 2 de julho e 1996, foi celebrado entre V. Exa e sua mulher C… e a B…, SA um contrato de empréstimo com hipoteca, mediante o qual a B… lhe emprestou a quantia de € 17.403,06 (…).
Posto isto, V. Exa. deixou de proceder ao pagamento das prestações a que se tinha vinculado no âmbito do contrato suprarreferido, encontrando-se na presente data em dívida a quantia de 28.423,55€.
O valor em dívida supramencionado já contempla a venda do imóvel dado em garantia,
a qual teve lugar no âmbito do processo de execução n.º 269/97, que correu termos no Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha, venda essa que nos termos da cláusula 7ª alínea d) do documento complementar do contrato suprarreferido, determina a sua resolução essa que aqui expressamente se invoca.
Ao indicado valor de €28.423,55€ acrescem as respetivas despesas de cobrança coerciva, bem como os juros de mora calculados nos termos contratualmente fixados.
Encontra-se, assim, V. Exa. na qualidade de mutuário, obrigado a proceder ao pagamento da indicada quantia.
Fica, pois, V. Exa.ª notificado para, no prazo máximo de 30 dias, proceder ao pagamento do referido valor.
Findo este prazo se ter sido efetuado o pagamento, ver-nos-emos forçados a recorrer aos meios legais com vista a acautelar os interesses desta instituição.
(…)”
3.2.1.9
Em sede de requerimento executivo e na sequência do direito exercido e conferido pelas disposições contratuais, a exequente pede a cobrança coerciva do valor peticionado, invocando o vencimento antecipado de toda a dívida, cujo valor foi objeto de cálculo de liquidação pela exequente em 28.12.2020.
4. Fundamentos de direito
Do abuso do direito por parte da exequente na modalidade de supressio
A recorrente insurge-se contra a decisão recorrida por concluir pela verificação de abuso do direito da sua parte na modalidade de supressio, abonando-se, em síntese, com o essencial da doutrina citada na sentença recorrida e invocando variada jurisprudência dos tribunais superiores, referindo, em síntese, que a simples omissão prolongada no não exercício do direito de crédito exequendo, por tempo inferior à prescrição, sem qualquer facto concludente que permita que se gere uma situação de confiança na contraparte no não exercício desse direito e o consequente investimento de confiança pela mesma não são bastantes para integrar abuso do direito na modalidade de supressio.
A decisão recorrida fundamentou a aplicação do instituto de abuso do direito na modalidade de supressio da forma que segue:
Quanto ao abuso de direito na modalidade de supressio:
Esta outra variante do abuso de direito funda-se na tutela da confiança e na boa-fé.
O que a distingue do venire contra factum proprium é a ausência de factum (conduta anterior), bastando o decurso de um período de tempo significativo suscetível de criar à contraparte a fundada expectativa de que o direito não mais será exercido.
Assim, o comportamento reiteradamente omissivo da parte que poderia exercer o direito, seguido, ao fim de largo tempo, de um ato comissivo com que a contraparte legitimamente já não contava, constitui abuso de direito na modalidade da supressio-
É desnecessária a ocorrência de culpa por parte do titular, bastando a situação objectiva criada a partir da sua inércia, geradora de justificada confiança da pessoa contra quem o direito se dirigia.
Mais do que sancionar a inércia do titular do direito, o objetivo da supressio é o de proteger a legítima confiança do terceiro que, ao fim de largo tempo, é surpreendido com uma demanda que já não esperava.
O tempo necessário para que a supressio opere dependerá muito das circunstâncias que, combinadamente, contribuam para a formação do estado de confiança, variando naturalmente de caso para caso.
Deverá equivaler ao período necessário para convencer um homem comum, colocado na posição do real e perante as mesmas circunstâncias, de que não mais seria exercido o direito invocado.
Segundo António Menezes Cordeiro, “Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa In Agendo, página 58, a “supressio” exige os seguintes requisitos: um não-exercício prolongado; uma situação de confiança, daí derivada; uma justificação para essa confiança; um investimento de confiança; a imputação da confiança ao não-exercente.
Conforme tem sido sublinhado pela doutrina, a supressio (tal como outras modalidades do abuso de direito) é um remédio subsidiário para uma situação extraordinária e daí que sejam necessárias todas as cautelas na sua aplicação pelos tribunais.
No caso dos autos, dados os factos provados que resultam provados, entendemos que se verifica esta figura do abuso de direito.Com efeito, a ora exequente reclamou o crédito emergente do contrato agora em execução no processo de execução nº 269/97, que correu termos no Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha, onde lhe foi adjudicado o prédio hipotecado como garantia do pagamento das obrigações emergentes do referido contrato.
O valor do crédito reclamado pela exequente ascendia a 51.542,60€ e o prédio foi adjudicado pelo montante de 56.463,92€
Desde então e até novembro de 2020, a exequente não comunicou com a ora embargante.
Há que considerar o seguinte:
- a exequente reclamou o crédito emergente do contrato agora em execução em processo judicial, mais concretamente, um processo executivo;
- o imóvel que garantia o pagamento daquele crédito foi ali adjudicado à exequente por valor superior ao crédito reclamado;
- após a referida adjudicação, a exequente não informou a embargante de que teria ficado em dívida qualquer valor remanescente emergente do referido contrato, silêncio esse que se manteve por mais de 20 anos.
Ora, o facto de a exequente ter exercido o seu direito em sede de processo judicial, ou seja, perante um Tribunal, ter-lhe sido adjudicado o prédio que garantia o pagamento do crédito emergente do contrato agora também em execução e por valor superior ao li reclamado, e nada mais ter reclamado da executada durante mais de 20 anos cria a confiança justificada na embargante de que nada mais é devido e que nada mais lhe seria exigido por parte da exequente.
Assim, verificando-se o abuso de direito da exequente, na modalidade de “supressio” ao intentar a presente execução contra a ora embargante, julgo procedentes os presentes embargos de executado.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil é “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
O instituto do abuso do direito constitui um instrumento destinado a combater o exercício de direitos ou faculdades jurídicas num quadro formalmente irrepreensível mas substancialmente infundado em virtude desse exercício exceder, ostensivamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito ou faculdade jurídica.
O abuso do direito tem vindo a desenvolver-se doutrinal e jurisprudencialmente com o agrupamento de casos com traços comuns permitindo a conceituação de diferentes modalidades de abuso do direito.
Uma das modalidades do abuso do direito que tem sido autonomizada é a supressio, figura que o Professor Menezes Cordeiro[6] define como sendo a situação jurídica que não sendo exercida em determinadas circunstâncias e por certo tempo, deixa de poder ser exercida por contrariar a boa-fé.
Uma vez que esta figura implica o não exercício de uma situação jurídica durante certo lapso de tempo, para que a mesma se integre harmoniosamente numa ordem jurídica que tem já ao seu dispor institutos especialmente vocacionados para regular os efeitos da simples passagem do tempo nas relações jurídicas, como sejam a prescrição e a caducidade, importa que tenha notas distintivas próprias, sob pena de gerar redundâncias normativas ou, ao invés, antinomias.
Daí que o autor antes citado identifique como pressupostos da supressio os seguintes:
a) um não exercício prolongado;
b) uma situação de confiança daí derivada, coadjuvada por elementos circundantes que a sustentem;
c) uma justificação para essa confiança;
d) um investimento de confiança;
e) a imputação da confiança ao não exercente[7].
Concretizando o primeiro pressuposto, afirma o autor que temos vindo a citar[8] que se exige um certo tempo sem exercício, tempo esse que varia conforme as circunstâncias e que, além disso se requerem indícios objetivos de que o direito em causa não será exercido.
No caso em apreço, inexiste qualquer divergência dogmática entre o tribunal recorrido e a recorrente, existindo apenas divergência na subsunção da hipótese dos autos ao instituto da supressio.
Para integrar a situação dos autos na figura da supressio, o tribunal a quo referiu o seguinte:
- a exequente reclamou o crédito emergente do contrato agora em execução em processo judicial, mais concretamente, um processo executivo;
- o imóvel que garantia o pagamento daquele crédito foi ali adjudicado à exequente por valor superior ao crédito reclamado;
- após a referida adjudicação, a exequente não informou a embargante de que teria ficado em dívida qualquer valor remanescente emergente do referido contrato, silêncio esse que se manteve por mais de 20 anos.
A primeira proposição é inquestionável.
A segunda proposição é errada, até porque se fosse certa, o caso não seria de abuso do direito mas sim de falta de direito, já que se teria extinguido por satisfação coerciva.
O tribunal recorrido não teve em conta que uma coisa é o valor liquidado na petição da reclamação de créditos, computando os juros vencidos até à dedução da reclamação e outra o valor em dívida no momento em que se efetiva a liquidação do direito de crédito reclamado em que além daquele valor liquidado se computam os juros vencidos até então.
No caso decorreram quase dois anos entre um momento e o outro, sendo a taxa de juro aplicável de quase 15% ao ano, pelo que facilmente se percebe que o valor dos juros vincendos nesse lapso temporal é significativo.
A terceira proposição onera a recorrente com um encargo que legalmente não tem suporte.
É ao tribunal que compete proceder à liquidação e ao apuramento do montante em dívida depois de feitos os devidos pagamentos, como aliás fez e se deu nota em sede de alteração oficiosa da matéria de facto, liquidação que em termos normais terá chegado ao conhecimento dos executados.
Tudo sopesado, a nosso ver, não resulta da factualidade provada que a simples inação da recorrente no exercício do seu crédito tenha criado uma situação de confiança na embargante e, consequentemente, que tenha havido um investimento de confiança por parte da embargante[9].
Sublinhe-se ainda que a inação da recorrente no exercício do seu direito por um tempo prolongado pode ser justificada pela dificuldade na identificação de bens penhoráveis dos devedores, já que na ação executiva em que viu parcialmente satisfeitos os seus créditos hipotecários, o crédito aí em execução não foi então satisfeito, desconhecendo-se se a ação executiva prosseguiu com penhora de outros bens ou, pelo contrário, se frustrou por falta de identificação de bens penhoráveis dos executados.
Pelo exposto, deve ser revogada a decisão recorrida que concluiu pela verificação de abuso do direito da ora recorrente ao requerer a realização coerciva do seu crédito, na modalidade de supressio.
A revogação da decisão recorrida, visto o disposto no nº 2, do artigo 665º do Código de Processo Civil, implica que se conheça de uma outra questão de direito que a embargante suscitou nos embargos e cujo conhecimento ficou prejudicado pela procedência da exceção de abuso do direito na modalidade de supressio e que consiste na limitação do crédito da ora recorrente ao valor máximo garantido pelas hipotecas constituídas a seu favor.
Os autos contêm todos os elementos necessários para o seu conhecimento e ambas as partes tomaram posição sobre a mesma nos articulados.
Para fundamentar a sua posição a embargante alegou nos artigos 54 e 55 da sua petição de embargos o seguinte:
A hipoteca constituída a favor da aqui Exequente tinha como montante máximo garantido do capital e acessórios de 10.481,160$00, ou seja, € 52.279.83, pelo que não pode a Exequente vir cobrar qualquer quantia acima deste valor, sob pena de desvirtualizar o princípio da especialidade do registo, plasmado na alínea a), do n.º 1, do art.º 96.º do C.R.Predial, cfr. doc. 3.
(…)
Assim, requer-se a V/Exa. se digne reduzir o montante em dívida, para o valor de € 737,23, por ser este o valor apurado entre o valor reclamado pela exequente no Processo de Execução n.º 269/97 (10.333.358$00, ou seja, € 51.542,60) e o montante máximo garantido pela hipoteca (52.279,83).
Que dizer?
Nesta questão suscitada pela embargante há diversos equívocos que começam na identificação errada da hipoteca que se destinava a garantir o remanescente do crédito em execução nestes autos, pois que o empréstimo mais antigo e de maior valor foi integralmente liquidado na ação executiva que correu termos sob o nº 269/97 do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha, na indicação do valor máximo garantido por esta hipoteca que era de 10.375.320$00 e não de 10.481.160$00, valor este que foi o inscrito no registo provisório, tendo sido reduzido aquando do registo definitivo para o montante primeiramente indicado e, finalmente, na identificação do limite máximo garantido pela hipoteca como um limite máximo do crédito do credor hipotecário.
Na realidade, a indicação do limite máximo garantido para hipoteca, tal como exigido pela alínea a) do nº 1, do artigo 96º do Código do Registo Predial destina-se apenas a delimitar o montante máximo do crédito garantido pela hipoteca, não tendo qualquer incidência na determinação do montante do crédito garantido. Dito de outro modo, do que se trata com a indicação no registo predial do montante máximo assegurado pela hipoteca é de dar publicidade ao valor máximo coberto pela garantia real hipotecária e não de determinar o montante máximo que o crédito garantido pode atingir.
De facto, bem pode suceder que o crédito garantido apenas em parte venha a beneficiar da garantia hipotecária, sendo na parte que excede o montante máximo assegurado um crédito comum.
No caso dos autos, é precisamente isto que se verificou na medida em que o bem hipotecado foi coercivamente alienado e o “produto”[10] dessa alienação, sob forma de adjudicação (vejam-se os artigos 802º e 815º, ambos do atual Código de Processo Civil e, à data em que se processou a adjudicação, os artigos 878º e 887º, ambos do Código de Processo Civil que então vigorava), foi destinado ao pagamento parcial dos créditos hipotecários da aqui recorrente, passando o remanescente do crédito hipotecário não satisfeito por via da adjudicação a ser um crédito comum.
Pelo que se tem vindo a expor é assim manifesto que a pretensão da embargante de que o crédito exequendo se reduza ao montante de € 737,23 é improcedente, improcedendo, in totum os embargos e prosseguindo incólume a ação executiva contra a embargante.
As custas dos embargos e do recurso são da exclusiva responsabilidade da embargante já que decaiu (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), tudo sem prejuízo do apoio judiciário de que goza.
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela B…, S.A. e, em consequência, em revogar a decisão recorrida proferida em 19 de julho de 2021, alterando-se oficiosamente a factualidade provada nos termos precedentemente expostos e, ao abrigo do disposto no nº 2, do artigo 665º do Código de Processo Civil, conhecendo da questão cujo conhecimento ficou prejudicado com a decisão tomada pelo tribunal recorrido, julgam-se totalmente improcedentes os embargos de executado deduzidos por C…, prosseguindo a ação executiva os seus termos.
As custas dos embargos e do recurso são da exclusiva responsabilidade da embargante já que decaiu (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), tudo sem prejuízo do apoio judiciário de que goza, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
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O presente acórdão compõe-se de quinze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 10 de janeiro de 2021
Carlos Gil
Mendes Coelho
Joaquim Moura
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[1] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 20 de julho de 2021.
[2] Vejam-se o artigo 22 da petição de embargos, onde se alude que o valor que coube à exequente do produto da venda do imóvel, já foi devidamente aplicado na redução dos créditos que à data, a Exequente detinha sobre os executados, não tendo, contudo, permitido a liquidação integral do crédito reclamado pela Exequente e o artigo 63º da contestação aos embargos e os documentos autênticos oferecidos pela exequente com este articulado.
[3] Atente-se na liquidação que foi feita no processo executivo nº 269/97, com data de 08 de outubro de 2000 e oferecida pela ora recorrente como última página do documento nº 1. Desta liquidação retira-se que os juros vencidos na pendência da ação executiva ascenderam a 2.449.480$00, ou seja € 12.217,94 que somado ao valor liquidado na petição da reclamação de créditos totaliza € 63.760,54, valor que vai muito além do valor por que foi adjudicado o imóvel à reclamante.
[4] Esta hipoteca constituiu-se provisoriamente mediante a apresentação 02 de 18 de junho de 1996, com conversão em definitiva pela apresentação 06 de 31 de julho de 1996, sendo o montante máximo garantido de 5.287.474$83. Antes, para garantia do empréstimo no montante de seis milhões de escudos e respetivos acessórios havia-se constituído provisoriamente hipoteca mediante a apresentação 02 de 03 de fevereiro de 1993, com conversão em definitiva pela apresentação 12 de 05 de maio de 1993, sendo inicialmente o montante máximo garantido de 10.481.160$00 e passando a ser com a conversão em definitiva no montante de 10.375.320$00.
[5] Embora o texto da carta esteja endereçado ao executado, a executada confessa no artigo 27 da sua petição de embargos ter recebido esta carta.
[6] Veja-se Tratado de Direito Civil, V, 2ª Edição Revista e Atualizada, Almedina 2015, página 345. No Código Civil Comentado, I – Parte Geral, coordenação do Professor Menezes Cordeiro, Almedina 2020, página 936, nº 27 da anotação ao artigo 334º da autoria do citado coordenador, a supressio vem definida do seguinte modo: “A supressio exprime o subinstituto pelo qual a pessoa que, podendo exercer uma posição jurídica, não o faça durante um período de tempo significativo, em termos que levem outrem a acreditar legitimamente em que ela não será mais exercida e, depois, sem justificação a exerça, provocando danos.”
[7] Veja-se Tratado de Direito Civil, V, 2ª Edição Revista e Atualizada, Almedina 2015, página 355 e Código Civil Comentado, I – Parte Geral, coordenação do Professor Menezes Cordeiro, Almedina 2020, página 936, nº 29 da anotação ao artigo 334º da autoria do citado coordenador.
[8] Veja-se Tratado de Direito Civil, V, 2ª Edição Revista e Atualizada, Almedina 2015, página 353 e Código Civil Comentado, I – Parte Geral, coordenação do Professor Menezes Cordeiro, Almedina 2020, página 936, nº 29 da anotação ao artigo 334º da autoria do citado coordenador que alude a uma inação eloquente.
[9] A inação prolongada da ora recorrente determinou a verificação da prescrição dos créditos relativos a juros vencidos há mais de cinco anos à data da instauração da ação executiva (artigo 310º. Alínea d), do Código Civil), prescrição quinquenal que contudo não foi invocada pela embargante e que não pode ser oficiosamente conhecida pelo tribunal (artigo 579º do Código de Processo Civil e 303º do Código Civil).
[10] As aspas justificam-se na medida em que na adjudicação não há em regra verdadeiramente um produto da alienação, mas antes uma extinção do crédito por confusão parcial ou total.