Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1556/22.2T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA MORAIS
Descritores: ASSOCIAÇÃO
ASSOCIAÇÃO PARTICULAR DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
ASSEMBLEIA GERAL
CONVOCATÓRIA
DELIBERAÇÃO DA ASSEMBLEIA GERAL
IMPUGNAÇÃO DAS DELIBERAÇÕES
LEGITIMIDADE
COVID-19
Nº do Documento: RP202312191556/22.2T8MTS.P1
Data do Acordão: 12/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na impugnação da matéria de facto, o cumprimento do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto não pode ter-se por observado com a referência genérica à “adequada análise crítica da prova realizada”. O recorrente tem de indicar o meio de prova, concreto, que, no seu entender, determina uma decisão diversa quanto aos factos objecto de impugnação e demonstrar, mediante razões objectivas, que essa prova deve conduzir à versão dos factos por si proposta.
II - A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjectivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo autor, bastando-se com a alegação dessa titularidade.
III - A legitimidade substancial ou substantiva tem que ver com a efectividade da relação material, com a titularidade de um direito e deve ser aferida à luz das regras substantivas.
IV - Dispõe de legitimidade para arguir a anulabilidade das deliberações tomadas na assembleia, o associado portador de direitos e deveres na formação da vontade do colectivo e que “não tenha contribuído favoravelmente, com o seu voto, para a sua aprovação”.
V - As associações sem fim lucrativo regem-se, por força do artigo 157º do Código Civil, pelos artigos 167º a 184º do mesmo diploma, definindo a lei um mínimo normativo que deve ser incorporado nos estatutos, ou não ser contrariado por eles, não só para assegurar o cumprimento de regras basilares gerais e abstractas, como também, para assegurar, a protecção dos associados e dos seus direitos.
VI - Dada a especificidade de certas associações implicar a sua inserção num quadro normativo que contempla a sua peculiar natureza e escopo, a par da regulação do Código Civil, podem existir leis-quadro definidoras das particularidades do ente associativo de modo a agilizar o seu funcionamento. É, assim, que as instituições privadas de solidariedade social em geral têm o seu estatuto legal definido pelo Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro.
VII - Os direitos conferidos a cada um dos associados depende do que a esse respeito se mostre estipulado nos estatutos de cada associação em particular, pois só assim, se compreende que no normativo legal contido no citado art. 167º do CC, se contemple a possibilidade dos estatutos poderem especificar os direitos e obrigações dos seus associados.
VIII - A assembleia geral visa a formação da vontade colectiva, pelo que a convocatória dirigida aos associados é de extrema importância. Deve ser efectuada de modo a permitir a participação do maior número possível de associados o que só sucederá se, com transparência, comunicar a todos, com a antecedência imposta nos estatutos, da data da sua realização, mas, também, do local e modo de realização.
IX - No caso de alteração da forma de realização da assembleia, deve ser observada o mesmo formalismo imposto para a convocatória original. Recebida a convocatória a comunicar a realização de uma assembleia geral em formato presencial, não se pode considerar regularmente convocado o associado se, três dias antes, a instituição altera o modo de funcionamento dessa assembleia para formato on line.
X - Na situação pandémica, não é indiferente o modo de realização da assembleia pois, não é a mesma a predisposição dos associados para a realização de uma assembleia geral em modo on line ou em modo presencial.
XI - A situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19, não foi uma novidade com a qual a ré tivesse sido surpreendida em 21 de Setembro de 2021. Não actuou a ré com a diligência que lhe era imposta ao agendar a assembleia sem tomar em consideração a situação epidemiológica que era vivida e sem aguardar as orientações/instruções da DGS.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1556/22.2T8MTS.P1

Acordam os Juízes da 5.ª Secção (3ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto, sendo
Relatora: Anabela Morais;
1.º Adjunto: Jorge Martins Ribeiro e
2.ª Adjunta: Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha

I_ Relatório
AA, residente na Travessa ..., ..., ... Maia, instaurou a presente acção comum contra Lar ... – Instituição Particular de Solidariedade Social, com sede na Rua ..., ... ..., apartado ..., ... ..., pedindo a anulação das deliberações tomadas na assembleia geral ordinária da ré, realizada em 25 de Setembro de 2021.
Para tanto alegou, em síntese, que:
- enquanto sócia da instituição, não foi convocada para a assembleia geral, assim como não o foram inúmeros outros associados que se viram impedidos de nela participar e exercer o seu direito de voto;
- teve conhecimento, em momento posterior, da assembleia e, não tendo tido a possibilidade de participar na mesma, à semelhança de outros 2508 (dois mil e quinhentos e oito) associados, tal facto invalida as deliberações tomadas;
- a ré alterou o meio de realização da assembleia geral, em 22 de Setembro de 2021, ou seja, três dias antes da data designada decidiu que essa assembleia geral iria decorrer de forma virtual para os membros externos e, por isso, a estes só era possível a participação à distância, por meios telemáticos, não tendo disso avisado todos os associados, nomeadamente aqueles cuja convocatória havia sido feita por aviso postal, onde se insere a autora;
- a tomada de decisão da ré, no dia 22 de Setembro, sem ter avisado 2508 associados, excluiu desde logo a participação dos mesmos, na assembleia realizada no dia 25 de Setembro;
- num universo total de cerca de 3700 associados, excluir 2508 de nela participar implica colocar 2/3 dos sócios da ré fora da participação de uma assembleia geral onde se discutem entre outros assuntos, a permissão de a Direcção alinear 14 imóveis, sitos no grande Porto, com um valor estimado de cinco (5) milhões de euros e, ainda, um aumento das remunerações dos directores da instituição;
- a transparência exige uma participação mais ampla possível dos associados o que só acontecerá se todos forem avisados da mesma e das condições da sua realização atempadamente, como o exige os Estatutos, para que possam preparar-se para a participação com as condicionantes impostas, não sendo isso o que sucedeu, optando a ré por excluir da assembleia geral todos os associados que eram avisados por carta/ aviso postal onde se insere a autora.
- violado o disposto no artigo 49º dos Estatutos, viu-se impedida de deliberar e exercer o seu direito de voto na referida assembleia, consagrado no artigo 16º dos Estatutos, bem como impediu o exercício desses direitos aos demais associados não avisados e que quisessem participar;
- as deliberações tomadas na referida assembleia são inválidas, nos termos do artigo 56º dos Estatutos.
- participaram, na Assembleia geral, 77 (setenta e sete) associados que votaram as deliberações;
- a autorização para alienação dos inúmeros prédios identificados no ponto 5 da ordem de trabalhos, exige a participação do maior número possível de associados o que só ocorrerá se todos souberem antecipadamente e nos períodos estatutariamente definidos, o modo de participar na Assembleia o que manifestamente não ocorreu.
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Citada, a apresentou contestação, invocando que a autora não cumpriu o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir.
Alegou, em síntese, que:
- a reunião de 25 de Setembro foi convocada nos exactos termos do disposto no artigo 49.º dos Estatutos: no dia 10 de Setembro de 2021, foram expedidos os necessários avisos com o teor da convocatória, por carta, para 2508 sócios, incluindo a autora, tendo a convocatória sido publicada no sítio da internet institucional da ré, antes ainda do dia 10 de Setembro e aí permaneceu mesmo após a reunião; e o aviso convocatório foi afixado nos locais de acesso ao público das instalações;
- no dia 20 de Setembro de 2021, recebeu da Unidade de Saúde Pública de Matosinhos a comunicação por correio electrónico, com as instruções necessárias para o funcionamento da reunião, atraso que não lhe é imputável por terem sido por si solicitadas, em 26 de Agosto;
- a data em que foram prestadas tais informações, pela DGS, inviabilizou que fosse expedido aviso por correio postal, tendo comunicado, imediatamente, a alteração aos sócios cuja convocatória é efectuada por correio electrónico, por essa mesma via, avisando de que poderiam participar por videoconferência, fornecendo, nessa comunicação, as indicações para, no dia da reunião, procederem ao necessário acesso; os sócios trabalhadores foram informados da alteração e foram-lhes fornecidas as indicações para aceder à assembleia, por videoconferência; os serviços da portaria foram instruídos para que, no próprio dia da reunião, fossem dadas iguais informações e indicações aos sócios que, porventura, comparecessem para participar;
- a ordem de trabalhos da reunião não contemplava qualquer “aumento” de remunerações dos Directores, nem tal foi deliberado;
- foram quatorze os imóveis cuja autorização para venda foi proposta que constituem uma pequena parte do acervo patrimonial da instituição;
- todas as propostas foram aprovadas por unanimidade, salvo a do ponto 6, aprovada por maioria, mas sem votos contra e apenas três abstenções, e todas tiveram a aprovação do Conselho Fiscal, pelo que, razão tivesse a autora, o seu voto não teria a virtualidade de alterar o que quer que fosse;
- a autora já foi trabalhadora da ré e manteve sempre uma relação de grande conflitualidade, bem expressa no relatório da sentença que foi proferida na acção que com o nº 175/07.4TTMAI, correu pelo Tribunal do Trabalho da Maia, no âmbito da qual foi julgada procedente a sanção de despedimento com justa causa aplicada, não sendo altruístas ou desinteressados os motivos daquela para intentar a presente acção;
- a alienação dos imóveis é economicamente vantajoso e visa acautelar os interesses da instituição e dos utentes, já que os mesmos se encontram degradados, com coimas municipais em virtude do seu mau estado de conservação e com problemas relativos aos respectivos arrendatários;
- à data da convocatória, a autora não tinha, ainda, procedido ao pagamento de nenhuma das quotas, já então vencidas, relativas a todos os meses de 2020 e de Janeiro a Setembro de 2021, tendo procedido ao pagamento das primeiras, em 12 de Novembro de 2021, e ao das segundas, em 2 de Dezembro do mesmo ano, o que, em todo o caso, inviabilizaria a sua participação na reunião aqui em causa.
Conclui, peticionando a improcedência do pedido.
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Em 12/9/2023, foi proferido o seguinte despacho:
A ré, na sua contestação, suscita a exceção de “causa de pedir inexistente” ou “omissão de factos essenciais”, por a autora não identificar que “muitos outros sócios” não terão recebido a convocatória e que “outros sócios” só a terão recebido dois ou três dias antes da data da assembleia geral.
Notifique a autora para querendo, em 10 dias, responder a esta exceção, ao abrigo do princípio do contraditório, previsto no art. 3º nº 3 do Código de Processo Civil, identificando em concreto os sócios que não receberem a convocatória e os sócios que apenas a receberam 2 ou 3 dias antes da data agendada.
Desde já se adverte a autora que caso opte por não responder nesta sede, fica precludida a possibilidade de lhe responder em momento posterior”.
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A Autora apresentou requerimento, em 26/9/2023, no qual refere que a ré podia ter respeitado na íntegra as regras estatutárias e democráticas e, ao mesmo tempo, respeitado a imposição excepcional e súbita da DGS, bastando-lhe para tal que tivesse dado sem efeito a reunião agendada ou retirado à mesma o caracter deliberativo e convocado nova assembleia com a mesma ordem de trabalhos, respeitando os prazos previstos estatutariamente.
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Sobre o requerimento apresentado pela autora, foi proferido despacho, com o seguinte teor:
Notificada a autora para responder à exceção invocada pela ré e concretizar os sócios que não receberam a convocatória ou a receberam com 2 ou 3 dias de antecedência, vem a mesma apresentar requerimento onde responde a tal matéria, mas claramente não se cinge à mesma.
Aproveita a autora para fazer considerações sobre o teor da contestação, e reiterar matéria já por si alegada na petição inicial, nomeadamente o alegado em 1º a 16º, 19º a 22º do requerimento.
O que não é legalmente admissível.
Deste modo, considero não escrita toda a matéria de tal requerimento em 1º a 16º, 19º a 22º, aceitando-se os demais.
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Foi proferido despacho saneador, com identificação do objecto do litígio e selecção dos temas da prova.
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Realizou-se audiência final com a observância do formalismo legal.
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Após julgamento foi proferida sentença, tendo o Tribunal da Primeira Instância decidido:
“Termos em que julgo a presente ação procedente por provada e, em consequência, declaro anuladas as deliberações tomadas na assembleia geral ordinária da ré realizada em 25 de setembro de 2021.
Não condeno nenhuma das partes como litigante de má fé.
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Custas: Custas a cargo da ré.
Notifique.
Registe”.
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Não se conformando com a sentença, dela apelou a Ré, formulando as seguintes conclusões:
“1 Na reapreciação da prova, o Tribunal da Relação não está limitado aos meios de prova indicados pelo apelante, nas alegações, ou pelo apelado, nas contra-alegações, podendo e devendo, ao abrigo do artigo 662.º, n.º 1, do CPC, reapreciar não só os meios de prova indicados como aqueles que se mostrem acessíveis. (vide Ac. STJ, de 04/07/2019, 34352/15.3T8LSB.L1.S1).
2) Resulta do artigo 6.º dos Estatutos que regem a vida da Instituição “Lar ...”, juntos aos autos com a petição, como documento n.º 3 que: “(…) Os sócios distribuem-se pelas categorias seguintes: a) Fundadores; b) Efetivos; c) menores; d) beneméritos; e) de mérito e f) Honorários. (…)”.
3) No artigo 8.º dos Estatutos, vêm aí definidos quem são concretamente os sócios efetivos, designadamente, “(…)São sócios efetivos todas as pessoas singulares com mais de dezoito anos de idade, como tal admitidas pela direção, que paguem uma quota mensal mínima no montante fixado pela Assembleia Geral.(…)”.
4) Na secção II dos Estatutos, onde estão consagrados os direitos e deveres dos sócios, designadamente no artigo 16.º, mais precisamente no seu n.º 1, al. b) resulta que “(…)São direitos dos sócios efetivos: (…)b) Intervir e votar nas reuniões da Assembleia Geral, decorridos que sejam seis meses sobre a data da sua admissão, exceto em deliberações de natureza eleitoral, em que é exigido que estejam decorrido um ano sobre a data da sua admissão. (…)”.
5) Acresce que, no artigo 18.º, al.i) está consagrado que: “(…)É dever dos sócios contribuir para a realização dos fins da instituição por meio de quotas, donativos ou serviços, nomeadamente:(…) i) Efetuar, dentro dos prazos estabelecidos, o pagamento das quotas e de outras contribuições obrigatórias(…)”.
6) Ora, conforme resulta do artigo 19.º destes estatutos, por motivos de força maior, a pedido de qualquer sócio, a direção, pode decidir pela suspensão temporária do pagamento da quotização, sendo que,
7) A suspensão que tenha sido requerida torna não exigível a obrigação de pagamento de quotas pelo período de tempo em que decorrer o motivo que determinou a suspensão do pagamento. Porém,
8) O mesmo artigo 19.º, n.º 6 dos Estatutos estabelece que, durante o período de suspensão da obrigação de pagamento de quotas, o sócio que suspenda o pagamento das quotas não poderá usufruir dos direitos preceituados nas alíneas b) a e) do n.º 1 do artigo 16.º dos estatutos, ou seja, não poderá designadamente, o que no caso sub judice interessa analisar, intervir e votar nas reuniões da Assembleia geral.
9) Se estas restrições são aplicáveis aqueles sócios que estão dispensados de pagamento por decisão da direção, por maioria de razão, serão estas mesmas restrições aplicáveis aos sócios que, por razões estranhas à direção, estão em pleno incumprimento na sua obrigação de pagamento de quotas, como era o caso da aqui Autora nos presentes autos.
10) Resultou dos factos provados na sentença de que ora se recorre, designadamente dos factos identificados com os n.ºs 42 e 43, que à data da convocatória e da assembleia geral de 25/09/2021, a Autora, ora recorrida, tinha quotas em dívida, vencidas, relativas a todos os meses de 2020 e de janeiro a setembro de 2021, conforme documento 15 junto com a contestação, tendo procedido ao pagamento das primeiras em 12 de novembro de 2021 e ao pagamento das segundas em 2 de dezembro do mesmo ano (factos provados 42 e 43 da sentença recorrida).
11) O tribunal a quo ao interpretar na sua motivação de direito, foi no sentido que mesmo que a recorrida não pudesse votar, por não ter as quotas em dia, não se lhe poderia coartar o direito de assistir e tomar conhecimento de tudo quanto foi discutido. E, por isso mesmo,
12) Entendeu o Tribunal cuja decisão ora se recorre que a recorrida é parte legítima para a presente demanda.
13) Esta conclusão do Tribunal a quo colide em absoluto com a prova que foi efetuada em sede de audiência de julgamento, designadamente pelo depoimento da testemunha BB, onde o próprio Tribunal se sustenta.
14) A própria interpretação efetuada por este tribunal vai contra a própria lei especial que aprova o estatuto das Instituições Particulares de solidariedade social e, consequentemente, o que está também estipulado nos estatutos que regem a vida da instituição, pondo assim em causa o próprio sentido da lei e subvertendo todo o sistema no que concerne à legitimidade ativa das partes ad substantiam.
15) Resulta dos estatutos da instituição que é dever dos sócios contribuir para a realização dos fins da instituição por meio de pagamento das suas respetivas quotas, dentro dos prazos estabelecidos e, mediante o adequado cumprimento desse dever, poderão então intervir e votar nas reuniões da assembleia geral.
16) Porém resultou provado e foi dado por assente, que a recorrida, não cumpriu os seus deveres de pagamento dentro dos referidos prazos.
17) Também ficou plenamente demonstrado em sede de audiência de discussão e julgamento que a recorrida não podia efetuar o pagamento das quotas no dia da assembleia geral.
18) Na verdade, ao contrário do que refere agora o Tribunal a quo, resultou do depoimento gravado da testemunha BB, mais precisamente do ponto 13:03 ao 16:00 do seu depoimento que, naquela assembleia, a ora recorrida só podia ter pago até à véspera mas nunca o poderia ter feito no próprio dia e, como tal, não foi pelo facto de se ter impedido que terceiros externos tivessem acesso às instalações naquele dia que, de algum modo, se impediu a recorrida de ter pago as quotas que estavam em atraso.
19) Resultou bem claro da prova efetuada que as quotas não podiam ser pagas no próprio dia porquanto, como era regra, as assembleias gerais sempre foram marcadas para o sábado e nesse dia, a tesouraria, não estava disponível para receber as quotas dos sócios pois o funcionário só lá estava para verificar junto do programa informático, se os sócios tinham, ou não tinham, as quotas em dia para efeitos de puderem intervir na Assembleia.
20) O tribunal a quo sustentou a sua posição e a sua motivação de direito numa premissa errada, erro esse que é substancial para apreciação da decisão na causa.
21) Ao contrário da conclusão retirada pelo tribunal a quo, tem de ser dado por assente que a Recorrida, na data da assembleia geral de 25/09/2021 não tinha cumprido as suas obrigações de sócia efetiva nem tinha como efetuar o pagamento das quotas que se encontravam em atraso e, consequentemente, em dívida, para poder assim exercer as suas prerrogativas enquanto associada da instituição.
22) Deste facto, e ao contrário do que veio a concluir o tribunal a quo, resulta dos próprios estatutos da instituição “ Lar ...”, que a Autora estava impedida de participar e de votar na Assembleia geral porquanto, para poder exercer tal direito era necessário que tivesse efetuado, em devido tempo, o adequado cumprimento à sua obrigação de pagamento das quotas que se encontravam em dívida e cujo pagamento só foi efetuado em 12 de novembro de 2021 relativamente às quotas do ano de 2020 e em 2 de dezembro 2021 relativamente às quotas do ano de 2021.
23) Por isso mesmo, a ora recorrida, é efetivamente parte ilegítima nos presentes autos porquanto não tem “legitimidade substantiva para arguir a anulabilidade das deliberações tomadas na assembleia-geral da instituição “Lar ...”, aqui recorrente, porquanto são os próprios estatutos que assim o definiram e cuja lei especial a que os Estatutos necessariamente obedecem, também não impede que seja colocada tal restrição ao sócio que não paga as quotas que lhe são devidas.
24) tendo em atenção o disposto designadamente no seu n.º 4 do artigo 55.º do referido Decreto-Lei 119/83, de 25/02, verificamos que os associados apenas não podem ser limitados nos seus direitos por critérios que contrariem o disposto no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição.
25) Assim, relativamente aos associados das IPSS, podem existir critérios de limitação ao exercício dos respetivos direitos dos associados desde que, os referidos critérios não se sustentem em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, conforme preceitua o referido artigo 13.º da Lei Fundamental.
26) A restrição que aqui se coloca no caso sub judice prende-se unicamente com o facto de que um associado que não tenha pago as suas quotas em devido tempo, quando o poderia ter feito, fica impedido pelos respetivos estatutos, de poder participar e votar na assembleia geral da instituição.
27) Resulta igualmente do artigo 54.º do referido Decreto-Lei 119/83, de 25/02 que nos estatutos das associações devem constar, para além das matérias referidas nos artigos 10.º e 53.º, as condições de admissão e saída dos associados, os seus direitos e obrigações e as sanções pelo não cumprimento dessas obrigações.
28) A lei especial, conforme supra se demonstra, não impede que se coloquem restrições desde que, exista um critério que não viole a lei fundamental, bem como,
29) Estabelece claramente que deverão ser os estatutos a prever as sanções que se poderão colocar aos associados que não cumpram as suas obrigações, designadamente o pagamento das quotas a que estão vinculados.
30) Ao contrário do que veio aqui o tribunal a quo decidir, a recorrida para além de não ter pago as quotas de véspera, também não podia pagar as quotas no próprio dia conforme resultou da prova efetuada. Por isso mesmo,
31) A recorrida não podia de todo, assistir ou de algum modo intervir, na assembleia geral de onde resultaram as deliberações que veio impugnar porquanto, disso mesmo estava impedida pelos próprios estatutos, sendo esta uma sanção estatutariamente estabelecida pela falta de cumprimento daquela obrigação de pagamento de quotas por parte dos associados.
32) A sentença recorrida, confunde legitimidade ad causam (saber se tem interesse direto para demandar, ut 26.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) com legitimidade substantiva (saber se tem efetivo direito ao peticionado).
33) O tribunal a quo, não podia decidir que a recorrida, enquanto associada, e apesar de não ter pago as quotas como devia, tinha o pleno direito de utilizar dos meios judiciais de impugnação das deliberações tomadas nas Assembleias gerais, considerando-o assim como associado para todos os efeitos do artigo 178.º do Código Civil.
34) O artigo 178.º, n.º 1 do Código Civil confere a qualquer associado que não tenha votado a deliberação o direito de arguir a sua anulabilidade, contudo, em respeito pelo que resulta dos estatutos da instituição, só terão legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece (art. 287, n.º 1 do Código Civil).
35) “(…)Não basta ter interesse na anulação para legitimar a intervenção da parte que o invoca…exige-se que seja a pessoa no interesse do qual a lei estabelece a anulabilidade. (…)” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume 1 – 4.ª edição – Pág. 264).
36) Conforme resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2-12-2008, Secção Cível, publicada na CJ, Ano XVI, TOMO III/2008, Pág..165 a 169 - “(…) A deliberação tomada pela assembleia constitui o instrumento que exprime a vontade social através dos seus sócios (CC, A Formação das Deliberações Sociais, Assembleia Geral das Sociedades Anónimas, Pagina 80). Como assim, só os sócios efetivos, portadores de direitos e deveres na formação de vontade do coletivo da associação, podem arguir, por este ou aquele motivo, a anulabilidade das deliberações tomadas. (…) Perfeitamente certa, pois, a conclusão que chegou a Relação do Porto a respeito da interpretação a dar ao já referido n.º 1 do artigo 178.º do Código Civil: a restrição imposta quer apenas traduzir a ideia de que a anulabilidade só pode ser arguida por aqueles que podiam ter votado e, apesar disso, não votaram. (sublinhado nosso)(…)Decisivo aqui é o direito de voto. Se não têm direito de voto (…) com que bulas teriam eles, malgré tout, direito a pedir a anulabilidade de deliberações que não tomaram? Não pode ser!(…)Só os sócios (verdadeiros, os efetivos, os que podem votar) que estiveram ausentes, por um ou outro motivo, é que podem arguir a anulabilidade das deliberações tomadas em assembleia da associação. A própria letra, mas sobretudo o seu espírito e a unidade do sistema impõem a leitura do artigo 178.º, n.º 1 do Código Civil, tal como aqui preconizamos. Admitir o contrário, (…) seria subverter todo o sistema. Não o consentiremos.”
37) Ao contrário do que veio o Tribunal a quo decidir e sustentar, há efetivamente uma ilegitimidade da Autora, ora recorrida, para intentar a impugnação da deliberação assumida em Assembleia Geral de 25/09/2021 porquanto não estava investida da sua legitimidade ad substantiam.
38) A recorrida associada, de acordo com os estatutos, face ao seu incumprimento no pagamento das suas quotas, tinha na data de 25 de setembro de 2021 perdido o seu direito de participar na assembleia e de poder exercer o seu direito de voto naquela assembleia e, como tal, não se lhe poderia reconhecer o direito a vir impugnar uma deliberação na qual nunca poderia ter intervindo.
39) Permitir-se esta impugnação nos termos em que aqui foi decidido sempre se manifestaria como uma verdadeira subversão do sistema e, por isso mesmo, sempre estaríamos aqui perante um manifesto abuso de direito nos termos configurados pelo artigo 334.º do Código Civil.
40) O exercício de direitos sociais por parte dos associados tem de estar preenchido quando os mesmos vêm invocar a sua legitimidade enquanto sócios ou associados e, no caso sub judice, ao contrário do alegado pela recorrida na sua petição inicial, ela não tinha efetivamente preenchidas tais condições, não tinha as suas quotas em dia pois não estavam pagas na data em que ocorreu a referida Assembleia Geral de 25/09/2021.
41) Conforme refere o artigo 47.º dos estatutos, a Assembleia é constituída por todos os sócios que estejam em pleno gozo dos seus direitos. Isto é, têm de ter mais de 18 anos, a sua quota mensal paga conforme resulta do artigo 8.º, sendo que têm de efetuar o pagamento das respetivas quotas no prazo estabelecido- artigo 18.º, al. i) dos Estatutos.
42) A Recorrida, conforme aliás ficou assente e provado como factos 42 e 43, não diligenciou pelo pagamento das suas quotas pois, conforme resultou do doc. 15 junto com a contestação e confirmado pelos depoimentos das testemunhas DD e BB, a mesma só pagou as quotas de 2020 em 12/11/2021, as quotas de 2021 em 02/12/2021 e as 2022 a 05/05/2021.
43) A Recorrida nunca poderia pagar as quotas em atraso no próprio dia junto dos serviços da secretaria pois estes só funcionavam para verificar se os pagamentos tinham sido feitos ou não!
44) A Recorrida não revestia o carácter de associado que lhe permitisse participar naquela assembleia e, por inerência, não tinha assim o interesse social para poder de algum modo litigar judicialmente como parte contra aquela deliberação, pelo que estamos aqui perante uma ilegitimidade insuprível e como tal a decisão proferida pelo Tribunal a quo nunca poderia ter sido aquela que proferiu e, consequentemente a ação tinha de ser necessariamente julgada improcedente.
Acresce que,
45) O vício que vinha invocado pela recorrida é a irregularidade da convocatória da Assembleia geral ordinária, mais concretamente a sua inexistência.
46) As normas com campo de aplicação extensíveis à recorrente na matéria da convocação da assembleia não resultam do Código Civil, como entendeu o Tribunal a quo, mas, outrossim, do Decreto-Lei 119/83, de 25/02 que aprova o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social e que, por se tratar de lei especial, prevalece sobre a lei geral por força do artigo 7.º n.º 3 do Código Civil.
47) Ficou demonstrado que todos os formalismos de convocatória da Assembleia cuja deliberação foi impugnada foram deviamente cumpridos e respeitados, designadamente quanto aos prazos e teor da convocatória nos precisos termos estabelecidos pelo artigo 60.º do referido DL 119/83, de 25/02.
48) Conforme se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de maio de 2003, processo n.º 03B801. (embora a propósito de invalidade de deliberação de sociedade comercial): «O que não pode é a reunião fazer-se de forma oculta, ou relativamente secreta, e de surpresa, porque neutraliza o interesse público de ordem associativa reclamado pelos objetivos da própria reunião, pelo interesse dos sócios […], credores, trabalhadores, fornecedores, entidades financiadoras, órgãos de administração e de fiscalização social da pessoa jurídica sociedade (de que a assembleia é outro dos órgãos); e atinge o próprio interesse público do Estado no bom funcionamento das sociedades comerciais que constam dos seus Registos (artigos 3° e 15° do Código de Registo Comercial). A convocação, na forma, conteúdo e publicidade que ficaram indicadas explica-se por razões de ordem publica e de proteção dos interesses dos credores que a própria vontade unânime dos sócios não pode superar, (alínea d), do artigo 56°) sobretudo quando os objetivos da reunião obrigatória da assembleia são indicados no artigo 376° […],)) (negrito e sublinhado nossos).
49) Estão, pois, subjacentes interesses supra individuais.
50) A anulabilidade ali plasmada impacta com os direitos de participar na assembleia, de exercer a palavra acerca das propostas em debate e de exercício do direito de voto do membro não convocado, mas também contende - conforme se retira de PEDRO MAIA, no seu Invalidade de deliberação social por vício de procedimento, consulta online em portal.oa.pt/upl/%7Be3f23683-db21-47da-a52f-5763b5cd061f%7D.pdf(consultado em 06/09/2023), p, 718., embora a propósito de sociedades comerciais, mas cujos argumentos são transponíveis para as associações e as instituições de solidariedade social -, com os direitos dos demais membros/associados e da própria instituição, na medida em que alarga o debate das questões, concretizando o chamado «método de assembleia» e permite o verdadeiro cumprimento da colegialidade, em contestação a decisão (singular).
51) Assim, no que respeita à apreciação da regular convocatória da Recorrida para a assembleia geral ordinária de 25 de setembro de 2021 resulta da sentença proferida, o tribunal a quo verificou e confirmou que os formalismos legais e estatutários foram cumpridos pela recorrente, porquanto:
- afixou avisos contendo todas as informações sobre a mesma,
nas suas instalações;
- publicou a convocatória online, no seu site oficial;
- remeteu 2508 convocatórias por correio postal (carta), uma das quais para a recorrida:
- remeteu a convocatória por email para os endereços dos membros que os facultaram.
52) A recorrida não logrou provar que não recebeu a carta/convocatória, nem logrou provar que outros sócios não a receberam.
53) O Tribunal a quo apurou e verificou, como o demonstram os factos provados com os números 4 e 5, a recorrente cumpriu a lei e os estatutos.
54) A tal acresce ainda que o envio das convocatórias individuais (carta ou email) foi acompanhada da respetiva publicitação online e nas instalações físicas da recorrente, facto também dados como provados com os números 6 e 7, pelo que ficou assente para o tribunal a quo que foram cumpridos os pressupostos formais.
55) Concluiu-se assim que, relativamente à primeira convocatória da assembleia, não se verifica a omissão/irregularidade apontada pela recorrida.
56) Como tal, para todos os efeitos, a Autora, ora recorrida, foi em devido prazo e com a devida antecedência, regularmente convocada para a assembleia.
57) A Recorrida, na sua petição inicial, conforme resulta do artigo 6.º daquele articulado, invoca simplesmente uma absoluta falta de convocatória da Recorrente, que, conforme ficou assente perante o Tribunal a quo, não se verificou.
58) Sucedeu, que houve uma alteração ao modo de realização da assembleia, que não foi comunicada aos membros a convocar por correio tradicional e, em concreto, à recorrida. Foi-o apenas online (sítio e Facebook), e por email., mas só para os membros que o tivessem facultado para esses fins, no entanto, em cumprimento do princípio da aquisição processual (artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil), sempre teria o Tribunal de apreciar tal facto.
59) Na sentença proferida, nesta questão em concreto, sustenta a decisão que: “(…) É certo que há que interpretar a conduta omissiva da ré em termos contextualizados e de acordo com as regras da razoabilidade e bom senso. Afigura-se inequívoco que a ré não dispunha de tempo útil para redigir, imprimir, remeter à tipografia para dobragem, receber para encerrar em envelope, expedir e serem entregues outras tantas 2508 cartas. E, ainda que a ré o tivesse feito, seria impossível ter o efeito pretendido em tempo útil. É um facto público o tempo que uma carta demora a ser entregue aos destinatários pelos CTT: não se faz de um dia para o outro. Por outro lado, não esquece o Tribunal que a alteração da assembleia de presencial para online não foi unilateralmente decidida pela ré, mas imposta pela DGS, por força das restrições que, à data vigoravam no país, decorrente da pandemia que assolava o país. Ou seja, o motivo da alteração foi alheio e externo à ré. Acresce que, à data, eram amplamente conhecidas e frequentemente divulgadas na comunicação social as restrições que constantemente surgiam em eventos com várias pessoas e muito em especial em eventos com a envergadura da assembleia em apreço: com mais de dois milhares de pessoas, alguns dos quais idosos. Aqui chegados, importa concluir que, de facto, a alteração da convocatória não observou o formalismo legalmente imposto para as convocatórias – embora a convocatória propriamente dita tenha sido regularmente feita –, o que a enferma de um vício, ainda que o motivo para a alteração não lhe tenha sido imputável.”
60) A verdade, tendo em atenção os tempos que vivemos, designadamente naquelas datas de 2020 e 2021, muito especialmente a pandemia que assolou o país e o mundo - e que causou essa alteração, alheia à recorrente, a verdade é que sobre os cidadãos passou a impender um dever acrescido de informação e atualização no que respeitava às concentrações de pessoas, designadamente em espaços fechados.
61) Na verdade, foram amplamente conhecidas as restrições que constantemente foram sendo colocadas em eventos com várias pessoas e muito em especial em eventos com a envergadura da assembleia em apreço- com bem mais de dois milhares de pessoas, alguns dos quais idosos -e que demandam do cidadão mediano especiais cautelas e atenções, sendo, de resto, já habitual que os mesmos decorriam online e isso era plenamente de conhecimento público e alvo de sistemática análise e discussão em todos os meios de comunicação social.
62) A própria lei teve de se adaptar às circunstâncias, plasmando um prazo adicional para a realização das assembleias gerais legalmente exigidas (como é o caso das assembleias de aprovação de contas), e permitindo a sua realização pela via online - vide o Decreto-Lei n.º22-A/2◊21, de 17 de março, que alterou o Decreto-Lei n.º l0-A/2020, de 13 de março, concretamente (para o que ora interessa) o respetivo artigo 18.º.
63) A recorrida, insere-se no grupo de pessoas que, apesar de ter sido convocada para a assembleia ordinária que se iria realizar no dia 25/09/2021 (facto provado n.º 21), não terá recebido a informação de alteração porquanto essa foi disponibilizada via digital e, conforme
ficou demonstrado e assente em tribunal, era impossível à recorrente avisar os associados em tempo útil pelo correio (factos provados 26, 27 e 28).
64) Contudo, desta apreciação dos factos, mal andou o tribunal a quo nas suas conclusões e apreciações pois, se é certo que a Recorrida não tinha como receber a informação quanto à alteração da forma de realização da assembleia, não é menos certo que, sendo devidamente efetuada a análise crítica dos factos provados a 5, 8, 21 e 22, deveria ter sido suprimida a alínea d) dos factos não provados – “A autora não compareceu à assembleia porque não quis”, pois,
65) Efetuada a devida e adequada análise crítica da prova realizada resulta efetivamente e deveria constar como facto provado que – A autora não compareceu na assembleia porque não quis porquanto, apesar de convocada para a assembleia não diligenciou para comparecer, nem agiu com a diligência devida para tratar de cumprir com as obrigações que deveria ter tratado.
66) Resulta da prova documental e da que foi ouvida em tribunal que a assembleia ordinária realizada a 25/09/2021 já havia sido marcada em julho de 2021 e que já havia sido adiada por questões de imposição colocadas pela Direção Geral de Saúde, como aliás era normal naquela altura em muitas instituições e sociedade comerciais que, face à pandemia, viram as suas assembleias sistematicamente adiadas e isso mesmo era de conhecimento público.
67) Se a Recorrida, efetivamente pretendia participar na aludida assembleia, não diligenciou pelo cumprimento das suas obrigações para participar em Julho de 2021, para a qual também fora convocada, como também continuou sem diligenciar pelo cumprimento das suas obrigações para participar na assembleia de setembro de 2021 e, apesar disso, veio arrogar-se nos presentes autos como se o tivesse feito.
68) A verdade, conforme resultou dos factos provados, a recorrida foi devidamente convocada e numa efetiva análise critica da prova realizada o tribunal a quo, em substituição do ponto 8 dos factos provados, deveria constar um ponto 8 nos factos provados com o seguinte teor: a Autora foi convocada para a assembleia Geral em devido tempo e teve conhecimento da realização da mesma com a devida e adequada antecedência.
69) Consequentemente, se a Recorrida se tivesse sido medianamente diligente, e se efetivamente se tivesse deslocado à instituição para participar na assembleia como fizeram outros associados, tomaria então conhecimento que a mesma se realizaria pela forma virtual.
70) O que não fez, também, unicamente por leveza sua, imputável a si mesma.
71) Mesmo que assim se não entendesse, salvo o devido respeito, tendo o tribunal dado por assente que a convocatória da recorrida foi efetuada (facto provado n.º 21); e que a recorrida, tendo sido trabalhadora do Lar, tem contactos com outros sócios, com quem comenta a ocorrência das assembleias (facto provado n.º 22); que as instruções fornecidas pela DGS para a realização da referida assembleia inviabilizou que fosse expedida carta/aviso pelo correio para dar conta da alteração aos sócios que foram convocados por carta (facto provado n.º 26); que o procedimento de impressão de mais de duas mil e quinhentas cartas, colocação em envelopes e envio para expedição demora cerca de 3 dias, pelo que nunca chegariam ao destino em tempo útil ao conhecimento da recorrida (facto provado n.º 27); que a recorrente enviou email a avisar os sócios da alteração efetuada na convocatória, informando que poderiam participar por videoconferência e das instruções para o efeito (facto provado n.º 28), teríamos necessariamente também de retirar que a recorrida não participou na assembleia porque efetivamente não diligenciou nesse sentido porquanto, mesmo que tivesse sido impedida de participar pelos serviços de portaria (facto provado n.º 29), teria ali ficado conhecedora dos meios porque se realizaria a Assembleia e que meios tinha para eventualmente participar, não fosse, saliente-se, o facto de para isso estar impedida atenta a falta de pagamento atempado das suas quotas relativamente aos anos de 2020 e 2021.
72) Assim, temos necessariamente de concluir que, de facto, veio o tribunal a quo fazer recair sobre a recorrente todas as consequências de uma inércia que só é imputável à recorrida, conforme ficou demonstrado e provado em sede de audiência de julgamento e ficou assente na sentença pelo que, a conclusão retirada pelo Tribunal a quo é manifestamente contraditória com os factos que ficaram assentes e provados em sede de sentença.
73) E implicariam necessariamente uma outra decisão que não aquela que foi aqui proferida pelo Tribunal a quo.
FACE AO EXPOSTO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE POR DEMONSTRADO E PROVADO E EM CONSEQUÊNCIA:
- SER JULGADA PROCEDENTE A INVOCADA ILEGITIMIDADE AD SUBSTANTIAM DA RECORRIDA PARA EFEITOS DE IMPUGNAÇÃO DA DELIBERAÇÃO SOCIAL RESULTANTE DA ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA DE 25/09/2021;
SEM PRESCINDIR,
MESMO QUE ASSIM SE ENTENDESSE, O QUE SÓ POR MANIFESTA HIPÓTESE ACADÉMICA SE COLOCA A QUESTÃO,
- DEVERIA SER ALTERADA A MATÉRIA DA PROVA PRODUZIDA PELO TRIBUNAL A QUO NO SENTIDO DE ESTABELECER COMO FACTO PROVADO UM PONTO 8 COM NOVA REDAÇÃO, MAIS PRECISAMENTE, “a Autora foi convocada para a assembleia Geral em devido tempo e teve conhecimento da realização da mesma com a devida e adequada antecedência”, BEM COMO, - DEVERIA SER ACRESCENTADO UM NOVO PONTO NOS FACTOS PROVADOS COM O SEGUINTE TEOR: “A autora não compareceu na assembleia porque não quis porquanto, apesar de convocada para a assembleia não
diligenciou para comparecer, nem agiu com a diligência devida para tratar de cumprir com as obrigações que deveria ter tratado”.
*
Notificada, a Autora/recorrida apresentou resposta, pugnando pela improcedência do recurso.
Alega que “insiste a Ré numa pretensão manifestamente anti-estatutária e até um pouco nebulosa, ao insistir em validar uma Assembleia Geral onde, entre o mais, se pretende dar autorização à Direção da Instituição para alienar património, na circunstância 27 imoveis na região do grande Porto no valor (…) de cerca de 5 milhões de euros. Uma decisão desta envergadura impõe que haja uma discussão aprofundada pelos Associados da instituição, o que só poderá ocorrer em sede de Assembleia geral com a maior participação possível dos mesmos. Está provado que 2.508 associados não foram avisados da alteração da Assembleia que deixou de ser presencial e passou a ser por meios informáticos à distância. Está provado que quem quisesse participar presencialmente, cumprindo o aviso da convocatória, não o podia fazer como aconteceu com o associado EE que se deslocou a instituição para poder participar e foi-lhe negada a entrada. (…) De pouco lhe valeu ter as quotas em dia pois foi-lhe impossibilitada a participação na Assembleia e não havia tempo útil para adquirir o material informático necessário à participação pelos meios à distância, nem para obter a respetiva formação para tal”.
Sobre a alegada “falta de legitimidade da Autora”, refere que “a suspensão prevista no art. 19º e que consequentemente, impede os associados de usufruir dos direitos preceituados nas alíneas b) –e) no n.º1 do art.º 16 do regulamento, nem sequer se aplica ao caso. Na verdade, só os associados suspensos é que estão sujeitos a tal limitação. E a suspensão do associado, não é automática, pois só pode ocorrer, ou a pedido deste, ou por decisão disciplinar. Ora, no caso presente, nem a autora alguma vez requereu a sua suspensão, nem a ré alguma vez a suspendeu (…). A única limitação para intentar a ação de anulação de deliberações sociais, por um associado da respetiva associação, é o facto de ter votado favoravelmente a deliberação em causa” e “qualquer associado com quotas em atraso pode regularizar a situação até ao início da Assembleia geral. Mas, mesmo que não regularizasse a situação e tivesse possibilidade de participar na Assembleia Geral, a recorrente poderia participar na mesma unicamente estaria impedida de votar. E mantendo-se como associada sem estar suspensa, não se divisa porque razão não poderia exercer os respetivos direitos”.
Pronunciando-se sobre o instituto do abuso do direito, refere que “não tendo a recorrente, agido disciplinarmente para penalizar a autora pelo eventual incumprimento de pagamento de quotas, podendo e por ventura devendo fazê-lo, não se vê como possa agora referir que a autora, ao exercer o seu direito de impugnação de deliberação social nestas circunstâncias, abusa do direito”. Acrescenta, “Ainda assim, resulta da prova produzida, como aliás é prática corrente em todas as associações que os associados que se atrasem no pagamento de quotas, podem liquidá-las até ao início das assembleias gerais para nelas poderem votar, já que participar nas mesmas, poderão sempre, dada a sua qualidade de associados”.
Alega, por último, que a recorrente “pretender ”salvar” uma Assembleia Geral com deliberações que permitem à Direcção alienar património, nomeadamente 27 imoveis (…) avaliadas em 5 milhões de euros, alterada 3 dias antes da sua efetivação passando de um formato presencial para um formato online, à distância, para os membros externos( ponto 12 da matéria de facto assente); Quando não informou dessa alteração 2.508 associados (ponto 16 da matéria de facto assente); Quando estiveram presentes na assembleia 77 associados (ponto 18 da matéria de facto assente); Quando vedaram a entrada no espaço físico da Assembleia aos membros externos (ponto 17 a matéria de facto assente); Não se vê como possa sustentar-se e não se afigura ser a forma mais cristalina e transparente de se ponderar e decidir uma deliberação deste tipo; Para alem de se desrespeitar o disposto no artigo 47º e 49 dos Estatutos. De facto, a alteração, a três dias da sua efetivação, do modo de efetivar a Assembleia e do local da mesma, sem se cumprir o disposto no artigo 49 do Estatutos que impunha a marcação de nova data”.
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Por despacho de 19/10/2023, foi admitido o recurso.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II_ Questões a decidir
Nos termos dos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem. Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento.
Assim, perante as conclusões constantes das alegações apresentadas pela Recorrente há que apreciar as seguintes questões:
i. Impugnação da matéria de facto por referência aos seguintes factos:
- eliminação da alínea d) dos factos não provados – “A autora não compareceu à assembleia porque não quis”;
- inclusão nos factos provados que “A autora não compareceu na assembleia porque não quis porquanto, apesar de convocada para a assembleia não diligenciou para comparecer, nem agiu com a diligência devida para tratar de cumprir com as obrigações que deveria ter tratado”;
- substituição do facto ínsito no ponto 8 dos factos provados pelo seguinte facto: “A autora foi convocada para a assembleia geral em devido tempo e teve conhecimento da realização da mesma com a devida e adequada antecedência”;
- ampliação da matéria de facto, inserindo nos factos considerados provados que “na data da assembleia geral de 25/09/2021, não tinha cumprido as suas obrigações de sócia efetiva, nem tinha como efetuar o pagamento das quotas que se encontravam em atraso e, consequentemente, em dívida, para poder assim exercer as suas prerrogativas enquanto associada da instituição”.

ii. Legitimidade substantiva da autora.

iii. Irregularidade da convocatória para a assembleia geral ordinária realizada em 25 de Setembro de 2021 e, em caso afirmativo, anulação da deliberação dessa assembleia;

iv. A impugnação da deliberação, pela autora, constitui abuso do direito.
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Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III_ Fundamentação de facto
Na sentença objecto do presente recurso consta:
“Factualidade
a) Factos provados
Da prova produzida nos autos, o Tribunal considera provados os seguintes factos:
1. A autora é associada da ré desde 16 de outubro de 1996, com o nº ....
2. E foi trabalhadora da mesma pelo menos desde 1996 até maio de 2006.
3. A ré é uma instituição de solidariedade social sem fins lucrativos, que visa a prestação de assistência a pessoas, de ambos os sexos, protegendo-os na velhice, invalidez e carência económica e social e, secundariamente, também o apoio à infância e juventude, o apoio à família, o apoio à integração social e comunitária, a educação e formação profissional e o apoio socio-terapêutico, através da promoção de atividades culturais, desportivas e contacto com a natureza.
4. No dia 25 de setembro de 2021, agendada para as 09h, mas que teve início pelas 10h, realizou-se nas instalações/sede da ré, uma assembleia geral ordinária, com a seguinte ordem de trabalhos:
1. – Trinta minutos para tratar, sem votação nem deliberação, assuntos de reconhecido interesse para “Lar ...”;
2. – Discutir e votar o Relatório e as Contas de Gerência do ano de 2020 e respetivo Parecer do Conselho Fiscal;
3. – Discutir e votar o Orçamento Previsional e Programa de Ação para o ano de 2021, bem como apreciar o parecer do Conselho Fiscal;
4. – Discutir e votar a adesão de “Lar ...” à UDIPSS (União das Instituições Particulares de Solidariedade Social);
5. – Discutir e votar a autorização à Direção para a alienação dos seguintes prédios: Travessa ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia ... - Porto; Travessa ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ... - Porto; Travessa ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ... - Gondomar; Rua ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ... - Porto; Rua ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da União de freguesias ... e ... - Porto; Rua ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ... - Porto; Rua ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da União de freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ... - Porto; Rua ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e da fração A e B do prédio da Rua ..., ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., ambos da União de freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ... - Porto; Cave e R/C do prédio da Rua ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ... - Porto; Rua ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ... - Porto; Rua ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ... - Porto; Avª. ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... - fração AT, da União freguesias ... e ... - Porto; Rua ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da União de freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ... - Porto; Rua ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da freguesia ... - Porto; e Rua ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da União de freguesias ..., ... e ... - Gondomar;
6. – Discutir e votar, nos termos e dentro dos limites do disposto no n.º 3 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 119/83 de 25 de fevereiro, com a redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 172-A/2014 (Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social bem como dos artigos 30.º, n.º 2 e 60.º, n.º 1 alínea n) desta Instituição, a proposta de remuneração de membros da Direção, atento o volume de movimento financeiro e a complexidade da administração.
5. No dia 10 de setembro tinham sido enviados aos sócios os avisos com o teor da convocatória conforme descrita no facto precedente, pelas seguintes vias:
- por carta para 2508 sócios, incluindo a autora;
- por e-mail para os membros que o haviam fornecido para esse efeito;
- entregues em mão a um número não concretamente apurado de sócios, residentes ou domiciliados no Lar da ré, utentes e trabalhadores, para quem não fazia sentido efetuar a remessa postal, pois residem ou têm domicílio profissional nas instalações da instituição.
6. A convocatória, contendo o teor apurado em 4, foi publicada no sítio institucional da ré na internet antes do dia 10 de setembro.
7. O anúncio convocatório da assembleia geral foi afixado nos locais de acesso ao público das instalações da ré, com informação expressa do local, dia, hora, ordem de trabalhos e disposições estatutárias em que a convocação se fundamentava.
8. A autora teve conhecimento da realização dessa assembleia geral, em data não apurada.
9. As convocatórias a enviar por carta são precedidas de impressão nas instalações da ré, dobragem e encerramento em envelope em tipografia, retorno à ré para verificação e preenchimento de guia de expedição e posterior entrega nos correios para envio.
10. A autora nunca forneceu à ré um endereço de correio eletrónico para envio das convocatórias das reuniões da assembleia geral.
11. As deliberações constantes da ordem de trabalhos foram aprovadas e todas tiveram também a aprovação do conselho fiscal, conforme resulta da respetiva ata - documento 3 junto com a petição inicial.
12. A ré alterou o meio de realização da assembleia geral em causa no dia 22 de setembro de 2021, ou seja, três dias antes da data designada, passando de um formato presencial para um formato online para os membros externos.
13. Fê-lo na sequência de orientações que lhe foram dirigidas por parte da Direção Geral de Saúde, emanadas a 20 de setembro de 2021, para que a assembleia do dia 25 de setembro decorresse de forma virtual para os membros externos, que deveriam participar por videoconferência, à distância.
14. As orientações da Direção Geral de Saúde indicadas em 13 foram comunicadas através de uma atualização da convocatória publicitada no sítio da ré, no dia 22 de setembro de 2021 e no respetivo Facebook, e foram transmitidas, em 23 de setembro de 2021, aos membros da ré que haviam sido convocados por correio eletrónico, por essa mesma via.
15. O link para acesso virtual à assembleia geral foi comunicado aos membros da ré convocados por correio eletrónico, por essa mesma via, no dia 24/09/2021.
16. A alteração do meio de realização da assembleia não foi informada aos membros da ré cuja convocatória havia sido feita por carta, portanto a 2508 euros associados, onde se inclui nomeadamente a autora, DD, FF e GG.
17. Em cumprimento das orientações da Direção Geral de Saúde indicadas em 13, a assembleia geral decorreu por via virtual para os membros externos e de forma presencial apenas para os associados internos – dos quais, vários idosos – e para os elementos dos órgãos sociais, tendo sido vedada a entrada no espaço físico aos membros externos.
18. Estiveram presentes na assembleia geral setenta e sete sócios, dos quais quarenta e quatro fisicamente no local da reunião e trinta e três a intervir pela plataforma “Zoom”.
19. A autora não participou na assembleia, nem nela votou.
20. De acordo com o art. 49º dos Estatutos da ré:
1. As reuniões da Assembleia Geral são convocadas pelo seu Presidente ou por quem legalmente o substitua, com a antecedência mínima de quinze dias, por afixação da convocatória na sede da Instituição e por meio de aviso postal expedido para cada associado.
2. Caso a Instituição disponha de um endereço de correio eletrónico indicado pelo sócio para efeito de receção de convocatórias, a convocação por aviso postal é substituída pelo envio de correio eletrónico.
3. Independentemente das convocatórias, é dada publicidade à realização das Assembleias Gerais no sítio institucional da instituição e em aviso fixado em locais de acesso ao público nas instalações e estabelecimento da Instituição.
4. Da convocatória deve constar a indicação do local, dia, hora, ordem de trabalhos e disposições estatutárias em que se fundamenta a convocação.»
21. A carta dirigida à autora, contendo a convocatória, foi expedida pelo correio para a morada da autora, Travessa ... Maia.
22. A autora, tendo sido trabalhadora do Lar, tem contactos com outros sócios, com quem comenta a ocorrência das assembleias.
23. À data da assembleia residiam no Lar pessoas idosas, em número não apurado, pessoas fisicamente débeis e alguns infetados com o vírus sarscov-2.
24. Por isso, as regras para a realização da assembleia referidas em 13 foram impostas pela DGS.
25. E foram rececionadas pela ré pelas 13h03m do dia 20 de setembro de 2021, conforme documento 8 junto com a contestação, na sequência do pedido de solicitação de instruções formulado pela ré à DGS no dia 26 de agosto de 2021, conforme documento 8 junto com a contestação.
26. O “timing” referido em 25 inviabilizou que fosse expedida carta/aviso pelo correio para dar conta da alteração aos sócios que foram convocados por carta.
27. O procedimento de impressão de mais de duas mil e quinhentas cartas, colocação em envelopes e envio para expedição demora cerca de 3 dias, pelo que nunca chegariam ao destino em tempo útil.
28. A ré enviou email a avisar os sócios da alteração referida em 12, informando que poderiam participar por videoconferência e das instruções para o efeito.
29. Os serviços da portaria foram instruídos para não deixar entrar os sócios que não pudessem participar presencialmente.
30. Na assembleia geral de 28 de março de 2019 só haviam participado 79 sócios, conforme documento 9 junto com a contestação.
31. A situação de pandemia que se vivia no país fez com que muitos sócios não tenham querido comparecer.
32. Naquela ocasião as pessoas evitavam locais onde estivessem em contacto com muita gente.
33. E a participação por meios telemáticos não era um hábito instalado por forma a que as pessoas se sentissem incentivadas a intervir.
34. Houve sócios residentes que não puderam participar por estarem em situação de confinamento por infeção ou suspeita de infeção.
35. Outros, não confinados, preferiram recatar-se por se sentirem mais seguros.
36. Os trabalhadores que não estavam ao serviço nesse dia foram considerados abrangidos pelo regime dos associados externos, por forma a permitir o cumprimento das instruções emanadas pela DGS.
37. A ré tem inscritos em seu nome cento e trinta e três prédios (casas e terrenos), incluindo partes suscetíveis de utilização independente em prédios não constituídos em propriedade horizontal, conforme documento 10 junto com a contestação.
38. A venda de património foi igualmente deliberada nas assembleias gerais de 29 de janeiro de 2011, 17 de outubro de 2015 e 25 de março de 2017, conforme documentos 11 a 13 juntos com a contestação.
39. Trata-se de uma medida periódica tomada na gestão do património, com vista a obter proveito de imóveis sem préstimo para a instituição e a carecer de obras de conservação.
40. A ré tem pendente um processo contraordenacional junto da Câmara Municipal ..., com fixação de coima e imposição de realização de obras de conservação relativamente a um imóvel, conforme documentos juntos com a ref. 35857874.
41. A autora moveu um processo contra a ré no Tribunal do Trabalho da Maia, que correu termos sob nº 175/07.4TTMAI, ação essa que foi julgada improcedente, na medida em que se concluiu que houve justa causa para o despedimento da autora por parte da ré, conforme documento 17 junto pela ré com a contestação.
42. À data da convocatória e da assembleia geral de 25/09/2021, a autora tinha quotas em dívida, vencidas, relativas a todos os meses de 2020 e de janeiro a setembro de 2021, conforme documento 15 junto com a contestação.
43. Tendo procedido ao pagamento das primeiras em 12 de novembro de 2021 e ao pagamento das segundas em 2 de dezembro do mesmo ano, conforme documentos juntos com a contestação, no seguimento do documento anterior.
*
b) Factos não provados
Não foram provados os seguintes factos com relevo para a decisão da causa:
a) A autora não recebeu a carta contendo a convocatória para a assembleia identificada no facto provado 4.
b) A autora não foi convocada, por qualquer meio ou forma, para a assembleia.
c) Muitos outros associados não receberam as convocatórias para a assembleia geral e outros receberam a convocatória com 2 ou 3 dias de antecedência.
d) A autora não compareceu à assembleia porque não quis.
e) À data da reunião residiam no lar cerca de 200 utentes.
f) Sem prejuízo do facto 28, todos os sócios cuja convocatória foi feita por email foram imediatamente avisados da alteração referida em 12, por essa via também.
g) A autora é conhecedora dos problemas da Instituição.
h) A instituição carece de alienar património imobiliário inútil para os fins sociais e gerador de despesas avultadas.
Todos os demais factos alegados pelas partes que, quer por se tratarem de factos conclusivos, matéria de direito ou factos opinativos, nos obstemos de transcrever para a presente sentença.
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III_ Fundamentação de direito
1ª Questão:
A recorrente insurge-se quanto à decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo alegando, em síntese, que:
i. Da análise crítica dos factos provados ínsitos nos pontos 5, 8, 21 e 22, devia ter sido suprimida a alínea d) dos factos não provados – “A autora não compareceu à assembleia porque não quis” - e incluído nos factos provados “A autora não compareceu na assembleia porque não quis porquanto, apesar de convocada para a assembleia não diligenciou para comparecer, nem agiu com a diligência devida para tratar de cumprir com as obrigações que deveria ter tratado”.
ii. Em substituição do facto ínsito no ponto 8 dos factos provados devia constar: “A autora foi convocada para a assembleia geral em devido tempo e teve conhecimento da realização da mesma com a devida e adequada antecedência”.
Nos termos do artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, «Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Refere Abrantes Geraldes[1] que o sistema actual de apelação que envolva a impugnação sobre a matéria de facto exige ao impugnante, o seguinte:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considera oportunos; (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos e pendor genérico e inconsequente;(…)”.
Sobre o ónus a cargo do recorrente, na impugnação da matéria de facto, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido em 18/5/2017[2]:
As exigências que o legislador entendeu consagrar nesta matéria e que impõem ao Tribunal o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova, no actual art. 607º, nº 4, do CPC, encontra o seu contraponto na igual exigência imposta à parte Recorrente, que pretenda impugnar a decisão de facto, do respectivo ónus de impugnação, devendo o Recorrente expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo Tribunal “a quo” (...).
Destarte, ao ónus que impende sobre o Recorrente, na interposição de qualquer recurso, de apresentar a sua alegação na qual deve concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, a que se reporta o art. 639º do CPC, acresce o ónus previsto no art. 640º, estabelecido especificamente para os casos em que seja impugnada a decisão proferida pelas instâncias sobre a matéria de facto”.
Conclui o Supremo Tribunal de Justiça que “recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas…”.
Transpondo tais princípios para o caso dos autos, não se encontra cumprido o ónus de prova.
A recorrente não indicou qualquer meio de prova, concreto, que, no seu entender, determina uma decisão diversa quanto aos factos objecto de impugnação, limitando-se a remeter para a “devida e adequada análise crítica da prova realizada”.
Escrevem António Geraldes, Luís Pires de Sousa e Paulo Pimenta[3], “Nos termos do nº1, alínea b), recai sobre o apelante o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, ónus esse que atua numa dupla vertente: cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explicita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova deve conduzir a outra versão dos factos. Deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar directamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorrecto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente”.
Pelo exposto, o cumprimento do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto não pode ter-se por observado com a referência genérica à “adequada análise crítica da prova realizada”.
No que respeita ao facto ínsito no ponto 8 dos factos provados, pretende a Recorrente que seja alterada a sua redacção por forma a constar do mesmo que “A autora foi convocada para a assembleia geral em devido tempo e teve conhecimento da realização da mesma com a devida e adequada antecedência”. Em “devido tempo” e “com a adequada antecedência” são afirmações conclusivas e não factos.
Por último, pretende a Recorrente que com base nos factos provados ínsitos nos pontos 5, 8, 21 e 22, seja eliminada a alínea d) dos factos não provados – “A autora não compareceu à assembleia porque não quis” - e incluído nos factos provados “A autora não compareceu na assembleia porque não quis porquanto, apesar de convocada para a assembleia não diligenciou para comparecer, nem agiu com a diligência devida para tratar de cumprir com as obrigações que deveria ter tratado”.
Consta da decisão recorrida que “a matéria não apurada de d) a h), tendo sido alegada pela ré, não se apurou por nenhuma testemunha ter revelado conhecimento convincente sobre a mesma”.
A Recorrente não indicou qualquer meio de prova concreto que imponha uma decisão da matéria de facto de sentido diferente. Pretendendo contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo, tinha de indicar meios de prova concretos e apresentar razões objectivas para contrariar o sentido da decisão, o que não sucedeu.
Os factos constantes dos pontos 5, 8, 20 e 21, são os seguintes:
5- No dia 10 de setembro tinham sido enviados aos sócios os avisos com o teor da convocatória conforme descrita no facto precedente, pelas seguintes vias:
- por carta para 2508 sócios, incluindo a autora;
- por e-mail para os membros que o haviam fornecido para esse efeito;
- entregues em mão a um número não concretamente apurado de sócios, residentes ou domiciliados no Lar da ré, utentes e trabalhadores, para quem não fazia sentido efetuar a remessa postal, pois residem ou têm domicílio profissional nas instalações da instituição.
8. A autora teve conhecimento da realização dessa assembleia geral, em data não apurada.
21. A carta dirigida à autora, contendo a convocatória, foi expedida pelo correio para a morada da autora, Travessa ... Maia.
22. A autora, tendo sido trabalhadora do Lar, tem contactos com outros sócios, com quem comenta a ocorrência das assembleias.
Consta dos factos provados que foi expedida a carta com a convocatória para a morada da autora e qual o teor da mesma. Saber se a notificação se mostra eficaz ou não, é questão de direito. Por último, “não diligenciou para comparecer, nem agiu com a diligência devida para tratar de cumprir com as obrigações que deveria ter tratado”, constitui matéria conclusiva.
Pelo exposto, a Recorrente não impugna validamente a decisão relativa à matéria de facto.
Pretende a Recorrente que seja incluída na matéria de facto provada que a autora, “na data da assembleia geral de 25/09/2021, não tinha cumprido as suas obrigações de sócia efetiva nem tinha como efetuar o pagamento das quotas que se encontravam em atraso e, consequentemente, em dívida, para poder assim exercer as suas prerrogativas enquanto associada da instituição”.
O segmento final, proposto pela Recorrente, não constitui matéria de facto mas questão de direito a apreciar com base na factualidade provada, constando entre a matéria de facto provada que:
42. À data da convocatória e da assembleia geral de 25/09/2021, a autora tinha quotas em dívida, vencidas, relativas a todos os meses de 2020 e de janeiro a setembro de 2021, conforme documento 15 junto com a contestação.
43. Tendo procedido ao pagamento das primeiras em 12 de novembro de 2021 e ao pagamento das segundas em 2 de dezembro do mesmo ano, conforme documentos juntos com a contestação, no seguimento do documento anterior.
No que tange ao segmento “nem tinha como efetuar o pagamento das quotas que se encontravam em atraso”, constitui matéria conclusiva e não facto.
Nos termos do artigo 662º, nº1, alínea c), do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, anular a decisão recorrida, quando não constando do processo todos os elementos que, nos termos do nº1 do mesmo preceito, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.
Nada foi articulado pelas partes quanto ao modo de pagamento das quotas e funcionamento dos serviços da ré para procederem ao recebimento das quotas. Por outro lado, considerando as várias soluções de direito, é inócuo apurar se a autora tinha a oportunidade ou não de proceder ao pagamento das quotas em dívida, nem pela mesma foi alegado o propósito de efectuar tal pagamento, no dia 25 de Setembro.
Pelo exposto, incidindo a ampliação da decisão da matéria de facto sobre matéria de facto considerada indispensável, situação que, no caso, não se verifica, improcede nesta parte o recurso.
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2ª Questão
Insurge-se a Recorrente com a decisão proferida pelo Tribunal a quo que considerou a autora parte legítima, sustentando que não lhe assiste legitimidade ad substantiam para impugnar a deliberação da Assembleia Geral de 25/09/2021, o que sustenta na inexistência do direito de voto em consequência do não pagamento de quotas.
Defende, ainda, a Recorrente que o Tribunal a quoconfunde legitimidade ad causam (saber se tem interesse direto para demandar, artigo 26.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) com legitimidade substantiva (saber se tem efetivo direito ao peticionado)”.
Vejamos se assiste razão à Recorrente.
No despacho saneador, o tribunal a quo havia decidido que “As partes são legítimas”, constando da sentença recorrida:
Sobre a questão da autora não ter as quotas em dia. Este facto, efetivamente apurou-se, sabendo-se que a mesma, à data da convocatória e da assembleia geral de 25/09/2021, tinha em dívida as quotas relativas a todos os meses de 2020 e de janeiro a setembro de 2021.
E só as pagou posteriormente a 25/09/2021, portanto após a realização da assembleia.
Contudo, entende-se que, mesmo que a autora não pudesse votar, por não ter as quotas em dia, não se lhe poderia coartar o direito de assistir e tomar conhecimento de tudo quanto foi discutido.
Discorda o Tribunal de que a autora é parte ilegítima para a presente demanda por não ter as quotas em dia à data da assembleia geral.
Em primeiro lugar, poderia tê-las pago de véspera ou no próprio dia.
Em segundo lugar, caso não as pagasse, sempre poderia assistir e tomar conhecimento direto do que foi discutido e deliberado.
Assim, decidindo a segunda questão acima enunciada, entende o Tribunal que a falta de comunicação à autora e aos restantes 2507 sócios, da alteração ordenada pela DGS, inquina a regularidade da assembleia e de tudo quanto nela foi deliberado”.
A legitimidade processual, pressuposto de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa, não se confunde com a legitimidade substantiva, requisito da eventual procedência do pedido. Ao apuramento de ambas interessa, contudo, a consideração do pedido e da causa de pedir.
Na verdade, "a relação controvertida, tal como a apresenta o autor e forma o conteúdo jurídico da pretensão deste é que é - em orientação jurídica - o objecto do processo, em face do qual (e, por isso, quase sempre determinável por simples exame da petição inicial) se aferem a legitimidade e os outros pressupostos que desse objecto dependam"[4].
A "parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular"[5].
A legitimidade processual, enquanto pressuposto adjectivo para que se possa obter decisão sobre o mérito da causa, não exige a verificação da efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo autor, bastando-se com a alegação dessa titularidade.
A legitimidade substancial ou substantiva tem que ver com a efectividade da relação material, com a titularidade de um direito e deve ser aferida à luz das regras substantivas.
Sobre a questão, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 29/10/2015 [6]:
I - A legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, é de averiguar em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou; já a legitimidade material consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa».
Dispõe o artigo 177º do Código Civil que “As deliberações da assembleia geral contrárias à lei ou aos estatutos, seja pelo seu objecto, seja por virtude de irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia, são anuláveis”, estipulando o artigo 178º do Código Civil que “A anulabilidade prevista nos artigos anteriores pode ser arguida, dentro do prazo de seis meses, pelo órgão da administração ou por qualquer associado que não tenha votado a deliberação”.
Destas norma extrai-se que só os sócios portadores de direitos e deveres na formação da vontade do colectivo é que dispõem de legitimidade para arguir a anulabilidade das deliberações tomadas.
Pronunciando-se sobre o artigo 178º do Código Civil, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 8/2/2018[7], que:
“A legitimidade constitui um pressuposto processual que se exprime através da titularidade do interesse em litígio, resultando da lei que, nada se dispondo em contrário, consideram-se titulares do interesse relevante para efeitos de legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor (art. 30º, nº 3, do CPC) e sendo inegável que, para efeitos da legitimidade interessa apenas saber quem são os sujeitos da relação controvertida, pois saber se a relação existe, ou não, pertence ao mérito da ação.
Todavia, como decorre do citado normativo, saber se existe qualquer indicação da lei no sentido de indicar quem é o titular do interesse relevante para o efeito da legitimidade é ainda questão que se prende com o referido pressuposto formal.
Ora, o citado artigo 178º, nº1, parte final do Código Civil, ao estipular que as anulabilidades ali em causa podem ser arguidas “por qualquer associado que não tenha votado a deliberação” está, manifestamente, a restringir o leque dos interessados que as podem arguir, ou seja, a limitar as pessoas com legitimidade ativa para o efeito».
Ainda sobre o artigo 178º do Código Civil, pode ler-se no já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 8/2/2018, que:
«No Acórdão do STJ de 06.10.2005, pode ler-se: “Face ao disposto no art. 178º nº 1 do CC (preceito este na base do qual está o propósito relevante de obstar a que o associado se valha da "própria torpeza, impugnando deliberação que é sua" - cfr. acórdão do TRL, de 10-2-81, in CJ -81, tomo I, págs. 226 e 227), deve entender-se que o direito de arguição da anulabilidade só é defeso a associado que tenha votado favoravelmente a deliberação”, na medida em que, como ali se argumenta, citando um outro acórdão do STJ de 05.06.85, “não faria sentido que o associado que discordasse de uma deliberação, "em lugar de votar contra, tivesse de abster-se sob pena de ficar impedido de arguir a respectiva anulabilidade", assim acabando "por facilitar o vencimento de uma eventual minoria."
Isto, “na linha do previsto para a anulabilidade das deliberações dos sócios das sociedades comerciais, que reconhece ao órgão de fiscalização e ao sócio que não tenha votado favoravelmente a deliberação a indispensável legitimidade para a impugnar – cfr. art. 59º, n.º 1, in fine, do Cód. das Sociedades Comerciais” (cfr. já referido Acórdão desta Relação de 08.10.2015)».
E conclui «a expressão “não tenha votado a deliberação”, só possa significar que “não tenha expressado a sua concordância nessa deliberação”, “não tenha contribuído favoravelmente, com o seu voto, para a sua aprovação”.
Por outro lado, à ré/associação competirá, “em ordem a fundar o acerto da dedução da excepção dilatória de ilegitimidade activa”, “a alegação e prova de votação favorável, por banda do arguente da anulabilidade” (cfr. citado acórdão do STJ de 06.10.2005), o que bem se compreende se atentarmos que em causa está, como já antes se disse, a redução do leque dos interessados - todos os associados, sujeitos da relação material controvertida - que, de acordo com a regra geral enunciada no art. 30º, nº 3, do CPC, teriam legitimidade para pedir a anulação de uma deliberação da assembleia geral de uma associação.
Também na doutrina, é esta a interpretação que vem sendo defendida (Paulo Olavo da Cunha, in “Comentário ao Código Civil – Parte Geral”, pág. 387, e Pedro Maia, in “Deliberações dos Sócios”, in Estudos de Direito das Sociedades, págs. 253 e 254)”.
Ainda sobre o artigo 178º do Código Civil, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 11/10/2012:[8]
«Ora, “votar a deliberação” só pode ser entendido como tendo votado favoravelmente essa deliberação, ou seja, no sentido dessa deliberação.
“Votar” significa “aprovar algo por meio do voto”.
A votação é um processo de formação da decisão do ente colectivo, no qual os associados expressam a sua opinião por meio de um voto.
Por isso que só faz sentido excluir o sócio que haja votado favoravelmente essa deliberação, não aquele que, apesar de ter estado presente e participado na votação, haja exteriorizado, com o seu voto, uma vontade contrária à aprovação da deliberação (…).
Daí que a expressão “não tenha votado a deliberação”, só possa significar que “não tenha expressado a sua concordância nessa deliberação”, “não tenha contribuído favoravelmente, com o seu voto, para a sua aprovação”.
Neste mesmo sentido se pronunciou o S. T. J., no seu Acórdão de 5/6/1985, BMJ, 348.º-388, onde refere “face ao disposto no n.º1 do art.º 178.º do C. civil, deve entender-se que o direito de arguição da anulabilidade só é vedado a quem votou favoravelmente a deliberação” (sublinhado nosso)”.
Nem outra coisa podia ser. O art.º 9.º/3 do C. Civil, ao determinar que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, admite uma interpretação em benefício das soluções mais acertadas, e embora o legislador mande presumir que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, concede que uma formulação imperfeita acabe por ser o verdadeiro espelho das soluções acertadas. E um dos princípios fundamentais decorrentes da boa hermenêutica jurídica é justamente o de que “não pode haver interpretação que conduza a resultados injustos ou absurdos”.
Aliás, idêntica solução vem consagrada no art.º 59.º/1 do C. S. Comerciais, embora aí o legislador seja mais expressivo ao esclarecer que a ação de anulação da deliberação pode ser proposta por qualquer sócio que não tenha votado no sentido que fez vencimento nem posteriormente tenha aprovado a deliberação, expressa ou tacitamente.
E é este, também, o sentido a que nos temos vindo a referir.
Sobre essa solução legal escreve Carlos Olavo (ibidem), “a este propósito, a lei estabelece uma restrição, cuja razão de ser é evidente, a saber, impõe que o sócio não tenha votado no sentido que fez vencimento”(nosso sublinhado)».
Perfilhando esse entendimento, atento o disposto no artigo 178.º, n.º 1, do Código Civil, só dispõe de legitimidade processual para impugnar em juízo uma deliberação, o associado que não aderiu à mesma, ou seja, que não votou favoralmente.
No despacho saneador já foi afirmada a legitimidade processual das partes.
A legitimidade processual constitui um pressuposto de conhecimento oficioso (cfr. o art. 578º do mesmo Código). Assim, o Tribunal da Relação pode de o mesmo conhecer oficiosamente por referência ao segmento decisório sob reapreciação), considerando que, no despacho saneador oportunamente proferido, o Tribunal da Primeira Instância apreciou a questão da legitimidade das partes mediante a afirmação genérica, em termos tabelares, de que as partes se mostram dotadas de legitimidade.
Importa, então, aferir se se verifica o pressuposto da legitimidade activa.
A Assembleia Geral é o órgão deliberativo por excelência, a quem cabe a formação da vontade interna da associação. Só os associados portadores de direitos e deveres na formação da vontade do colectivo da associação que não tenham aprovado a deliberação, podem arguir a sua anulabilidade.
Dispunha a autora do direito de participar e votar na Assembleia Geral realizada em 25 de Setembro de 2021?
As associações sem fim lucrativo regem-se, por força do artigo 157º do Código Civil, pelos artigos 167º a 184º do mesmo diploma.
Assim, lê-se no art. 167.º, n.º 1 do CC que o «acto de constituição da associação especificará os bens ou serviços com que os associados concorrem para o património social, a denominação, o fim e sede da pessoa colectiva, a forma do seu funcionamento assim como a sua duração, quando a associação se não constitua por tempo indeterminado». São, pois, estes os conteúdos de carácter imperativo do acto de constituição e dos seus estatutos.
Mais se lê, no art. 167.º citado, no seu n.º 2, que os «estatutos podem especificar ainda os direitos e obrigações dos associados, as condições da sua admissão, saída e exclusão, bem como os termos da extinção da pessoa colectiva e consequente devolução do seu património». São, pois, estes conteúdos de carácter facultativo dos estatutos da associação, não obstante a importância de que, indiscutivelmente, se revestem para a associação e os seus associados.
Todavia, dada a especificidade de certas associações implicar a sua inserção num quadro normativo que contempla a sua peculiar natureza e escopo, a par da regulação do Código Civil, podem existir leis-quadro definidoras das particularidades do ente associativo de modo a agilizar o seu funcionamento. É, assim, que as instituições privadas de solidariedade social em geral, têm o seu estatuto legal definido pelo Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro.
Em suma, a lei define um mínimo normativo que deve ser incorporado nos estatutos, ou não ser contrariado por eles, não só para assegurar o cumprimento de regras basilares gerais e abstractas, como também, para assegurar, a protecção dos associados e dos seus direitos.
Em anotação ao artigo 167º do Código Civil, referem Pires de Lima/Antunes Varela[9], que o “nº 1 do mesmo tem carácter imperativo; indica-se nele aquilo que deve constar dos estatutos. O nº2 atribui uma faculdade; indica-se o que pode constar dos estatutos, aliás, exemplificadamente. O acto constitutivo e os estatutos são duas peças fundamentais criadoras do substrato da associação, que podem, aliás, reunir-se no mesmo instrumento jurídico. O primeiro lança as bases da associação; os estatutos fixam a sua regulamentação, traçam o seu regimento. Um e outros hão-de exprimir a vontade unânime dos associados”.
Os direitos conferidos a cada um dos associados depende do que a esse respeito se mostre estipulado nos estatutos de cada associação em particular, pois só assim, se compreende que no normativo legal contido no citado art. 167º do CC, se contemple a possibilidade dos estatutos poderem especificar os direitos e obrigações dos seus associados.
Dispõe o artigo 47º dos Estatutos da ré que “A Assembleia Geral é o órgão máximo da Instituição, sendo constituída por todos os sócios efectivos, devidamente presentes ou representados, que estejam em pleno gozo dos seus direitos”, estipulando o nº1 do artigo 57.º que Cada sócio dispõe de um voto”.
Sobre o funcionamento da Assembleia, dispõe o artigo 175.º do Código Civil, “A assembleia não pode deliberar, em primeira convocação, sem a presença de metade, pelo menos, dos seus associados” e nos termos do nº2, “Salvo o disposto nos números seguintes, as deliberações são tomadas por maioria absoluta de votos dos associados presentes”, estipulando, por sua vez, o nº3 que “Os estatutos podem exigir um número de votos superior ao fixado nas regras anteriores”.
Sobre a “privação do direito de voto”, dispõe o artigo 176º do Código Civil que “O associado não pode votar, por si ou como representante de outrem, nas matérias em que haja conflito de interesses entre a associação e ele, seu cônjuge, ascendentes ou descendentes”.
Em anotação a este artigo, refere José Alberto Gongález [10] que “Fora deste contexto, o associado não pode ser privado do seu direito de voto (a menos que sejam admissíveis disposições estatutárias que façam depender de certa qualidade o reconhecimento da titularidade deste direito)”.
Dispõe o artigo 6º dos Estatutos da ré que “Os sócios distribuem-se pelas categorias seguintes:
a) – Fundadores;
b) – Efectivos;
c) – Menores;
d) – Beneméritos;
e) – De Mérito;
f) – Honorários”.
Nos termos do artigo 8º dos Estatutos da ré, “São sócios Efectivos todas as pessoas singulares com mais de dezoito anos de idade, como tal admitidas pela Direcção, que paguem uma quota mensal mínima no montante fixado pela Assembleia Geral”.
A questão que urge resolver consiste em determinar se o não pagamento das quotas tem como efeito automático a perda do direito de voto?
Consta do artigo 54.º do referido Decreto-Lei 119/83, de 25/02, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 172-A/2014, de 14 de Novembro, que “…Dos estatutos das associações devem constar, para além das matérias referidas nos artigos 10.º e 53.º, as condições de admissão e saída dos associados, os seus direitos e obrigações e as sanções pelo não cumprimento dessas obrigações”.
E nos termos do nº1 do artigo 56º dos Estatutos, “O direito de voto efetiva-se mediante a atribuição de um voto a cada associado”.
Sobre os “direitos e deveres dos sócios” dispõe o nº1 do artigo 16º dos Estatutos: “São direitos dos sócios efectivos: a) - Usufruir de qualquer benefício integrado nos fins da Instituição; b) - Intervir e votar nas reuniões da Assembleia Geral, decorridos que sejam seis meses sobre a data da sua admissão, excepto em deliberações de natureza eleitoral, em que é exigido que esteja decorrido um ano sobre a data da sua admissão; …”.
Dispõe o nº3 do artigo 16º dos Estatutos que “O sócio efectivo que usufruir de benefícios concedidos pela Instituição, ou que exercer cargo ou função remunerada na Instituição, não pode intervir nem ter voto em matérias que directamente lhe respeitem ou que respeitem a seus familiares”.
Nos termos do artigo 18.º dos Estatutos, “É dever dos sócios contribuir para a realização dos fins da Instituição por meio de quotas, donativos ou serviços, nomeadamente:
a) - Cumprir as normas estatutárias, os regulamentos internos, as ordens de serviço e as instruções da Direcção;

i) - Efectuar, dentro dos prazos estabelecidos, o pagamento das quotas e de outras
contribuições obrigatórias;
j) - Participar, dentro de trinta dias, as mudanças de residência ou do local de pagamento
de quotas, para efeito da boa regularidade dos serviços de expediente e de tesouraria”.
Decorre das disposições estatutárias que adquirem a categoria de sócios efectivos aqueles que pagam uma quota mensal, assistindo-lhes o direito de voto nas assembleias.
Sobre as quotas, dispõe o nº1 do artigo 19º: “O montante das quotas é fixado por deliberação da Assembleia Geral, sob proposta da Direcção, e ouvido o Conselho Geral, dispondo o nº2 que “O sócio poderá pedir, requerendo à Direcção, a suspensão temporária do pagamento da quotização, por motivo de desemprego ou de doença prolongada”.
Sobre os efeitos da suspensão, dispõe o artigo 19º, no seu nº4, que “A suspensão, torna não exigível a obrigação de pagamento de quotas pelo período de tempo em que decorrer, salvo se vier a verificar-se que o sócio tinha possibilidades financeiras para o seu pagamento apesar do motivo que determinou tal suspensão”, estipulando o nº 6 que “Durante o período de suspensão da obrigação de pagamento de quotas o sócio em causa não poderá usufruir dos direitos preceituados nas alíneas b) a e) do n.º 1 do Artigo 16.º”.
Em suma, pedindo o associado a suspensão do dever de pagamento das quotas, durante a suspensão não pode “intervir e votar nas reuniões da Assembleia Geral…”.
Resulta da matéria de facto provada que a autora é associada da ré desde 16 de outubro de 1996, com o nº ..., e à data da convocatória e da assembleia geral de 25/09/2021, tinha quotas em dívida, vencidas, relativas a todos os meses de 2020 e de Janeiro a Setembro de 2021.
Não se encontra demonstrado que a autora tenha solicitado a suspensão do pagamento de quotas, pelo que não tem aplicação o disposto no nº6 do artigo 19º dos Estatutos.
E qual a consequência do não pagamento das quotas?
Na Secção III com o título “Dos direitos e deveres dos sócios enquanto utentes dos serviços da Instituição ou enquanto profissionais ao seu serviço”, consta do nº2 do artigo 20º que:
“A violação dos deveres regulamentares ou contratuais dos sócios que sejam utentes, ou representantes legais de utentes, dos serviços da Instituição será também considerada para todos os efeitos como uma violação dos deveres estatutários dos sócios e ficará sujeita cumulativamente, para além da responsabilidade regulamentar e contratual aplicável, a eventual acção e sanção disciplinar enquanto sócio da Instituição, nos termos do Capítulo III destes Estatutos”.
A acção disciplinar encontra-se prevista no Capítulo III, dispondo o artigo 22º dos Estatutos que “Incorre em responsabilidade disciplinar o sócio que (a) [d]eixe de pagar seis mensalidades consecutivas de quotas e que não regularize a situação no prazo de 30 dias depois de avisado pela Direcção, sob registo de correio ou por protocolo, para regularizar a sua situação”, sendo “As sanções disciplinares aplicáveis …”:a) Advertência; b) – Repreensão; c) – Suspensão por período determinado; d) – Expulsão de Sócio.
Não se encontra demonstrado que a autora tenha sido notificada nos termos regulados no segmento final da alínea a) do artigo 22 dos estatutos e que, nessa sequência, tenha sido instaurada acção disciplinar e aplicada qualquer das sanções previstas, nomeadamente a suspensão.
Sendo estas as normas estatutárias, o não pagamento das quotas não tem como efeito automático a perda do direito de voto.
Sob a epígrafe “Associados. Direitos e Deveres”, dispõe o artigo 55.º do Decreto-Lei 119/83, que:
1 - Considera-se dever fundamental dos associados contribuir para a realização dos fins institucionais por meio de quotas, donativos ou serviços.
2 - Salvo disposição estatutária em contrário, a qualidade de associado não é transmissível, quer por acto entre vivos, quer por sucessão.
3 - O associado que por qualquer forma deixar de pertencer à associação não tem direito a reaver as quotizações que haja pago, sem prejuízo da sua responsabilidade por todas as prestações relativas ao tempo em que foi membro da associação.
4 - Os associados não podem ser limitados nos seus direitos por critérios que contrariem o disposto no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição.
5 - Os estatutos não podem reduzir os direitos dos sócios pelo facto de estes serem também seus trabalhadores ou beneficiários, salvo no que respeita ao voto nas deliberações respeitantes a retribuições de trabalho, regalias sociais ou quaisquer benefícios que lhes respeitem”.
Argumenta a Recorrente que dos “n.ºs 4 e 5 do artigo 55.º do referido Decreto-Lei 119/83, de 25/02, relativamente aos associados das IPSS, podem existir critérios de limitação ao exercício dos respetivos direitos dos associados desde que, os referidos critérios não se sustentem em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual, conforme preceitua o referido artigo 13.º da Lei Fundamental”, para extrair a conclusão que “um associado que não tenha pago as suas quotas em devido tempo, quando o poderia ter feito, não tendo dado, assim, adequado cumprimento ao seu dever de sócio, fica o mesmo impedido pelos respetivos estatutos, de poder participar e votar na assembleia geral da instituição”.
Porém, não resulta dos Estatutos da ré que o não pagamento das quotas tem como sanção a perda do direito de participar e de votar nas Assembleias Gerais.
Argumenta, ainda, a Recorrente que a “suspensão que tenha sido requerida torna não exigível a obrigação de pagamento de quotas pelo período de tempo em que decorrer o motivo que determinou a suspensão do pagamento” e o “artigo 19.º, n.º 6 dos Estatutos estabelece que, durante o período de suspensão da obrigação de pagamento de quotas, o sócio que suspenda o pagamento das quotas não poderá usufruir dos direitos preceituados nas alíneas b) a e) do n.º 1 do artigo 16.º dos estatutos, ou seja, não poderá designadamente, o que no caso sub judice interessa analisar, intervir e votar nas reuniões da Assembleia geral”, extraindo da articulação destas duas normas que Se estas restrições são aplicáveis aqueles sócios que estão dispensados de pagamento por decisão da direção, por maioria de razão, serão estas mesmas restrições aplicáveis aos sócios que, por razões estranhas à direção, estão em pleno incumprimento na sua obrigação de pagamento de quotas, como era o caso da aqui Autora nos presentes autos”.
Conforme já se referiu, não existe qualquer norma nos Estatutos da ré que estipule como efeito automático a perda do direito de participar ou de votar na assembleia geral em consequência do não pagamento das quotas na data do respectivo vencimento. Aliás, se o não pagamento das quotas implicasse automaticamente a perda do direito de voto, não se mostrava necessária a norma constante do nº6 do artigo 19º dos Estatutos pois, bastava a verificação do facto [não pagamento]. Esta norma vem reforçar a conclusão que os Estatutos não cominam o não pagamento das quotas com a perda do direito de participar e de votar nas assembleias.
Repare-se que a autora foi convocada por carta para a assembleia a realizar presencialmente nas instalações da ré, não resultando da matéria de facto provada que tenha sido advertida que estava privada de o direito de participar e de votar na Assembleia, excepto se procedesse ao pagamento das quotas.
Em conclusão, o não cumprimento do dever de pagar a quota não implica a perda imediata do direito de participar e votar na assembleia geral.
Pelo exposto, a autora dispõe de legitimidade processual para pedir que seja anulada a deliberação da assembleia com fundamento na irregularidade na convocação para a mesma.
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3ª Questão
Sustenta a Recorrente que “todos os formalismos de convocatória da Assembleia cuja deliberação foi impugnada foram deviamente cumpridos e respeitados, designadamente quanto aos prazos e teor da convocatória, não dispondo a ré de tempo útil para expedir e entregar 2508 cartas, face à alteração da assembleia de presencial para online imposta pela DGS.
Dispõe o artigo 49º dos Estatutos da ré que:
“1. As reuniões da Assembleia Geral são convocadas pelo seu Presidente ou por quem legalmente o substitua, com a antecedência mínima de quinze dias, por afixação da convocatória na sede da Instituição e por meio de aviso postal expedido para cada associado.
2. Caso a Instituição disponha de um endereço de correio electrónico indicado pelo sócio para efeito de recepção de convocatórias, a convocação por aviso postal é substituída pelo envio de correio electrónico.
3. Independentemente das convocatórias, é dada publicidade à realização das Assembleias Gerais no sítio institucional da instituição e em aviso afixado em locais de acesso ao público nas instalações e estabelecimentos da Instituição.
4. Da convocatória deve constar a indicação do local, dia, hora, ordem de trabalhos e disposições estatutárias em que se fundamenta a convocação.
5. Logo que a convocatória seja expedida, os documentos referentes aos diversos pontos da ordem de trabalhos devem estar disponíveis para consulta dos sócios na sede e no sítio institucional da Instituição. O relatório e contas de gerência, com o respectivo parecer do Conselho Fiscal, devem estar disponíveis para consulta pelos sócios que o requeiram, pelo menos durante os quinze dias anteriores à reunião da Assembleia Geral que os tiver de apreciar e votar”.
Resulta da matéria de facto provada que a autora é associada da ré desde 16 de Outubro de 1996, com o nº ....
No dia 25 de Setembro de 2021, agendada para as 09h, mas que teve início pelas 10h, realizou-se nas instalações/sede da ré, uma assembleia geral ordinária. Estiveram presentes, na assembleia geral, setenta e sete sócios, dos quais quarenta e quatro fisicamente no local da reunião e trinta e três a intervir pela plataforma “Zoom”. A autora não participou na assembleia, nem nela votou.
No dia 10 de Setembro foram enviados aos sócios os avisos com o teor da convocatória, pelas seguintes vias: por carta para 2508 sócios, incluindo a autora; a convocatória foi enviada por e-mail para os membros que o haviam fornecido para esse efeito; e foi entregue em mão a um número não concretamente apurado de sócios, residentes ou domiciliados no Lar da ré, utentes e trabalhadores, residentes ou com domicílio profissional nas instalações da instituição.
A convocatória foi publicada no sítio institucional da ré na internet antes do dia 10 de Setembro e o anúncio convocatório da assembleia geral foi afixado nos locais de acesso ao público das instalações da ré, com informação expressa do local, dia, hora, ordem de trabalhos e disposições estatutárias em que a convocação se fundamentava.
A autora teve conhecimento da realização dessa assembleia geral, em data não apurada.
A autora nunca forneceu à ré um endereço de correio eletrónico para envio das convocatórias das reuniões da assembleia geral.
Sendo esta a factualidade, considera-se eficaz a notificação da declaração consubstanciada na convocatória que teve como destinatária a autora/apelada, para a assembleia geral a realizar, presencialmente, no dia 25 de Setembro de 2021, nas instalações da ré.
Dispõe o artigo 224º do Código Civil que “A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou dele é conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada”, acrescentando, no seu n.º 2 que “É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.”
Sobre a interpretação destas regras, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela[11]: «As duas espécies de declarações previstas no nº1 são correntemente designadas por recipiendas (ou receptícias) e não recepiendas (ou não receptícias). As primeiras, como se dirigem a alguém não podem ser eficazes pela simples emissão da declaração (…). Adoptaram-se, quanto às primeiras, simultaneamente os critérios da receção e do conhecimento. Não se exige, por um lado, a prova do conhecimento por parte do destinatário; basta que a declaração tenha chegado ao seu poder. O conhecimento presume-se nesse caso, juris et de jure. (…).
No nº2, como medida de protecção do declarante, considera-se eficaz a declaração que não foi recebida por culpa do declaratário. É o caso por exemplo, de este se ausentar para parte incerta ou de se recusar a receber a carta, ou de a não ir levantar à posta-restante como o fazia usualmente”.
A convocatória dos associados para a realização de assembleias gerais das associações é uma declaração receptícia, uma vez que tem destinatário determinado, mostrando-se eficaz logo que chegue ao poder do seu destinatário ou é dele conhecida, como decorre do art. 224º, n.º 1, do CC.
Incumbia à ré o ónus da prova de que efectuou a convocatória por modo regular, por ser este requisito constitutivo de validade do próprio acto deliberatório e a sua prova, nos moldes acima elencados, obsta à anulabilidade arguida (cfr. artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
Por sua vez, incumbia ao destinatário, no caso a autora, provar que não teve conhecimento da carta por razões que não lhe são imputáveis. O que não logrou fazer. No caso dos autos, a carta, contendo a convocatória, foi expedida pelo correio para a morada da autora, Travessa ... Maia, ou seja, foi colocada ao seu alcance, estando esta em condições de, só com a sua actividade, conhecer o conteúdo dessa carta. Nada foi alegado – nem provado - pela autora que demonstre que o não recebimento da carta foi motivado por acto da ré ou de terceiro, caso fortuito ou de força maior, havendo por isso que concluir que caso não tenha sido recepcionada – não se encontra demonstrado que não recebeu a carta - tal facto ocorre porque não quis receber a carta. Expedida a carta para a morada da autora, esta não pode deixar de diligenciar no sentido de receber as cartas que lhe são remetidas e estar atenta a tal ocorrência.
Pelo exposto, mostra-se operante a notificação, por aplicação da regra do n.º 2 do artigo 224.º do Código Civil[12].
Assim, com o envio da primeira convocatória, mostram-se cumpridas todas as formalidades impostas pelo artigo 49º dos Estatutos.
Porém, após expedição da carta, a ré, no dia 22 de Setembro de 2021, alterou o meio de realização da assembleia geral, ou seja, três dias antes da data designada, passando de um formato presencial para um formato online para os membros externos.
Não foi expedida convocatória para a autora, dando conhecimento que a assembleia geral não ia ser realizada presencialmente mas, em formato on line.
Decorre da matéria de facto provada que à data da assembleia, residiam no Lar pessoas idosas, em número não apurado, pessoas fisicamente débeis e alguns infetados com o vírus sarscov-2, razão pela qual a DGS impôs regras para a realização da assembleia referidas que foram recepcionadas pela ré pelas 13h03m do dia 20 de setembro de 2021, na sequência do pedido de solicitação de instruções formulado pela ré, no dia 26 de Agosto de 2021. Na sequência de orientações que lhe foram dirigidas por parte da Direção Geral de Saúde, a 20 de Setembro de 2021, para que a assembleia do dia 25 de Setembro decorresse de forma virtual para os membros externos, sendo a participação destes por videoconferência, a ré, no dia 22 de Setembro de 2021, alterou o meio de realização da assembleia geral, ou seja, três dias antes da data designada, passando de um formato presencial para um formato on line para os membros externos. As orientações da Direção Geral de Saúde foram comunicadas através de uma actualização da convocatória publicitada no sítio da ré, no dia 22 de Setembro de 2021 e no respetivo Facebook, e foram transmitidas, em 23 de Setembro de 2021, aos membros da ré que haviam sido convocados por correio eletrónico, por essa mesma via. O link para acesso virtual à assembleia geral foi comunicado aos membros da ré convocados por correio eletrónico, por essa mesma via, no dia 24/09/2021.
Esta alteração do meio de realização da assembleia não foi informada aos membros da ré cuja convocatória havia sido feita por carta, ou seja, a 2508 associados, onde se inclui a autora.
Em cumprimento das orientações da Direção Geral de Saúde, a assembleia geral decorreu por via virtual para os membros externos e de forma presencial apenas para os associados internos – dos quais, vários idosos – e para os elementos dos órgãos sociais, tendo sido vedada a entrada no espaço físico aos membros externos.
Estiveram presentes, na assembleia geral, setenta e sete sócios, dos quais quarenta e quatro fisicamente, no local da reunião, e trinta e três a intervir pela plataforma “Zoom”. A autora não participou na assembleia, nem nela votou. Os serviços da portaria foram instruídos para não deixar entrar os sócios que não pudessem participar presencialmente.
Poder-se-á considerar que se mostra efectuada a convocatória nos termos previstos no artigo 49º dos Estatutos? A resposta não pode deixar de ser negativa.
Pronunciando-se sobre a “alteração ao modo de realização da assembleia, que não foi comunicada aos membros convocados por carta, nomeadamente à autora”, decidiu o Tribunal a quo “Apenas os associados convocados por email foram avisados dessa alteração. Apurou-se que essa alteração também foi publicada online (site e Facebook). A questão seguinte que se coloca ao Tribunal é então a de saber se era exigível e se era possível à ré avisar os sócios que foram convocados por carta, desta alteração. E, na negativa, o que deveria ter feito a ré.
Os estatutos apenas preveem o modo de convocatória, nada dizendo quanto às alterações à mesma.
Contudo, entende-se que, se a alteração contende com a forma de realização da assembleia, afigura-se que deveria observar a mesma forma que a convocatória original estando, por conseguinte, a ré em falta para com os membros que receberam a convocatória por correio.”
A convocatória expedida para a autora – e para 2507 associados – menciona a assembleia geral a realizar, em modo presencial, nas instalações da ré. A assembleia geral não foi precedida de qualquer convocatória expedida com a antecedência “mínima de quinze dias”, a dar conhecimento da sua realização on line e não em formato presencial.
Segundo o previsto no artigo 49º dos Estatutos da ré, a convocação devia ser feita com, pelo menos, quinze dias de antecedência, e por meio de aviso postal, relativamente aos associados que não tivessem disponibilizado um endereço de correio electrónico.
Escreve Manuel Vilar de Macedo[13], “As associações podem valer-se da publicação do aviso convocatório nos mesmos termos dos actos societários, i. e, por publicação na página da Internet destinada a esse fim. Esta forma de convocação, porém, só pode ser usada pela associação se estiver prevista nos estatutos. Se os estatutos da associação não contemplarem a convocação por via electrónica, as deliberações tomadas numa assembleia convocada por esse meio serão anuláveis, por força do disposto no artigo 177º”.
Em segundo lugar, a análise dos factos não pode prescindir da sua contextualização no quadro temporal em que ocorreram. Consta da decisão recorrida “Acresce que, à data, eram amplamente conhecidas e frequentemente divulgadas na comunicação social as restrições que constantemente surgiam em eventos com várias pessoas e muito em especial em eventos com a envergadura da assembleia em apreço: com mais de dois milhares de pessoas, alguns dos quais idosos…”.
Concorda-se com o Tribunal a quo. À data, não era indiferente a assembleia geral ser realizada de modo presencial ou online. Isso mesmo encontra-se espelhado na matéria de facto considerada provada.
Consta da matéria de facto provada que:
- À data da assembleia residiam no Lar pessoas idosas, em número não apurado, pessoas fisicamente débeis e alguns infectados com o vírus sarscov-2.
- Houve sócios residentes que não puderam participar por estarem em situação de confinamento por infecção ou suspeita de infecção; outros, não confinados, preferiram recatar-se por se sentirem mais seguros.
- A situação de pandemia que se vivia no país fez com que muitos sócios não tenham querido comparecer.
- A alteração do meio de realização da assembleia não foi informada aos membros da ré cuja convocatória havia sido feita por carta, portanto a 2508 associados, onde se inclui a autora.
- Naquela ocasião, as pessoas evitavam locais onde estivessem em contacto com muita gente.
- A participação por meios telemáticos não era um hábito instalado por forma a que as pessoas se sentissem incentivadas a intervir.
Decorre do exposto que o modo de realização – on line ou presencial – não é indiferente pois, a predisposição dos associados para a realização de uma assembleia geral em modo on line ou em molde presencial não era a mesma, na situação pandémica. Recebida a convocatória a comunicar a realização de uma assembleia geral em formato presencial, não se pode considerar regularmente convocado o associado se, três dias antes, a instituição altera o modo de funcionamento dessa assembleia para formato on line.
Concluiu o Tribunal a quo que “a alteração da convocatória não observou o formalismo legalmente imposto para as convocatórias…”.
Concorda-se com o decidido.
Mas uma vez se convoca a matéria de facto provada. A ré alterou o meio de realização da assembleia geral em causa no dia 22 de Setembro de 2021, ou seja, três dias antes da data designada, passando de um formato presencial para um formato online para os membros externos. Fê-lo na sequência de orientações que lhe foram dirigidas por parte da Direção Geral de Saúde, emanadas a 20 de Setembro de 2021, para que a assembleia do dia 25 de Setembro decorresse de forma virtual para os membros externos, que deveriam participar por videoconferência, à distância. As orientações da Direção Geral de Saúde foram comunicadas através de uma actualização da convocatória publicitada no sítio da ré, no dia 22 de Setembro de 2021 e no respetivo Facebook, e foram transmitidas, em 23 de Setembro de 2021, aos membros da ré que haviam sido convocados por correio eletrónico, por essa mesma via, ou seja, a alteração do meio de realização da assembleia não foi informada aos membros da ré cuja convocatória havia sido feita por carta, portanto, a 2508 associados, onde se inclui nomeadamente a autora”.
A assembleia geral visa a formação da vontade colectiva, pelo que a convocatória dirigida aos associados é de extrema importância. Deve ser efectuada de modo a permitir a participação do maior número possível de associados o que só sucederá se, com transparência, comunicar a todos, com a antecedência imposta nos estatutos, da data da sua realização, mas, também, do local e modo de realização.
Argumenta a Recorrente, na sua motivação, que “tendo em atenção os tempos que vivemos, designadamente naquelas datas de 2020 e 2021, muito especialmente a pandemia que assolou o país e o mundo - e que causou essa alteração, alheia à recorrente, a verdade é que sobre os cidadãos passou a impender um dever acrescido de informação e atualização no que respeitava às concentrações de pessoas, designadamente em espaços fechados. Foram amplamente conhecidas as restrições que constantemente foram sendo colocadas em eventos com várias pessoas e muito em especial em eventos com a envergadura da assembleia em apreço - com bem mais de dois milhares de pessoas, alguns dos quais idosos - e que demandam do cidadão mediano especiais cautelas e atenções, sendo, de resto, já habitual que os mesmos decorriam online e isso era plenamente de conhecimento público e alvo de sistemática análise e discussão em todos os meios de comunicação social.
Não assiste razão à Recorrente.
A convocatória para a assembleia geral, a realizar no dia 25 de Setembro de 2021, nas instalações/sede da ré, foi publicada, na internet, no sítio institucional desta, antes do dia 10 de Setembro. Foram expedidas cartas datadas de 10 de Setembro de 2021, para convocação para a assembleia geral, a realizar no dia 25 de Setembro de 2021, nas instalações/sede da ré. Significa que toda esta actuação da ré ocorreu durante o estado de contingência, decretado em 20 de Agosto de 2021 [14] que permaneceu até 21 de Setembro de 2021. Não é exigível a um cidadão que receba uma convocatória para uma assembleia geral, em formato presencial, após decretado o estado de contingência com termo previsto para 21 de Setembro de 2021, diligencie, entre o dia 22 e 25 de Setembro, no sentido de aferir se ocorreram alterações/restrições no modo de funcionamento da Assembleia. Se a instituição não considerou a situação de pandemia quando agendou a Assembleia, nem o estado de contingência declarado em 20 de Agosto de 2021 e com vigência até 21 de Setembro de 2021, qual a razão para, terminado esse estado, os associados averiguarem em 22 de Setembro, se haviam sido impostas medidas excepcionais?
Refere a Recorrente que “foram amplamente conhecidas as restrições que constantemente foram sendo colocadas em eventos com várias pessoas e muito em especial em eventos com a envergadura da assembleia em apreço - com bem mais de dois milhares de pessoas, alguns dos quais idosos -e que demandam do cidadão mediano especiais cautelas e atenções, sendo, de resto, já habitual que os mesmos decorriam online e isso era plenamente de conhecimento público e alvo de sistemática análise e discussão em todos os meios de comunicação social”.
Importa ter presente que é precisamente esse contexto que a Recorrente não tomou em atenção quando procedeu ao agendamento da Assembleia. E não podia deixar de fazê-lo pois, consciente que “a pandemia que assolou o país e o mundo” e da inviabilidade de “concentrações de pessoas, designadamente em espaços fechados”, solicitou informação à DGS. O dever de diligência impunha-se, antes de mais, à própria Recorrente que consciente das “restrições que constantemente foram sendo colocadas em eventos com várias pessoas e muito em especial em eventos com a envergadura da assembleia em apreço - com bem mais de dois milhares de pessoas, alguns dos quais idosos-“, agendou uma assembleia, sem tomar as medidas impostas pela situação epidemiológica.
Argumenta a Recorrente que “a alteração da assembleia de presencial para online não foi unilateralmente decidida pela ré, mas imposta pela DGS, por força das restrições que, à data vigoravam no país, decorrente da pandemia que assolava o país. Ou seja, o motivo da alteração foi alheio e externo à ré”.
Não pode concordar-se com a afirmação da Recorrente. A situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID-19, não foi uma novidade com a qual a ré tivesse sido surpreendida em 21 de Setembro de 2021. Pelo contrário. A situação de pandemia motivou a declaração do estado de emergência, por Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março. Em 30 de Abril de 2021, terminou o estado de emergência. Em 1 de Maio de 2021, foi declarado o estado de calamidade, tendo passado para o estado de contingência, em 20 de Agosto de 2021 que permaneceu até 21 de Setembro de 2021. Não pode, assim, a ré alegar que foi surpreendida pelas orientações comunicadas pela DGS. Tanto assim é que consciente das medidas excepcionais de resposta à situação epidemiológica, a ré solicitou, à DGS, instruções, no dia 26 de Agosto de 2021. Todavia, ao invés de aguardar a informação solicitada, procedeu ao agendamento da assembleia geral, sem diligenciar pelo apuramento das medidas necessárias, no contexto da pandemia. Invoca a Recorrente que a autora não “agiu com a diligência devida para tratar de cumprir com as obrigações que deveria ter tratado”; no entanto, foi a Recorrente quem agendou uma assembleia geral, em contexto de pandemia, sem tomar em consideração o impacto da pandemia. A impossibilidade de envio, em tempo útil, de 2508 convocatórias, aos associados com o propósito de lhes dar conhecimento da realização em formato on line da assembleia, só pode ser imputada à ré/Recorrente que não actuou com a diligência que lhe era imposta, agendando a assembleia sem tomar em consideração a situação epidemiológica que era vivida e sem aguardar as orientações/instruções da DGS.
De todo o modo, não explicou a recorrente por que razão a assembleia geral não poderia ocorrer noutra data posterior mas inexoravelmente na que inicialmente comunicou.
Por último, para se extrair a conclusão pretendida pela Recorrente que a autora não compareceu porque não quis era necessário que da factualidade provada constasse que esta tomou conhecimento, com antecedência da realização da assembleia geral, em formato on line, em 25 de Setembro de 2021, o que não sucede. Da circunstância da autora ter “sido trabalhadora do Lar” ou ter “contactos com outros sócios” não é possível, por si só, extrair a conclusão que aquela tomou conhecimento da convocatória publicitada nas redes sociais e no sítio da ré.
Em conclusão, na convocatória da autora para a Assembleia Geral de 25 de Setembro de 2021, realizada on line, não foram observadas as formalidades impostas pelo artigo 47º dos Estatutos da ré.
A lei comina com a anulabilidade as deliberações que sejam tomadas em violação do disposto no artigo 174º do Código Civil, como resulta do disposto no artigo 177º do Código Civil, onde se prescreve «As deliberações da assembleia geral contrárias à lei ou aos estatutos, seja pelo seu objecto, seja por virtude de irregularidades havidas na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia, são anuláveis».
Não tendo a autora sido convocada, com a antecedência de 15 dias e por via postal, para a assembleia geral realizada em formato on line, no dia 25 de Setembro, a deliberação tomada nessa assembleia é anulável.
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4ª Questão
Sustenta a Recorrente que a impugnação pela autora constitui “manifesto abuso do direito nos termos configurados pelo artigo 334.º do Código Civil.
Por fim, e por tudo quanto vimos expondo, e sem considerandos desnecessários, não vemos como a actuação da autora seja enquadrável na figura do abuso do direito, porquanto, como resulta de forma evidente do art.º 334.º do C.C., para tal é necessário que haja um exercício ilegítimo de um direito, a aferir pelo excesso ditado pelos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Pelo exposto, improcede, na totalidade o recurso.
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Em suma, não colhem as conclusões do Apelante, havendo, por isso, de ser mantida a sentença recorrida.
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Custas
Atento o disposto no art. 527º, n.º 1, do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Assim, condena-se a Recorrente no pagamento das custas da apelação, face à improcedência do recurso.
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IV_ Decisão
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação pela Recorrente (artigo 527.º, nº 1, do C.P.Civil).
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Sumário:
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Porto, 19 De Dezembro de 2023
Anabela Morais;
Jorge Martins Ribeiro
Eugénia Cunha
_________________
[1] António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 7ª ed. actualizada, págs. 197 e 198.
[2] Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 18/5/2017, no Processo nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[3] António Geraldes, Luís Pires de Sousa e Paulo Pimenta, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3ª ed., Almedina, pág. 831.
[4] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Coimbra, 1999, pag. 52.
[5] Castro Mendes, Manual de Processo Civil, Coimbra, 1963, págs. 260, 261, 262.
[6] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/10/2015, Proc. 915/09.0TVPRT.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[7] Acórdão de 8/2/2018, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no processo nº409/17.0T8FAF.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[8] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/10/2012, processo nº255/12.8TVLSB-A.L1-6.
[9] Pires de Lima/Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, pag. 170.
[10] “Código Civil Anotado”, Quid Juris, 2ª ed., vol. I, pág. 253.
[11] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 214.
[12] Sobre a questão, decidiu o Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão de 16/12/2021, proferido no processo nº 4679/19.1T8CBR-C.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt: “Como ensinou Vaz Serra, in Provas, BMJ n.º 103, a pág. 32, não é quem envia uma carta para o domicílio de uma pessoa, que tem o ónus de saber se a mesma chegou ou não ao seu conhecimento, bastando que pratique todos os actos para que a mesma chegue ao seu destinatário, que leve a cabo a prática de actos necessários e suficientes que coloque o destinatário em condições de a receber e ter acesso ao respectivo conteúdo – neste sentido, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa, de 20 de Abril de 2006, Processo n.º 1827/2006-6, (citado pelo recorrido) disponível no respectivo sítio do ITIJ”
[13] Manuel Vilar de Macedo, “Regime civil das pessoas colectivas”, Coimbra Ed., 2008, pág. 98.
[14] Por Resolução n.º 114-A/2021, o Conselho de Ministros decidiu:” 1 — Declarar, na sequência da situação epidemiológica da COVID -19, até às 23:59 h do dia 30 de setembro de 2021, a situação de contingência em todo o território nacional continental….”