Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3/23.7T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
ÓRGÃOS SOCIAIS
INTERVENÇÃO DO TRIBUNAL
Nº do Documento: RP202309123/23.7T8VNG.P1
Data do Acordão: 09/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A declaração de insolvência transfere para o administrador de insolvência a competência exclusiva para administrar os bens do insolvente, bem como a competência para, fora do processo de insolvência e em todas as matérias de natureza patrimonial, o representar.
II - Não obstante, o artigo 82.º, 1 do CIRE estabelece que os órgãos sociais do devedor se mantêm – após a declaração de insolvência – em funcionamento, embora deixando de auferir remuneração. Isto porque o nº 5 do artigo 81º do mesmo Código prescreve que a representação do AI não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário.
III - De acordo com o disposto no artigo 141º nº 1 al. e) do CSC, a sociedade dissolve-se pela sua declaração de insolvência quando decidida a sua liquidação e, em consonância, o artigo 146º, nº 1 estatui que dissolvida a sociedade, entrará em liquidação. O nº 2 deste preceito clarifica que, em princípio, a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica
IV - Compreende-se, nesta base conceptual, a manutenção de órgãos sociais da sociedade, mas com uma função muito restrita às necessidades do processo de insolvência.
V - Depois da dissolução, a actividade da sociedade circunscreve-se a dar uma solução, um caminho aos negócios pendentes sob a égide do AI.
VI - Os órgãos sociais limitam-se actuar quanto ao interesse da sociedade nos trâmites do processo da insolvência, podendo haver renúncia depois da apresentação das contas anuais.
VII - Portanto, a sociedade em insolvência, mantendo embora a sua personalidade colectiva de que gozava antes, está dissolvida o que quer dizer que perdeu a sua função, restando-lhe proceder à cobrança dos créditos, pagamento das dívidas e partilha dos bens sociais sobrantes.
VIII - Neste cenário não tem cabimento legal, por esvaziamento de sentido, a intervenção do tribunal a nomear titulares de órgãos sociais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3/23.7T8VNG.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 5

Relatora: Juíza Desembargadora Ana Lucinda Cabral
1ª Adjunta: Juíza Desembargador Lina Castro Batista
2º Adjunto: Juiz Desembargador Ramos Lopes

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório
Nos autos supra epigrafados foi proferido o seguinte despacho:
AA intentou o presente procedimento de nomeação judicial de titulares de órgãos sociais contra “A..., Lda.”, pedindo que se proceda à nomeação dos órgãos da Mesa da Assembleia Geral e do Fiscal Único, sem prévia audição da requerida.
Alega, para o efeito, que na assembleia geral realizada a 31 de Maio de 2022, tendo sido aprovada proposta para eleição dos órgãos sociais para o mandato de 2021/2024, apenas foi eleito o administrador único, tendo o presidente da Mesa da Assembleia Geral e o Fiscal Único Efectivo, cujos mandatos terminaram a 31 de Dezembro de 2020, renunciado ao cargo, não tendo sido eleitos novos membros. Encontrando-se a requerida sem Presidente da Mesa da Assembleia Geral e sem Fiscal Único em funções, não tem requerente como convocar a assembleia geral. Alega, ainda, que a requerida foi declarada insolvente e que foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, tendo o Sr. Administrador da Insolvência e o Ministério Público pugnado pela qualificação da insolvência como culposa.
A requerente, para justificar o pedido de dispensa da prévia audição da requerida, alega o lapso de tempo decorrido desde o termo do mandato e a posição do actual órgão de gestão que se vê a braços com a qualificação da insolvência como culposa, bem como a frustração da notificação da requerida (verificada no âmbito de processos judiciais), defendendo, ainda, que a prévia audição será instrumentalizada para adiar a nomeação judicial.
* É de considerar que:
a) A sociedade comercial “A..., S.A.” está registada na Conservatória do Registo Comercial com o NIPC ..., com sede na Praça ..., ..., Porto, tendo por objecto a compra e venda de prédios rústicos e urbanos e revenda dos adquiridos para esses fins, vitivinicultura e outras actividades agrícolas relacionadas com a vinha e o vinho, produção e comercialização de vinhos, por grosso e a retalho, exportação e importação de máquinas e equipamentos para a agricultura e para a vitivinicultura, realização de eventos turísticos e culturais, indústria turística e hoteleira e prestação de serviços relacionadas com essas actividades;
b) Tal sociedade comercial tem como administrador único BB e como suplente do fiscal único CC (ROC);
c) Por deliberação tomada na assembleia geral extraordinária da requerida realizada a 12 de Outubro de 2017, foram eleitos os órgãos sociais para o quadriénio 2017 a 2020, com a seguinte composição:
“Assembleia Geral: Presidente: DD (…). Secretário: EE (…).
Conselho de Administração: Administrador Único: BB (…). Conselho Fiscal: Fiscal Único Efectivo: FF (…); Fiscal Único Suplente: CC (…)”;
d) Na assembleia geral da requerida realizada a 14 de Maio de 2021 foi deliberado retirar da ordem de trabalhos, entre outros, o ponto quatro, com o seguinte teor: “Deliberar sobre a Eleição dos Órgãos Sociais para o quadriénio dois mil e vinte e um a dois mil e vinte e quatro”;
e) Na assembleia geral da requerida realizada a 31 de Maio de 2022, no âmbito do ponto um da ordem de trabalhos [“Deliberar sobre a Eleição dos Órgãos Sociais para o quadriénio dois mil e vinte e um a dois mil e vinte e quatro”], foi deliberado nomear apenas administrador único, o sócio BB;
f) O acto referido na alínea anterior foi objecto de registo através da inscrição com a ap. ..., de 22 de Junho de 2022;
g) Através da inscrição com a ap. ..., de 25 de Novembro de 2022, está registada a cessação de funções do Fiscal Único Efectivo, FF, por renúncia, com conhecimento à sociedade a 8 de Janeiro de 2021;
h) Por sentença proferida a 13 de Maio de 2021, transitada em julgado a 4 de Junho de 2021, no processo n.º 3410/21.6T8VNG, deste Juízo de Comércio – Juiz 1, a requerida “A..., S.A.” foi declarada em situação de insolvência;
i) No âmbito de tal processo de insolvência foi determinado o encerramento antecipado do estabelecimento da devedora, prosseguindo os autos, neste momento, os termos da liquidação do activo;
j) A 28 de Setembro de 2021 foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência;
k) O Sr. Administrador da Insolvência nomeado apresentou o parecer cuja cópia se encontra junta como documento n.º 15 e cujo teor se dá aqui por reproduzido, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa, com afectação de GG;
l) O Ministério Público apresentou o parecer cuja cópia se encontra junta como documento n.º 16 e cujo teor se dá aqui por reproduzido, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa, com afectação de GG e BB;
m) Na audiência de discussão e julgamento realizada, a 8 de Junho de 2022, na acção de verificação ulterior de créditos que corre por apenso ao processo de insolvência identificado na alínea h), DD, ouvido na qualidade de testemunha, declarou ter “sido presidente de uma assembleia geral da insolvente desde 2002 até ao dia 31.05.2021 (…)”;
n) A requerente é sócia da requerida.
*
O tribunal teve em consideração os documentos juntos com o requerimento inicial, tendo, ainda, consultado electronicamente o processo de insolvência n.º 3410/21.6T8VNG, deste Juízo de Comércio – Juiz 1 [cfr. alíneas h) e i)].
A requerente não alega a sua qualidade de sócia. No entanto, tal qualidade resulta dos documentos juntos com o requerimento inicial, nomeadamente, da sentença proferida na acção n.º 23077/17.5T8PRT, do Juízo Local Cível do Porto – Juiz 5.
*
Nos termos do disposto no art. 1053º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “Nos casos em que a lei prevê a nomeação judicial de titulares de órgãos sociais, ou de representantes comuns dos contitulares de participação social, deve o requerente justificar o pedido de nomeação e indicar a pessoa que reputa idónea para o exercício do cargo”.
A requerente não fez a indicação prevista em tal disposição legal. No entanto, uma vez que se nos afigura que o requerimento inicial deve ser liminarmente indeferido, por outras razões, não se fará o convite ao aperfeiçoamento do articulado.
Vejamos, então.
A requerida “A..., S.A.” foi declarada insolvente por sentença proferida a 13 de Maio de 2021, transitada em julgado a 4 de Junho do mesmo ano.
A requerente AA instaurou a presente acção de nomeação judicial de titulares de órgãos sociais, pretendendo que se proceda à nomeação dos órgãos da Mesa da Assembleia Geral e do Fiscal Único.
Ora, tendo a requerida sido declarada insolvente, por sentença transitada em julgado, afigura-se-nos que, na pendência do processo de insolvência, apenas o administrador da insolvência teria legitimidade para apresentar o pedido de nomeação judicial de titulares de órgãos sociais, caso se mostrasse necessário (cfr. art. 82º, n.º 3 e n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Ainda que se considere que a requerente tem legitimidade para o efeito, cremos que a presente acção não pode prosseguir.
A requerida, como vimos, foi declarada insolvente, por sentença transitada em julgado, tendo sido determinado o encerramento antecipado do seu estabelecimento comercial e prosseguindo tais autos, neste momento, os termos da liquidação do activo.
Tal circunstância conduzirá extinção da sociedade comercial insolvente (cfr. arts. 141º, n.º 1, alínea e), e 160º do CSC).
Assim, considerando a declaração de insolvência, não vemos fundamento para, neste momento, nomear judicialmente titulares de órgãos sociais, a requerimento de uma sócia.
No que diz respeito à mesa da mesa da assembleia geral, apenas poderia estar em causa a designação do presidente (o qual é por muitos considerado um verdadeiro órgão societário – cfr. Código das Sociedades Comerciais em Comentário, coordenado por Jorge M. Coutinho de Abreu, vol. VI, pág. 33) e já não do secretário (essencial, para o funcionamento da assembleia geral, é apenas a existência do presidente) – cfr. art. 374º, n.º 3, do CSC.
Como resulta do disposto no art. 374º, n.º 2, do CSC, o presidente da mesa deve ser eleito para o exercício de funções por um período de tempo determinado, não podendo ser superior a quatro anos. No entanto, as suas funções apenas cessarão quando se verifique a designação de um novo presidente da mesa (cfr. arts. 391º, n.º 4, 425º, n.º 2, e 435º, n.º 2, do CSC).
Assim, afigura-se-nos que o presidente da mesa eleito se mantém em funções, sendo certo que a declaração descrita na alínea m) não pode ser interpretada como uma renúncia (cfr. art. 404º do CSC, por analogia).
Contudo, e mesmo que desse modo não seja entendido, a verdade é que, faltando ou inexistindo presidente da mesa, a lei estabelece um regime supletivo para a designação do cargo de presidente (cfr. art. 374º, n.º 3 e n.º 4, do CSC), podendo o cargo ser atribuído ao fiscal único suplente, o qual, no caso, se mantém em funções.
Não se vislumbra, pois, fundamento para o pedido de nomeação judicial do presidente da mesa da assembleia geral, sendo certo que a lei prevê um mecanismo para acautelar o direito invocado pela requerente – pedir a convocação de assembleia geral (cfr. art. 1057º do CPC).
A requerida, como resulta dos factos, adoptou o modelo de fiscal único (cfr. art. 413º do CSC).
O fiscal único tem sempre um suplente (cfr. n.º 3 do art. 413º do CSC), o qual substitui aquele.
O período de duração do mandato tem o limite máximo de 4 anos (art. 415º, n.º 1, do CSC), sendo que, caso tenha decorrido o prazo de duração do mandato, se a eleição não tiver ocorrido, os titulares de cargos de fiscalização mantêm-se no cargo e em funções até nova designação (cfr. art. 391º, n.º 4, do CSC, aplicável por analogia).
No caso em apreço, a requerida tem fiscal único suplente e este substitui o fiscal único, mantendo-se, assim, em funções, motivo pelo qual não vemos fundamento para nomear judicialmente fiscal único.
Nestes termos, seja por falta de legitimidade da requerente [a ilegitimidade é legalmente qualificada de excepção dilatória e a sua procedência conduz à absolvição do réu da instância (cfr. art. 278º, n.º 1, alínea d), art. 576º, n.º 1 e n.º 2, e art. 577, alínea e), do Código de Processo Civil)], seja por manifesta improcedência do pedido, deve o requerimento inicial ser liminarmente indeferido (art. 590º, n.º 1, do Código de Processo Civil), ficando prejudicada a apreciação do pedido de dispensa da prévia audição da requerida.
*
Pelo exposto, indefiro liminarmente o requerimento inicial. Custas a cargo da requerente.
Notifique.”

A requerente AA veio interpor recurso, concluindo:
1. A Recorrente reage da sentença de 13.01 sobre a referência 443716127 quando determina:
Nestes termos, seja por falta de legitimidade da requerente [a ilegitimidade é legalmente qualificada de excepção dilatória e a sua procedência conduz à absolvição do réu da instância (cfr. art. 278º, n.º 1, alínea d), art. 576º, n.º 1 e n.º 2, e art. 577, alínea e), do Código de Processo Civil)], seja por manifesta improcedência do pedido, deve o requerimento inicial ser liminarmente indeferido (art. 590º, n.º 1, do Código de Processo Civil), ficando prejudicada a apreciação do pedido de dispensa da prévia audição da requerida.
2. Por entender que não só a legitimidade do pedido recai sobre os sócios, como é o caso da Rte, aqui Apelante mas, também, por entender que inexistir qualquer razão para a “manifesta improcedência do pedido”, assumindo-se os juízos expressos absolutamente desajustados à legislação aplicável, bem como à melhor doutrina e jurisprudência.
3. A questão de direito, na óptica da Apelante, não permite a amplitude ou divagação do julgamento expresso na fundamentação do tribunal a quo.
4. Sendo por isso o objeto do recurso sobre a questão de: se um detentor de capital social de sociedade insolvente mas sem matricula encerrada no registo comercial, pode requerer a nomeação judicial de órgão sociais nos termos previstos pelo CSC.
Contudo, e mesmo que desse modo não seja entendido, a verdade é que, faltando ou inexistindo presidente da mesa, a lei estabelece um regime supletivo para a designação do cargo de presidente (cfr. art. 374º, n.º 3 e n.º 4, do CSC), podendo o cargo ser atribuído ao fiscal único suplente, o qual, no caso, se mantém em funções.
Não se vislumbra, pois, fundamento para o pedido de nomeação judicial do presidente da mesa da assembleia geral, sendo certo que a lei prevê um mecanismo para acautelar o direito invocado pela requerente – pedir a convocação de assembleia geral (cfr. art. 1057º do CPC).
A requerida, como resulta dos factos, adoptou o modelo de fiscal único (cfr. art. 413º do CSC).
O fiscal único tem sempre um suplente (cfr. n.º 3 do art. 413º do CSC), o qual substitui aquele.
O período de duração do mandato tem o limite máximo de 4 anos (art. 415º, n.º 1, do CSC), sendo que, caso tenha decorrido o prazo de duração do mandato, se a eleição não tiver ocorrido, os titulares de cargos de fiscalização mantêm-se no cargo e em funções até nova designação (cfr. art. 391º, n.º 4, do CSC, aplicável por analogia).
No caso em apreço, a requerida tem fiscal único suplente e este substitui o fiscal único, mantendo-se, assim, em funções, motivo pelo qual não vemos fundamento para nomear judicialmente fiscal único.
Nestes termos, seja por falta de legitimidade da requerente [a ilegitimidade é legalmente qualificada de excepção dilatória e a sua procedência conduz à absolvição do réu da instância (cfr. art. 278º, n.º 1, alínea d), art. 576º, n.º 1 e n.º 2, e art. 577, alínea e), do Código de Processo Civil)], seja por manifesta improcedência do pedido, deve o requerimento inicial ser liminarmente indeferido (art. 590º, n.º 1, do Código de Processo Civil), ficando prejudicada a apreciação do pedido de dispensa da prévia audição da requerida.
*
Pelo exposto, indefiro liminarmente o requerimento inicial.
Custas a cargo da requerente.
Notifique.
*
Vila Nova de Gaia, 13 de Janeiro de 2023
5. A Apelante entende que sim.
I - Falta de legitimidade
6. Em contraste o tribunal a quo defendeu a falta de legitimidade da Apelante atenta a
declaração de Insolvência da sociedade,
7. Tendo o tribunal a quo defendido que a legitimidade “para apresentar o pedido de nomeação judicial de titulares de orgaÞos sociais, caso se mostrasse necessaìrio (cfr. art. 82º, n.º 3 e n.º 4, do Coìdigo da Insolvência e da Recuperação de Empresas)” seria “apenas o administrador da insolvência”.
Mas,
8. Erradamente, entende a Apelante, pois o previsto no nº 3 e 4 do art. 82 do CIRE não tem aplicação aos presentes autos.
9. Razão pela qual a Apelante entende que dispõe de legitimidade processual, impondo-se a revogação do decidido neste ponto.
II - “manifesta improcedência do pedido”
II.1 - Juízo de oportunidade quanto ao pedido
10. Entende depois o julgador fazer uma apreciação da oportunidade do pedido.
Quando,
11. Nenhum juízo de oportunidade ou prognose é legalmente previsto ou permitido, nem o sumário feito sobre o estado da Insolvência da Apelada transmite uma real imagem do processo de insolvência em causa que já recebeu recurso extraordinário à própria declaração de insolvência transitada em julgamento, vários pedidos de encerramento; vários pedidos de decisão sobre plano de recuperação ou aquisição de sociedade como um todo.
12. O juízo de que “considerando a declaração de insolvência, naÞo vemos fundamento para, neste momento, nomear judicialmente titulares de oìrgaÞos sociais, a requerimento de uma soìcia” espelha uma visão absurda da lei aplicável ao pedido, uma injustificada ignorância sobre a complexidade do processo de insolvência em causa e um desrespeito pelos direitos legalmente previstos e protegidos por lei.
13. O tribunal a quo ocupou-se de uma contextualização, de uma contemporização e de uma relativização que escapa por completo à letra da lei que estabelece apenas que na falta de nomeação de órgão social “... pode qualquer accionista requerer a sua nomeação judicial.”
14. Por abusiva, ilegal, infundada e até imoral, tem o juízo sobre a oportunidade do pedido de ser revogado.
II.2 Juízo de necessidade quanto aos órgão a nomear 15. Avança depois a decisão em crise num juízo sobre a necessidade de nomeação dos órgão sociais com mandato findo mas em gestão ou já substituídos.
16. Não parece à Apelante que as regras de gestão ou substituição de membros de órgão sociais com mandatos caducados gerem qualquer limitação ao deferimento do pedido apresentado, pelo que também esta parte da fundamentação, redigida para a chamada “manifesta improcedência do pedido” terá de ser revogada, com base nos mesmos vícios já invocados para o juízo de oportunidade, mas também por ser uma apreciação absoluta inútil e inaplicável aos autos.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. Doutamente suprirão deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser revogada a sentença da qual aqui se recorre por reconhecimento da legitimidade da Apelante e inexistência da alegada “manifesta improcedência do pedido”, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se a decisão deve ser revogada por reconhecimento da legitimidade da recorrente e inexistência da alegada “manifesta improcedência do pedido”, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

II – Fundamentação de facto
A factualidade relevante é a que se extrai do relatório supra.

III – Fundamentação de direito
A requerente com o presente procedimento de nomeação judicial de titulares de órgãos sociais pretende a nomeação dos órgãos da Mesa da Assembleia Geral e do Fiscal Único relativamente à sociedade A..., Lda.
Este procedimento cautelar insere-se no processo relativo ao exercício de direitos sociais, enquadrado no Livro V, Título XV, Capítulo XIV do CPC, nos artigos 1048º a 1071º. É um processo de jurisdição voluntária que, por isso, não está sujeito a critérios de legalidade estrita, mas antes a critérios de conveniência e oportunidade, devendo o tribunal adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (artigo 987º, do CPC), investigando livremente os factos mediante as provas que o juiz considere necessárias (artigo 986º, nº 2, do CPC).
Mais concretamente, trata-se de um processo previsto no artigo 1053º, n.º 1, do Código de Processo Civil que prescreve: “Nos casos em que a lei prevê a nomeação judicial de titulares de órgãos sociais, ou de representantes comuns dos contitulares de participação social, deve o requerente justificar o pedido de nomeação e indicar a pessoa que reputa idónea para o exercício do cargo”.
Estas normas de caracter adjectivo têm de conjugar-se com as normas de carácter substantivo que consentem a pretensão, tendencialmente do Código das Sociedades Comerciais (CSC). Vejamos então.
Mesa da Assembleia Geral
A assembleia geral, colectividade de sócios, conjunto dos sócios ou assembleia de sócios é o órgão deliberativo-interno comum a todos os tipos de sociedade comercial, sendo tradicionalmente considerado como o órgão supremo da sociedade.
Nos termos do disposto no artigo 373º do CSC os accionistas deliberam nos termos do artigo 54.º ou em assembleias gerais regularmente convocadas e reunidas.
O artigo seguinte estabelece que a mesa da assembleia geral é constituída, pelo menos, por um presidente e um secretário, podendo o contrato de sociedade determinar que o presidente, o vice-presidente e os secretários da mesa da assembleia geral sejam eleitos por esta, por período não superior a quatro anos, de entre accionistas ou outras pessoas (nº 2); no silêncio do contrato, na falta de pessoas eleitas nos termos do número anterior ou no caso de não comparência destas, serve de presidente da mesa da assembleia geral o presidente do conselho fiscal, da comissão de auditoria ou do conselho geral e de supervisão e de secretário um accionista presente, escolhido por aquele (nº 3); na falta ou não comparência do presidente do conselho fiscal, da comissão de auditoria ou do conselho geral e de supervisão, preside à assembleia geral um accionista, por ordem do número de acções de que sejam titulares, caso se verifique igualdade de número de acções, deve atender-se, sucessivamente, à maior antiguidade como accionista e à idade.
O artigo 377º do mesmo código indica que as assembleias gerais são convocadas pelo presidente da mesa ou, nos casos especiais previstos na lei, pela comissão de auditoria, pelo conselho geral e de supervisão, pelo conselho fiscal ou pelo tribunal.
Em sintonia o artigo 1057.º CPC define o processo a observar nesta convocação pelo tribunal.
Fiscal Único Efectivo
O artigo 413º do CSC determina que a fiscalização das sociedades anónimas compete
a um fiscal único, que deve ser um revisor oficial de contas, a uma sociedade de revisores oficiais de contas, ou a um conselho fiscal, ou a um conselho fiscal e a um revisor oficial de contas ou uma sociedade de revisores oficiais de contas que não seja membro daquele órgão.
De acordo com disposto no artigo 415º do CSC os membros efectivos do conselho fiscal, os suplentes, o fiscal único e o revisor oficial de contas são eleitos pela assembleia geral, pelo período estabelecido no contrato de sociedade, mas não superior a quatro anos, podendo a primeira designação ser feita no contrato de sociedade ou pela assembleia constitutiva; na falta de indicação do período por que foram eleitos, entende-se que a nomeação é feita por quatro anos (nº 1); o contrato ou a assembleia geral designam aquele dos membros efectivos que servirá como presidente; se o presidente cessar as suas funções antes de terminado o período para que foi designado ou eleito, os outros membros escolherão um deles para desempenhar aquelas funções até ao termo do referido período (nº2); os membros efectivos do conselho fiscal que se encontrem temporariamente impedidos ou cujas funções tenham cessado são substituídos pelos suplentes, mas o suplente que seja revisor oficial de contas substitui o membro efectivo que tenha a mesma qualificação (nº 3); os suplentes que substituam membros efectivos cujas funções tenham cessado mantêm-se no cargo até à primeira assembleia anual que procederá ao preenchimento das vagas. (nº 4); não sendo possível preencher uma vaga de membro efectivo por faltarem suplentes eleitos, os cargos vagos, tanto de membros efectivos como de suplentes, são preenchidos por nova eleição.
O artigo 417.º salvaguarda que se a assembleia geral não eleger os membros do conselho fiscal, ou o fiscal único, efectivos e suplentes, não referidos no artigo anterior, deve a administração da sociedade e pode qualquer accionista requerer a sua nomeação judicial.
Importa também consignar que a doutrina e a jurisprudência consideram que o regime de designação e substituição dos membros do conselho fiscal ou fiscal único revela uma lacuna cuja consequência poderia ser o prosseguimento da actividade da sociedade sem qualquer fiscalização, um resultado contrário às finalidades e objectivo da própria existência de fiscalização, pelo que tal lacuna deve ser integrada com recurso à norma do nº 4 do artigo 391º do CSC, solução que o próprio legislador adoptou para a comissão de auditoria e para o conselho geral e de supervisão: embora designados por prazo certo, os membros do órgão de fiscalização mantêm-se em funções após o decurso desse prazo até nova designação. O mesmo raciocínio vale para o presidente da mesa da assembleia geral. – V. g. Acórdão da Relação de Lisboa de 13-07-2021, proc. nº 15008/20.1T8LSB.L1-1, in www.dgsi.pt.
A nomeação judicial de titulares de órgãos sociais tem carácter excepcional só devendo ter lugar quando a vida societária atravessa vicissitudes várias em que só com a intervenção judicial seja possível ultrapassar bloqueios, situações de graves deficiências gestionárias e salvaguardar o interesse social.
Na verdade, as sociedades comerciais apresentam-se como um projecto empresarial dos sócios mas são entes autónomos que têm um “interesse próprio” que transcende o interesse colectivo dos sócios, reconhecido no CSC em diversos preceitos: por ex., no artigo 3º diz-se contrário ao fim da sociedade a prestação de garantias a dívidas de outras entidades “salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante…”; no artigo 64º estipula-se “os gerentes ou administradores da sociedade devem observar (…) deveres de lealdade, no interesse da sociedade” (nº 1 al. b) “os titulares de órgãos sociais com funções de fiscalização devem observar deveres de cuidado (…) no interesse da sociedade.” (nº2); no artigo 328º, no que se refere às limitações à transmissão de acções, admite-se que o contrato social possa “Subordinar a transmissão de ações nominativas e a constituição de penhor ou usufruto sobre eles à existência de determinados requisitos, subjetivos ou objetivos, que estejam de acordo com o interesse social.
É, pois, num circunstancialismo apertado que se desenha a intervenção do tribunal na nomeação de titulares de órgãos sociais.
Verifica-se no caso um acontecimento determinante da solução do caso: por sentença proferida a 13 de Maio de 2021, transitada em julgado a 4 de Junho de 2021, no processo n.º 3410/21.6T8VNG, a requerida “A..., S.A.” foi declarada em situação de insolvência.
Ora, o artigo 81º, nº 1 do CIRE expressa que “…com a declaração de insolvência, o insolvente fica imediatamente privado, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.”
É o administrador da insolvência (AI) quem assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (nº4).
Os actos praticados pelo insolvente, em violação destas regras, serão ineficazes (nº 6).
A declaração de insolvência transfere para o administrador de insolvência a competência exclusiva para administrar os bens do insolvente, bem como a competência para, fora do processo de insolvência e em todas as matérias de natureza patrimonial, o representar.
Não obstante, o artigo 82.º, 1 do CIRE estabelece que os órgãos sociais do devedor se mantêm – após a declaração de insolvência – em funcionamento, embora deixando de auferir remuneração.
Assim tem de ser porque o nº 5 do aludido artigo 81º prescreve que a representação do AI não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário.
Quer dizer, a representação da sociedade no processo de insolvência terá de ser efectuada através dos seus órgãos sociais competentes.
Como se referiu a sociedade tem um interesse próprio e o AI tem uma representação abrangente, podendo os interesses desta conflituar com os interesses dos credores, por exemplo. Salvaguarda-se, assim, o que poderia resultar numa representação de simultâneos interesses contraditórios e conflituantes.
O artigo 82.º nº 2, CIRE permite que os gerentes/administradores das sociedades renunciem aos seus cargos depois de serem apresentadas as contas anuais relativas ao ano em que é proferida a decisão da liquidação, assegurando que aqueles que estarão numa situação privilegiada (porque dispõem da informação necessária para o efeito), as apresentem.
Importa dizer que, de acordo com o disposto no artigo 141º nº 1 al. e) do CSC, a sociedade dissolve-se pela sua declaração de insolvência quando decidida a sua liquidação e, em consonância, o artigo 146º, nº 1 estatui que dissolvida a sociedade, entrará em liquidação. O nº 2 deste preceito clarifica que, em princípio, a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica
Como explica Raul Ventura, em Dissolução e Liquidação de Sociedades, págs. 12 e ss., a dissolução da sociedade é um processo complexo que visa extinguir as relações contratuais entre os sócios e que tem de curar de todo um conjunto de relações jurídicas com terceiros.
Compreende-se, nesta base conceptual, a manutenção de órgãos sociais da sociedade mas com uma função muito restrita às necessidades do processo de insolvência.
Depois da dissolução a actividade da sociedade circunscreve-se a dar uma solução, um caminho aos negócios pendentes sob a égide do AI.
Os órgãos sociais limitam-se actuar quanto ao interesse da sociedade nos trâmites do processo da insolvência, podendo, como se viu, haver renuncia depois da apresentação das contas anuais.
Portanto, a sociedade em insolvência, mantendo embora a sua personalidade colectiva de que gozava antes, está dissolvida o que quer dizer que perdeu a sua função, restando-lhe proceder à cobrança dos créditos, pagamento das dívidas e partilha dos bens sociais sobrantes.
Neste cenário não tem cabimento legal, por esvaziamento de sentido, a intervenção do tribunal a nomear titulares de órgãos sociais.
A pretensão em causa é manifestamente improcedente porque apresenta uma evidente falta de fundamento, ou seja, uma impossibilidade de ser acolhida, qualquer que seja a interpretação jurídica tomada, tornando inútil qualquer instrução e discussão posteriores, fazendo perder qualquer razão de ser à continuação do processo.
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando o despacho recorrido que considerou a presente providência manifestamente improcedente.
Custas pela apelante

Porto, 12 de Setembro de 2023
Ana Lucinda Cabral
Lina Baptista
João Ramos Lopes

Sumário
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(A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.)